5
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como objetivo desenvolver critérios para a elaboração de
subsídios em vídeo para o Ensino Religioso nas escolas brasileiras. Surge da
constatação de que há uma lacuna não preenchida no Ensino Religioso brasileiro
quanto ao fornecimento de subsídios audiovisuais que correspondam à sua
implementação, concomitante às novas políticas educacionais e suas exigências de
inter-religiosidade e respeito à dignidade humana. O Ensino Religioso tem como
tarefa educar para o diálogo no mundo plural de hoje e promover a convivência na
alteridade e no respeito ao diferente. Num mundo de relações planetárias, o Ensino
Religioso se apresenta com dimensões que ultrapassam as fronteiras nacionais e
culturais e tem sido alvo de pesquisas tanto no Brasil quanto em outros países. A
Unesco publicou em junho de 2003 uma pesquisa sobre educação e religião 1 com o
objetivo de promover o desenvolvimento de valores universais tais como a paz e o
respeito aos direitos humanos através da prática do diálogo entre culturas e
religiões.
No Brasil, a atual disciplina curricular do Ensino Religioso busca atender à
necessidade fundamental de todo homem e mulher de se desenvolver plenamente,
de buscar sentido e valores que dêem orientação precisa e arrimo seguro a sua
existência.2 É um currículo com base antropológico-cultural que se abre para uma
abordagem madura do fenômeno religioso e, portanto, exige subsídios bem
diferentes dos até então oferecidos tradicionalmente nas escolas públicas e
particulares, marcados pelos limites de crença e filiação religiosa, ou pela laicidade
dos organismos governamentais. Diante desta nova postura curricular, esta pesquisa
em torno da produção audiovisual para o Ensino Religioso, faz uma abordagem
transdisciplinar do fenômeno. Se constitui também como um desafio porque visa
identificar e superar as ambiguidades e distorções tradicionalmente presentes nas
diversas expressões da religiosidade difundidas nas produções audiovisuais.
1
UNESCO / Agência Internacional de Educação. Education and religion: the paths of tolerance.
Prospects: Revista quadrimestral de educação comparada. v. XXXIII, n. 126, jun. 2003.
Quadrimestral.
2
Cf. RUEDEL, Pedro. Educação religiosa: fundamentação antropológico-cultural da religião
segundo Paul Tillich. São Paulo: Paulinas, 2007.
6
Além disso, os subsídios em vídeo produzidos pelas produtoras religiosas
apresentam dificuldades de falar numa linguagem apropriada para o educando do
século XXI. Constata-se que não há uma produção audiovisual voltada
especificamente para o Ensino Religioso no Brasil. Os professores utilizam diversos
gêneros de vídeos como subsídios motivadores de suas aulas: Filmes de ficção ou
de histórias bíblicas, documentários sobre religião ou religiões, vídeos pastorais e de
caráter confessional das diversas confissões religiosas. Porém, esse material nem
sempre é utilizado em todo o seu potencial, devido à distância entre a cultura
academicista do educador, de uma racionalidade marcadamente moderna, e a
cultura eletrônica do educando, marcadamente audiovisual. Essa situação se agrava
na educação religiosa porque há uma indisposição cultural do educando a essa
disciplina.
A temática do diálogo entre culturas e religiões é de grande importância no
atual contexto da educação brasileira. A produção de subsídios em vídeo com uma
abordagem transdisciplinar para o Ensino Religioso se apresenta não só como uma
oportunidade no campo da pesquisa, mas também como uma tarefa para o
desenvolvimento pleno do ser humano nas suas dimensões mais íntimas e
profundas. Nesta mesma perspectiva, é tarefa fundamental desta pesquisa contribuir
para o avanço do conhecimento científico no campo das Ciências da Religião,
proporcionando critérios para que o Ensino Religioso ajude as pessoas no seu
processo de exteriorização religoso-cultural, e assim contribua para o discernimento
do que há de verdadeiro e legítimo, em coerência com o sentido profundo dos seres
humanos inseridos num mundo plural.
A proposta é buscar uma epistemologia que dê critérios para uma educação
que fale na linguagem audiovisual. E a partir deste referencial epistemológico,
analisar uma das produções audiovisuais utilizadas pelos professores do Ensino
Religioso, que dê conta desta linguagem. O referencial de amostragem foi colhido
entre as produções mais indicadas pelos órgãos de fomento ao Ensino Religioso,
tais como a FONAPER - Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso, GPER –
Grupo de Pesquisas para o Ensino Religioso e a revista Diálogo, publicação
direcionada aos professores e pesquisadores da educação religiosa no Brasil.
Na primeira parte do Capítulo 1 será apresentada uma historiografia da
construção da legislação que regula o Ensino Religioso no Brasil. Na segunda parte
7
deste mesmo capítulo será feito um levantamento do campo religioso brasileiro,
identificando quais são suas principais manifestações e qual é a matriz religiosa que
define a experiência do sagrado. Essa pesquisa é importante para constatar se os
vídeos usados na educação religiosa contemplam a legislação e a pluralidade de
expressões do fenômeno religioso brasileiro e sua matriz subjacente.
No Capítulo 2 será realizada uma análise epistemológica com base nos
referenciais
teóricos
da
fenomenologia
da
religião3
numa
abordagem
transdisciplinar4 do fenômeno religioso. A abordagem fenomenológica é importante
nesta pesquisa porque não se trata do estudo dos fatos religiosos, mas da
abordagem destes fatos nos vídeos usados no Ensino Religioso. A fenomenologia
contribui para avaliar a intencionalidade destes testemunhos numa abordagem de
sentido. Diante da pluralidade dos fenômenos religiosos a fenomenologia oferece a
possibilidade de se estabelecer uma morfologia dos fatos religiosos imprescindível
para a investigação do significado de tais expressões. A transdisciplinaridade
oferece referenciais epistemológicos fundamentais para a pesquisa, tais como a
ideia de complexidade5, a concepção de diversos níveis de realidade 6 e a lógica da
inclusão (o terceiro incluído)7.
Ainda no Capítulo 2 será apresentado os referenciais epistemológicos para a
análise audiovisual. O principal referencial é a teoria da Modulação de Pierre Babin8.
A Modulação desenvolve critérios epistemológicos para a abordagem do fenômeno
religioso pela linguagem audiovisual através da imersão (envolvimento global),
vibração (conhecimento sensorial e analógico pela via do prazer) e ground (relação
entre o ambiente e a figura principal na elaboração da mensagem). A linguagem da
modulação é o ambiente ideal para fazer uma experiência intensa, sensitiva e
contemplativa do sagrado na cultura eletrônica. Mas não basta ficar neste nível, é
importante encontrar métodos para manter na audiência esta experiência. Nessa
3
Cf. CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: Uma introdução à
fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 24-27.
4
Cf. NICOLESCU, Barsarab. Fundamentos metodológicos para o estudo transcultural e
transreligioso. In: VVAA. Educação e transdisciplinaridade II. São Paulo: Triom, 2002.
5
Cf. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005.
6
Cf. BERNI, Luiz Eduardo. O vórtex sagrado-profano, uma zona de não-resistência entre níveis de
realidade. In: VVAA. Educação e transdisciplinaridade III. São Paulo: Triom, 2005.
7
Cf. NICOLESCU, op. cit.
8
Cf. BABIN, Pierre. Linguagem e cultura dos mídias. Lisboa: Bertrand, 1993.
8
perspectiva será proposto o Pluralismo Metodológico Integral de Ken Wilber9 como
referencial epistemológico para a construção de uma espiritualidade do audiovisual.
No Capítulo 3 será realizada a análise de um filme de ficção, representativo
dos filmes utilizados pelos professores do Ensino Religioso no Brasil para falar do
sagrado ou da religiosidade brasileira. Num primeiro momento será feita uma leitura
das categorias sonoras e visuais dessa produção, a partir de seus operadores
audiovisuais. Em seguida, a análise será enriquecida com os referenciais
epistemológicos estudados no capítulo precedente. Esta análise servirá também
para comprovar se há adequação à linguagem audiovisual e às exigências da
legislação brasileira na abordagem do fenômeno religioso no filme. Servirá também
para avaliar a adequação à matriz religiosa brasileira, em referência ao estudo
realizado no primeiro capítulo.
Com base nos resultados desta análise, nas exigências curriculares da
educação religiosa, nas principais características da matriz religiosa brasileira, e nos
referenciais teóricos da Transdisciplinaridade, da Modulação e do Pluralismo
Metodológico Integral, será proposta uma criteriologia para a produção de subsídios
em vídeo para o Ensino Religioso no Brasil, fundamentada em uma espiritualidade
mistagógica audiovisual.
9
WILBER, Ken. Espiritualidade integral: Uma nova função para a religião neste início de milênio.
São Paulo: Aleph, 2006.
9
1 HISTÓRIA DO ENSINO RELIGOSO NO BRASIL
1.1 História que se consolida nas leis
Para compreender o contexto atual do Ensino Religioso é imprescindível uma
abordagem histórica que recolha as principais reflexões que culminaram na
elaboração legal que orienta esta disciplina hoje. Além do enfoque histórico, é
imprescindível uma análise da legislação que subjaz à educação religiosa brasileira
nos diversos períodos da história do Brasil, que remonta não só ao período colonial,
mas tem suas raízes no período pré-histórico ou indígena.
Os objetos arqueológicos e os testemunhos da arte rupestre comprovam que,
muito antes da chegada dos europeus, os indígenas brasileiros já viviam sua
religiosidade própria. Dentre os testemunhos mais eloquentes se destacam as
pinturas rupestres realizadas em épocas pré-históricas, encontradas nos sítios
arqueológicos do Parque Nacional da Serra da Capivara, localizado no sudeste do
estado do Piauí, na região Nordeste do Brasil. O Parque está inscrito como
Patrimônio Mundial em razão de ser composto por uma densa concentração de
sítios arqueológicos, a maioria com pinturas e gravuras rupestres, nos quais se
encontram vestígios extremamente antigos da presença do homem, datados em
100.000 anos antes do presente. Atualmente estão cadastrados 912 sítios, entre os
quais, 657 apresentam pinturas rupestres, distribuídos em sítios ao ar livre,
acampamentos ou aldeias de caçadores-coletores e aldeias de ceramistasagricultores. As ocupações eram grutas ou abrigos, sítios funerários e sítios arqueopaleontológicos. Diferentemente das características dos sítios arqueológicos
europeus, onde os lugares escolhidos pelo homem pré-histórico para pintar foram os
interiores das cavernas, os registros rupestres do Parque Nacional da Serra da
Capivara foram as paredes dos abrigos sob rocha ao ar livre.
Estas pinturas apresentam características únicas, também presentes em
outros sítios arqueológicos do nordeste do Brasil, que levaram os pesquisadores a
classificá-las numa categoria conhecida como tradição Nordeste10. Além de
10
Cf. PESSIS, Anne-Marie. Das origens da religião no Brasil indígena. In: BRANDÃO, Sylvana (Org.).
História das religiões no Brasil. Recife: Editora da UFPE, 2004. v. 2, p. 211-250.
10
fornecerem informações sobre a vida cotidiana nas comunidades pré-históricas
desta região, as figuras indicam dados sobre suas manifestações rituais e crenças
religiosas. Representam o período inicial da experiência religiosa das comunidades
pré-históricas manifestada em ritos, agenciamentos míticos e manifestações
mágicas que foram se diversificando ao longo do tempo e configuram o panorama
cultural dos diversos grupos indígenas encontrados na época da invasão
portuguesa. Alguns dos padrões ritualísticos identificados nestas pinturas são
encontrados ainda hoje em tribos indígenas remanescentes destes povos da área do
norte-nordeste, como os Krahô e os Pankararu no sertão pernambucano. Mesmo
com a escassez de fontes históricas destas culturas identificadas desde a conquista
dos portugueses, há alguns relatórios sobre a vida e crença dessas comunidades.
Destaca-se o estudo de Anne-Marie Pessis que descreve a semelhança entre
elementos encontrados nas pinturas do Parque Nacional da Serra do Capivara com
os relatos orais, mitos e convicções dos Cariris11.
Os arqueólogos também recolhem valiosas informações dos rituais fúnebres
que são reconstituídos com o auxílio dos vestígios das escavações nos cemitérios
arqueológicos encontrados nestas regiões. Cemitérios como o da Pedra do
Alexandre, no sítio arqueológico do Seridó, no Rio Grande do Norte, e da Furna do
Estrago, no município de Brejo da Madre de Deus, em Pernambuco, apresentam
uma grande variedade de procedimentos utilizados em diferentes ocorrências
fúnebres de origem pré-histórica. A análise das disposições dos corpos ou dos
ossos, alguns pintados com tinta vermelha de óxido de ferro, bem como a análise
dos materiais e utensílios encontrados junto a esses sepultamentos, demonstram
que haviam práticas ritualísticas fúnebres. As distâncias cronológicas de sucessivos
sepultamentos nestes mesmos locais corroboram a hipótese da existência de
lugares sacralizados. Estas evidências levam os pesquisadores a concluir que esses
comportamentos padronizados ou ritualizados dos indígenas brasileiros cumpriam
uma função mnemotécnica fundamental para transmitir os conhecimentos
acumulados socialmente às novas gerações12. Tanto a ritualística quanto a
iconografia indígenas foram as primeiras formas milenares de transmissão da
tradição religiosa no Brasil, marcadamente narrativa, oral e visual.
11
Cf. PESSIS, 2004, p. 211-250.
12
Cf. Ibid., p. 237.
11
Com a armada de Tomé de Souza, chega ao Brasil o primeiro missionário
cristão, o jesuíta Manoel da Nóbrega. Assim que aportou, em 1549, deu início ao
trabalho de catequese dos indígenas. A motivação da empresa marítima portuguesa
estava intimamente ligada à evangelização e era justificada pela lenda corrente de
que São Tomé, o apóstolo das Índias, os precedera naquelas terras. O próprio
Manoel da Nóbrega corroborou a lenda ao escrever, poucos meses depois de sua
chegada ao Brasil, que “eles (os indígenas) têm memória do dilúvio [...] e dizem que
São Tomé, a quem chamam Zomé, passou por aqui”13. Mais tarde Anchieta repetiu o
mesmo na sua Informação do Brasil e de suas Capitanias à Coroa Portuguesa14. Os
colonizadores descobriram pegadas em rochas que atribuíram serem do apóstolo
acompanhado de um ajudante e ainda detectaram vestígios da pregação apostólica
nas crenças indígenas. Essas e outras crenças difundidas entre os colonizadores
eram fortes
argumentos para
o
discurso
evangelizador universalista
que
desconhecia as fronteiras do outro.
Durante o primeiro período colonial a evangelização se caracterizou pela
doutrinação da fé cristã. Os missionários utilizaram artifícios persuasivos para
doutrinar os índios através da eloquência da voz e dos gestos. O discurso
predominante era em prol do aumento da religião cristã através da pregação do
evangelho para a salvação das almas. Porém, a conversão dos gentios só acontecia
após a sujeição dos mesmos, o que levou a uma compreensão da “evangelização”
como justificativa da opressão e escravização dos indígenas e dos africanos trazidos
para o Brasil. Todo o processo missionário estava vinculado ao regime do padroado,
que era a institucionalização jurídica da relação de dependência entre o Papado e a
Coroa portuguesa. A Igreja delegava aos monarcas portugueses sua administração
eclesiástica e organização em seus domínios. Através do regime do padroado
Portugal controlava o envio de missionários, seus honorários e as correspondências
do clero com Roma. O regime do padroado impedia a comunicação do Papado com
o Brasil no primeiro período colonial. A administração colonial portuguesa tratava de
maneira diferente o clero das sedes coloniais, em detrimento dos missionários do
13
HOORNAERT, Eduardo. et al. História da Igreja no Brasil: Ensaio de interpretação a partir do
povo. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 24.
14
Cf. ANCHIETA, José de. Informação do Brasil e de suas capitanias, 1584. São Paulo: Obelisco,
1964.
12
interior. O número e a dispersão dos missionários no território brasileiro estava em
função do projeto de expansão colonial e não da evangelização.
Outra característica do período missionário no Brasil é que ele é formado por
movimentos missionários que correspondem a quatro momentos da colonização
portuguesa15. O primeiro movimento é o de conquista e ocupação da costa
brasileira, marcado pela cultura da cana-de-açucar; o segundo movimento é
marcado pela ocupação do interior brasileiro efetuado através dos rios, cuja principal
artéria foi o Rio São Francisco; o terceiro movimento foi o maranhense, por onde os
missionários realizaram a grande obra missionária na região norte; e o quarto
movimento, que é considerado um movimento de missão leiga, não clerical, ocorreu
na região de Minas Gerais. Estes movimentos missionários foram marcados por
ciclos que variavam desde o dinamismo do florescimento até a acomodação. Os
ciclos missionários passaram por vários conflitos. O conflito mais marcante resultou
na perseguição e consequente expulsão dos jesuítas em 1759 como decorrência de
seu trabalho missionário, em contraponto à Reforma Pombalina. O Marquês de
Pombal pretendeu introduzir a sociedade lusitana e brasileira na modernidade
européia liderada pela Inglaterra, com forte espírito anti-católico.16 A Reforma
Pombalina levantou as bandeiras do “progresso e da ciência” impregnadas pela
ideologia do racionalismo iluminista, da maçonaria, das doutrinas galicanas e
jansenistas e do liberalismo político-religioso.
A Instrução Religiosa, como era chamado o Ensino Religioso, foi um dos
principais elementos de sustentação ideológica do projeto colonial português. O
discurso doutrinário, fundamentado no Catecismo Romano, era fiel ao Concílio de
Trento. Era estruturado através da exposição de perguntas e respostas com vistas a
salvaguardar e expandir a fé católica. A doutrina deveria ser memorizada através de
fórmulas definidas antes de ser assimilada. As Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, de 1707, trazem a Breve Instrucçam dos Mystérios da Fé,
accomodada ao modo de fallar dos escravos do Brasil. As Constituições e o
Catecismo abreviado para escravos propagavam um pequeno catecismo intitulado
15
16
Cf. HOORNAERT, 1979, p.42ss.
Cf. NERY, Irmão José Israel. O Ensino Religioso Escolar no Brasil, no Contexto da História e das
Leis. In: Revista de Educação AEC: Ensino Religioso Escolar. Ano 22, n.88, Julho/Setembro de
1993. Brasília: AEC do Brasil, 1993. p.7-20.
13
Forma da Doutrina Cristã, que consiste num resumo do Catecismo Romano17.
Foram realizadas várias tentativas de adaptação destes catecismos aos índios,
incluindo
a
redação
de
versões
na
língua
vernácula
dos
gentios.
Os
estabelecimentos de ensino eram organizados no sistema de escolas paroquiais ou
no sistema dos Colégios de Religiosos. Com a Reforma Pombalina e a consequente
expulsão dos jesuítas, ocorreu uma desorganização total da educação e algumas
escolas usaram o texto do Catecismo como cartilha para o ensino da língua
portuguesa.
No período do regime imperial da Monarquia Constitucional a educação
recebeu uma atenção diferenciada devido à chegada da família real e sua corte ao
Brasil e a promoção da Colônia a Reino-Unido. O país passou por grandes
modificações sócio-político-culturais e surgiram novas idéias de liberdade e
emancipação devidas à influência da Revolução Francesa. A burguesia se instalou
com poder e domínio. O regime do padroado se manteve, agora impregnado da
ideologia regalista, doutrina que defende a ingerência do chefe de estado em
questões religiosas, e a religião se estagnou. O Ensino Religioso passou por uma
fase mais privada e doméstica do que institucional e a Igreja passou a atuar através
dos leigos agrupados em irmandades, confrarias e ordens terceiras, enquanto o
clero se dedicava ao alto funcionalismo do Império. O Imperador Pedro I outorgou
em 25 de março de 1824 a “Constituição Política do Império do Brasil”, que reza no
seu artigo 5º: “A Religião Cathólica Apostólica Romana continuará a ser a Religião
do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou
particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior de Templo”.
Neste período houve uma acentuada restrição à liberdade religiosa porque a
Religião Católica Apostólica Romana foi oficializada como “Religião do Império”18. O
Ensino Religioso continuou sob o protecionismo do Estado, o regalismo chegou ao
seu apogeu e acentuou o processo de dependência e subordinação da religião.
No período do Segundo Reinado surgiu um novo cenário que possibilitou a
busca de novos caminhos para o Ensino Religioso. A Igreja recuperou sua
autonomia por ter enfraquecido suas relações com o governo do Império. Surgiram
17
Cf. FIGUEIREDO, Anísia de Paulo. Ensino Religioso: Perspectivas pedagógicas. Petrópolis:
Vozes, 1995.
18
Cf. Ibid., p. 62.
14
novas publicações de compêndios, manuais e cartilhas nas diferentes regiões do
país. Estas publicações eram normalmente baseadas no Catecismo Romano sob a
orientação do Concílio de Trento. A entrada do protestantismo no Brasil a partir de
1810, em consequência do tratado comercial com a Inglaterra e a imigração
americana, iniciou a divulgação da Bíblia. Os protestantes conseguiram penetrar no
interior do país e despertaram no povo o interesse pela Bíblia. Idéias abolicionistas,
burguesas, liberais e republicanas são realimentadas e a Santa Sé, através da
Encíclica Quam Cura do Sillabus de Pio IX, realiza um manifesto contra a
Maçonaria, o espírito científico e a própria modernidade. Na medida em que a Igreja
Católica diminui seu poder temporal, vê crescer o seu prestígio espiritual no mundo
com as reformas provindas do Concílio Vaticano I (1869-1870). No Brasil os bispos
decidem por uma romanização mais forte e promovem a vinda de congregações
docentes com o objetivo de investir maciçamente na Escola Católica. No final do
século XIX o Ensino Religioso, compreendido como catequese complementar da
escola, foi efetivado como instrumento de defesa diante das tendências do
modernismo. Porém, a maçonaria influenciou na difusão da idéia da distinção entre a
“catequese” como tarefa da comunidade de fé, sob os cuidados da comunidade e da
família, enquanto a “instrução religiosa” como atividade complementar na escola.
Com a implantação e implementação do Regime Republicano surgiu um novo
quadro do Ensino Religioso. O Decreto 119 “A” de 7 de janeiro de 1890, dispositivo
do Governo Provisório da República, extinguiu o padroado e estabeleceu a
separação entre Igreja e Estado no Brasil. Os constituintes de 1891 se posicionaram
pelo caráter laical da educação pública e promulgaram a Constituição da República
dos Estados Unidos do Brasil em 24 de fevereiro do mesmo ano, com o seguinte
enunciado: “será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos” (art. 72 §
6). A liberdade religiosa é debatida em diversas instâncias, sobretudo no setor
jurídico. “A laicidade do Estado e do ensino recebeu diversas interpretações e, por
isso, também aplicação diferenciada. Rui Barbosa, redator principal da carta magna
republicana, inspirando-se na legislação dos Estados Unidos da América do Norte,
admitia o Ensino Religioso confessional na escola pública. [...] Outros líderes
republicanos, achegados à prática laicista francesa, baniam o Ensino Religioso da
legislação e vedavam sua prática na escola oficial”.19
19
RUEDELL, 2007. p. 20.
15
A Igreja Católica reagiu através do incentivo à proliferação de escolas
paroquiais, escolas primárias e colégios católicos com o Ensino Religioso em suas
grades curriculares. O Ensino Religioso tornou-se sinal da luta pelo poder das duas
correntes. A corrente republicana, sustentada por ideais positivistas, alegava que a
religião na escola contrariava o princípio da liberdade religiosa assegurado na
Constituição. A corrente da Igreja Católica defendia os direitos do cidadão a
frequentar ou não a aula de religião, por ser a escola um local de respeito à
liberdade. Argumentava que o princípio da liberdade não poderia ser regido pela
neutralidade. Estas radicalizações nem sempre tocaram em aspectos fundamentais.
Constituíram-se como luta por maior influência política e se repetiram em muitas
ocasiões de elaboração de leis desde a primeira assembléia constituinte até a de
1988 e nos debates para a confecção das leis de diretrizes e bases da educação
nacional de 1961 a 1996. Depois de quatro décadas, a ala católica, com o apoio do
governo provisório de Getúlio Vargas, conseguiu incluir no texto constitucional de
1934 o Ensino Religioso, que adquiriu nova roupagem, mas continuou com o teor
catequético, que prevaleceu até a década de 1970. O Ensino Religioso era
entendido como um corpo estranho dentro do conjunto das disciplinas escolares.
Somente com a intensificação das mudanças sócio-culturais da década de 1960 o
Ensino Religioso passou por um processo de adaptação à realidade escolar.
O período seguinte à Segunda Guerra Mundial foi marcado por grandes
mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais que geraram um novo
paradigma sociocultural chamado de pós-modernidade. No campo religioso o
Concílio Vaticano II, ocorrido de 1961 a 1966, propôs uma nova configuração da
Igreja Católica no mundo, orientada a estar atenta aos “sinais dos tempos”. O
Concílio Vaticano II propôs que a Igreja concentrasse suas forças nas necessidades
e possibilidades emergentes do contexto atual e contribuísse para uma maior
humanização das atividades humanas, para a valorização das culturas, promoção do
diálogo, do desenvolvimento integral de todos os povos e da construção da paz com
base na justiça social. No contexto ocidental, incluindo as demais confissões cristãs,
a partir da década de 60 houve um processo de ressignificação da religião que
passou a ocupar foros de cidadania sem caráter impositivo ou de privilégio.
A
religião ganhou espaço dentro do movimento mundial de afirmação dos direitos
humanos e de liberdade individual, da qual a liberdade religiosa é elemento
16
integrante.20 Apesar de todo esse clima de renovação, o desejo da unidade dos
cristãos, uma das principais conquistas do Vaticano II, ainda não abriu caminhos
para uma nova modalidade do Ensino Religioso que valorizasse a prática ecumênica
e o diálogo entre as religiões. Ainda continuaram correntes os termos “catequese
escolar”, “religião na escola” e “catecismo na escola”. Os programas de Ensino
Religioso de algumas Secretarias Estaduais de Educação foram elaborados por
equipes de catequese dos Secretariados Diocesanos de Catequese. 21
A sociedade brasileira, envolvendo educadores, representantes de entidades
civis, religiosas, educacionais, governamentais e não governamentais, de diferentes
setores de atuação, sensibilizados e comprometidos com a causa do Ensino
Religioso, se mobiliza por ensejo da elaboração da Constituição Federal e da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). O impulso renovador da Igreja
Católica no Brasil, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
motiva a criação do Secretariado Nacional de Ensino Religioso (SNER), que se
converte no Grupo de Reflexão do Ensino Religioso, além dos Encontros Nacionais
de Ensino Religioso (ENERS). Acontecem também as assembléias e seminários do
Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER). Estes organismos
realizaram estudos que passaram a considerar o Ensino Religioso como um
componente escolar sem caráter de doutrinação. Desempenharam um importante
processo de renovação da legislação referente ao Ensino Religioso. O crescente
pluralismo religioso da sociedade levou o Setor de Ensino Religioso da CNBB a
apresentar em 1989 uma nota que descreveu a problemática ligada ao caráter
confessional.22 Depois de um longo processo de articulações e aprofundamento, a
sociedade apresentou uma emenda popular pró-Ensino Religioso à Constituinte de
1987-1988, com o seguinte texto: “A educação religiosa será mantida pelo Estado no
ensino de 1º e 2º graus, como elemento integrante da oferta curricular, respeitando a
pluralidade cultural e a liberdade religiosa”.23 A elaboração da atual LDB (Lei n.
9.294/96) foi fruto de muito estudo e acalorados debates que continuaram mesmo
depois de sua publicação. O artigo 33 recebeu uma cláusula, fruto de recurso
20
Cf. RUEDELL, 2007, p. 22.
21
Cf. FIGUEIREDO, 1995, p. 82.
22
Cf. CNBB, Regional Sul 3. Texto referencial para o Ensino Religioso escolar. Petrópolis: Vozes,
1996. p. 127.
23
RUEDELL, op. cit., p. 31.
17
regimental, que ressalva: “sem ônus para os cofres públicos”. Esse artigo inviabilizou
a aplicação da lei. A mobilização nacional e as reflexões dos ENERS e do
FONAPER possibilitaram a Roque Zimmerman, da Comissão de Educação da
Câmara dos Deputados, introduzir, como relator, nas duas casas do Congresso
Nacional, a Lei 9.475, como texto substitutivo do art. 33 da LDBEN e que foi
homologada pelo presidente da República em julho de 1997, com o seguinte texto 24:
Art. 33 – O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, é parte
integrante da formação básica do cidadão, constitui disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental,
assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,
vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1. Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a
definição dos conteúdos do Ensino Religioso e estabelecerão as
normas para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2. Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas
diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos
do Ensino Religioso.
(Art. 33 da Lei nº 9475, de 22 de julho de 1997, que dá nova redação
ao Art. 33 da Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996).
A publicação da LDBEN com o substitutivo de 1997 abriu as portas para um
novo Ensino Religioso no Brasil. Com estes dispositivos legais o Ensino Religioso
passou do domínio das confissões religiosas para a área administrativa dos sistemas
de ensino. O Ensino Religioso passou do domínio exclusivo do saber teológico para
os diversos saberes das Ciências da Religião, contemplando assim qualquer
expressão cultural portadora de religiosidade. Perdeu o caráter de iniciação a uma
religião e ganhou elementos para a formação integral da pessoa humana inserida
num mundo plural. Abriu-se a qualquer pessoa, sem discriminação de qualquer
natureza. O Ensino Religioso, erroneamente entendido como ensino de uma religião
ou das religiões na escola, passa a ser uma disciplina fundamentada nas Ciências
da Religião e da Educação. Tem como objetivo proporcionar conhecimentos em
torno dos fenômenos religiosos experimentados no contexto dos educandos e
valorizar a diversidade cultural religiosa presente na sociedade, além de incentivar
ações a favor da promoção dos direitos humanos.
24
BRASIL, República Federativa do. LDBEN. Lei nº 9475, de 22 de julho de 1997.
18
Atualmente há um esforço conjunto de organismos da educação e de setores
organizados das igrejas em prol da aplicação efetiva do novo Ensino Religioso
através da formação de educadores, incremento de pesquisas científicas no campo
religioso e encontros nacionais para a elaboração de parâmetros curriculares
adequados a esta nova perspectiva25.
O Conselho Nacional de Educação (CNE) institui em 1998 as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (Resolução CEB/CNE nº. 02/98)
e confere status de área de conhecimento ao Ensino Religioso entre as dez áreas
que compõem a base nacional comum. Desta maneira é garantida a igualdade de
acesso aos conhecimentos religiosos dos povos da humanidade como tarefa do
Ensino Religioso.
O último capítulo da trajetória do Ensino Religioso no Brasil é marcado pelo
recente Acordo Entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, assinado pelo
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 13 de novembro de 2008, que rege sobre o
“Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”. Em seu artigo 11 se refere ao Ensino
Religioso nos seguintes termos:
§ 1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de
matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à
diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a
Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de
discriminação26.
O Acordo é considerado um retrocesso por entidades como a FONAPER, que
logo em seguida publica um manifesto denunciando a ilegalidade do documento e o
desconhecimento do processo de renovação do Ensino Religioso no Brasil:
[...] o encaminhamento da proposta de Ensino Religioso acordada
entre o Governo Brasileiro e a Santa Sé não contempla os Princípios
e Fins da Educação Nacional, ao propor a oferta de segmentar os
conhecimentos religiosos segundo cada denominação religiosa,
quando a LDBEN nº. 9.394/1996 prescreve que o ensino será
25
Cf. FÓRUM NACIONAL PERMANENTE DO ENSINO RELIGIOSO. Parâmetros Curriculares
Nacionais: Ensino Religioso. São Paulo, SP: Ave Maria, 1997.
26
BRASIL, República Federativa do. Acordo Entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé
relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil. Art. 11, § 1º de 13 de novembro de 2008.
Disponível na Internet.
http://www.mre.gov.br/portugues/imprensa/nota_detalhe3.asp?ID_RELEASE=6031
19
ministrado com base em princípios, entre os quais se encontra “o
pluralismo de idéias”27.
Na abertura do Ano Brasileiro do Ensino Religioso, iniciado em 15 de outubro
de 2009, diversas entidades organizadas da sociedade civil emitem uma circular que
aponta as contradições entre o Acordo Brasil-Santa Sé e a legislação brasileira:
A redação do Art. 11 do Acordo Brasil-Santa Sé propõe uma outra
redação à Lei nº. 9.475 (artigo 33 da LDBEN 9.394/1996),
sancionada pela Presidência da República em 22 de julho de 1997,
cujo conteúdo sugere e encaminha uma outra concepção de Ensino
Religioso e consequente organização curricular.
O § 1º do Art. 11 do Acordo, ao apresentar o Ensino Religioso como
“católico e de outras confissões religiosas”, contrapõe o caput da
Lei 9.475/1997, pois esta não orienta que o Ensino Religioso seja de
uma e outra denominação religiosa. Em princípio, enquanto
componente curricular, o Ensino Religioso deve atender à função
social da escola, em consonância com a legislação do Estado
Republicano Brasileiro, respeitando, acolhendo e valorizando as
diferentes manifestações do fenômeno religioso no contexto escolar,
a partir de uma abordagem pedagógica que estuda, pesquisa e
reflete a diversidade cultural-religiosa brasileira, vedadas quaisquer
formas de proselitismos28.
A carta denuncia outras contradições. A substituição do termo “proselitismo”
da Lei nº. 9.475/1997, pelo termo “discriminação” na redação do § 1º do Art. 11 do
Acordo contribui para a concepção de um Ensino Religioso confessional. O termo
“discriminação” se refere à exclusão ou restrição baseada em raça, descendência ou
origem e abre margem para a idéia de “tolerância”. Esse uso do termo permite um
Ensino Religioso centrado numa religião específica e que “tolere” outras expressões
religiosas. Já o termo “proselitismo” se refere ao ato deliberado de converter uma ou
mais pessoas a uma causa, idéia ou religião. O uso do termo “proselitismo” na lei
assegura um Ensino Religioso voltado para a diversidade cultural e religiosa em
consonância com os desafios contemporâneos de não se guiar por uma prática
proselitista e de estimular o conhecimento e o diálogo entre os diferentes.
A carta continua afirmando que é uma ilusão de democracia, igualdade ou de
diálogo inter-religioso assegurar que no espaço da escola pública os fiéis católicos
27
FÓRUM NACIONAL PERMANENTE DO ENSINO RELIGIOSO. Manifesto referente ao Acordo
firmado entre Brasil e Santa Sé. Art. 3º, inciso III, Circular via e-mail, 13 de novembro de 2008.
28
FÓRUM NACIONAL PERMANENTE DO ENSINO RELIGIOSO et al. Carta aos professores do
ensino religioso. Circular via e-mail, 15 de outubro de 2009.
20
tenham um Ensino Religioso católico e que os fiéis “de outras confissões religiosas”
o tenham com seus semelhantes de fé.
A legislação brasileira tem avançado na direção da igualdade de direitos e
deveres da disciplina Ensino Religioso em relação às demais áreas de conhecimento
da Educação Básica. Os § 1º e § 2º da LDBEN 9.394/1996 legislam que “os
sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos
conteúdos do Ensino Religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e
admissão dos professores” e “ouvirão entidade civil constituída pelas diferentes
denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do Ensino Religioso”.
Estas determinações legais garantem assim a participação do conjunto de
denominações religiosas brasileiras constituídas em entidade civil junto aos
Sistemas de Ensino na elaboração de conteúdos a serem socializados com os
educandos do Ensino Fundamental. Sistemas de Ensino, Estados da federação,
Universidades e Entidades Civis de diversas denominações religiosas, de forma
coletiva, vêm definindo os conteúdos do Ensino Religioso e habilitando seus
professores em consonância com as diretrizes consolidadas pelo artigo 33 da
LDBEN nº. 9.394/1996. O artigo 11 do Acordo Brasil-Santa Sé representa um
retrocesso neste processo de consolidação de leis que assegurem a qualidade do
Ensino Religioso e a habilitação e a admissão de professores aptos à tarefa do
ensino numa sociedade democrática e diversa no aspecto religioso.
Estabelecida pela Lei nº 9.475/1997 e pela Resolução do Conselho Nacional
de Educação n° 2/1998 como área de conhecimento a partir da escola, a disciplina
Ensino Religioso, nos parâmetros do Acordo Brasil-Santa Sé, de caráter
confessional, passa ao domínio das confissões religiosas. Fere assim a própria lei
brasileira, que já se posicionou por um Ensino Religioso antropológico e plural, fere
também os Sistemas de Ensino e o seu papel de estabelecer normas para a
habilitação e admissão do corpo docente para o Ensino Religioso e coloca o
professor sob a tutela da autoridade religiosa. Inviabiliza o Ensino Religioso,
econômica e pedagogicamente, porque o Estado teria que ofertar uma educação
religiosa que contemplasse todas as religiões dos educandos em sala de aula. Desta
maneira o Acordo fere a Constituição Brasileira, que veda o pagamento de
honorários a serviços de cunho religioso confessional em lugares públicos.
21
As igrejas protestantes também questionam o Acordo Brasil-Santa Sé
alegando que o Acordo fere preceitos constitucionais como a separação entre
Estado e Igreja. Em carta pastoral emitida em 6 de fevereiro de 2009, Walter
Altmann, presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB),
entende legítimos e comuns acordos entre Estados. Mas “espera, na medida em que
o Acordo contenha direitos e prerrogativas para a Igreja Católica, que o governo
brasileiro os estenda, com naturalidade, às demais confissões, pois trata-se de
preceito constitucional que não pode ser ferido”. A IECLB avalia que as
conseqüências e repercussões do Acordo em relação ao Ensino Religioso nas
escolas públicas é um assunto que diz respeito não apenas à Igreja Católica, mas
também às demais igrejas. “Nesse sentido, lamentamos que o Acordo tenha sido
elaborado, negociado e, por fim, assinado, sem que tivesse havido uma troca de
idéias e um diálogo com outras confissões religiosas, bem como com a sociedade
em geral” 29.
Ao longo da história do Ensino Religioso no Brasil duas forças polarizam
desde cedo as discussões, a Igreja Católica, que não quer perder o seu espaço
majoritário no cenário nacional e no foro público, e a força dos “sinais dos tempos”,
cuja terminologia foi cunhada pela própria Igreja Católica no Concílio Vaticano II. É
curioso figurarem organismos oriundos da própria Igreja Católica dentre os que mais
contribuíram para uma formulação jurídica de cunho antropológico para o Ensino
Religioso no Brasil. Ao invés de desestimular, essa dialética motiva discussões
maduras para o desenvolvimento de leis e para a implementação de práticas que se
coadunem com as novas concepções do ser humano.
Embora cronologicamente a permanência das religiões indígenas em território
brasileiro tenha sido muitas vezes superior ao período subsequente à invasão
portuguesa, é a Igreja Católica que polariza a reflexão em torno do Ensino Religioso.
As demais confissões religiosas que formaram o rico e diversificado campo religioso
brasileiro, tais como as demais igrejas cristãs e as religiões de matriz africana e
indígena, foram literalmente excluídas das reflexões acerca do Ensino Religioso
29
IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL. Carta pastoral referente ao
Acordo Brasil – Vaticano. Porto Alegre: Circular IECLB nº 162444/09 de 16 de fevereiro de 2009.
Disponível na Internet.
http://www.luteranos.com.br/attachments/Documentos/20090206_Acordo_Brasil_Vaticano_REV_SB_
MS-WA.pdf
22
durante a maior parte do tempo. Somente com a virada de paradigma que originou o
novo Ensino Religioso é que estas religiões começaram a figurar na reflexão. O
panorama da pluralidade religiosa contemporânea introduz também a contribuição
das religiões judaica, muçulmana e demais religiões orientais, nas reflexões em
torno do Ensino Religioso.
1.2 História que tem raízes
Para os objetivos desta pesquisa é imprescindível conhecer quais são,
justamente, essas matrizes religiosas que nutrem o espectro religioso brasileiro.
José Bittencourt Filho, em sua publicação intitulada MATRIZ RELIGIOSA
BRASILEIRA: Religiosidade e mudança social30, opta por uma abordagem
sociológica
da
religião
ao
considerar que
as mutações religiosas estão
correlacionadas aos acontecimentos sociais numa relação dialética. Tal abordagem
ultrapassa os limites de nossa pesquisa, visto que almejamos apenas identificar o
substrato religioso que insiste em subsistir na cultura brasileira acima dos limites de
tempo e espaço e das determinações históricas. O estudo de Bittencourt nos ajuda
porque aponta para a idéia de que a matriz religiosa está fundada nos valores
profundos que se encontram e permanecem na dinâmica simbólica sacramental e se
cristalizaram no encontro de culturas e mundividências dos diversos povos que
formaram o Brasil. Para compreender a cosmovisão de nossa sociedade é preciso
conhecer quais são os sistemas de crenças religiosas que povoam o domínio
simbólico dessa cosmovisão. O foco não está na dimensão institucional das
religiões, mas sim na religiosidade entendida como as formas concretas,
espontâneas e variáveis por meio das quais a religião é vivenciada pelas pessoas e
pelos grupos, vinculadas a crenças, mitos e símbolos comumente carentes de maior
organização e sistematização31. Estas condutas religiosas, formas e estilos de
espiritualidade semelhantes, evidenciam a presença de um substrato religiosocultural que nosso autor denomina Matriz Religiosa Brasileira:
30
BITTENCOURT FILHO, José. Matriz religiosa brasileira: Religiosidade e mudança social.
Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Koinonia, 2003.
31
Cf. Ibid, pág. 68.
23
Esta expressão deve ser apreendida em seu sentido lato, isto é,
como algo que busca traduzir uma complexa interação de idéias e
símbolos religiosos que se amalgamaram num decurso multissecular,
portanto, não se trata stricto sensu de uma categoria de definição,
mas, de um objeto de estudo. Esse processo multissecular teve,
como desdobramento principal, a gestação de uma mentalidade
religiosa média dos brasileiros, uma representação coletiva que
ultrapassa mesmo a situação de classe em que se econtrem. É
oportuno sublinhar que essa mentalidade expandiu sua base social
por meio de injunções incontroláveis, como soe acontecer com os
conteúdos culturais, para, num determinado momento histórico, ser
incorporada definitivamente ao inconsciente coletivo nacional, uma
vez que já se incorporara, através de séculos, à prática religiosa32.
Um dos principais instrumentos por meio dos quais a matriz religiosa brasileira
pôde ser engendrada foi o sincretismo e a miscigenação. Na formação da
nacionalidade brasileira, vários elementos se fundiram num amálgama de
concepções que resultou na composição da matriz religiosa. Esse processo passou
por um período de sedimentação que durou vários séculos. Daí a importância de
recorrer à formação histórica da nacionalidade para compreender as raízes da
religiosidade brasileira. Inclino-me a colocar na base as religiões indígenas devido à
sua preeminência no tempo e no território brasileiro. Apesar do processo de
mestiçagem e em grande parte de extinção de costumes e crenças, essa
religiosidade ainda resiste nos recantos mais distantes da “civilização” ou mesmo
“mixada” nas mais variadas formas de religiosidade. Destaca-se o papel
preponderante do catolicismo ibérico e da magia européia trazidos pelos
conquistadores, o primeiro imposto e a segunda camuflada no próprio catolicismo
medieval que tanto a combateu. A escravidão trouxe a influência das religiões
africanas que se articularam num vasto sincretismo. No século XIX se consolida a
matriz religiosa brasileira com a entrada do kardecismo europeu e a influência do
catolicismo romanizado.
A Igreja católica estrategicamente assimilou essa religiosidade difusa a seu
favor, convivendo com as formas religiosas sincréticas. Desta maneira abarcou um
maior número de fiéis como “católicos” alcançados pelas práticas sacramentalistas.
A presença e a influência da matriz religiosa brasileira nunca representou um
problema a ser enfrentado pela Igreja Católica. No máximo representou uma
dificuldade a ser contornada sutilmente. O aggiornamento promovido pelo Concílio
32
BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 40-41.
24
Vaticano II exigiu uma fidelidade doutrinária, litúrgica e devocional mais explícita por
parte dos fiéis diante da inserção da modernidade. Esse quadro fez emergir a
problemática da matriz religiosa brasileira com o desagrado das massas de fiéis
católicos em relação ao mergulho na modernidade secularizada, na qual valores
matriciais arraigados, repentinamente, encontravam-se ameaçados. A solução foi
uma revalorização da religiosidade popular como a mais rica e original produção
cultural da civilização brasileira. A criação da identidade das comunidades arcaicas
sempre se deu por meio de mediações simbólicas capazes de manter o vínculo com
as entidades ancestrais que lhes deram origem. Esse mecanismo é o mesmo da
dinâmica sacramental, que traz para o presente o fato fundador original, por
intermédio dos ritos e das festas de caráter religioso33.
Já o protestantismo histórico rechaçou num primeiro momento os valores
religiosos identificados com a matriz religiosa brasileira identificando-os com o mal, o
pecado e a heresia. Essa rejeição tornou-se um elemento constitutivo da identidade
evangélica brasileira e enriqueceu seu discurso apologético anticatólico. Desta
maneira contribuiu para fixar a matriz religiosa brasileira ainda mais no plano do
inconsciente, permanecendo ali intocados até eclodir nas diversas modalidades de
carismatismo que levaram a profundas divisões internas nas denominações
tradicionais a partir dos anos 1960. A religiosidade matricial foi reprocessada pelos
pentecostalismos dentro de sua cosmovisão, discriminando e classificando aquilo
que do senso comum pertenceria ao domínio de Deus e aquilo que se situaria na
jurisdição do Diabo.
Bittencourt Filho conclui que o sucesso de uma religião no campo religioso
brasileiro depende de seu comprometimento explícito com a matriz religiosa
brasileira. Conseqüentemente, o distanciamento da matriz religiosa brasileira tem
como resultado o esvaziamento de uma proposta religiosa, como se verifica no atual
contexto de crise de identidade do catolicismo tradicionalista, bem como das igrejas
protestantes históricas34.
33
Cf. TABORDA, Francisco. Sacramento, Práxis e Festa: Para uma teologia latino-americana dos
sacramentos. Petrópolis: Vozes, 1994.
34
BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 44.
25
Há um movimento de relativa homogeneização do pluralismo religioso no
Brasil, que não se confunde com o monopólio católico35. O fator preponderante
dessa homogeneização é a crença nas presenças sobrenaturais. A matriz religiosa
brasileira que transita pelo inconsciente das pessoas é o resultado do encontro de
cosmovisões indígenas, européias e africanas, cosmovisões estas marcadas pelas
presenças sobrenaturais.
A maior parte da população do século XVI europeu era formada por massas
de analfabetos, enquanto algumas importantes cortes cultivavam as letras e as
artes. Essas massas tinham uma visão mágica do mundo impregnado de
ingredientes folclóricos. A cultura religiosa católica apenas conseguiu encobrir com
um verniz superficial as divindades pagãs. Os sacramentos da Igreja Católica eram
associados aos gestos, símbolos e objetos mágicos remetidos consciente e
inconscientemente a antigas crenças pré-cristãs. Trata-se do período histórico onde
as massas estiveram mais propensas a acreditar. Havia um consenso da fé. A
condição das maiorias, expostas às intempéries da natureza, às epidemias, à fome e
à falta de instrução, propiciou a inexistência de uma fronteira entre os domínios
natural e sobrenatural. O imaginário europeu era povoado pela existência de
paraísos terrestres de paz e prosperidade e de terras habitadas por monstros e
criaturas demoníacas.
Essa cosmovisão importada pelos conquistadores europeus para o Novo
Mundo foi um dos fatores que justificou a escravidão dos nativos, tidos como
criaturas semidemoníacas, carentes de conversão, argumento que justificou
concomitantemente a cristianização. As tradições européias acabaram fundindo-se
às multisseculares tradições indígenas e africanas e encontraram nelas terreno fértil
para alimentar as concepções mágicas do mundo. O catolicismo da cristandade
imposta adquiriu contornos excêntricos em relação à ortodoxia romana. O
catolicismo brasileiro, formado por negros, mulatos e índios, com a peculiaridade de
ser organizado sob o controle do proprietário e chefe de família, possibilitou
exercícios autônomos de criatividade religiosa. Um elemento de destaque é o culto
aos santos como mediadores na religiosidade católica popular e a devoção comum
aos antepassados nas religiosidades indígena e africana, facilitando desde cedo a
combinação de concepções similares. Os indígenas e africanos não tiveram
35
BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 230.
26
dificuldades em incorporar a cosmovisão religiosa do catolicismo ibérico medieval
porque acreditavam numa ligação direta entre o mundo espiritual, o mundo natural e
o cotidiano. Para eles as forças da natureza eram presididas por espíritos superiores
e personagens míticos. Nessa cosmovisão o ser humano estava imerso num mundo
sobrecarregado de mistério. Nessa sociedade colonial, tipicamente agrária, as festas
religiosas continham elementos ancestrais de cultos ligados às forças da natureza e
restauravam a confiança para vencer os muitos obstáculos da existência num
ambiente hostil.
O indígena era concebido, pelos missionários católicos, como uma tabula
rasa carente da evangelização. Simultaneamente, o catolicismo dos missionários era
reformulado pela influência de elementos indígenas incorporados pelos próprios
catequistas para tornar crível o cristianismo para os nativos. Os africanos realizaram
um vasto e complexo processo sincrético, acolhendo conteúdos análogos das
religiões indígenas e camuflando suas crenças por meio da justaposição dos orixás
com os santos católicos. Desta forma evitavam confrontos diretos com os senhores
que não lhes permitiam a prática de sua religião. Essas sínteses sincréticas
resultaram numa inédita experiência religiosa que fundou as bases da cultura e
religiosidade brasileira. Somente no século XIX a entrada do espiritismo kardecista
completou o caldo cultural que traçou com mais clareza o perfil da religiosidade
média dos brasileiros.
Uma das características da matriz religiosa brasileira que mais intriga os
pesquisadores é a coexistência das mais variadas concepções religiosas numa
única pessoa. É um fato que ultrapassa o sincretismo:
O que chama a atenção na religiosidade brasileira média, como já
assinalamos, é a coexistência numa só pessoa de concepções
religiosas, filosóficas e doutrinárias por vezes opostas e mesmo
racionalmente inconciliáveis. Por sinal, em nossa avaliação, a
acomodação desses elementos simbólicos variegados e até
contraditórios seria uma das atribuições fundamentais da Matriz
Religiosa Brasileira, o que ultrapassa o processo sincrético e plasma
uma autêntica religiosidade, aquela que chamamos de Religiosidade
Matricial36.
Religiosidade matricial é o substrato da matriz religiosa brasileira. Trata-se do
sistema de crenças desenvolvido pelas camadas populares de maneira singular, que
36
BITTENCOURT FILHO, 2003, p.68.
27
ultrapassa as fronteiras confessionais e as filiações religiosas. Essa criatividade no
âmbito da religiosidade popular propiciou a reapropriação, a reinterpretação e a
reinvenção de conteúdos pertencentes aos sistemas religiosos institucionalizados.
Ao mesmo tempo, seja de maneira natural ou como uma estratégia para abarcar
adeptos, os sistemas religiosos institucionalizados se apropriam de elementos
próprios da religiosidade popular.
A religiosidade matricial está presente na alma dos brasileiros pelas trilhas da
memória inconsciente, da intuição, da emoção e do afeto. É uma experiência
religiosa não estritamente racionalizada que transcende as elucubrações teológicas
e sistematizações oficiais das religiões. Neste âmbito, Bittencourt Filho afirma que “a
Matriz Religiosa Brasileira enseja e a Religiosidade Matricial ratifica o êxtase
religioso, como uma espécie de ápice da experiência direta com o sagrado” 37. O
êxtase religioso faz parte da mundividência religiosa das maiorias no Brasil. Milhões
de brasileiros entregam-se diariamente a êxtases místicos e a outras formas de
arrebatamento religioso e de possessão pelas divindades, espíritos e forças
sobrenaturais. Ao mesmo tempo, outra grande parcela da população que não
participa das possessões, acredita piamente na possibilidade, na necessidade e na
naturalidade destas práticas, independentemente da religião que dizem professar,
ou mesmo não professando nenhuma. O fenômeno atual da procura intensa por
experiências religiosas, independente da necessidade de pertença formal a qualquer
religião, demonstrado também pelo fato das identidades flutuantes 38, corrobora a
existência de uma relativa homogeneização da matriz religiosa brasileira nesta
busca pelo êxtase ou pelo transe com toda a sua carga emocional e sentimental, em
torno das presenças sobrenaturais.
Por essa razão, nossa análise dos produtos audiovisuais utilizados pelos
professores do Ensino Religioso nas escolas públicas e privadas do Brasil,
privilegiará a capacidade destas obras cinéticas veicular e despertar na audiência
essas experiências fundantes da matriz religiosa brasileira e da religiosidade
matricial que dela decorre. Em consonância com as deliberações da legislação
37
38
BITTENCOURT, 2003, p. 72.
O conceito de “identidades flutuantes” se refere à identidade própria do indivíduo pós-moderno,
marcada pela liberdade relativamente autônoma de escolhas subjetivas, em meio ao convívio
pluralista da religiosidade contemporânea, resultando numa indefinição do trânsito religioso. Cf. LAIN,
Vandereli. Religião e pós-modernidade. In: LAIN, Vanderlei (Org.). Mosaico Religioso: Faces do
Sagrado. Recife: Fasa, 2009. p. 25-43.
28
brasileira para o Ensino Religioso, o foco da reflexão não é a veiculação de
conteúdos doutrinais dos sistemas religiosos institucionalizados, e sim a rica
diversidade religiosa que compõe e dá sentido à religiosidade brasileira. A escolha
metodológica pelo referencial teórico da Transdisciplinaridade possibilita uma
abordagem que coaduna com a pluralidade religiosa brasileira, consciente dos níveis
de complexidade para a intelecção do fenômeno religioso brasileiro. A busca de uma
metodologia para o uso do vídeo na educação religiosa se apresenta como uma
possibilidade de despertar no educando a experiência espiritual, aqui entendida
como experiência religiosa matricial, num nível de realidade que transcende as
barreiras de crença ou confissão religiosa. Para alcançar esse objetivo é preciso
perceber como o fenômeno religioso é estudado no campo das ciências e quais
referenciais epistemológicos ajudam a conhecer como nosso corpo assimila os
conteúdos audiovisuais e reage a eles, bem como os especialistas da imagem e do
som desenvolvem as teorias de comunicação cinética e as aplicam em suas
produções.
29
2 O SAGRADO E O AUDIOVISUAL
2.1 Uma epistemologia do sagrado
Qualquer estudo no campo das Ciências da Religião deve considerar o seu
desenvolvimento como ciência e quais referenciais epistemológicos essa área do
conhecimento apresenta. Somente assim o pesquisador poderá escolher um ou
mais referenciais teóricos que se adequem melhor ao seu objeto de estudo.
Tradicionalmente o estudo da religião não constituía objeto de uma pesquisa
autônoma. Pertencia ao domínio da teologia e era concebido a partir da etimologia
do termo religio (de religare) como o vínculo que une o homem a Deus39. Neste
contexto, presente nos tratados de teologia fundamental, o estudo da religião estava
vinculado ao conhecimento do cristianismo, que era visto como a superação de
todas as religiões. O entendimento da religião era atrelado ao entendimento do
cristianismo e dele dependia. O estudo da religião e das religiões começa a se
emancipar através de estudos filológicos, etnológicos e da pesquisa histórica que se
interessam pelo fenômeno religioso. Pesquisadores da segunda metade do século
XIX se voltam para estudos antropológicos e procuram sistematizar, através da
comparação, análise e interpretação, os conhecimentos a respeito dos diferentes
povos e suas culturas, obtidos através da etnografia. Esses cientistas consideram o
“religioso” como de sua competência na medida em que têm como objeto de estudo
o homem e a sociedade.
A religião passa a ser objeto de estudo de outras disciplinas ligadas às
ciências humanas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia cultural. Esse foi
um grande passo para a constituição das Ciências da Religião. Porém, esses
estudos não têm como objeto a religião em si, e sim a natureza da relação entre a
religião e a sociedade. Suas conclusões em relação à religião são determinadas por
sua função na estruturação da sociedade.
Com o intuito de compreender melhor nossa civilização e seus costumes, a
antropologia cultural desenvolve pesquisas junto às sociedades chamadas
“primitivas” e chega à conclusão de que tais sociedades precisam de grandes
39
Cf. TERRIN, Aldo Natale. Introdução ao estudo comparado das religiões. São Paulo: Paulinas,
2003.
30
símbolos para sobreviver. Esses símbolos são oferecidos pela religião e a relação da
religião com a sociedade ajuda o homem a encontrar esquemas ideais de
comportamento. Esse esquema fundamental é chamado de funcionalista porque vê
a religião em função de um papel na sociedade. Salienta o aspecto instrumental da
religião sem aprofundar o seu caráter de significado e valor de verdade. Nesse
esquema não há uma separação entre a religião e a sociedade. O autor
paradigmático dessa concepção é Émile Durkeheim, fundador da escola francesa de
sociologia. Na sua obra “As formas elementares da vida religiosa”40, de 1912, ele
parte do pressuposto do totemismo como religião elementar dos povos primitivos
para chegar à conclusão de que a religião é o mito que a sociedade faz de si
mesma, ou seja, que a religião e a sociedade são uma coisa só.
A sociologia da religião, inaugurada por Marx, Durkheim e Weber, se propõe a
entender as práticas sociais e vê a religião como um dos fatores destas práticas.
Não se ocupa em especular sobre o seu significado. A sociologia não se pergunta
sobre a verdade da fé, mas procura analisar como a crença numa prática religiosa
incide sobre o fato social. Nasce no contexto das mudanças sociais e do
pensamento proporcionadas pelo florescimento do iluminismo na passagem do
século XVIII ao XIX. Há uma mudança na visão de mundo, que passa de uma
concepção fundada na autoridade religiosa e no pensamento mítico para uma visão
baseada na razão iluminada pela ciência. Grandes transformações no campo político
e econômico são ocasionadas pela Revolução Francesa e pelas inovações
tecnológicas que criam uma nova divisão do trabalho, gerando novas classes
sociais. Nessa nova concepção liberal da humanidade a figura do indivíduo aparece
como base do novo paradigma cartesiano para a interpretação do mundo. O
pensamento mítico e religioso é substituído pelo pensamento racional e a sociedade
passa por um processo crescente de secularização onde dogmas e verdades
eternas passam a ser questionáveis. Esse período histórico é chamado de
Modernidade. A Modernidade emerge, portanto, num inevitável conflito com o
paradigma religioso de até então. E a sociologia se constitui o campo do saber que
confina a religião em seu corpus e assume uma postura autônoma em relação à
autoridade religiosa. Esse papel crítico da sociologia não se manifesta somente em
40
Cf. DURKEHEIM, Emile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
31
relação à religião, mas tem se manifestado também em relação à crítica da própria
Modernidade41.
Os autores clássicos da sociologia tiveram abordagens diferentes da religião,
embora concordassem que a religião era um elemento essencial para a
compreensão da sociedade. Os três autores, Marx, Durkheim e Weber, vêem a
religião como um importante elemento na construção dos laços sociais, embora em
graus diferentes. Marx foi o primeiro dos três a tratar da religião em sua reflexão em
torno da sociedade, na segunda metade do século XIX. Para ele a religião é uma
realidade histórica dependente do desenvolvimento das condições materiais de vida
e da consciência dos indivíduos.
Marx destaca a função ideológica da religião. A religião tem a função de ser o
suporte dos sistemas de poder e opera como ideologia dominante42. A crítica da
religião desenvolvida por Marx não deve ser compreendida, como ingenuamente se
tem compreendido, sem considerar sua crítica da cultura histórica em geral e dos
processos econômicos em particular. É uma crítica materialista à história das
sociedades, que é marcada pela luta de classes e tem como alvo as concepções
idealistas de interpretação da realidade. A sua crítica está enraizada na
compreensão da religião como um fator de alienação e legitimação da sociedade. 43
A religião oculta o real e as relações de exploração e de dominação social. É o
reflexo da condição alienada da humanidade nas sociedades capitalistas.
Diferentemente de Durkheim e Weber, para os quais a religião tem um papel
permanente na sociedade, Marx acredita que a religião desaparecerá com a
evolução dos processos históricos e das consciências individuais44. A religião
desaparecerá na medida em que o processo de desalienação acontecer. E isto
ocorrerá na medida em que for instaurado um novo modo de produção e de relações
sociais que Marx chama de socialismo. Neste estágio, a consciência humana estará
livre da necessidade da religião. Marx utiliza uma metodologia materialista dialética
41
Cf. GIDDENS, Anthony. Em defesa da sociologia: Ensaios, interpretações e tréplicas. São Paulo:
UNESP, 2001. p. 97-113.
42
Cf. MILBANK, John. Teologia e teoria social. São Paulo: Loyola, 1995. p. 239.
43
Cf. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl; BADIA, Gilbert; BANGE, P; BOTTIGELLI, Emile (Sel.) Karl
Marx e Friedrich Engels sobre a religião. 2.ed. Lisboa: Ed.70, 1972.
44
Cf. NUNES, Maria J. R. A sociologia da religião. In: USARSKI, Frank (Org.). O espectro
disciplinar da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 97-119.
32
que o leva a conceber a sociedade de maneira dualista como infraestrutura e
superestrutura. A religião está como superestrutura da sociedade. A infraestrutura é
que determina a superestrutura. Então, a religião é uma criação do homem, que cria
abstrações que legitimam estruturas de poder na sociedade45. Segundo Milbank,
Marx coloca a religião num paralelismo tal com a economia que:
Os dois processos de desenvolvimento determinado, religioso e
econômico, seguem num paralelo preciso, culminando no
cristianismo como a religião mais „abstrata‟ e sem conteúdo, e no
capitalismo como a economia mais regulada pela „não-realidade‟ do
valor46.
A crítica da religião feita por Marx desemboca também num reducionismo em
que a religião é concebida em função de sua análise do capitalismo.
Para Durkheim, a religião tem um papel fundamental de coesão social. Ele
procura identificar as formas mais elementares da religião para encontrar uma
definição adequada que possa incluir todas as religiões. Busca, então, nas formas
mais simples, os elementos que lhe servem de fundamento e os encontra nas
sociedades tribais australianas. Ele define a religião com base em duas
características presentes em todas as religiões em suas evoluções históricas, os
símbolos, ritos e crenças comuns a uma coletividade e a dimensão comunitária,
expressa na noção de “igreja”47. Durkheim elabora o conceito de efervescência
coletiva como fator essencial para a coesão social, no qual a religião tem um papel
preponderante. A religião é a condição de possibilidade da existência da sociedade
e, por isso, nunca desaparecerá, como preconizou Marx. Mesmo que as formas
tradicionais de religião desapareçam, a sociedade encontrará novos símbolos
religiosos. A religião sempre tem uma função social a cumprir. Também Durkheim
instrumentaliza a religião ao identificá-la com a sociedade e reduzi-la à sua função
social.
Weber vê religiões como uma espécie particular de agir coletivo capaz de
influenciar os processos históricos. Não coloca o foco nas elocubrações sobre o
significado da religião, mas dedica-se a compreender a sua relação com a sociedade
como contingente e variável, dependente dos processos sociais. Analisa como as
45
Cf. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 9. ed. São Paulo: Difel, 1984.
46
MILBANK, 1995, p. 240.
47
Cf. DURKHEIM, 1996, Cap. I.
33
concepções de mundo influenciam as organizações e os comportamentos
individuais. Como as imagens religiosas do mundo se interrelacionam com as
possibilidades de mudança social. Na sua análise do advento do capitalismo ele
constata que o protestantismo ascético puritano teve um papel significativo 48. O
protestantismo formou a base de valores que possibilitou o desenvolvimento do
capitalismo. A atitude religiosa do protestantismo em relação ao sucesso material faz
com que a vida cotidiana e o trabalho sejam organizados como garantia da
salvação. Trata-se de uma racionalização do cotidiano que se torna possível com a
ascese puritana, uma ética do trabalho que encontra sua primeira expressão no
cumprimento das tarefas profissionais exigidas pela lei da natureza 49. Talvez esta
seja a maior contribuição de Weber para a sociologia da religião, a orientação para
uma investigação da religião a partir da ascese intramundana. Há uma clara relação
intrínseca entre essa atitude religiosa e o comportamento econômico capitalista.
Weber leva sua reflexão a uma crítica à idéia de “progresso” gerada pelo processo
racionalizador da sociedade. Para ele a sociedade capitalista nos encerrará numa
“gaiola de ferro” da racionalização excessiva e fria50. Weber se distingue de Marx e
Durkheim ao colocar a força na subjetividade, nos comportamentos individuais
motivados por valores, e na objetividade da estrutura social, no sentido histórico das
ações, na dinâmica das instituições. Ele não percebe apenas o papel de legitimação
do poder social da religião, mas também se pergunta sobre as motivações religiosas
que levam a rupturas com o modo de vida vigente da sociedade.
Os três autores clássicos da sociologia da religião orientam suas pesquisas
para a investigação da religião em função do seu papel na sociedade. A crítica recai
sobre o uso de suas conclusões com a pretensão de abarcar o fenômeno religioso
como um todo. O pesquisador da religio pode utilizar a sociologia para suas
investigações, mas não deve considerar esta abordagem como absoluta.
O mesmo acontece se tomarmos como critério epistemológico autores ligados
à psicologia da religião. As abordagens da religião feitas pelos fundadores da
psicologia, Sigmund Freud e Carl Gustav Jung, cada um a seu modo, identificam a
48
Cf. WEBER, Marx. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
49
Cf. MOTTA, Roberto. Notas para a leitura de “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”.
Estudos de Sociologia. Recife: UFPE, v. 1, n. 2, p. 65-83.
50
Cf. NUNES, 2007, p. 108
34
religião com o objeto de seus interesses, a psique. Enquanto Freud compreende a
religião no labirinto escuro do inconsciente, seu herdeiro intelectual, Jung, que mais
tarde rompe com o mestre, empresta à religião um papel importante na constituição
do self51. Ao campo da psicologia da religião compete o estudo dos aspectos mais
pessoais, experienciais e criativos do ser humano questionado pelo sentido último
das coisas. Enquanto a sociologia da religião dirige seu olhar para o sagrado que
aparece na sociedade, a psicologia da religião encontra os símbolos religiosos na
interioridade do ser humano.
Para Freud, os símbolos religiosos são fragmentos irônicos, disfarçados, da
infância não-resolvida, que representam a dependência do ego.52 Para Jung a
racionalidade unilateral não é o ponto final da evolução do ego, pois concebe a
integração do self como uma meta importante. Desta maneira Jung vê os símbolos
religiosos também como mediadores positivos entre o ego e uma parte mais
profunda do self, como agentes ativos de mudança psicológica e recentramento que
contribuem para uma emergente e mais abrangente autoconsciência do ego. Desta
maneira, os símbolos religiosos representam projeções de transcendência do ego.
A grande contribuição da psicologia da religião, especificamente da psicologia
jungiana53, é fornecer uma conexão sistemática entre tipos de caminhos religiosos e
tipos de processos psicológicos54. Na cultura pós-religiosa, científica e individualista
da virada do século XIX para o século XX, herdeira da cultura judaico-cristã, a
psicologia da religião jungiana traduziu a religião em psicologia.
Pelo menos o self, a psique, é real. Se os espíritos não estão lá fora,
pelo menos estão aqui dentro. A religião é tão real quanto as
realidades psicológicas que ela representa.55
A tradução jungiana da religião deu validade psicológica aos símbolos
religiosos e fornece, assim como outras áreas do saber, uma estrutura para analisar
a religião onde a psique é o amplo referente. Como nas abordagens sociológicas da
religião, a psicologia da religião examina os dados religiosos a partir de diferentes
51
Cf. PADEN, William E. Interpretando o sagrado. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 91-121.
52
Cf. Ibid., p. 93.
53
Cf. JUNG, Karl Gustav. Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1995.
54
Cf. Ibid., Resposta a Jó. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
55
Cf. PADEN, op. cit., p. 117.
35
olhares, agora voltados para a interioridade do ser humano. Embora reducionistas
ao identificar a religião com o objeto de suas investigações, as abordagens
sociológicas e psicológicas oferecem olhares importantes para a pesquisa das
religiões. O cuidado é não considerar esta ou aquela a única abordagem capaz de
esgotar a realidade em torno do fenômeno religioso.
Outras áreas do saber também contribuíram para a reflexão no campo das
ciências da religião, como a filosofia da religião, a teologia e a história comparada
das religiões. Desta última derivou a fenomenologia da religião, que dá um passo
maior na constituição do campo epistemológico das ciências da religião, ao se
perguntar pelos conteúdos e valores profundos da religião. A fenomenologia da
religião coloca o seu foco na confrontação dos grandes temas religiosos com base
na compreensão e na participação no mundo das religiões. Na sua metodologia, que
é atribuída a R. Otto e à sua obra “O sagrado”56 de 1917, procura valorizar a
experiência religiosa:
Seu pressuposto fundamental está em querer manter a religião no
plano de uma experiência vivida (grifo do autor), não a reduzindo a
um simples objeto de estudo, e sim, ao contrário, favorecendo a
experiência religiosa que cada religião é capaz de transmitir, por ser
vivida por uma comunidade e ser parte essencial do modo de sentir e
de entender do homem que crê57.
A fenomenologia da religião resguarda a autonomia e a especificidade da
religião e da experiência religiosa diante das tendências reducionistas. O
fenomenólogo da religião tem a convicção de que é possível alcançar os valores
profundos das religiões e captar a sua verdade, porque essa metodologia lhe
permite um esforço de identificação com aquele que crê.
Neste ponto se faz a crítica à fenomenologia da religião. Por estar demasiado
comprometida com o sentido e o valor da experiência religiosa, a fenomenologia da
religião não teria mais condições de fazer ciência. Porém, essa objeção é
questionada pela própria ciência que se pergunta sobre a possibilidade de uma
relação com o objeto de estudo que não implique em um pressuposto que antecipe e
oriente o sentido da pesquisa científica58. Outra objeção à fenomenologia da religião
56
OTTO, Rudolf. O sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992.
57
TERRIN, 2003, p.23.
58
Cf. Ibid., p. 24.
36
parte da própria história comparada que vê com dificuldade a redução da
diversidade de religiões a uma única expressão de sentido. A fenomenologia, no
entanto, tem consciência da variedade de religiões, mas acredita que a experiência
religiosa pode ser captada num sentido comum a todas as expressões religiosas.
Também há a crítica da concepção atemporal da fenomenologia da religião ao não
considerar o desenvolvimento dos fenômenos religiosos no tempo e não estudar o
ambiente histórico em que surgem as religiões. Desta maneira a fenomenologia da
religião deixa em aberto a dimensão histórica dos fatos. A fenomenologia não pode
desconsiderar a história para não correr o risco de cometer arbitrariedades na sua
busca de sentido dos fenômenos religiosos59.
O meio científico vive um momento novo, uma verdadeira revolução, iniciada
particularmente pela física e a biologia. As recentes descobertas destas ciências
colocaram em cheque a visão de mundo da ciência moderna, focada na idéia de
uma separação total entre o indivíduo conhecedor e a realidade, tida como
completamente independente do indivíduo que a observa e no estabelecimento de
postulados
fundamentais
deterministas
que
geraram
teorias
e
ideologias
mecanicistas e materialistas da realidade. A ciência moderna, apoiada na existência
de leis universais e de caráter matemático, instaurou o paradigma da simplicidade 60,
solidificado na compreensão de mundo da física clássica, fundamentada nas idéias
de continuidade, causalidade local e determinismo.
Barsarab
Niculescu61,
físico
que busca lógicas
alternativas para a
compreensão da natureza, percebe o redutivismo da física clássica ao conceber a
realidade. Ele afirma que a redução do funcionamento do universo ao de uma
máquina perfeitamente regulada e previsível levou a ciência moderna a descartar
todos os outros níveis de realidade e de percepção. Para a ciência moderna o
universo precisaria ser dessacralizado para ser conquistado. Todos os demais níveis
59
Cf. TERRIN, 2003, p. 24-26.
60
Para Edigard Morin, o “paradigma da simplicidade” é a concepção determinista e mecânica do
mundo, característica do pensamento científico clássico. É um princípio de organização do
pensamento que separa campos do conhecimento tais como a física, a biologia e as chamadas
ciências humanas, resultando numa especialização disciplinar, evidenciando a idéia de um saber
parcelado. Esta noção de separabilidade, formulada por Descartes, é fundamental para o
conhecimento científico moderno, que concebe o estudo do fenômeno a partir da redução do
complexo ao simples. Cf. MORIN, Edgard. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre:
Sulina, 2005.
61
Cf. NICOLESCU, 2002.
37
de conhecimento da natureza e do ser humano não cabiam nesta concepção de
ciência e foram taxados de irracionais ou supersticiosos.
As recentes descobertas da física quântica, iniciadas no século XX, buscaram
derrubar os pressupostos da ciência moderna. Essa revolução científica abriu a
possibilidade de diálogo com áreas do conhecimento que eram rotuladas como nãocientíficas. Conceitos como a não-separabilidade entre o sujeito e o objeto e o
conceito de indeterminismo no nível subatômico levaram os cientistas a questionar a
existência de apenas um nível de realidade e a propor que há diferentes níveis na
natureza (escalas subatômicas e macroscópicas, o infinitamente pequeno e o
infinitamente grande, por exemplo) que são regidos por leis diferentes. Diante do
paradigma da simplicidade da física clássica aparece a idéia de complexidade do
real, não entendida como sinônimo de complicação, mas como uma concepção
integral da complexidade de relações que compõe a Realidade62.
Essa nova concepção do real se espalhou para a sociedade e encontrou
respaldo nas ciências exatas, nas ciências humanas e nas artes. Levou a ciência a
questionar o nível da interdisciplinaridade e buscar superá-lo no nível da
Transdisciplinaridade. A ciência é motivada a um novo diálogo, que ultrapassa o
nível das disciplinas e as impele a considerar o que está entre, através e além delas
mesmas. O sagrado, excluído até então do meio acadêmico, tido pela ciência
moderna como categoria secundária, fruto de desejos humanos reprimidos e não
realizados, “passa a retomar seu devido lugar no espaço acadêmico de reflexão, não
apenas restrito ao âmbito das Ciências da Religião, mas de maneira geral
promovendo um diálogo na complexidade da Realidade”63. A Transdisciplinaridade
se firma como referencial de conhecimento e alicerça suas bases metodológicas nos
pilares da complexidade64, da concepção de diversos níveis de Realidade65 e da
lógica da inclusão ou do terceiro incluído66.
62
Cf. MORIN, 2005.
63
BERNI, 2005.
64
Cf. MORIN, op. cit.
65
Cf. NICOLESCU, 2002. p. 45.
66
Cf. LUPASCO, Stéphane; MAILLY-NESLE, Solange; NICOLESCU, Basarab. O homem e as suas
três éticas. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
38
O referencial epistemológico da Transdisciplinaridade se apresenta como uma
oportunidade para as Ciências da Religião no que concerne ao pluralismo de seu
objeto de estudo, o fato religioso. Seus pilares conceituais possibilitam uma análise
mais integral do fenômeno religioso, ao considerá-lo na sua complexidade; além de
conceber a possibilidade de diálogo de concepções consideradas irreconciliáveis
num nível superficial de abordagem, mas que podem dialogar em outros níveis de
Realidade.
Da
mesma
maneira,
o
referencial
epistemológico
da
Transdisciplinaridade é fundamental para a pesquisa em torno dos subsídios
audiovisuais para o Ensino Religioso, porque se trata de um objeto de estudo que
pode ser classificado em um outro nível de Realidade, o da a linguagem cinética,
que possibilita uma outra abordagem do fenômeno religioso, onde a experiência
religiosa é mediada pela eletrônica.
Figura n. 1 - Abordagem transdisciplinar da natureza e do conhecimento.
Fonte: NICOLESCU, 2002.
39
Nicolescu nos mostra como a abordagem transdisciplinar pode conduzir a
uma fundamentação metodológica para o estudo transcultural e transreligioso.67 Ele
apresenta o diagrama da Figura 1 para descrever a abordagem transdisciplinar da
natureza e do conhecimento. A parte esquerda representa, simbolicamente, os
níveis de Realidade (NRn, ..., NR2, NR1, NR0, NR-1, NR-2, ... , NR-n) onde o índice
n
pode ser finito ou infinito. Não é por acaso que, juntamente com o autor, utilizo o
termo Realidade com o R maiúsculo. Realidade difere do Real. O Real designa
aquilo que é, enquanto Realidade diz respeito à parcela do Real captada na nossa
experiência humana. O Real está velado para sempre, enquanto a Realidade é
acessível ao nosso conhecimento.
A abordagem transdisciplinar está apoiada na concepção de diversos níveis
de Realidade. Os diversos níveis de Realidade coexistem, mas se distinguem pela
quebra de leis e conceitos fundamentais nos seus diferentes níveis. Esta quebra é o
que determina a passagem de um nível ao outro. Por exemplo, as leis quânticas,
que determinam o nível subatômico, são radicalmente diferentes das leis do mundo
físico.
A lógica transdisciplinar opera de maneira diferente da lógica clássica, que
está fundamentada nos axiomas da identidade (A é A), da não-contradição (A não é
não-A), do terceiro excluído (não existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo
A e não-A). Na lógica transdisciplinar o axioma do terceiro incluído (existe um termo
T que é ao mesmo tempo A e não-A) conecta os níveis de Realidade adjacentes na
Figura 1.
Se permanecemos num único nível de Realidade, todo fenômeno se
manifesta como uma luta entre elementos contraditórios. Porém, em um outro nível
de Realidade, aquilo que percebemos como desunido está de fato unido e aquilo
que percebemos como contraditório é percebido como não contraditório. A dinâmica
do estado T na lógica transdiciplinar é representada por um triângulo de relações
onde um vértice está situado em um nível de Realidade e os dois outros em outro
nível de Realidade, como representado na Figura 2.
67
Cf. NICOLESCU, 2002, p. 47.
40
Figura n. 2 – Lógica do terceiro incluído. Fonte: NICOLESCU, 2002.
A lógica do terceiro incluído corrobora a existência de um fluxo de
informações transmitido de forma coerente entre os níveis de Realidade num
processo interativo que perpassa indefinidamente a todos os níveis conhecidos e
concebíveis. Há uma coerência da unidade dos níveis de Realidade, representada
pelas flechas associadas à transmissão de informações de um nível ao outro na
Figura 1. Se a coerência for limitada apenas a certos níveis de Realidade, ela se
interrompe nos níveis limítrofes do conhecimento. Nicolescu sugere que a unidade
dos níveis de Realidade se estende a uma zona de não resistência às nossas
experiências, representações, descrições, imagens e formulações. Essa zona de
não resistência corresponde ao véu do Real que se situa tanto no nível mais alto,
quanto no mais baixo da totalidade dos níveis de Realidade e estão unidos por uma
zona de transparência absoluta. Trata-se dos níveis que não são captados pela
limitação de nossos corpos com os seus órgãos sensoriais, nem pelas ferramentas
que utilizamos para estender esses órgãos sensoriais e medir a Realidade. Para
Nicolescu, essa zona de não resistência corresponde ao sagrado – àquilo que não
se submete a nenhuma racionalização.68
Nessa zona de transparência absoluta não há níveis de Realidade. É por isso
que os três loops de coerência do fluxo de informações da Figura 1 estão situados
apenas na zona em que não há níveis de Realidade, e esses fluxos perpassam
também entre os níveis de Realidade. Como afirma Nicolescu:
A zona de não resistência do sagrado penetra e cruza os níveis de
Realidade. Em outras palavras, a abordagem transdisciplinar da
Natureza e do conhecimento oferece uma ligação entre Real e
Realidade.69
68
Cf. BIÈS, Jean. O caminho do sábio. São Paulo: Triom, 2001. p. 353.
69
Cf. NICOLESCU, 2002, p. 55
41
Desta maneira, o sagrado se manifesta justamente na relação entre a
Natureza e o conhecimento. Está naquilo que une e liga todos os níveis de
Realidade e os ultrapassa, numa zona de transparência absoluta, tanto de
transcendência quanto de imanência. Na visão transdisciplinar, a Realidade está
perpassada pelo sagrado, porém, o sagrado continua resguardado em sua zona de
transparência
absoluta.
Sem
abandonar
uma
atitude
científica,
a
Transdisciplinaridade permite uma abordagem que integra o sagrado como aquilo
que perpassa e conecta a Natureza e o conhecimento.
O conhecimento humano tem acesso aos níveis de Realidade através dos
diferentes níveis de percepção. Na Figura 1 os níveis de percepção estão
representados à direita (NPn, ..., NP2, NP1, NP0, NP-1, NP-2, ... , NP-n). Através de
uma relação de correspondência com os níveis de Realidade, os níveis de
percepção permitem uma visão cada vez mais geral e unificadora da Realidade, sem
jamais esgotá-la completamente. Com os níveis de percepção ocorre o mesmo que
com os níveis de Realidade, há uma zona de não resistência à percepção. Nesta
zona não há níveis de percepção. Ao conjunto dos níveis de percepção e sua zona
de não resistência, Nicolescu dá o nome de Sujeito transdisciplinar.
A comunicação entre Sujeito e Objeto transdisciplinares só é possível quando
há correspondência entre os fluxos de consciência que passam entre os níveis de
percepção e os fluxos de informações que passam entre os níveis de Realidade. As
zonas de não resistência de ambas devem ser idênticas e os dois fluxos estão
interligados porque compartilham da mesma zona de resistência: “O conhecimento
não é nem exterior nem interior: é simultaneamente exterior e interior.” 70 Mas os
fluxos de consciência não se confundem nem se misturam com os fluxos de
informação, porque a zona de não resistência executa o papel do terceiro
secretamente incluído que preserva a sua diferença, e ainda permite a unificação do
Sujeito transdisciplinar e do Objeto transdisciplinar. Este é o ponto “X” onde os arcos
de informação e consciência se encontram. É o termo de Interação entre o Sujeito e
o Objeto transdisciplinar, que não pode ser reduzido nem ao Sujeito nem ao Objeto.
Com a abordagem transdisciplinar da Natureza e do conhecimento, Nicolescu
propõe uma superação da divisão binária da metafísica moderna (Sujeito, Objeto) e
70
Cf. NICOLESCU, 2002, p. 56.
42
aponta para uma visão ternária (Sujeito, Objeto, Interação) que oferece uma base
metodológica para a transcultura e a transreligião.
Para os objetivos desta pesquisa em torno dos subsídios audiovisuais usados
pelos professores do Ensino Religioso, a Transdisciplinaridade oferece critérios
científicos para a análise dos operadores audiovisuais que aparecem justamente no
encontro dos fluxos de informações e de consciência que perpassam os diversos
níveis de Realidade e de percepção, que constituem a Realidade cinética, e o
Sujeito, o educando que frui estas mensagens. A comunicação audiovisual, vista sob
o prisma transdisciplinar, se dá em diversos níveis pelos quais passam informações
que são percebidas em diversos níveis de conhecimento, numa dinâmica que
possibilita o despertar do sagrado. A Figura 3 transpõe o diagrama de Nicolescu ao
fenômeno da comunicação audiovisual:
Figura n. 3 – Abordagem transdisciplinar do audiovisual
43
O Filme (Realidade cinética) constitui aqui o Objeto transdisciplinar. A
Realidade cinética é composta por diversos níveis de Realidade. Para os fins deste
estudo destaquei três níveis de Realidade: O nível de Realidade Eletrônica, o nível
de Realidade Audiovisual e o nível de Realidade Ficcional. O nível de Realidade
Eletrônica opera sob as leis da linguagem Eletrônica, que será estudada adiante. A
Eletrônica é o que possibilita a criação e a existência da Realidade cinética. É o nível
que possibilita a produção, montagem e exibição do produto audiovisual. Encontrase logo abaixo do nível Audiovisual porque possui um alto grau de imanência. O
nível Audiovisual é o nível imediato aos nossos sentidos. Por isso se situa no centro
do gráfico. É responsável pelas informações visuais e sonoras imediatas. Já o nível
Ficcional opera sob outras leis. Nele o espaço e o tempo não são medidos da
mesma maneira que no espaço-tempo natural, trata-se do espaço-tempo cinético.
Está acima do nível Audiovisual porque corresponde a um maior grau de
transcendência.
O Sujeito transdisciplinar (educando) é aquele que frui a mensagem cinética.
Ele corresponde aos níveis de percepção representados no lado direito da Figura 3.
Os níveis de percepção são também três: O nível Sensitivo, o nível Audiovisual e o
nível Imaginário. Eles correspondem aos níveis de Realidade representados no lado
esquerdo e seu grau de percepção da Realidade é também correlativo. Ao nível
mais inferior de Realidade Eletrônica corresponde o nível Sensitivo de percepção,
que é o nível mais imanente de percepção e opera sob as leis fisiológicas que regem
os sentidos. Ao nível de Realidade Audiovisual corresponde o nível de percepção
Audiovisual, aquele que percebe as primeiras impressões da mensagem audiovisual.
Já ao nível de Realidade Ficcional corresponde um nível de percepção superior ao
nível Audiovisual, o nível Imaginário, que se encontra num grau correspondente de
transcendência superior. É o nível de percepção Imaginário que possibilita perceber
as informações do nível de Realidade Ficcional, ou seja, que leva o Educando a
entrar dentro do Filme, a sentir-se parte da trama, a ponto de perder a noção de
espacialidade e temporalidade.
A linguagem característica destes níveis de Realidade e percepção será
abordada na segunda parte deste capítulo. Antes é preciso entender como a
abordagem transdisciplinar contribui para a percepção do sagrado que aparece nos
subsídios audiovisuais usados pelos professores do Ensino Religioso. Existe um
44
fluxo de informação, representado pelas flechas na Figura 3, que perpassa todos os
níveis de Realidade, responsável pela coerência da Realidade cinética. A este fluxo
de informação corresponde um fluxo de consciência que perpassa todos os níveis
de percepção do Sujeito Educando. Esses fluxos de informação e consciência
perpassam todos os níveis conhecidos e concebíveis e atingem uma zona de não
resistência à percepção, onde não existe nível de Realidade nem de percepção.
Essa zona transparente do Real é o âmbito do sagrado, representado pelos loops
nos fluxos de informação e consciência.
Os fluxos de informações e de consciência penetram e cruzam todos os
níveis de Realidade e de percepção nas direções de uma maior imanência e
transcendência através da zona de não resistência ao sagrado. É o que possibilita o
acesso ao sagrado nas produções cinéticas. A comunicação acontece na interseção
do fluxo de informações com o fluxo de percepção no ponto da Modulação (X), que é
o termo de interação entre o Filme e o Educando. Neste ponto, a zona de não
resistência ao sagrado de ambos são idênticas e os fluxos de informação e de
percepção compartilham da mesma zona de resistência, possibilitando a percepção
do sagrado através da experiência audiovisual.
Concepções que em apenas um nível aparecem como antagônicas, se
reconciliam num terceiro termo (T) situado em outro nível. A lógica do terceiro
incluído possibilita a reconciliação, por exemplo, de religiões, que num nível
imediato, no nível Audiovisual, parecem antagônicas. Estas mesmas religiões podem
se apresentar reconciliadas no nível Ficcional na Realidade cinética. Desta maneira,
a lógica do terceiro incluído contribui para uma abordagem do sagrado nas
produções audiovisuais que corresponda à riqueza da diversidade religiosa
brasileira. A abordagem transdisciplinar das produções audiovisuais usadas pelos
professores do Ensino Religioso ajuda a perceber como estas produções podem
contribuir para a percepção do sagrado no imaginário e na consciência dos
educandos, num nível mais experiencial que conceitual.
É imprescindível, tanto para aquele que produz o material audiovisual
(produtor, roteirista, diretor, equipe de produção e elenco), quanto para aquele que
utiliza este material para a educação religiosa (professor do Ensino Religioso),
conhecer e transitar nesta cultura do audiovisual. Os educandos já se encontram
imersos nesta linguagem e sua compreensão do Real é mediada por seus
45
caracteres. A comunicação somente será estabelecida se ambos falarem a mesma
linguagem. Faz-se necessário uma epistemologia da imagem que aprofunde a
dinâmica da linguagem na cultura audiovisual.
2.2 Uma epistemologia do audiovisual
Para os fins desta pesquisa de caráter religioso e audiovisual é imprescindível
o aporte das ciências da Comunicação. Como já foi dito, o audiovisual é capaz de
despertar o sagrado. A pergunta central é como essas produções audiovisuais estão
comunicando o sagrado. Parto do pressuposto de que a linguagem audiovisual é
capaz de comunicar o sentido profundo do sagrado, mas é preciso uma metodologia
adequada para a abordagem desta linguagem. O referencial epistemológico para a
análise audiovisual é a teoria da “Modulação” do pesquisador francês Pierre Babin 71,
que se dedica à pesquisa em torno da comunicação e religião. A Modulação
desenvolve critérios epistemológicos para a abordagem da linguagem audiovisual
através do que o autor chama de “imersão”, “vibração” e “ground”. A “imersão” é a
capacidade da linguagem audiovisual realizar a comunicação através de um
envolvimento global. As imagens e sons são recebidos de maneira globalizante
pelos nossos sentidos e somos levados a fazer parte da cena representada, a
imergir na história, a participar, o que o autor chama de interatividade 72. A “vibração”
trata do efeito que a linguagem audiovisual produz no público. Por predominar na
linguagem audiovisual o conhecimento sensorial e analógico, a comunicação
acontece pela via do prazer. Só entramos na dinâmica da comunicação cinética na
medida em que somos tocados pelas imagens e sons. O “ground” está relacionado
com a ambientação produzida pela mensagem audiovisual. Nesta linguagem o
ambiente influencia a figura em primeiro plano, dando novos sentidos à mensagem.
71
72
Cf. BABIN, 1993.
O conceito de “interatividade” é matizado por Pierre Lévy como um termo utilizado por diferentes
autores, mas que não é suficientemente explicado por eles. Para Lévy, há diferentes tipos de
interatividade, desde a mensagem linear da imprensa, rádio, TV, cinema e conferências eletrônicas,
até a mensagem participativa dos videogames e dos diversos dispositivos de comunicação em
mundos virtuais envolvendo negociações contínuas. O que caracteriza a interatividade é a
possibilidade crescente, com a evolução dos dispositivos técnicos, dos envolvidos na comunicação se
tornarem, ao mesmo tempo, emissores e receptores da mensagem. Cf. LÉVY, Pierre. Cibercultura.
São Paulo: Ed. 34, 2003.
46
A linguagem da Modulação é o ambiente ideal para fazer uma experiência
intensa, sensitiva e contemplativa do sagrado porque leva a pessoa a um outro nível
de envolvimento que ultrapassa o nível da razão instrumental para um outro nível de
experiência de conhecimento. É importante encontrar métodos para manter na
audiência esta experiência, para assimilá-la também no nível da intelecção. Pierre
Babin propõe uma nova pedagogia que module em “estéreo” 73, em que predominem
os dois canais, o dos sentidos e da afetividade, e o da abordagem conceitual;
abordagem intuitiva e abordagem dedutiva. Na cultura do audiovisual a educação
deve dar lugar aos dois modos de compreender, conjugando-os no tempo e nos
métodos. Estamos imersos numa nova cultura global onde:
O meio tecnológico moderno, em particular a invasão das mídias e o
emprego de aparelhos eletrônicos na vida quotidiana, modela
progressivamente um outro comportamento intelectual e afetivo.74
A expressão “meio tecnológico” é entendida, juntamente com Pierre Babin, no
sentido mais amplo que abrange desde os computadores pessoais conectados à
Internet de banda larga, passando pelas câmeras de segurança instaladas em
lugares públicos, até os aparelhos de telefonia celular móvel, em suma, toda
aparelhagem familiar que determina, simplifica e controla nosso dia-a-dia. Também
se inclui nesta expressão as grandes mídias, que transformaram nosso modo de
compreender e de comunicar. O meio tecnológico é uma rede imensa, cujas malhas,
muitas vezes invisíveis, determinam nossa vida, cujo deus, mais ou menos oculto,
chama-se “Eletrônica”.
As novas gerações estão imersas na nova cultura do audiovisual. O fato
constantemente constatado da dificuldade de adaptação aos novos recursos
tecnológicos por parte dos idosos, enquanto as crianças, na mais tenra idade,
dominam equipamentos eletrônicos de última geração, demonstra que existe uma
interpenetração de culturas. Nasceu uma nova cultura após vários anos de
impregnação de televisão, de cinema, de jogos eletrônicos e de uso de diferentes
aparelhos eletrônicos. Isto não significa que uma cultura esteja se sobrepondo à
outra, como erroneamente se interpretou Marshall McLuhan, como o profeta da
73
Cf. BABIN, Pierre; KOULOUMDJIAN, Marie-France. Os novos modos de compreender. São
Paulo: Paulinas, 1989. p. 13.
74
BABIN, 1989, p. 11.
47
morte do livro em contraposição à nova cultura audiovisual, em sua publicação A
galáxia de Gutemberg75.
Existem dois momentos de interpenetração das culturas, a cultura de
Gutemberg, dominada pelo paradigma da mecanização e da impressão tipográfica, e
a cultura audiovisual, dominada pelo paradigma da eletrônica. Essas culturas
primeiro passaram por um processo de “mixagem”, categoria extraída das mesas de
comando de mixagem das ilhas de edição de imagens e sons. “Quando a imagem
invade o texto do livro, deve-se falar de mixagem”76. Quando utilizamos slides e
projetamos nos aparelhos de data show em uma palestra, estamos fazendo essa
“mistura”. A outra categoria, também extraída das ilhas de edição, para falar da nova
cultura audiovisual, é a idéia do “estéreo”, que já adiantamos acima. Na nova cultura
não basta falar de mixagem, deve-se falar de estéreo, da união de dois canais
diferentes, cada um com sua sonoridade própria e predominando um de cada vez.
Na cultura audiovisual, e nos sistemas de comunicação e informação que dela
decorrem, predominam tanto elementos da cultura de Gutemberg, quanto elementos
adquiridos na nova cultura. Na cultura audiovisual predominam os sentidos e a
afetividade, próprios da linguagem eletrônica, e ao mesmo tempo, em estéreo, a
nova cultura veicula elementos de uma abordagem conceitual, típica da cultura do
livro.
Compreender os caracteres desta nova linguagem na qual estamos imersos é
imprescindível para a educação religiosa. É natural a tendência dos professores do
Ensino Religioso desenvolver uma pedagogia do livro (linguagem de Gutemberg)
para um público formado de crianças, adolescentes e jovens que já nasceram
imersos na nova cultura audiovisual (linguagem eletrônica). O ambiente escolar
tradicionalmente privilegia abordagens conceituais (linguagem de Gutemberg). Com
a concepção predominantemente mecanicista da ciência moderna, o simbólico, o
lúdico, o artístico, o musical e o religioso foram desvalorizados como campos do
saber e a escola privilegiou as ciências exatas. Esse é o modo de compreender
predominante ainda hoje no inconsciente da maioria dos educadores, porque foram
formados na cultura do livro.
75
Cf. McLUHAN, Marshall. A galáxia de gutenberg: A formação do homem tipográfico. 1. ed. São
Paulo: Ed. Nacional, 1972.
76
BABIN, 1989, p.12.
48
Num primeiro momento, que categorizamos como o da mixagem, formaramse duas grandes avenidas paralelas e nitidamente diferentes em sua forma, a
“eletrônica-espetáculo”, onde predominou a televisão, o cinema, a música e os
jogos, e a “eletrônica-informática”, onde predominou os computadores, calculadoras
e demais aparelhos programados. Na primeira avenida prevaleceu a dimensão
intuitiva, enquanto na segunda predominou uma abordagem extremamente racional
e rigorosa. Com o advento da Internet e o fenômeno da aldeia global, entra em cena
a segunda fase desta nova cultura eletrônica, que chamamos de estéreo, onde as
duas vias tendem a juntar-se. Daí a necessidade de uma pedagogia que conjugue
de maneira equilibrada esses saberes, o intuitivo, lúdico e artístico, e o dedutivo e
racional, predominando um de cada vez na educação dos jovens.
Educadores, pais e educandos, estamos todos imersos nesta nova cultura
eletrônica que tem sua linguagem própria, a linguagem audiovisual. É impossível
compreender os esboços dessa nova cultura se não compreendemos os traços
característicos de sua linguagem. É uma linguagem onde “fala-se mais do que se
escreve. Vê-se mais do que se lê. Sente-se mais antes de compreender”77. Babin
atribui sete características à linguagem audiovisual78: É mixagem, é linguagem
popular, é dramatização, é a relação entre fundo e figura (ground), é presença ao pé
do ouvido, é composição por “flashing”, é disposição por “razão de ser”.
O audiovisual é “mixagem”, termo inspirado na própria produção audiovisual,
como já foi dito acima. Nas ilhas de edição é realizada a mágica da composição do
som, palavra e imagem para resultar numa produção audiovisual. Essa alquimia
acontece no fervilhar de emoções do realizador que faz com que esses elementos
distintos entrem em interação. Nunca em superposição, mas sempre em interação e
complementaridade. Cada elemento tem seu papel na obra audiovisual, está a
serviço das sensações que vai provocar no público que vai assistir ao produto final.
Os ruídos conduzem o público a uma atmosfera e o lança para dentro de uma
situação concreta, a música cria um clima e um coeficiente passional, a imagem
prende a atenção enquanto transporta para outro mundo, a palavra estrutura. Esses
77
78
BABIN, 1989, p. 38.
Aqui utilizamos o termo linguagem “audiovisual” justamente porque essa não é a linguagem “das
imagens”. O audiovisual não é a imagem, nem a gramática da imagem e nem a composição de
sequências de imagens. Esses elementos particulares fazem parte da linguagem audiovisual, mas
não são “a linguagem”. O audiovisual é a mixagem do som e da imagem.
49
elementos não atuam separadamente, atuam de maneira simultânea e combinada,
quebrando barreiras de espacialidade e temporalidade, conduzindo o público a um
outro mundo, a um outro nível de Realidade. Nesta linguagem, som, palavra e
imagem não são símbolos isolados. Na linguagem audiovisual é o todo que faz o
símbolo. Esses elementos se tornam simbólicos na medida em que são mixados,
amplificados, enquadrados e multiplicados.
Quando som, imagem e palavra se sobrepõem uns aos outros numa
montagem audiovisual, o produto final se torna cansativo e abstrato, porque nele a
mixagem é artificial. A música atua apenas como um fundo sonoro, o texto apenas
comenta a imagem. Uma boa mixagem acontece quando é capaz de criar uma
experiência global unificada, quando afeta o ser como um todo, quando a pessoa se
sente envolvida, tomada, posta em estado de reação geral e tocada sem saber dizer
onde. A boa mixagem determina uma experiência. Aqui está a grande oportunidade
de comunicar a experiência religiosa. Neste ponto a linguagem audiovisual, própria
do novo modo de compreender na cultura eletrônica, propicia um ambiente ideal
para a experiência religiosa e, portanto, para o Ensino Religioso.
O audiovisual é linguagem popular. No cinema e na televisão a fala é diálogo.
Um discurso lido ou uma conferência não são bem aceitos nestes meios de
comunicação. A sofisticação literária e intelectual não combina com essa linguagem.
Na linguagem audiovisual predominam as formas mais familiares e menos literárias.
O audiovisual exige uma linguagem que exprima uma relação primitiva, essencial,
original e até mesmo física entre os seres e as coisas. Por sua natureza que concilia
som e imagem, o audiovisual pede palavras mais concretas e frases mais unidas à
matéria. Dizer: “Não me incomodem, preciso de um momento de paz”, é falar numa
linguagem escrita, literária e abstrata. Já dizer: “Me deixe em paz!”, é uma linguagem
que evoca um gesto e uma mímica, cola à imagem, é audiovisual. Por causa de sua
identidade com a linguagem popular, a linguagem audiovisual propicia deslizes,
como a vulgarização da televisão. Mas não é verdadeiro definir a linguagem popular
por sua degradação. Ora, como falar de temas religiosos na cultura eletrônica, com a
linguagem audiovisual, sem recair na vulgarização do religioso? Como fazer ver e
sentir quase fisicamente a “violência” da religiosidade?
A dramatização é o gênero próprio da linguagem audiovisual. A dramatização
está constantemente presente na cultura eletrônica. É o apelo a captar os olhares, a
50
despertar cada vez mais o gosto de ver e ouvir. As manchetes em letras de
destaque nos jornais são dramatização. Os títulos de revistas e os cartazes de
cinema são dramatização. Até mesmo as notícias televisionadas são dramatização.
E somos levados a viver no drama, drama das notícias, da publicidade, das
telenovelas, dos filmes, dos jogos. A arte de captar a atenção é a arte de dramatizar.
E o artista do script ou o editor do telejornal é aquele que se sente sacudido
afetivamente pelo tema ou pelo fato que será notícia. O autor audiovisual é capaz de
provocar o sentimento crescente de tensão e, com habilidade, proporcionar o
relaxamento na medida certa, para novamente criar a tensão, e manter o público
neste ciclo tensão-relax-tensão: “Escrever audiovisual é levar ao máximo a tensão, e
só escolher como programa o que é „dramatizável‟” 79. O drama dá realce e cria
tensão. Um fato ou acontecimento ganha força, se torna chocante com a arte da
dramatização, ganha densidade e relevância através da mídia eletrônica. Religião é
dramatização. Dramatização da vida e da morte. Dramatização das questões limites
do ser humano. Mas se não é tratada com o “tempero” do drama, perde sua força na
cultura eletrônica. Os filmes e documentários utilizados pelos educadores para falar
de religião ou religiosidade somente são vistos pelos educandos se trabalham bem a
dramatização. Simplesmente exibir o filme não basta. É preciso uma metodologia. A
metodologia somente funciona na cultura eletrônica, se contém em si mesma o
drama, se é uma metodologia dramatizada.
O sentido e a eficácia de uma mensagem na cultura eletrônica dependem da
relação entre figura e fundo, entre texto e contexto. Essa teoria inspira-se em certos
elementos da teoria Gestalt80. A relação entre figura e fundo na linguagem de
Gutemberg acontece de maneira diferente do que ocorre na linguagem audiovisual.
Na linguagem escrita, as palavras que estão em primeiro plano têm a maior
importância. A atenção é centralizada na figura, que é a palavra. Na linguagem
audiovisual, a mensagem está na relação entre o fundo e a figura, no efeito que a
79
80
BABIN, 1989, p. 44.
A Psicologia da forma ou Psicologia da Gestalt considera que o conhecimento de um todo é
anterior à percepção de suas partes e que esse conhecimento do todo dá sentido às partes. Cf.
ENGELMANN, Arno (ORG). Wolfgang Köhler. São Paulo: Ática, 1978. (Coleção Grandes Cientistas
Sociais). KOHLER, Wolfgang. Psicologia da Gestalt. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. KOFFKA, Kurt.
Princípios da Psicologia da Gestalt. São Paulo: Cultrix, 1975. MARX, Melvin; HILLIX, Willian.
Sistemas e Teorias em Psicologia. São Paulo: Cultrix, 1976. PIAGET, Jean. Psicologia da
inteligência. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
51
distância entre o fundo e a figura produz em nós. Quanto mais equilibrado for este
contraste entre figura e fundo, maior é o efeito produzido. O sucesso da capa de um
livro não está, em primeiro lugar, no seu título, está no efeito produzido pela relação
entre a tipologia e a cor de fundo, no efeito do contraste entre a imagem estampada
e as poucas massas de texto. “A relação figura-campo determina uma vibração
especial que nos afeta. A mensagem está nesse efeito produzido”81.
Não se trata somente de contrastes de imagens. Na linguagem audiovisual,
as distâncias entre a voz e o silêncio, entre a música e a imagem, entre a tonalidade
da voz e a palavra pronunciada, entre a cor dominante e a cor secundária, veiculam
a mensagem. Nesta cultura, o bom comunicador é aquele que sabe usar destas
correspondências e distâncias para criar o realce. Não se trata de carregar nas tintas
como frequentemente acontece com os cartazes nas escolas e igrejas, carregados
de elementos onde um símbolo superpõe a outros e há excesso de palavras. Tudo
se torna figura e a figura desaparece num emaranhado sem sentido. A própria
expressão “sentido”, derivada de “sentir”, desvela a dinâmica da linguagem
audiovisual. Nesta linguagem o sentir vem primeiro. A dramatização da
correspondência entre fundo e figura afeta e provoca um sentimento no destinatário
da mensagem. Aí está o sentido na cultura eletrônica.
Uma das constatações mais antigas sobre os efeitos das mídias é o efeito de
“presença”. A eletrônica torna presente, amplia essencialmente o efeito de presença:
Conselho dado aos que aprendem a falar na televisão:
„Principalmente, não esqueçam de ser familiares, pessoais; as
pessoas vêem você na sala delas. Não aceitam o que é forçado nem
discurso doutoral‟. Assim, pela televisão, por um momento, a imagem
do presidente me pertence. A presença, antes de mais nada, é a
abolição das distâncias geográficas. Mas é também uma qualidade
especial de ressonância em nosso corpo82.
O canal eletrônico traz para a minha sala o que está longe: o presidente da
república, a Copa do Mundo, a guerra do Iraque, o terremoto do Haiti. Da minha
poltrona vibro com os gols do Brasil na Copa do Mundo, ouço as bombas e sou
impactado pela dor provocada pelas guerras, vejo os mortos e feridos e sou movido
a uma atitude de solidariedade com as vítimas das catástrofes naturais. Estas
imagens e sons aumentam o efeito de vibração no meu corpo. A eletrônica amplia o
81
BABIN, 1989, p. 47.
82
Ibid, p. 49.
52
efeito de vibração e nos faz penetrar numa intimidade específica porque aumenta as
vibrações corporais e nos isola de qualquer distração. Há uma abolição do espaço,
uma limitação do foco e uma supervoltagem das vibrações. Esse efeito de presença
é provocado pela imagem e, sobretudo, pelo som. Pelo fone de ouvido estou
presente no palco do show, pelo fone do celular estou vibrando com a voz, pela
potência dos amplificadores sou solicitado por inteiro.
Qual é então a lógica desta linguagem audiovisual? O que rege os
encadeamentos e as inter-relações das sequencias ou dos planos? Ao contrário do
que possa parecer, a composição visual não é linear, não se desenrola do início ao
fim como uma história regular. Não é didática, não se desenvolve em partes
articuladas e lógicas. Não é sintética, não parte de uma visão de conjunto para
mostrar ou analisar sucessivamente as partes. A composição audiovisual opera por
flashing. O enredo é desvelado pelo encadeamento sucessivo de imagens, sons e
palavras em flashes aparentemente sem ordem, num fundo comum, que formam
sequências. Basta olharmos as sequências nos filmes ou mesmo nos programas
televisivos. É comum modos de composição que não correspondem a uma ordem
linear ou causal. A composição por flashing é a lógica operante no próprio interior
das sequências. As sequências são formadas pelo encadeamento de cenas, que por
sua vez são formadas pelo encadeamento de planos, que são as diversas formas de
recortar e enquadrar uma realidade, resultando numa composição por flashes da
realidade. Recebemos esses estímulos visuais e sonoros como objetos lançados ao
rosto. Mas essa aparente desordem esconde uma rigorosa ordem subjetiva
expressa numa unidade de lugar e de experiência. É no encontro dos fluxos de
informações e de conhecimento que perpassam os diversos níveis de realidade e de
percepção que os estímulos visuais e sonoros despertam o sentido.
Há uma distinção importante entre os conceitos de percepção global e de
percepção das partes. Na linguagem audiovisual, a percepção global do lugar
aparece desde o inicio. A unidade se dá pela dominância da cor, do ritmo e do tema
sonoro. Para dar dramatização à composição audiovisual, os elementos são
trabalhados numa sucessão do detalhe ao global e do global ao detalhe. O terreno é
sugerido desde o princípio, criando uma tensão psicológica no espectador. “O
terreno é o fundo que espera sua forma, a terra que espera sua planta”83.
83
BABIN, 1989, p. 53.
53
Mas então não existe realmente ordem alguma entre os flashes? Há, mas
como já dissemos, essa ordem não é necessariamente linear, causal, didática,
articulada ou lógica. É da ordem da subjetividade do emissor da mensagem. Aqui se
entende a sensação de desordem que temos diante de filmes em que passamos
noventa e cinco por cento do tempo sem entender a trama, e, como num passe de
mágica, no final, se descortina o sentido e tudo se revela. É a figura final que
aparece em claro e dirige a ordem. A essa característica da linguagem audiovisual
Pierre Babin dá o nome de “disposição pela razão de ser”84. Essa figura final que
desvela a mensagem, apesar de ser em grande parte o produto da imaginação
criadora de um autor, não é pré-estabelecida. Uma obra literária ou um
acontecimento histórico ganha novos sentidos ao ser adaptada para o meio
audiovisual pela marca própria do diretor. É ele quem concebe os planos e traduz
em imagens na obra cinética. O diretor é o personagem-chave da “disposição pela
razão de ser” numa produção audiovisual. Cada ator, repórter ou técnico duma
produção audiovisual encarna essa diretriz dada pelo diretor.
Porém, essa disposição pela razão de ser que nasce no ato criador do diretor
não é um puro capricho completamente desligado das realidades objetivas e da
ordem interior que anima o ser humano em geral. A razão de ser de uma produção
só tem receptividade se exprimir, de alguma maneira, a razão de ser de seu público.
Como vimos, a comunicação só acontece quando a zona de não resistência ao
sagrado dos níveis de Realidade e de percepção são idênticas e os fluxos de
informação e de percepção compartilham da mesma zona de resistência. Desta
maneira, a disposição pela razão de ser na linguagem audiovisual é um amálgama
da realidade subjetiva do criador em complementaridade com as percepções
humanas universais. A síntese é feita no ato criador do diretor:
Assim, a ordem audiovisual por razão de ser é a obra de um diretor
que recria sua experiência, exprimindo, ao mesmo tempo, uma
experiência coletiva. Definitivamente, a razão de ser é a necessidade
interior que leva as coisas a se ordenarem e a se completarem para
que cada parte possa entrar num todo significativo. Qual o sinal de
que uma mensagem audiovisual foi bem construída, de acordo com
uma disposição pela razão de ser? No público, produz-se uma
experiência unificada, que corresponde a uma expectativa préconsciente85.
84
BABIN, 1989, p. 54-59.
85
Ibid., p. 58.
54
A consequência desse tipo de disposição pela razão de ser dada pela cultura
eletrônica é o surgimento de um novo modo de compreender, no qual:
Os esquemas e as filosofias lineares vão deixar de predominar sobre
o pensamento [...] A eletricidade, a eletrônica, as conexões
audiovisuais avançam depressa demais e, com isso, somos levados
a querer mudar a lentidão das deduções de causa e efeito: daqui por
diante, pensa-se no efeito com a causa. Por seu lado, o computador,
multiplicando indefinidamente as conexões possíveis entre
semelhanças ínfimas, dá ao homem o gosto de ultrapassar a lentidão
das operações tradicionais da lógica humana. Por sua extrema
rapidez para calcular, ele nos incita a funcionar não por silogismo,
mas de outro jeito: seu uso, bem como o do audiovisual, nos estimula
a funcionar na velocidade da intuição e das analogias86.
A esse conjunto de características da linguagem audiovisual denominamos
“teoria da Modulação”. Essa nova cultura, da televisão aos jogos eletrônicos,
impregnou a linguagem e o modo de compreender, especialmente dos jovens que já
nasceram imersos neste ambiente.
Daí a importância dos educadores de hoje
apreenderem como perceber o mundo através do audiovisual. O que caracteriza a
mulher e o homem audiovisual não é somente a vista, é uma combinação da vista e
do ouvido. A percepção auditiva está no centro do audiovisual porque o som conduz
o ouvinte para dentro. O ouvido é o sentido da interioridade. Ele permite que a
realidade penetre até o fundo do ser. Por isso dizemos: “ser todo ouvidos”, para
expressar uma atitude de escuta atenta e acolhimento de uma mensagem que vem
de fora. Ao ouvir algo, reagimos física e psicologicamente primeiro, antes de analisar
o sentido. A impressão de relevo sonoro nos dá a impressão do ambiente que nos
envolve mesmo sem a informação visual. E a sensação da espessura sonora é tão
intensa que pode chegar a agredir.
Ao contrário do espaço físico que é limitado por blocos e formas variadas,
mais ou menos coloridos, o sentido da audição provoca uma sensação de perda de
limites, de sentir-se no devir do tempo e de se perder no tempo simultaneamente. A
música evoca movimentos, esquemas, tensões e relaxamento que sedimentam a
experiência motora e afetiva do ouvinte. É consenso a influência da música na
cultura audiovisual. O êxito da MTV (Music Television) junto aos jovens é prova
eloquente. É consenso também a importância da música e da sonoridade como
veículo que conduz ao sagrado nas religiões. Na meditação budista, nos cantos
86
Cf. BABIN, 1989, p. 58-59.
55
gregorianos, no êxtase pentecostal, nos ritos tribais ou nos cantos do povo das
comunidades eclesiais de base, o som é elemento fundamental da experiência
religiosa. O fiel faz uma experiência profunda do sagrado através da música. Essa
experiência sensorial que eleva o corpo para uma dimensão superior é da mesma
ordem da experiência audiovisual. A vibração do som tem sempre uma ressonância
psicológica e emocional que envolve o ouvinte como um todo.
Mas não basta sermos impactados pelos apelos audiovisuais. Queremos
tocar, apreender a realidade do objeto audiovisual através da ilusão do toque, pela
percepção tátil. Enquanto a televisão desenvolve a fascinação pelo objeto que se
tem ao alcance das mãos, como demonstra a manipulação dos botões do controle
remoto, o cinema desenvolve tecnologias 3D que criam a ilusão do relevo. A
eletrônica possibilita aos jogos eletrônicos a sensação cada vez mais intensa de
espacialidades, texturas, relevo e movimento.
Para a percepção multidimensional específica da maneira de perceber o
mundo na cultura eletrônica, a visão e o ouvido têm papéis predominantes. A
percepção sonora tem um peso especial porque provoca respostas que tendem a
ser globais e a exprimir-se de modo físico e afetivo. A imagem pode diminuir o
campo da projeção psicológica causada pelo som puro ao ser inserida como
audiovisual porque impõe uma representação precisa da realidade e assim limita a
imaginação. Neste sentido, o audiovisual reduz a polissemia, a possibilidade de uma
mensagem ter diferentes sentidos, e aumenta o índice de adesão e cumplicidade do
espectador. Isto não significa que a linguagem audiovisual não é polissêmica, mas
sua polissemia é reduzida em relação ao som puro.
A linguagem audiovisual treina múltiplas atitudes perceptivas, constantemente
solicita a imaginação e devolve à afetividade um papel de mediação primordial no
mundo. Enquanto o homem de Gutemberg foi treinado para a distância afetiva e
para a desconfiança da imaginação, a mulher e o homem da civilização eletrônica
audiovisual faz intuitivamente as ligações entre sensação e compreensão,
imaginação e conceito. “Sem afetividade não há audiovisual”, diz Pierre Babin87.
Vejamos então como nosso autor entende as diferentes fases do ato de
compreender no audiovisual. Tudo começa com o que podemos chamar de “choque
87
BABIN, 1989, p. 107.
56
audiovisual”. É a primeira fase da percepção iniciada por um estímulo que causa
uma sensação. A imagem que vem à mente é a de uma pedrinha lançada num lago
que provoca um choque na superfície da água. O movimento habitual das correntes
é afetado e a tranquilidade é interrompida. Um choque provocado pela mistura de
som-palavra-imagem age globalmente sobre a personalidade e causa ruptura,
mudança de registro. O choque determina uma nova sensibilidade. Na abordagem
transdisciplinar do audiovisual na Figura 3, esta primeira fase da percepção se situa
no nível imediato que chamei de nível Audiovisual.
A este choque inicial segue-se um “abalo” sem conteúdo preciso. Um estado
emocional confuso e ambíguo. Sente-se e não se sabe qual é o sentido dessa
emoção. É um sentimento fundamental porque depois representa um papel de préorientação da percepção ou do conhecimento. Um bom filme é aquele que conhece
o mecanismo da percepção audiovisual e, por isso, evoca nos primeiros minutos da
apresentação a tonalidade afetiva, em germe, do filme inteiro. É pelo enfoque
emocional que vamos determinar a lógica do filme e nossos olhos e ouvidos vão
filtrar as palavras e imagens da obra audiovisual. Diferentemente do livro, as
sequências não têm nenhuma lógica dedutiva do tipo I, II, III e Conclusão. O que
determinará a compreensão do espectador é essencialmente a tonalidade afetiva do
começo. Essa tonalidade afetiva é um elemento sutil e fundamental presente em
todas as palavras, ações, imagens e músicas da linguagem audiovisual. O realizador
da obra audiovisual parte de uma emoção que será traduzida em sons e imagens.
Essa emoção é a alma do diretor nato posta em cena para ser filmada e exibida em
forma de filme. Nela está a mensagem na linguagem audiovisual. Nesta fase da
percepção a mensagem está ainda velada nesta emoção fundamental. Na
abordagem transdisciplinar está num nível mais imanente em que as vibrações
eletrônicas do som e da imagem tocam no nível Sensitivo.
Segue-se a “elaboração do sentido”, fase que marca a saída da confusão
inicial gerada pelo impacto do audiovisual. Nesse estágio busca-se um sentido para
as imagens e sons, mesmo que nada compreenda. O espectador vislumbra o
caminho que levará ao sentido. Ele passa a compreender e não somente sentir.
Para que aconteça a compreensão, o espectador, ao mesmo tempo em que recebe
a mensagem audiovisual, perde mais ou menos toda distância crítica em relação a
essa mensagem. E essa é uma constatação que assusta aos professores que
57
saíram das cultura tradicional: “Compreender a mensagem audiovisual é perder,
num primeiro momento, o recuo dado pela consciência de si, ou perder reflexão
crítica; é aceitar estar „dentro‟ antes de estar „acima‟”88. Queiram ou não queiram,
essa é a dinâmica da linguagem audiovisual. É preciso se permitir mergulhar fundo e
deixar o sentimento fruir para assimilar a mensagem. Esse estágio é próprio do nível
Ficcional e do Imaginário na abordagem transdisciplinar do audiovisual.
A postura “científica” de blindar-se interiormente diante dos elementos
afetivos da mensagem, pensando que assim se atinge melhor a realidade, evitando
distorções devidas à imaginação e aos afetos, conduz a um fechamento e a uma
incapacidade de compreender a cultura audiovisual de maneira integral. Na cultura
audiovisual há uma interpenetração íntima dos elementos cognitivos e afetivos. Até
mesmo numa aula de matemática televisionada, os elementos afetivos têm grande
peso para o êxito da mensagem. A personalidade do professor, o brilho dos atores,
o tom das vozes, a focalização dos rostos, o fundo musical, a beleza dos gráficos, os
gestos e o conjunto do espetáculo devem estar carregados de emoção. Se apenas
se vê um professor recitando sua lição bem aprendida, o resultado é um programa
ruim e um público aborrecido.
As versões midiáticas de religiosidade incentivam os fiéis a permanecerem
nesta etapa, gozando do sentimentalismo próprio do espetáculo, sem vivenciar uma
verdadeira conversão que supere uma adesão simplesmente mágica e sentimental.
É preciso ultrapassar essa etapa para apropriar-se da mensagem. A última etapa na
compreensão audiovisual é a que denominamos de “ressonância”, da distância que
permite a reflexão sobre o que se viveu e sentiu, a conceitualização e a apropriação
ou reconstrução de sua própria linguagem. Nesta fase se opera o julgamento crítico
sobre o conteúdo, a forma, a linguagem, a técnica, os processos utilizados, as
pretensões comerciais e econômicas postas em jogo. Após o ato de compreensão,
afetivamente muito imerso, é tempo de manter uma distância intelectual para a
análise e o julgamento crítico do vivido.
Em seu livro Espiritualidade Integral89, o filósofo Ken Wilber apresenta
critérios fundamentais para a análise madura de qualquer fenômeno. A abordagem
88
BABIN, 1989, p. 112.
89
WILBER, 2006.
58
integral é apropriada à etapa da distância crítica do audiovisual porque contribui para
uma postura madura diante da mensagem veiculada. Toda a realidade e qualquer
ocasião possuem uma dimensão “dentro” e uma “fora”, e ainda uma dimensão
individual e uma coletiva. Uma abordagem que ignore essas dimensões da realidade
torna-se insatisfatória de acordo com os conhecimentos humanos confiáveis da
atualidade. Geralmente termina em uma reivindicação de totalidade a partir de uma
área do saber em detrimento das outras. Para uma análise coerente dos fenômenos,
Ken Wilber propõe o “Pluralismo Metodológico Integral”, método de compreensão da
realidade que envolve oito metodologias fundamentais. Para visualizar essas
metodologias fundamentais é preciso conceber a realidade em “quadrantes”, como
na Figura 4:
Figura n. 4 – Pluralismo Metodológico Integral
59
Podemos imaginar qualquer fenômeno nos diversos quadrantes e observá-los
a partir de seu próprio dentro ou fora. Isso nos dá a visão interna e externa do
indivíduo e do coletivo. Os quadrantes são representados por eu, você/nós, ele e
eles, que são variações dos pronomes de 1ª, 2ª e 3ª pessoas, comparáveis às
variações do Bom, o Verdadeiro e o Belo; a arte, os princípios morais e a ciência. É
uma visão que abrange a verdade objetiva da ciência externa (do ele/eles), a
verdade subjetiva da estética (do eu) e a verdade coletiva da ética (do vós/nós). Ao
olhar cada quadrante em sua visão interna e externa, encontramos oito perspectivas
primordiais:
Habitamos esses oito espaços – essas zonas, esses mundos vivos –
como realidades práticas. Cada uma dessas zonas não é apenas
uma perspectiva, uma injunção, um conjunto concreto de ações em
uma área do mundo real. Por meio das diversas perspectivas, cada
injunção gera ou revela fenômenos compreendidos. Não que as
perspectivas venham primeiro e as ações ou injunções, depois; elas
surgem simultaneamente (na verdade, as quatro surgem ao mesmo
tempo)90.
Essas
oito
perspectivas
fundamentais
envolvem
oito
metodologias
fundamentais, que são oito abordagens possíveis de um único fenômeno. É ao
conjunto dessas abordagens que Ken Wilber se refere como “Pluralismo
Metodológico Integral”. O exemplo que ele apresenta para facilitar a compreensão é
a da experiência de um “eu” no quadrante superior esquerdo:
Esse “eu” pode ser visto de dentro ou de fora. Eu posso vivenciar
meu próprio “eu” de dentro, neste momento, como a percepção de
ser um sujeito de minha experiência presente, uma 1ª pessoa
vivenciando uma experiência de 1ª pessoa. Neste caso, os
resultados incluem introspecção, meditação, fenomenologia,
contemplação, e assim por diante91.
A fenomenologia é o campo epistemológico que resume esse tipo de
abordagem do “eu” visto de dentro. Mas esse “eu” pode ser visto “do lado de fora”,
numa abordagem objetiva e “científica”. Isto acontece quando tento ser “objetivo”
sobre mim mesmo, ou tento “me ver como outros me vêem”, ou quando tento ser
científico no estudo sobre o modo que as pessoas vivenciam seu “eu”. O campo
epistemológico que abrange esse tipo de abordagem é a teoria dos sistemas e o
estruturalismo.
90
WILBER, 2006, p. 55-56.
91
Ibid., p. 57.
60
Podemos também realizar o estudo de um “nós” do lado de dentro e do lado
de fora no quadrante inferior esquerdo. Os estudos do lado de dentro de um “nós”
são as tentativas de compreensão mútua sobre qualquer coisa, quando o seu e o
meu “eu” se reúnem no que você e eu chamamos de nós. A arte e a ciência da
interpretação do nós é a hermenêutica. Já o estudo desse “nós” visto pelo lado de
fora é o campo das ciências que estudam a “aparência” das coisas. Aparência aqui
tem o sentido de a maneira como um fenômeno aparece no Real, visto de fora. Já a
visão de dentro é a “sensação”, do lado de dentro das coisas. As ciências que
melhor dão conta da visão de fora de um “nós” são a semiologia, a genealogia, a
arqueologia, a gramatologia, os estudos culturais, o pós-estruturalismo, o neoestruturalismo e a etnometodologia. Todas ciências que abarcam a maneira que as
coisas aparecem como fenômenos sociais.
A visão dos quadrantes nos permitem fazer uma distinção entre os olhares
“de dentro” e “de fora”, e as perspectivas “internas” e “externas”. Os olhares “de
dentro” e “de fora” resultam nas oito maneiras de abordar os fenômenos através de
metodologias apropriadas. As perspectivas “internas” e “externas” se referem às
perspectivas dos quadrantes, que podem ser internas (os quadrantes esquerdos) e
externas (os quadrantes direitos). Os quadrantes esquerdos partem de uma
perspectiva subjetiva e intencional (superior esquerdo), e intersubjetiva e cultural
(inferior esquerdo); os quadrantes direitos, de uma perspectiva objetiva e
comportamental (superior direito), e interobjetiva e social (inferior direito). Também
podemos fazer a distinção entre os quadrantes superiores e os inferiores, onde os
quadrantes superiores se referem a uma dimensão “singular” (eu, ele) e os
quadrantes inferiores a uma dimensão “plural” (nós, eles). Assim, a visão quadrática
nos oferece lentes mais precisas para analisar os fenômenos.
Vimos até aqui quais as principais metodologias de abordagem dos
quadrantes esquerdos, de perspectivas interiores (eu, nós). Vamos concluir esse
resumo do Pluralismo Metodológico Integral com uma simples menção aos
quadrantes direitos, de perspectivas exteriores (ele, eles). O quadrante superior
direito estuda o organismo objetivo, que também pode ser visto “de dentro” ou “de
fora”. As abordagens de dentro estão relacionadas aos estudos da neurociência,
psiquiatria biomédica, psicologia evolutiva, sociobiologia e das descobertas da
ciência cognitiva e abordagens autopoiéticas relacionadas. Se tomarmos o cérebro
61
como exemplo, trata-se da visão objetiva de dentro do cérebro, a visão do que
acontece no interior do cérebro. Mas se essa visão for desconectada de seus
correlatos nos demais quadrantes, especialmente no quadrante superior esquerdo,
que aborda a visão subjetiva desses mesmos eventos, pode-se ter uma abordagem
reducionista do fenômeno, que considere apenas o absolutismo de um único
quadrante. O absolutismo de quadrante pode acontecer em qualquer um dos
quadrantes quando uma ciência tem a pretensão de um conhecimento total dos
fenômenos. É o que acontece com o materialismo científico, que parte de uma visão
de fora no quadrante superior direito e o considera como o único real:
A visão de mundo do “materialismo científico” considera o quadrante
superior direito como o único quadrante real, e tenta explicar o
universo como se objetos do quadrante superior direito fossem seus
únicos componentes. Essa curiosa diluição homeopática de
consciência humana e de espiritualidade, que deixa o universo
composto apenas de pó, pode parecer uma coisa estranhíssima de
se fazer, e certamente o é, mas a culpa não é minha. Há dois erros
que podemos cometer em relação a esse quadrante. Um é torná-lo
absoluto; outro, é negá-lo. A modernidade comete o primeiro; a pósmodernidade, o segundo92.
Para a teoria integral, tanto o lado esquerdo como o direito são igualmente
reais e importantes. Todos os eventos que acontecem num lado tem seus correlatos
no outro lado, e ainda, em todos os quadrantes. Todo estado de consciência, como
o estado meditativo que ocorre no quadrante superior esquerdo, tem seu correlato
correspondente num estado cerebral que ocorre simultaneamente no quadrante
superior direito. Como o empirismo é a metodologia que melhor configura a visão de
fora do quadrante superior direito, e o materialismo científico supervaloriza o
empirismo como a única forma de conceber o real e descarta as realidades interiores
do quadrante superior esquerdo, acaba alimentando esse absolutismo de quadrante.
Apesar do reducionismo destas abordagens do superior direito, o Pluralismo
Metodológico Integral leva esse quadrante e seus fenômenos muito a sério. As
disciplinas características que estudam a consciência do ponto de vista de fora neste
quadrante são a neurofisiologia, a bioquímica cerebral, a pesquisa genética, a onda
cerebral e pesquisa de estados cerebrais, e a biologia evolutiva.
Nos resta ainda o quadrante inferior direito para completarmos nosso resumo
da teoria integral. O quadrante inferior direito se refere ao sistema social, que
92
WILBER, 2006, p. 212.
62
também pode ser visto numa perspectiva de dentro ou de fora. Visto de uma
perspectiva de dentro temos a autopoiese social como metodologia predominante.
Organismos ou membros sociais estão dentro do sistema social e seus
“significadores” ou artefatos trocados são internos ao sistema. Numa correlação com
o quadrante inferior esquerdo, o que são “significadores” no inferior direito, são
“significados” no inferior esquerdo. Aplicando uma semiótica integral, entende-se
como significadores os referentes materiais do quadrante inferior direito que
encontram seus correlatos no inferior esquerdo composto de significados culturais
coletivos93. Se observarmos esse quadrante social de fora teremos como
perspectiva a teoria dos sistemas. Nesta perspectiva, os organismos ou membros
sociais são vistos como um conjunto de elementos inter-relacionados que formam
um todo complexo.
Como já foi dito, qualquer uma das perspectivas, se considerada como a
única correta, dá uma percepção errônea da realidade, que, de acordo com o
Pluralismo Metodológico Integral, apresenta pelo menos oito maneiras de ser
abordado cientificamente, e em termos transdisciplinares, aparece em vários níveis
de realidade. O Pluralismo Metodológico Integral se apresenta como uma
metodologia de abordagem apropriada ao estudo do fenômeno religioso porque
inclui os fenômenos do quadrante superior esquerdo que não foram aceitos como
ciência pelo cientificismo moderno (que considera tais fenômenos como prémodernos) e foram atacados pelo pós-modernismo (que encara tudo isso como
extremismo).94 Com o Pluralismo Metodológico Integral é possível localizar os
fenômenos religiosos no seu lugar do conhecimento dentro dos quadrantes e
considerar a sua ressonância nos demais quadrantes.
O fenômeno do êxtase espiritual, por exemplo, presente em praticamente
todas as religiões, pode ser visto sob a perspectiva do quadrante superior direito.
Estudos recentes de rastreamento simultâneo, possibilitados pela Eletrônica, utilizam
equipamentos de ressonância magnética para efetuar a medição de padrões de
onda cerebral durante os diferentes estados de meditação espiritual. 95 Porém, o
materialismo científico não considera esse tipo de pesquisa como indícios de que o
93
Cf. WILBER, 2006, p. 222-224.
94
Cf. Ibid., p. 212.
95
R. Jevning, A. Newberg, Y. Kubota, L.I. Aftanas, S.A. Golocheikine, P. Arambula, J. Infante e G.
Tooley são pesquisadores que tem estudado os efeitos neurológicos de estados meditativos.
63
fenômeno do êxtase espiritual é real. Seus resultados levam os empiristas a afirmar
que as realidades espirituais não são nada além do que fisiologia cerebral. A
meditação somente ativa determinadas áreas do cérebro material e não traz
nenhuma informação sobre algo real fora do organismo.96 Porém, o reducionismo
dessas abordagens do SD envolve o que chamamos de absolutismo de quadrante, e
conduz a uma visão míope da Realidade.
Uma abordagem integral, além de levar esse quadrante e seus fenômenos
muito a sério, afirma que tanto o quadrante superior direito quanto o superior
esquerdo são igualmente reais e importantes. Todo estado cerebral do superior
direito tem seu correlato como estado de consciência no quadrante superior
esquerdo. Ambos ocorrem juntos e são dimensões reais de um mesmo fenômeno
que não pode ser reduzido um ao outro. Com as ferramentas do Pluralismo
Metodológico Integral, os abusos e reducionismos do materialismo científico são
superados e a dimensão espiritual do ser humano é reintroduzida no rol das
ciências.
O
Pluralismo
Metodológico
Integral
oferece
instrumentais
teóricos
fundamentais para a análise e o julgamento crítico propostos por Pierre Babin como
etapa necessária de distanciamento intelectual na compreensão das mensagens
audiovisuais que chegam em nossos sentidos na cultura eletrônica. Com esta
abordagem, é possível ensaiar uma espiritualidade integral voltada ao audiovisual.
Filmes e documentários que abordam a temática das culturas e religiões
costumam reforçar uma visão míope dessas expressões culturais e religiosas.
Grande parte destas produções apresentam, de maneira caricaturada, as profundas
e preciosas verdades das tradições religiosas pré-modernas. Isto ocorre porque
estamos imersos num contexto bastante influenciado pela modernidade, que
supervaloriza os quadrantes do lado direito da prova externa objetiva; e pela pósmodernidade, que se concentra no quadrante inferior esquerdo da verdade
intersubjetiva na construção social da realidade. Já as verdades das tradições
culturais e religiosas pré-modernas surgiram num contexto histórico em que estes
três quadrantes ainda não haviam se diferenciado, o que só ocorreu com a chegada
da modernidade. A riqueza cultural e religiosa pré-moderna gerou um conhecimento
96
Cf. WILBER, 2006, p.214.
64
especializado do quadrante superior esquerdo, com todos os seus estados e
estágios de consciência, percepção e experiências espirituais, que foram reprimidos
pela modernidade e pós-modernidade97.
O Pluralismo Metodológico Integral permite um distanciamento crítico na
produção e uso de materiais audiovisuais que contemplem tradições culturais e
religiosas pré-modernas. Permite reconstruir as verdades relevantes das tradições
contemplativas e místicas, agora sem os sistemas metafísicos que não sobreviveram
às críticas modernista e pós-modernista. A pós-metafísica integral que aí surge, tem
consciência de que a matéria não ocupa o último degrau de desenvolvimento da
realidade. A matéria nada mais é do que a forma externa de uma evolução que tem
sua correspondência interior em níveis de sentimentos, percepção, consciência e
demais dimensões interiores. A abordagem integral não faz um juízo de valor que
considere a matéria como sendo de um nível inferior e a vida, a mente, ou a alma,
de nível superior. A matéria é justamente a forma externa de cada um desses níveis
internos. Essas realidades que os sábios pré-modernos consideraram como
metafísicas são realidades intrafísicas, não estão acima da matéria, nem além da
natureza, nem metafísica, nem sobrenatural. Elas não estão acima da natureza,
estão dentro dela, não estão além da matéria, estão em seu interior, como mostra a
Figura 5.
Nesta perspectiva todos os quadrantes estão em constante crescimento,
desenvolvimento ou evolução espiritual. As verdades metafísicas absolutas dos
antigos sábios eram, na realidade, culturalmente moldadas e condicionadas ao
estágio de desenvolvimento em que se encontravam. A existência de contextos
culturais no quadrante inferior esquerdo não significa que não existam verdades
transculturais ou universais. A pós-metafísica integral não pretende anular estas
verdades, mas está ciente de que identificá-las no contexto atual exige muito mais
cuidado do que a metafísica pôde imaginar. Essa tarefa não pode mais ser realizada
com metafísica especulativa, e sim com as metodologias de pesquisa das diversas
disciplinas que compõem o rol das ciências. E os sistemas sociais, que aparecem no
quadrante inferior direito, não estão num nível inferior de existência. Eles são
dimensões externas do coletivo que também correspondem ao desenvolvimento
espiritual da humanidade.
97
Cf. WILBER, 2006, p. 66.
65
98
Figura n. 5 – Aspectos humanos dos quadrantes. Fonte: WILBER, 2006, p. 284.
Desta maneira, em todos os quatro quadrantes, o ser humano está se
desenvolvendo. É um desenvolvimento tetra-espiritual, que ocorre simultaneamente
em todos os âmbitos e tem repercussões em todas as dimensões da existência, ou
seja, em todos os quatro quadrantes. O mesmo Espírito99 que eleva o ser humano
98
O Pluralismo Metodológico Integral concebe que há “estágios de consciência” que representam os
verdadeiros marcos de crescimento e desenvolvimento do ser humano e da humanidade. Para se
referir aos graus desses níveis de desenvolvimento, Ken Wilber utiliza as cores do arco-íris, numa
referência às culturas tradicionais e seu sistema de chakras, que dispõe as cores na ordem natural,
do vermelho (arcaico), passando pelo laranja (racional), pelo verde (pluralista), depois o azul
(integral), até o vazio da luz transparente. Cf. WILBER, 2006, p.74-96.
99
Para Ken Wilber os quadrantes abrangem tudo e o Espírito se manifesta primeiro na existência.
Existe Espírito na 1ª, na 2ª e na 3ª pessoa e é preciso integrar 1ª, 2ª e ª e 3ª pessoa: “O Espírito na 1ª
pessoa é o grande eu, o eu-eu, [...] o Espírito como aquele grande Observador em você [...]; o
Espírito na 2ª pessoa é o grande Você, o grande Tu, o Deus radiante, vivo, generoso diante do qual
devo me render em amor, devoção, sacrifício e libertação. [...] esse algo-que-é-sempre-maior-que-eu.
[...] Esse Grande Deus(a) que me encara neste momento, que fala comigo agora, que está Se
revelando a mim como uma comunhão com o Tu em um nós sagrado [...]; o Espírito na 3ª pessoa é
grande Ele, o Grande Sistema ou a Grande Teia da Vida.” WILBER, 2006, p. 204-205.
66
aos mais elevados estados de consciência (quadrante superior direito) é o Espírito
que conduz a humanidade a desenvolvimentos mais relacionais com a matéria
(quadrante superior direito), do coletivo e cultural (quadrante inferior esquerdo) e no
desenvolvimento da história (quadrante inferior direito).
Com a abordagem integral o Ensino Religioso pode falar de religiosidade e
espiritualidade de uma maneira mais compreensível ao educando do século XXI. O
Pluralismo Metodológico Integral contribui para uma leitura madura de temas
relacionados com espiritualidade e mística, veiculados tanto na grande mídia, quanto
em produções audiovisuais utilizadas pelos professores para a educação religiosa. A
abordagem Integral oferece uma metodologia que previne o absolutismo de
abordagens totalizantes, sem recair em uma metanarrativa, porque a concepção de
quadrantes, estágios e níveis de desenvolvimento se abre para todas as ciências,
relativizando suas conclusões de acordo com seus pontos de vista.
Já que a nova cultura audiovisual promoveu novos modos de compreender, é
imprescindível conhecer as metodologias de análise desta linguagem. A palavra
“imagem” tem sua raiz no latim imago, que se refere a toda e qualquer visualização
gerada pelo ser humano, seja em forma de objeto, de obra de arte, de registro
fotográfico, de construção pictórica (pintura, desenho, gravura), cinética (imagens
em movimento) e até de pensamento (imagens mentais)100. O ato de perceber
imagens e sons é um dos mais conhecidos modos de relação entre o ser humano e
o mundo. Um dos primeiros sentidos a se desenvolver já na gestação do ser
humano é o ouvir. O feto reage a estímulos sonoros no próprio ventre materno. Um
dos fatos mais marcantes de minha experiência de pai ocorreu no nascimento de
meu primeiro filho. No período de gestação sempre conversei com ele bem perto da
barriga de minha esposa. Acompanhei o parto e ao nascer ele chorava muito.
Porém, ao ouvir minha voz dizendo: “Não chore não. Papai está aqui!”, meu filho
parou imediatamente de chorar e se acalmou. Alguém poderia dizer ser apenas uma
coincidência, mas há estudos que comprovam o reconhecimento da voz dos pais
pelos recém-nascidos101. Logo após nascer o bebê começa a receber estímulos
100
Cf. COUTINHO, Iluska. Leitura e análise da imagem. In: DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio.
Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 330-344.
101
A fonoaudióloga Lorene Butkus Lindner afirma que “O bebê recém-nascido traz consigo uma
memória auditiva de pelo menos quatro meses”. Cf. LINDNER, Lorene Butkus. O feto como ser
67
visuais, ainda sem nitidez, mas que progressivamente vão se intensificando. É a
primeira linguagem do ser humano, estímulos sonoros e visuais, a linguagem
audiovisual. Através de imagens e de sons começamos a nos relacionar com o
mundo. Desenvolvemos desde cedo a capacidade de receber e reagir a estes
estímulos. A análise de imagens é uma faculdade natural de todo ser humano, uma
de suas formas mais comuns de comunicação com o outro e com a sociedade.
Além de recuar no tempo biológico ou fisiológico de uma vida humana,
podemos também recuar no tempo histórico e cultural da humanidade. O ser
humano sempre comunicou através de sons e imagens. As pinturas rupestres são as
mais eloquentes testemunhas de que a informação visual é o mais antigo registro da
história humana. “Do mito da caverna à Bíblia, aprendemos que nós somos imagens,
seres que se parecem com o Belo, o Bom e o Sagrado”.102
Na tradição judaico-cristã, que nos legou a cultura ocidental, desde o ato da
Criação, Deus cria o ser humano a sua imagem e semelhança103. O homem e a
mulher ficaram privados da visão de seu Criador. Não perceberam que Deus estava
presente neles mesmos, sua imagem e semelhança104. Deus estabelecera a sua
comunicação primordial com a humanidade através da dialética da ausênciapresença de sua imagem. O povo judeu acreditava que o ser humano não podia ver
o rosto de Deus sem morrer105. Mas Deus foi até as últimas conseqüências para se
comunicar com o ser humano ao se fazer Ele mesmo imagem humana na pessoa de
Jesus. A imagem do Criador é a imagem da criatura. “Quem me vê, vê o Pai”
106
,
dizia Jesus no capítulo 14, versículo 9 do Evangelho de João. O rosto de Deus não
está mais oculto. E a partir da lenda da representação da face de Cristo no lenço da
Verônica, esta imagem do Deus feito homem se identifica com tantas imagens de
rostos sofridos da humanidade. É fascinante o fato de a única imagem que
provavelmente remeta à verdadeira imagem de Jesus seja a impressa no chamado
ouvinte. 1999. 48 f. Monografia (Especialização em Audiologia Clínica). Centro de Especialização em
Fonoaudiologia Clínica, Porto Alegre, 1999.
102
JOLY, apud COUTINHO, 2008, p. 331.
103
Cf. o texto bíblico Gênesis 1,26-27. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: Tradução da CNBB. São
Paulo: Loyola; Paulus, 2001. p. 17.
104
A segunda narrativa bíblica da Criação em Gênesis 2,4b-3,24 narra o mito de Adão e Eva, no qual
o ser humano rompe a relação harmônica com o mundo e com Deus. Ibid., p. 17-20.
105
No texto bíblico Êxodo 19,21 Deus adverte o povo de o ver. Cf. Ibid., p. 96.
106
Ibid., p. 1415.
68
Santo Sudário, uma peça única tecida em linho datada a cerca de dois mil anos que
teria envolvido o corpo de Cristo para o seu sepultamento e que misteriosamente
fixou a imagem de seu corpo ensanguentado. Ao ser fotografada, o seu negativo
revela a imagem de um homem com detalhes impressionantes do tipo de flagelo que
era infligido pelos romanos aos condenados à crucifixão107. Esta é a “fotografia” que
Deus deixou de sua imagem feito homem. Um corpo marcado pela violência da
injustiça. Somente este fato traz consequências filosóficas, antropológicas e
teológicas que mereceriam uma reflexão que extrapola os limites deste trabalho.
A linguagem cinética audiovisual é primordial e nos precede na história e na
cultura. Somos imagem e nela estamos imersos. Vivemos na era da imagem.
McLuhan já profetizava que viveríamos a mais forte mudança na história da
humanidade, mudança concernente à Eletrônica que potencializa a capacidade de
comunicação do ser humano ao extremo, a era da comunicação108. Curioso é
estarmos vivendo o ápice desse fenômeno e ao mesmo tempo encontrarmo-nos
inaptos para a leitura e análise da linguagem audiovisual. Esta dificuldade se
apresenta justamente por estarmos imersos nesta cultura da imagem. Ainda com
Martine Joly: “O trabalho do analista é precisamente decifrar as significações que a
„naturalidade‟ aparente das mensagens visuais implica”.109
A pesquisadora Iluska Coutinho110 agrupa a pesquisa da imagem em três
grandes grupos: imagem como documento, imagem como narrativa e exercícios do
ver. Na linha de investigação da imagem como documento, destacam-se as
abordagens de caráter etnográfico. A imagem é concebida como registro de uma
realidade, representação ou situação. Neste grupo predomina a fotografia por seu
caráter de registro técnico e isento da imagem, como evidência de que um fato
realmente aconteceu. O estudo da relação entre a imagem fotográfica e o objeto
representado levou os pesquisadores a se indagarem sobre o caráter de
objetividade da fotografia e destacarem o caráter de reconstrução não objetiva
107
Cf. MARINELLI, Emanuela. O Sudário: Uma imagem “impossível”. São Paulo: Paulus, 1998;
BARBET, Pierre. A paixão de Jesus Cristo segundo o cirurgião. São Paulo: Loyola, 1983.
108
Cf. McLUHAN, 1972.
109
JOLY, apud COUTINHO, 2008, p. 43.
110
Cf. COUTINHO, 2008, p. 331-333.
69
presente na mesma. Os estudiosos da linguagem e da comunicação 111 perceberam
que cada fotografia representa um recorte da realidade fotografada e, por isso, é
fruto de uma escolha consciente ou não do fotógrafo. Isto se aplica muito bem nas
fotografias usadas para fins publicitários. Porém, o caráter subjetivo da fotografia
não desvalida a análise da imagem como documento. A fotografia tem grande
importância como fonte histórica e é valioso registro das formas de ver ao longo do
tempo.
A segunda linha de estudos concebe a imagem como narrativa 112, ora com
destaque na análise semiótica, ora privilegiando os aspectos discursivos da imagem.
Enquanto na linha de análise da imagem como documento predominam os registros
visuais estáticos, nas análises da imagem como narrativa os pesquisadores
privilegiam o estudo dos registros visuais em movimento tais como imagens
televisivas, de vídeo ou cinema. Alguns autores113 defendem que a análise destas
imagens não deve ser feita a partir de categorias linguísticas e sim através de
unidades puramente visuais: figuras geométricas, ângulos de câmera, montagem,
etc. O cuidado nesse processo é de não se ater à análise das imagens a partir da
formalização e abstração. É fundamental que se avance no estudo dos valores
sociais e culturais que estas imagens evocam.
Os estudiosos do terceiro grupo destacado por Iluska Coutinho estimulam
estudos que analisam as imagens como exercícios do ver 114. O resultado da
banalização da imagem com o desenvolvimento dos meios de comunicação de
111
Cf. NEIVA JR., Eduardo. A imagem. São Paulo: Ática, 1986, p. 67; BARTHES, Roland. A câmara
clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 129; LEITE, Míriam Lifchitz Moreira. Texto visual e
texto berbal. In: Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas:
Papirus, 1998; KOSSOY, Boris. A fotografia como fonte histórica: introdução à pesquisa e à
interpretação das imagens do passado. São Paulo: Museu da Indústria, Comércio e Tecnologia de
São Paulo, SICCT, 1980; LOUZADA, Silvana. A inauguração de Brasília pelas lentes de O Cruzeiro e
Manchete. In: Mídia, ética e sociedade, Anais do XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação. Belo Horizonte: Intercom 2003. (CD-ROM).
112
Cf. MARANHÃO, Jorge. A arte da publicidade: estética, crítica e kitsch. Campinas: Papirus,
1988; SOUSA, Jorge Pedro de. Estereotipização e discurso fotojornalístico nos diários portugueses
de referência: os casos do Diário de Notícias e Público. In: Mídia, ética e sociedade, Anais do XXVI
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Belo Horizonte: Intercom, 2003. (CD-ROM);
SOUZA, Tania C. Clemente de. A análise do não verbal e os usos da imagem nos meios de
comunicação. Ciberlegenda N. 6, 2001. Disponível em: <www.uff.br/mestcii/tania3.htm>.
113
Cf. VILCHES, Lorenzo. La lectura de la imagen: cine, prensa, televisión. Barcelona: Paidós,
1991.
114
Cf. MARTÍN BARBERO, Jesús; REY, German. Os exercícios do ver: hegemonia audiovisual e
ficção televisiva. São Paulo: Senac, 2001; SQUIRRA, S.C. Imagens e palavras. Palestra realizada
nas Faculdades Integradas São Pedro: Vitória (ES), 1999.
70
massa foi o esvaziamento de sentido e a submissão à lógica da mercadoria. Em
outras palavras, a tecnologia e o ritmo acelerado em que as imagens são veiculadas
levou a uma mudança na forma de olhar que não privilegia o desejo de saber e sim
uma mera pulsação de ver. Daí a importância de (re)ver a maneira de analisar as
imagens numa perspectiva de busca de sentido.
Uma das questões fundamentais para a análise da linguagem cinética é a
transposição do código visual para o verbal. Pela premissa de os trabalhos
científicos serem apresentados no formato de texto há necessidade de se realizar
uma “tradução” das informações audiovisuais em signos lingüísticos, o que os
estudiosos chamam de “transcodificação midiática”115. Alguns pesquisadores
defendem a tese de que a transcodificação midiática implica numa redução dos
significados de uma imagem ou som devido à impossibilidade da linguística
representar a polissemia da linguagem audiovisual.116 De acordo com essa
perspectiva o resultado da análise seria a produção de novas imagens e sons.
Transpor em palavras os signos audiovisuais é necessariamente redutor porque se
trata de interpretar. Nesse processo a imagem e o som estão sujeitos a
interpretações subjetivas, tanto do produtor e do receptor das mensagens
audiovisuais, quanto do pesquisador. Porém o caráter subjetivo da análise cinética
não invalida a pesquisa, antes a torna mais consciente de seus limites. A questão é
encontrar a melhor metodologia para realizar essa transcodificação midiática. Uma
das opções é realizar a transposição na etapa de leitura e interpretação. Outra
opção é utilizar categorias da visualidade no início da análise e realizar a
transcodificação somente na redação final do trabalho. Seja qual for a escolha do
pesquisador o percurso para a análise audiovisual nas pesquisas de comunicação
envolve os procedimentos metodológicos de leitura, interpretação, síntese e
conclusão final.
A linguagem audiovisual é de natureza heterogênea devido ao seu caráter
polissêmico. A correlação entre essas heterogeneidades é o que define a sua
identidade. Essa correlação acontece através de operadores discursivos não verbais
que chamarei de operadores audiovisuais. São estes operadores as unidades de
análise da linguagem cinética: enquadramento, composição, luz e sombra, cores,
115
COUTINHO, 2008, p. 334.
116
Cf. NEIVA JR., 1986, p. 11.
71
cenário, ângulo da câmera, ritmo da edição, trilha sonora, entonação da voz, etc. A
apreensão das mensagens audiovisuais ocorre de maneira multifocal. A mensagem
afeta simultaneamente os sentidos e tem um efeito globalizante no receptor que a
experimenta. Há um envolvimento global, não racional, com a mensagem que atinge
primeiro os sentidos117. Daí a preponderância da linguagem do prazer porque tratase de um conhecimento sensorial. O protagonismo é da audiência que escolhe
aquilo que lhe dá mais prazer. As variações de tons dos operadores audiovisuais
alteram o conteúdo da mensagem.
O enquadramento é um dos principais operadores audiovisuais. Enquadrar
uma imagem é determinar qual parcela da cena representada será mostrada ao
público. Ao enquadrar uma cena o realizador define a sua mensagem. Para definir
os diversos tipos de enquadramento existe um padrão desenvolvido a partir do
desenho e da pintura e usado na fotografia, no cinema e na televisão, chamado de
planos. Os planos são os caracteres da gramática audiovisual. A convenção usada
no cinema varia desde o Grande Plano Geral, passando pelo Plano Geral, Plano de
Conjunto, Plano Médio, Plano Americano, Primeiro Plano, Close-up e Plano de
Detalhe. Cada plano usado define a intenção do autor de deixar ver uma parcela da
cena representada, desde o Grande Plano Geral, onde se vê grande parte da cena,
até o Plano de Detalhe, que mostra uma pequena parcela do objeto representado
para valorizar algum aspecto da mensagem. Cada recorte feito pelo autor tem uma
função narrativa.
O enquadramento, somado aos movimentos de câmera na linguagem
cinética, dá maior ou menor expressividade à mensagem. Os movimentos de
câmera mais comuns são a Panorâmica Horizontal ou Vertical, que tem a função de
dar uma visão panorâmica da cena ou objeto representado; o Dolly, movimento em
que a câmera se movimenta sobre rodas ou stead cam118 e se aproxima ou se
afasta do objeto; o Travelling, movimento horizontal da câmera sobre rodas ou stead
cam e a Grua, movimento livre da câmera com o auxílio de uma espécie de
guindaste. O posicionamento da câmera em relação ao objeto representado define
as intenções do autor da mensagem. A câmera alta (plongé) passa uma sensação
117
Cf. BABIN, 1993, p. 52-175.
118
Equipamento utilizado pelo cinegrafista para estabilizar os movimentos de câmera.
72
de inferioridade ao objeto representado, enquanto a câmera baixa (contra-plongé)
passa uma sensação de superioridade do objeto representado.
A composição é também um importante operador audiovisual. A composição
clássica é a chamada proporção áurea ou regra dos terços, na qual se divide o
espaço visual em três partes iguais e se define o centro de interesse da mensagem
visual. Apesar de a pintura, a fotografia, o cinema e a televisão terem desenvolvido
regras, tais como a proporção áurea e a perspectiva, a composição depende muito
da habilidade do autor na busca do equilíbrio dos elementos usados para compor a
mensagem. Uma boa composição compreende uma boa relação entre os espaços
livres e os objetos representados, compreende uma boa relação entre o fundo e a
figura que não significa uma relação de maior status entre eles.119 Uma boa
composição compreende as relações entre o primeiro plano e o segundo plano e
abarca também a busca da perspectiva que dá uma sensação de profundidade às
imagens.
Outro operador audiovisual é a relação claro/escuro, o uso de cores, cenário e
objetos de cena. Este conjunto de elementos visuais compreende o que é chamado
de “Fotografia” no cinema e na televisão. Uma boa Fotografia depende da forma
como uma cena é iluminada e da gama de cores utilizada para compor o ambiente.
A Fotografia é um elemento fundamental para o êxito da mensagem porque contribui
para criar uma atmosfera adequada à mensagem.
O elenco também deve ser analisado pelo pesquisador da linguagem cinética.
A relação entre protagonistas, figurantes, apresentadores, repórteres e personagens
também define as intenções do autor da mensagem cinética. O desenrolar destas
relações constitui o conjunto de fatos desencadeados numa obra de ficção, em
obras documentais ou jornalísticas. Esta análise deve considerar os operadores
audiovisuais de áudio, tais como os diálogos e a entonação nas falas dos atores,
apresentadores e repórteres.
Todos esses elementos são trabalhados na etapa final da produção
audiovisual, a chamada montagem ou edição. Na edição são trabalhados os
elementos da narrativa audiovisual para dar a forma final à mensagem. Ela define o
119
Cf. BABIN, Pierre; ZUKOWSKI, Angela Ann. Mídias, chance para o Evangelho. São Paulo:
Loyola, 2005.
73
encadeamento ou ritmo da narrativa, sua temporalidade, dá um tratamento final às
imagens através de efeitos visuais de cores e movimento, compõe a trilha sonora.
Estes elementos discursivos são também operadores audiovisuais que devem ser
considerados na análise.
Estes operadores audiovisuais devem ser considerados dentro do contexto da
produção e recepção. A mensagem audiovisual é produzida através de diferentes
meios de comunicação (cinema, vídeo e televisão) que têm características próprias e
é recebida por públicos distintos. Há um certo consenso entre os estudiosos da
linguagem audiovisual de que as imagens têm função distinta no cinema e na
televisão. No cinema a imagem é vista como imagem mesma devido ao tamanho
das telas de exibição e à ambientação das salas escuras. Na TV há uma tentativa de
silenciamento da imagem pelo excessivo uso de comentários, áudio e cortes 120.
Porém, apesar das diferentes funções que a comunicação cinematográfica,
videográfica e televisiva tem entre si, não diria que há uma diminuição do status da
imagem mesma com o seu uso na TV. Cada meio utiliza a imagem como imagem
que é, para estabelecer a comunicação com o seu público. Não vamos ao cinema
com as mesmas intenções e disposições com que nos colocamos em frente a uma
TV. Daí a necessidade da linguagem televisiva ser mais dinâmica e informacional. A
imagem continua com o seu status de imagem em todos os meios de comunicação
audiovisual. Imagem é toda representação visual construída pelo ser humano para
estabelecer uma comunicação. E aqui poderíamos incluir as novas mídias que a
tecnologia vem possibilitando, tais como a Internet, os iPods, iPads, MP4 e telefones
celulares, cada um desempenhando sua função na comunicação audiovisual.
A linguagem audiovisual tem sua gramática própria. Talvez sintamos
dificuldade em reconhecer os seus caracteres. Porém, estamos imersos nesta
linguagem, sendo afetados por ela a cada instante, a cada facho de luz que penetra
as nossas retinas ou ondas sonoras que vibram em nossos ouvidos. Estamos
imersos na cultura audiovisual contemporânea. A paisagem religiosa que
contemplamos na atualidade é pintada com matizes desta cultura. A geração atual já
nasceu dentro da cultura audiovisual e se desenvolve dentro da lógica desta cultura.
O Ensino Religioso deve considerar tanto a riqueza da paisagem religiosa atual
quanto a linguagem em que transitam os educandos. A linguagem audiovisual da
120
Cf. COUTINHO, 2008, p. 341.
74
cultura contemporânea se apresenta como oportunidade privilegiada para falar da
dimensão espiritual do ser humano.
O advento da interatividade estimula a participação. A cultura participativa
estimula a interatividade. As pessoas não querem só doutrinas, elas querem viver a
experiência. A educação religiosa deve promover o serviço comunitário, a
participação, a interatividade, a partilha das crenças e diferenças culturais para
despertar o espiritual. O Ensino Religioso na cultura audiovisual deve ter como base
o pluralismo e a Transdisciplinaridade. Deve mudar da linguagem racional para a
linguagem sensitiva com flexibilidade. O prazer pode dirigir a experiência espiritual
na cultura audiovisual. Comunicar o invisível é o grande desafio dos subsídios
audiovisuais para o Ensino Religioso. Estes subsídios devem expressar não os fatos
religiosos, mas a imagem somada à emoção e ao sentimento do sagrado. Assim o
educando poderá reconhecer que a mensagem religiosa toca-lhe primeiro no
coração porque é linguagem básica do seu ser.
O campo religioso abrange diversas ciências e cada uma delas desenvolve
sua própria terminologia para descrever o que é a religião. Vimos que há o perigo da
pretensão de uma abordagem unilateral do fenômeno religioso abarcar a totalidade
desse fenômeno. Na busca de uma epistemologia própria, as Ciências da Religião
deve considerar a contribuição dos mais diversos campos do saber. Portanto, esta
recente ciência constitui o seu aparato epistemológico apoiado nas demais ciências
que se interessam pelo religioso. A própria terminologia Ciências (no plural) da
Religião aponta para o seu caráter transdisciplinar. Por isso opto pelas perspectivas
da Transdisciplinaridade e da Modulação como um par de lentes epistemológicas
que melhor permitem enfocar o objeto de estudo deste trabalho. Por se tratar de
uma pesquisa que também abrange o campo da comunicação, tomo emprestado
desta área do conhecimento uma metodologia de análise de produtos de
comunicação coerente com o objeto de pesquisa.
75
3 Deus é brasileiro
Professores
do
Ensino
Religioso
utilizam
programas
televisivos,
documentários e filmes de ficção como subsídios para suas aulas. Porém, não basta
usar estes subsídios da mesma maneira como se usa um livro. É preciso conhecer a
sua linguagem, saber como identificar seus caracteres, ou melhor, como atuam os
operadores audiovisuais. Já os realizadores das produções de vídeos ou filmes que
se destinam ao Ensino Religioso, além de dominar tecnicamente a linguagem
audiovisual, devem conhecer a pluralidade religiosa da realidade brasileira. Estes
profissionais, artistas da imagem e do som, devem sentir-se tocados pela
diversidade cultural e religiosa para que esses sentimentos sejam veiculados em
suas obras. Não basta a piedade religiosa voltada para uma ou outra religião
específica, o que levaria à produção de materiais confessionais. As novas diretrizes
para o Ensino Religioso da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 121
exigem subsídios que contemplem a diversidade cultural e religiosa do Brasil e que
contribuam para o desenvolvimento da dimensão espiritual dos educandos.
O Fonaper, Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso, que reúne
professores e pesquisadores de todo o país em torno da temática do Ensino
Religioso, disponibilizou em sua home page uma lista com sugestões de filmes122
que podem ser usados como subsídios para aulas de Ensino Religioso. Nesta
amostragem selecionei o filme Deus é brasileiro123 para nos ajudar a entrar no
domínio da linguagem audiovisual. A análise desta produção contribui para uma
leitura integral dos fenômenos religiosos retratados nestes filmes, e ajuda a levantar
critérios para a produção adequada deste material. Qualquer um dos filmes
sugeridos pelo Fonaper poderia ser escolhido para este fim, porque são os filmes
mais utilizados pelos professores do Ensino Religioso nas escolas públicas e
particulares do Brasil.
121
BRASIL, 1997.
122
FONAPER. Lista de filmes. Disponível na Internet. Http://www.gper.com.br. Acesso em 14 de nov.
2009.
123
DEUS é brasileiro. Direção: Cacá Diegues. Roteiro: Cacá Diegues; João Emanuel Carneiro e
Renata de Almeida. Produção: Renata de Almeida Magalhães. Fotografia: Affonso Beato.
Intérpretes: Antônio Fagundes; Wagner Moura; Paloma Duarte; Castrinho; Stepan Nercessian e
outros. Rio Vermelho Filmes Ltda, 2003. DVD (110 min), cor.
76
Como vimos, dentre os diversos gêneros, a ficção é o mais adequado a esta
linguagem porque é eminentemente audiovisual. Daí a escolha de um filme para
esta pesquisa. A escolha do filme Deus é brasileiro se justifica porque é uma
produção que utiliza bem a linguagem cinematográfica e retrata a realidade e a
religiosidade brasileiras com sensibilidade. Ele nos ajuda a perceber como a matriz
religiosa brasileira está sendo veiculada nas obras cinematográficas nacionais. Nos
ajuda também a detectar se há coerência com a realidade e a diversidade cultural e
religiosa brasileiras nestas produções. Para comunicar sua mensagem, o diretor
usou com maestria a linguagem audiovisual, o que contribui para os propósitos deste
estudo. Esta produção nos ajuda a compreender melhor como se articulam os
operadores audiovisuais da comunicação cinematográfica e contribui para uma
busca de critérios para a produção de subsídios audiovisuais para o Ensino
Religioso no Brasil.
Deus é brasileiro é um filme nacional lançado em 2003, do gênero comédia,
dirigido por Cacá Diegues, um dos grandes diretores fundadores do movimento do
Cinema Novo, no início da década de 1960. O roteiro é baseado no conto “O Santo
que não acreditava em Deus“124 de João Ubaldo Ribeiro, e adaptado por Cacá
Diegues e João Ubaldo Ribeiro, com a colaboração de João Emanuel Carneiro e
Renata de Almeida. A fotografia é de Affonso Beato e a trilha sonora foi idealizada
por Chico Neves, Hermano Viana e Sérgio Mekler. O elenco é composto por Antônio
Fagundes, Wagner Moura, Paloma Duarte, Castrinho, Stepan Nercessian, Bruce
Gomlevsky e atores locais dos estados onde foi rodado o filme. As filmagens
aconteceram nos estados de Tocantins, Pernambuco, Alagoas e Rio de Janeiro.
O filme narra a vinda de Deus para o nordeste brasileiro em busca de um
santo que o substitua durante as suas férias. Deus está cansado dos problemas
causados pelo ser humano e precisa de um descanso. Ele está estressado e precisa
de férias. Deus, interpretado por Antônio Fagundes, aparece para um típico
borracheiro e pescador nordestino, interpretado por Wagner Moura, e lhe pede ajuda
nesta busca. Taoca, o borracheiro pescador, com o interesse de ganhar algum
benefício vantajoso de Deus, decide ajudá-lo. Aí se inicia uma jornada pela margem
esquerda do Rio São Francisco, passando pelos estados de Alagoas, Pernambuco e
124
Cf. RIBEIRO, João Ubaldo. Já podeis da pátria filhos e outras histórias. São Paulo: Nova
Fronteira, 1991.
77
Tocantins, o que dá à obra cinematográfica características de um filme de estrada
(road moovie). Uma jovem, Madá, órfan de mãe e de irmão, interpretada por Paloma
Duarte, resolve fugir com os dois, sem saber que um deles é Deus. Eles adentram
pelo sertão em busca do santo, que era um militante de causas sociais. Mas o
objetivo não se concretiza, forçando-os a passar por vários lugares e encontrar
diversas pessoas e histórias de vida e sofrimento. Quando finalmente encontram o
tal santo, ele não aceita a proposta porque não acredita em Deus e o deixa furioso.
Daí em diante, o que parecia ser uma jornada perdida, se revela como realização de
uma profunda relação entre os personagens principais. Toda a história se desenrola
com muito humor, de uma maneira bastante leve e divertida.
O gênero comédia é um dos responsáveis pelo sucesso deste filme como
subsídio para o Ensino Religioso. Um dos maiores desafios do educador desta área
do
conhecimento
é falar
de
temáticas
relacionadas à
espiritualidade, à
transcendência, à busca de sentido e de valores da vida, ao respeito ao diferente, à
dignidade do ser humano, num ambiente escolar. A escola tradicionalmente
privilegia as demais disciplinas, basta ver a grade curricular. Somada a esta
dificuldade institucional, há a dificuldade da linguagem. Despertar no educando a
sensibilidade pelos temas do Ensino Religioso é um grande desafio para os
professores porque os jovens estão imersos na nova cultura eletrônica na qual os
educadores sentem dificuldade de transitar. O próprio nome da disciplina, “Ensino
Religioso”, torna-se uma barreira para a comunicação porque o educando tem
rejeição automática a tudo o que se relaciona com o “religioso”. Característica
presente não só na juventude, mas na sociedade contemporânea como um todo. Ao
mesmo tempo, há um fascínio do jovem pelo diferente, pelo exótico e pelo
sobrenatural, característico da pós-modernidade, que pode ser explorado como
abertura para a transcendência, mas que precisa ser maturada na dinâmica do
Ensino Religioso numa espiritualidade integral. A comédia, desde que não seja
jocosa, se apresenta como um instrumento para a quebra destas barreiras na
educação religiosa. Temas que a uma primeira vista parecem “chatos” ou sem
aplicação imediata para o jovem, tornam-se prazerosos quando tratados com humor.
Somada à dramatização, a comédia possibilita que o educando perceba que os
temas do Ensino Religioso fazem parte da vida, que têm influência direta no
cotidiano.
78
O drama é, portanto, o grande responsável pela capacidade do filme de nos
conduzir a um outro nível de realidade e de nos despertar para os grandes temas da
vida, de uma maneira mais sensível e agradável. Cacá Diegues, autor e diretor de
Deus é brasileiro, afirma que não teve a pretensão de discutir sobre Deus e nem de
ser religioso em seu filme125. Ele se apropria do Deus literário do livro mais lido da
literatura ocidental e o recria na tela. Para ele, a idéia de Deus, o criador, atua como
uma óbvia metáfora da condição do diretor de cinema, que também recria na tela o
mundo e os homens. A ficção possibilita a absurdidade de um Deus que vem à terra
procurar um santo e abre para a discussão de temas humanos que levam à
transcendência. Mesmo sem a pretensão de discutir Deus ou o religioso, a obra de
Cacá Diegues tem a capacidade de despertar no educando valores profundos a
serem aprofundados na dinâmica do Ensino Religioso. Isto acontece porque a obra
já não pertence mais ao autor desde o momento em que é exibida na tela. Daí em
diante, a dinâmica da linguagem audiovisual e sua polissemia, na relação entre a
sensibilidade do autor e a sensibilidade do público, abre para novos sentidos. A
natureza heterogênea da linguagem audiovisual, ao invés de tornar-se elemento de
dispersão, é um potente aglutinador de significado por sua capacidade de tocar a
pessoa como um todo e provocar um efeito globalizante. A correlação entre essas
heterogeneidades é o que dá o sentido à mensagem. No estudo desta obra
cinematográfica vamos perceber como acontece essa correlação através da análise
dos seus operadores audiovisuais.
A maneira como a realidade é captada em Deus é brasileiro traz os traços do
diretor, a “disposição pela razão de ser” que nos fala Pierre Babin. A filmografia de
Cacá Diegues tem como uma de suas principais características a busca da
brasilidade. Desde sua juventude cinematográfica, Cacá Diegues vê a identidade
brasileira retratada nas favelas do Rio de Janeiro ou no sertão nordestino. Era uma
maneira de mostrar um Brasil então desconhecido da classe média que povoava a
zona sul do Rio de Janeiro. O Cinema Novo retratava a realidade com tons de
denúncia ao expor as fraturas e contradições do tecido social. E Cacá Diegues não
fugiu à regra, embora em seus trabalhos mais presos a uma estética da denúncia,
ele tenha pintado a tela com os matizes alegres da riqueza popular do Brasil. O
125
Cf. DIEGUES, Carlos. Diário de Deus é brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 14.
79
Cinema Novo surge num contexto de efervescência política com a ditadura militar e
reflete o papel do cinema de revelar o que se queria encobrir.
Já Deus é brasileiro surge num novo momento político do país em que a
eminente ascensão de um ícone do proletariado à presidência do Brasil reflete na
tela um olhar otimista. A câmera de Cacá Diegues percorre o nordeste brasileiro e
flagra as antigas carências do velho Brasil, mas as apreende com um olhar terno e
amoroso. Os planos abertos valorizam o cenário e mostram as belas paisagens
nordestinas. Deixam ver o horizonte recortado de palmeiras e os lindos bancos de
areia das margens do rio. Utiliza bem as perspectivas, valorizando a profundidade
das imagens. Trabalha bem a relação entre o fundo e figura em primeiro plano. Há
uma preocupação em não se concentrar exclusivamente nos atores nem no cenário,
mas em um “permanente equilíbrio entre a humanidade de um rosto e a paisagem
generosa, seja essa uma exuberante cachoeira no meio da mata ou uma miserável
favela no caos urbano.”126 Em Deus é brasileiro o cenário também fala, é um
operador audiovisual como são os planos. O uso sucessivo de planos fechados nos
diálogos confere identidade e verossimilhança à interpretação dos atores. O diretor
revela a preocupação com os enquadramentos pelo fato de ter feito o storyboard127
de boa parte do filme. Os usos da câmera alta (plongé) e da câmera baixa (contraplongé) nos diálogos entre Deus e Taoca têm a função de reforçar a sensação de
superioridade de Deus. Para acentuar a dramaticidade na medida certa, o diretor
utiliza a aproximação em travelling128, valorizando o sentimento vivido pelos
personagens.
A Fotografia de Affonso Beato, ao enquadrar, iluminar e dar cor à realidade
cultural da margem esquerda do rio São Francisco, revelam o belo, presente até
mesmo nas situações limite. A unidade visual é proporcionada pela textura do filme.
A luz é suave, e até sob o sol escaldante do meio dia, não acentua os contrastes de
luz e sombra, mas valoriza a beleza das cores. A intenção de Cacá e Affonso foi
dividir o filme em quatro fases fotográficas:
126
DIEGUES, 2003, p. 40.
127
O storyboard é o estudo preliminar dos planos que serão gravados no filme. Ele é feito através do
desenho de cada plano, como uma história em quadrinhos do que será o filme.
128
Movimento de câmera sobre um trilho na direção horizontal ou de aproximação.
80
Na primeira parte, na margem e na foz do rio São Francisco, a
imagem deverá ser mais quente e brilhante, com azuis e verdes
acentuados, sobretudo no encontro de Taoca com Deus. Conforme
nossos heróis vão seguindo pelo continente adentro, em Recife, na
caatinga, pela estrada etc., pretendemos dessaturar a imagem,
descromatizá-la, fazendo com que quase perca sua cor. Quando
Deus finalmente acha seu candidato a santo, a ideia é privilegiar um
tom mostarda que lembre, ao mesmo tempo, a tradição de nossas
igrejas barrocas e a vegetação desta parte do cerrado tocantinense,
dominado pelo chamado capim dourado. Na última parte do filme, de
volta ao São Francisco, a imagem volta também ao que foi no início
dele.129
Essas nuances da fotografia aparecem de maneira sutil e até mesmo
imperceptível para o público do filme, mas o efeito produzido nos nossos sentidos
direciona e determina a mensagem. Uma marcação mais perceptível na fotografia do
filme é a que define os espaços oníricos e “reais” de Deus é brasileiro. Espaços
“reais” aparecem aqui entre aspas porque os espaços oníricos têm o mesmo status
de realidade que os espaços “reais” na linguagem audiovisual. O sonho de Taoca
que se repete e se completa no desenvolvimento do filme é uma metáfora visual do
drama vivido por ele. A entrada do céu no sonho de Taoca é representada por uma
estação de trem, cuja textura azulada e contrastada da imagem difere da vivacidade
e suavidade das cores dos espaços “reais”.
A direção de Arte de Vera Hamburguer também contribui na síntese entre
ficção e realidade no filme. O figurino de Deus em azul celeste contrasta com a cor
de terra do primeiro figurino de Taoca e com a as vestimentas comuns do povo do
sertão nordestino. O sobrenatural (Deus) se destaca e se integra, ao mesmo tempo,
com a realidade (nordeste). Do mesmo modo, a direção de Arte do filme conseguiu
ser fiel a cada locação. Utilizou bem os adereços de cena das culturas regionais,
contribuindo assim para a verossimilhança do enredo e para a atmosfera cultural da
margem esquerda do rio São Francisco. O cuidado com a composição visual está
presente em todas as cenas do filme. Os cenários e ações que neles ocorrem
captam nossa atenção por si só e transmitem a mensagem. Os operadores
audiovisuais enquadramento, composição, arte e fotografia, bem utilizados, como
nesta obra cinematográfica, desvelam a intencionalidade do autor e contribuem para
o estabelecimento da comunicação entre autor e público.
129
DIEGUES, 2003, p. 33.
81
Cinema é a arte da imagem em movimento. E o enredo do filme Deus é
brasileiro é marcado pelo movimento da busca pelo santo para substituir Deus,
passando por diversos estados do Brasil. É um filme de estrada, um road moovie de
histórias que se entrecruzam e se unem por algo comum. As aproximações
sucessivas entre os personagens vão construindo o enredo. Esta mobilidade é muito
bem trabalhada através do encadeamento das imagens, efeitos visuais, diálogos,
sonoplastia e trilha sonora na montagem do filme. As imagens permanecem na tela
o tempo suficiente para serem apreendidas pelos sentidos. Há uma alternância entre
ritmos de montagem mais rápidos e mais lentos, de acordo com a mensagem visual
a ser apresentada. Logo no início do filme, a cena em que Taoca coloca pregos na
estrada para furar o pneu dos carros é secionada em elipses da mesma sequência,
num ritmo que cria a sensação de dinamismo, enquanto em outro momento do filme,
quando Deus é invadido por sentimentos nostálgicos diante de sua criação, a edição
de imagens demora-se em paisagens bucólicas de pôr do sol. O ritmo das imagens
contribui para a carga emocional do filme e para a dramatização, na alternância
entre momentos de pico dramático e de relaxamento.
A montagem é primordial para captar e manter a atenção do público,
especialmente nos longas-metragens do cinema. A longa duração dos filmes é vista
como um fator que dificulta o seu uso como subsídio para aulas do Ensino Religioso,
devido à carga horária limitada desta disciplina. Porém, o que parece ser um
empecilho, é uma vantagem para a educação. É preciso um tempo psicológico
suficiente para que o público “entre na história”. E o longa-metragem permite ao
realizador utilizar bem os minutos iniciais de uma produção para criar no público
essa sensação de fazer parte da história. O filme “gasta” tempo nas primeiras
aparições dos personagens-chave para criar uma identificação com o público. No
filme Deus é brasileiro, o diretor utilizou a cena onírica para criar essa simbiose entre
o público e a história. A solução para o uso do longa-metragem nas aulas do Ensino
Religioso é realizar um trabalho transdisciplinar que possibilite a exibição durante o
tempo de duas aulas, envolvendo disciplinas que possam contribuir para um
aprendizado integral a partir do filme exibido. A montagem cinematográfica que
utiliza bem a alternância de ritmos para o desenvolvimento do enredo torna-se
fundamental para as produções destinadas ao público jovem, acostumado ao ritmo
82
dinâmico das produções televisivas. Contribui também para uma educação do olhar
defendida pelos pesquisadores da imagem como exercícios do ver.
Os efeitos visuais são fundamentais em uma produção como Deus é
brasileiro, que tem Deus como personagem. Cacá Diegues contou com uma
tecnologia avançada de efeitos especiais para realizar este filme. O cinema brasileiro
não contava com esses recursos até então inacessíveis aos orçamentos das
produções realizadas no Brasil. O diretor utilizou tecnologia de ponta e assegurou
um equilíbrio importante no uso dos efeitos especiais. Os efeitos tiveram a função de
ajudar a narrar a história. Estão, portanto, em função do enredo do filme. Além da
preparação de detalhados story boards, Cacá Diegues organizou um trabalho de
pré-produção que foi decisivo, tanto para o planejamento das filmagens, quanto para
a preparação dos efeitos especiais.
Destaca-se também a interpretação dos atores para tornar verossímil os
efeitos. No encontro de Deus com Taoca, ele realiza um “milagre dos peixes” para
que o borracheiro pescador acredite que ele é Deus. Os peixes que interagem com
Taoca foram criados digitalmente em tecnologia 3D, a partir da textura de peixes
reais, e o ator precisou ser bem orientado em seus movimentos para que houvesse
sincronismo na montagem final. A cena final também contou com a tecnologia digital
e resultou numa das mais belas cenas do filme. Nesta cena Taoca e Madá estão
deitados numa canoa e a câmera faz um movimento giratório de grua em contraplongé. No rio vê-se os peixes saltando e girando em torno da canoa. A lua reflete
sua imagem no rio. Toda essa cena foi gravada em um estúdio, sobre um fundo
azul, que posteriormente foi substituído pelas imagens do rio, com os peixes,
refletindo a lua. E a partir de uma certa distância, toda a imagem foi substituída por
imagens digitais, até a câmera abrir para um plano geral do rio. O curioso é que
grande parte dos efeitos visuais do filme foram realizados em um equipamento
chamado “Inferno”.
O movimento de aproximações sucessivas no filme Deus é brasileiro está
presente também na relação entre o folclórico e o moderno, expressa na trilha
sonora. As músicas refletem a cultura da margem esquerda do rio São Francisco
numa simbiose entre as expressões tipicamente regionais e as inovações
contemporâneas. A nova cultura convive em harmonia com a antiga. É o resultado
da presença de Nelson da Rabeca, Quinteto Armorial, Lenine, Cordel do Fogo
83
Encantado e Nação Zumbi na mesma trilha sonora de Deus é brasileiro. Essa
mixagem vem na direção da cultura eletrônica que faz a síntese entre o arcaico e o
moderno, quebrando essa lógica binária e entrando numa lógica ternária que
incluem novas expressões. No filme isto aparece bem expresso na execução de
músicas de Luiz Gonzaga com os arranjos contemporâneos de Lenine. Desta
maneira, o operador audiovisual trilha sonora também contribui para criar uma
aproximação entre o filme e o educando, imerso na cultura eletrônica.
Um dos operadores audiovisuais que mais contribui para o êxito de uma
produção audiovisual, especialmente no contexto da educação, é o operador
diálogo. Uma produção pode ser brilhante do ponto de vista da fotografia, na
qualidade técnica e beleza das imagens, mas se os diálogos não forem bem
construídos e bem interpretados, se a entonação dos atores não corresponder com
a carga dramática das cenas, todo o trabalho cai por terra. Para a definição dos
atores do filme Deus é brasileiro o diretor realizou testes com centenas de pessoas.
Somente para a escolha do intérprete de Taoca foram realizados vários testes. Cacá
Diegues ressalta que encontrou diversos atores do mesmo nível de Wagner Moura,
mas se convenceu de que o então jovem ator seria perfeito para o papel por sua
desenvoltura na pele do personagem. O único ator que já estava definido na cabeça
do diretor desde a criação do roteiro era Antônio Fagundes no papel de Deus. Para
Cacá Diegues, somente Fagundes poderia interpretar o Deus de Deus é brasileiro.
O Deus de Deus é brasileiro, embora aparentado um homem maduro, branco
e de cabeça branca, quebra algumas imagens pré-concebidas que temos de Deus.
Ele é estressado e não gosta de fazer milagres. A última coisa que se pode esperar
dele é que passe a mão na cabeça das pessoas. Ao mesmo tempo é um Deus
orgulhoso de sua criação e insatisfeito com os rumos tomados pela humanidade,
como expresso em suas palavras no filme:
“Você não sabe como foi a primeira manhã no paraíso. Eu tinha
acabado de criar o mundo. Quando eu me vi na frente daquela
beleza toda, eu senti foi um orgulho de mim mesmo. Era tudo uma
perfeição.”
“A culpa não é minha, a culpa não é minha! Eu fiz o mundo e logo em
seguida o livre arbítrio.[...] Eu deixei o destino nas mãos de vocês. Tá
aqui, vão em frente com toda liberdade, agora vocês resolvem. E eu
fico levando a culpa de tudo! Não posso fazer mais nada.”
84
Essa imagem de Deus é construída pela interpretação de Antônio Fagundes
e transparece nos seus diálogos e monólogos no filme. É um Deus que fala a nossa
língua, de uma maneira muito coloquial, do jeito da gente, por onde ele passa. A
entonação de sua voz, a variação dos tons, toca nossos ouvidos e provoca uma
sensação. Esse paradoxo da imagem de Deus veiculado no filme Deus é brasileiro
está presente nas diversas revelações de Deus nas religiões, resultado da maneira
como as diferentes culturas humanas interpretam as manifestações do sagrado.
Esse pluralismo das concepções do sagrado é importante para quebrar nossa
imagem pré-concebida da Divindade e nos conduzir a uma visão madura do
fenômeno religioso. Esse é um fator positivo para o Ensino Religioso, o fator
surpresa de uma imagem de Deus totalmente inesperada para o imaginário do
educando, que o “pega” de surpresa e capta sua atenção.
O personagem Taoca aparece como o interlocutor de Deus que encarna a
visão média das nossas maneiras de conceber a Divindade. Taoca é a voz do
público em suas reações diante desse Deus tão inesperado. Diferente do inusitado
Deus, Taoca é o estereotipado malandro nordestino, herdeiro de João Grilo do Alto
da Compadecida de Ariano Suassuna. Ele é o principal responsável pelo tom de
comédia impresso no filme. Na boca desse personagem, Cacá Diegues coloca as
principais questões do ser humano diante de Deus. Porém, por mais profundos ou
supérfluos que sejam, esses questionamentos são colocados com muita
naturalidade e humor, trazendo leveza ao filme. E o ator baiano Wagner Moura
desempenha bem o papel de tornar o personagem verossímil para o público. É esse
malandro, borracheiro de beira de estrada, que Deus escolhe como companhia em
sua busca pelo santo no sertão do Brasil. Cacá Diegues define Deus é brasileiro
como “um filme sobre a grandeza de certos defeitos humanos, um elogio da
imperfeição”130, aludindo às fragilidades, fraquezas e defeitos do ser humano que
estão presentes no filme e que dão grandeza à natureza humana.
Até aqui empreendemos uma leitura dos principais caracteres da linguagem
audiovisual que aparecem através de diversos operadores audiovisuais. Em todos
os operadores audiovisuais que analisamos no filme Deus é brasileiro o drama está
presente. Na dramatização dos atores, no contraste entre atores e cenários, entre
figurinos, no equilíbrio da fotografia, na tensão da estrada. O drama está presente
130
DIEGUES, 2003, p. 13.
85
em todo o filme, na ação de todos os personagens, desde a jornada dos três
protagonistas, Deus, Taoca e Madá, até nos personagens incidentais que eles vão
encontrando pelo caminho. Porém, é um drama que não carrega na dramaticidade,
tem pouca ênfase dramática, mas traz no seu interior a tensão indispensável para o
êxito de qualquer obra cinematográfica. Do interior do drama, carregado de tensões
entre o humano e o sagrado, surge o terceiro incluído da lógica transdisciplinar.
Deus é brasileiro transcende a lógica binária e deixa entrever uma lógica ternária
tanto no drama do fazer o caminho, quanto no drama dos que aparecem na estrada.
O sagrado aparece nestes encontros entre Deus e o humano, e no encontro entre
personagens distintos. A Transdisciplinaridade de Barsarab Nicolescu e a
Modulação de Pierre Babin ajudam a compreender como o sagrado aparece nestas
relações e pode ser captado pelo educando no Ensino Religioso.
Como vimos na Figura 3, a abordagem Transdisciplinar pode ser aplicada ao
audiovisual. O filme, Realidade cinética, constitui o objeto transdisciplinar e o
educando é o sujeito transdisciplinar, aquele que assiste ao filme e frui sua
mensagem. A Realidade cinética é constituída de diversos níveis de Realidade, que
são percebidos através de vários níveis de percepção pelo educando.
Figura n. 6 – Zonas de transparência absoluta da Realidade cinética.
86
A Modulação de Pierre Babin nos ajuda a perceber os diversos níveis de
apreensão da mensagem na linguagem audiovisual. A linguagem da Modulação
atua como o ambiente ideal para a experiência do sagrado na linguagem
audiovisual. A mensagem audiovisual constitui um fluxo de informações que passa
por entre e além dos níveis de Realidade, através da lógica do terceiro incluído. É
toda informação gerada pelos operadores audiovisuais no filme Deus é brasileiro.
Essas informações ultrapassam os níveis de Realidade conhecidos, na direção da
ficção a uma zona de transcendência absoluta, e na direção da eletrônica a uma
zona de imanência absoluta, que constituem as zonas de não resistência à
percepção ou zona de transparência do Real. Esse fluxo de informações,
representado pelas flechas da Fig. 6, perpassa os níveis de Realidade, o que
possibilita uma comunicação entre o Real e a Realidade.
Uma dinâmica semelhante acontece com a percepção do educando. Um fluxo
de conhecimento perpassa os níveis de percepção do educando na direção de uma
transcendência absoluta e/ou de uma imanência absoluta, de acordo com sua maior
imersão no imaginário do filme, e/ou de sua sensibilidade às informações
audiovisuais.
Figura n. 7 – Ponto de Modulação
87
A comunicação acontece quando há correspondência entre o fluxo de
informações e o fluxo de conhecimento no ponto de Modulação, indicado na Figura
7. A Modulação é o que possibilita a correspondência entre os níveis de Realidade
e de Percepção e entre as zonas de não resistência ao sagrado. É o ponto de
sintonia entre o que está sendo transmitido no filme e o que está sendo assimilado
pelo educando. Porém, esta assimilação acontece em várias etapas. E o filme Deus
é brasileiro nos ajuda a compreender como elas acontecem.
A primeira etapa é o que Pierre Babin chama de “choque audiovisual”. É o
primeiro estímulo que acontece no nível de Realidade Audiovisual e é percebido no
nível de percepção Audiovisual correspondente. É a primeira impressão diante do
filme, que acontece, como já foi visto, nas cenas iniciais com o sonho de Taoca e
algumas sequências seguintes. Essas cenas têm o objetivo de tocar a nossa
sensibilidade, produzir uma ruptura e nos conduzir a uma troca de registro, ou seja,
de fazer com que o público “entre na história”. É nesta etapa que nos são
apresentados os personagens e temos a primeira impressão diante deles.
A etapa seguinte é a de um “abalo” sem conteúdo preciso, que constitui um
ligeiro aprofundamento desse conhecimento inicial. É quando nos sentimos
envolvidos com o drama que nos é apresentado. Se dá também nos minutos iniciais
do filme. É quando sentimos o medo que Taoca tem de Baudelé Vieira, quando
sentimos a vontade de Deus encontrar o santo para substituí-lo, quando sentimos o
estresse de Deus, quando sentimos a inconstância de Madá... Note que tudo é na
ordem do sentimento e se dá num nível de maior imanência provocado pelos
recursos do nível de Realidade eletrônico e percebidos num nível de percepção
sensitivo, como mostra a Figura 7. Nesta etapa da apreensão audiovisual nos
sentimos vibrando com os personagens do filme. Mas ainda não há uma
compreensão clara, mas sim uma confusão de sentimentos provocados pelas
vibrações eletrônicas das imagens e dos sons. Essa vibração, que no filme Deus é
brasileiro é marcada pelo tom de comédia, dá a tonalidade afetiva que vai determinar
a mensagem.
Somente agora, na terceira etapa identificada por Pierre Babin, a da
“elaboração do sentido”, é que o educando “se entrega” inteiramente à dinâmica
audiovisual. É quando o público busca um sentido para as imagens e sons que está
recebendo, mesmo sem compreender de maneira conceitual. Mas passa a
88
compreender num outro nível de maior transcendência. É a etapa em que, como se
vê na Figura 7, se entra no nível de Realidade Ficcional e no correspondente nível
de percepção do Imaginário. Nesta etapa o público perde qualquer distância crítica
diante da história. É quando, no filme Deus é brasileiro, perdemos a noção do tempo
real e estamos totalmente imersos dentro do filme, com os personagens, seguindo
Deus na sua busca pelo santo. Quando vibramos com os acontecimentos da história
ou quando rimos das conversas de Taoca com Deus. É o nível de maior grau de
afetividade e de emoção. E por isso é o nível de maior possibilidade de conduzir o
educando a sentimentos espirituais de transcendência. Quem não se sente movido
por um verdadeiro sentimento de amor na cena final de Taoca e Madá na canoa? Aí
passamos a compreender e não somente sentir. Mesmo sem uma clareza da
mensagem do filme, percebemos que, antes de se tratar de um filme de religião, o
filme trata de sentimentos profundos, como o sentimento do amor. E chega-se a
essa percepção, não pela via da racionalidade instrumental, mas porque se “sente
com” o personagem do filme, pela via de uma racionalidade intuitiva que opera
através do sentimento.
A percepção audiovisual vai se tecendo na trama do enredo, na superação
das dualidades e na integração dos sentimentos em outros níveis mais imanentes ou
transcendentes de realidade, perpassados pelos fluxos de informação e de
conhecimento. Quanto mais imanente ou transcendente, estes níveis de realidade
se aproximam de uma zona de transparência do Real, que também perpassa esses
níveis através dos fluxos de informação e conhecimento, e possibilita ao audiovisual
veicular mensagens carregadas de espiritualidade, ou seja, de tudo o que torna o
educando mais humano e, portanto, mais divino.
Mas não basta mergulhar na linguagem audiovisual e curtir os sentimentos
provocados pelo filme. Pierre Babin sugere que é preciso ainda uma quarta etapa
em que se estabelece um distanciamento intelectual para fazer uma análise crítica
que conduza à compreensão da mensagem. A esta fase do ato de compreender na
cultura audiovisual chamamos de “ressonância”. Aqui o educador tem um papel
fundamental na educação religiosa: O papel de ajudar o educando a refletir sobre o
que se viveu e sentiu. Existem diversas técnicas e metodologias direcionadas ao o
julgamento crítico sobre o conteúdo, a forma, a linguagem, a técnica, os processos
utilizados, as pretensões comerciais e econômicas postas em jogo. E todas estas
89
metodologias são bem-vindas. O importante é contribuir para uma visão madura do
educando diante da realidade que aparece no filme, uma visão que integre os
conteúdos do filme nas dimensões da realidade. O Pluralismo Metodológico Integral
de Ken Wilber contribui para esta etapa do conhecimento. O cuidado é não deixar
que o educando recaia sobre algum absolutismo de quadrante ao interpretar o filme,
mas que integre o conhecimento adquirido no quadro geral dos quadrantes que
representam a realidade, como vimos na Figura 4.
Ao discutir, por exemplo, sobre a criação do mundo, tema recorrente no filme
Deus é brasileiro, o educando pode recair no cientificismo do quadrante superior
direito e conceber a criação como fruto de uma evolução iniciada pela grande
explosão do Big Bang, em contraposição aos mitos da criação realizada por Deus
nas diversas religiões, concepção própria do quadrante superior esquerdo. O
absolutismo de quadrante pode acontecer também de maneira inversa, levando o
educando a uma concepção estreitamente fechada na visão mitológica da criação,
em contraposição com os avanços científicos. O Pluralismo Metodológico Integral
propõe não só a reconciliação destas concepções nos quadrantes superiores, mas
sobretudo a integração do fenômeno da criação em todos os quatro quadrantes,
incluindo a sua repercussão na visão de mundo (quadrante inferior esquerdo), no
sistema social e na ecologia (quadrante inferior direito). Desta maneira o educando
perceberá que a criação vista pelos mitos é tão real quanto a criação vista pela
ciência, desde que situada no seu devido quadrante e em seu respectivo estágio de
desenvolvimento.131 Perceberá que essas diversas concepções da criação têm
repercussões em toda a realidade, desde as visões do ser humano e do sagrado,
até as concepções da natureza e da sociedade. Não se trata de alimentar a
polêmica evolucionismo x criacionismo, mas de superar esta lógica binária e ajudar o
educando a integrar o fenômeno da criação no seu devido lugar na realidade e no
conhecimento, dentro de uma nova lógica que corresponda melhor a essa realidade.
Outro absolutismo de quadrante extremamente nocivo ao novo Ensino
Religioso previsto no Art. 33 da LDBEN132 é justamente o absolutismo do quadrante
superior esquerdo, que consiste em considerar como verdades absolutas as
131
132
Sobre estágios de desenvolvimento, cf. nota 98 na p. 61.
Como vimos no capítulo 1, o Ensino Religioso previsto pela atual legislação brasileira prevê uma
abordagem do fenômeno religioso que contemple a realidade e diversidade religiosa e cultural do
Brasil. Cf. BRASIL, LDBEN, 1997.
90
asserções pré-modernas de religiosidade e espiritualidade, em contraposição às
verdades adquiridas com a modernidade e pós-modernidade. É a tendência
predominante no Ensino Religioso confessional. Essa perspectiva leva a uma
compreensão limitada e estreita das mensagens veiculadas em filmes como Deus é
brasileiro. Interpretações como a de que o Deus de Deus é brasileiro é católico
porque cita constantemente episódios bíblicos, pela presença da simbologia bíblica
em vários momentos do filme (os nomes de Deus, a pesca milagrosa, a sarça
ardente, nomes de personagens como o menino Messias, medalhinha de Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro, e outros); ou que é protestante porque se encantou
com a pregação de um pastor e lhe ajudou financeiramente, são interpretações que
não situam o enredo em seu contexto. Uma abordagem integral coloca o Deus de
Deus é brasileiro no seu devido lugar, como o próprio Deus afirma no início do filme:
“Se eu fosse Deus das girafas, vinha com cara de girafa.”
No filme que estamos analisando, a relação de Deus com a religiosidade
popular é muito tênue, chegando ao desprezo, como nas cenas em que Deus não
demonstra nenhum interesse pelas orações e até reclama delas, ou na sequência da
cidadezinha do interior de Tocantins em que a presença do padre é ignorada, ou na
cena em que Deus reage diante do fato de Madá estar fazendo consulta a espíritos
pela internet. Estas manifestações religiosas retratam bem a religiosidade matricial
presente
no
cenário
cultural
em
que
acontece
o
filme.
Religiosidade
predominantemente católica popular, com influências do catolicismo europeu, do
neopentecostalismo protestante e do espiritismo. Porém, a relação de Deus com
essas expressões no filme é, antes de tudo, de uma denúncia sutil do desamor e da
injustiça. Na cena noturna na frente da igreja de portas fechadas e cheia de
mendigos que brigam por um pedaço de pão, Deus diz que fez alguma coisa errada
na criação do homem. Em outra ocasião Deus denuncia a atitude incoerente do
padre que aproveitava da irmã de Taoca. Ao reclamar das orações, denota uma
religiosidade utilitarista e mágica:
“Tudo acaba sempre nas minhas costas mesmo! Todo mundo só
quer moleza, é tudo de mão beijada. É só Deus me dê saúde, Deus
me dê marido, Deus me faça ganhar na loteria, Deus mais isso, Deus
mais aquilo, é Deus quem sabe. Não tem quem aguente mais, é tudo
eu,eu,eu,eu,eu... A pessoa se estressa!”
91
A pretensão de Cacá Diegues não é falar da religiosidade brasileira em seu
filme. Mas um filme ambientado na margem do rio São Francisco não poderia deixar
de entrever essa religiosidade. Porém, a ficção permite trabalhar esse tema em outro
nível de realidade, permite que a religiosidade brasileira apareça como um pano de
fundo que compõe a cena, sem ser o principal, mas que está sempre presente em
suas tipologias culturais. Assim, desde o início do filme, no sonho de Taoca,
aparecem elementos da diversidade religiosa brasileira, como na secretária
eletrônica do “serviço geral de informações celestiais” que tem como opções
religiosas o cristianismo, o espiritismo e o islamismo. E Taoca, é claro, opta pelo
cristianismo católico romano, embora não seja praticante, como a maioria dos
brasileiros. Na mesma cena do sonho, Taoca recorre a Nossa Senhora como a
intercessora nas suas dificuldades. E é nessa mesma religiosidade mariana que o
final do filme se inspira. É a medalhinha de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que
salva Madá da morte.
Mesmo sem a pretensão de falar sobre teologia ou religião, Cacá Diegues dá
algumas “alfinetadas” no cristianismo. Na cena da pensão, Deus critica a imagem de
Jesus com “esse olhar azul” e com “essa cara de americano”. E o moço da pensão
faz um ataque frontal, usando o mesmo “foi tudo errado” que Deus sempre repetiu
no filme ao criticar os homens: “Foi tudo errado, é o pai que tem que se sacrificar pro
filho vencer na vida!”, se referindo ao sacrifício cristão. Quando revela a Taoca a sua
pretensão de encontrar um santo no Brasil e Taoca fica surpreso com a
nacionalidade do santo, Deus diz: “O Brasil é um dos países mais religiosos do
mundo e nunca teve um santo reconhecido oficialmente.” Outro elemento que
aparece no filme compõe o contexto de secularização das religiões tradicionais: O
fenômeno do ateísmo, na reação do “santo que não acreditava em Deus”, tem uma
carga mais fundamentalista do que as próprias religiões dentro do filme.
Embora o filme apresente elementos importantes da religiosidade no Brasil,
falta-lhe alguma alusão às matrizes religiosas afro-brasileiras e indígenas, tão
presentes na religiosidade popular da margem esquerda do rio São Francisco e do
interior do Brasil. Nem mesmo nas cenas que acontecem na aldeia indígena essa
religiosidade não aparece. Seria interessante, ver no filme, Deus visitando um
terreiro de Candomblé. Embora Bittencourt Filho afirme o êxtase religioso como
ápice da experiência do Sagrado na religiosidade brasileira, o filme Deus é brasileiro
92
não carrega nas tintas da busca pelo transe com uma carga emocional. Isso iria
desviar o motivo principal que vai aparecendo na trama do filme, que, pelo contrário,
acaba sendo a humanização de Deus e a divinização do ser humano.
É essa a grande Modulação que esse filme produz no público. Graças à
dinâmica transdisciplinar audiovisual, a pretensa busca de um santo para substituir
Deus torna-se uma busca da humanização de Deus e da divinização do ser humano.
A Eletrônica possibilita à Realidade cinética vibrar os sentidos do público e envolvelo por inteiro no nível de percepção Sensitivo. Pela imersão no nível de percepção
Imaginário o público entra no espaço-tempo da Realidade ficcional. Sem perceber, o
educando está imerso nesse novo cosmos criado pela trama do filme. O que, no
primeiro nível de Realidade audiovisual, parecia ser uma busca por um santo
passando por várias localidades do Brasil nordestino, se revela, no nível de
Realidade ficcional, como o encontro de Deus com a humanidade. O espaço
ficcional realiza o seu papel mistagógico133 no audiovisual, o papel de possibilitar
que o público adentre no mistério humano e divino.
O terceiro incluído que faz a reconciliação entre o humano e o Sagrado nesta
trama é o amor. Como explicar o paradoxo humano/sagrado? Num nível superficial
humano e sagrado são realidades dicotômicas que não podem se reconciliar. A
lógica do terceiro incluído aponta o caminho. Num outro nível de realidade, em
nosso caso o ficcional, humano e sagrado se reconciliam, o sagrado se torna mais
humano no amor, e o humano se torna mais sagrado no amor. O Deus estressado
do início do filme vai se humanizando na medida em que caminha por esse sertão e
contempla a beleza de sua gente, mesmo sofrida, a beleza de Madá, que se revela
na cena da mágica no Recife antigo, na relação de Madá com o povo na boleia do
caminhão, na simplicidade da dança do côco da festa de casamento no sertão, na
beleza da natureza pujante em meio à aridez, na poesia do Cordel do Fogo
Encantado que canta: “Foi com os homens que Deus aprendeu a amar”, e ao
133
“Mistagogia” é um conceito caro aos padres dos primeiros séculos da era cristã, período conhecido
na teologia católica como patrologia, e que, a partir do Concílio Vaticano II, vem se impondo na
teologia litúrgico-sacramental como método mistagógico, no qual se faz teologia através da análise do
rito, a partir da experiência vivida no mesmo. Extraído da teologia cristã, este conceito nos ajuda a
compreender como a linguagem audiovisual contribui para levar o educando a viver uma experiência
do Mistério, que perpassa todos os níveis de Realidade, elevando o ser humano em direção a uma
maior transcendência e imanência. Cf. GIRALDO, Cesare. Num só corpo: Tratado mistagógico sobre
a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2003, p. 1-24.
93
explicar o canto Deus diz que “foi amolecendo o coração com o dengo dos anjos
caídos”.
O amor é o terceiro incluído que une dois opostos como Taoca e Madá, que
numa primeira visada pareciam tão diferentes. Aqui aparece novamente um
antagonismo em um nível superficial de realidade, que visto em outro nível, se
reconcilia. Taoca finalmente vê que a Nossa Senhora de seu sonho reflete o rosto
de Madá. E no final os dois se unem numa linda cena numa canoa no meio do rio
São Francisco. É o ápice do filme e revela a “disposição pela razão de ser” de que
nos fala Pierre Babin, a mensagem do diretor do filme: Deus se humanizou e o
homem se divinizou no amor de Taoca e Madá, “um elogio da imperfeição”134.
A razão de ser do filme Deus é brasileiro, revelada no final, só tem sentido
porque foi construída em todo o caminho percorrido pelos personagens. Como disse
Taoca na cena final: “Eu acho que a vida é um porto, onde a gente não chega no
final nunca.” Ou seja, o sentido se constrói no ato de caminhar, pois o Real perpassa
todo o caminho, e não está no início ou no fim. A viagem como fator de
transformação é o leitmotiv do filme. Não é atoa que esse gênero é chamado no
cinema de filme de estrada, o road moovie. É extremamente cinematográfico porque
o cinema é a arte do movimento. E no filme de estrada tudo está em movimento, os
personagens mudam e a paisagem também muda. Em Deus é brasileiro as histórias
se entrecruzam e se unem pela mobilidade. A lógica do filme, ao contrário de uma
lógica dual, tão presente nos filmes norte americanos repletos de antagonismos, em
que só alcança o seu termo na eliminação do oponente, se dá em Deus é brasileiro
na dinâmica de uma lógica ternária. Nesta lógica os fluxos de informações e de
conhecimento perpassam toda a narrativa, e reconciliam os antagonismos em outros
níveis imanentes de sensação, e em outros níveis transcendentes do imaginário e do
ficcional. É na travessia que se revela o mistério humano e divino. Deus é brasileiro
realiza assim uma mistagogia do caminho.
134
DIEGUES, 2003, p. 13.
94
CONCLUSÃO
Desde o início foi proposta uma busca de critérios para a produção de
subsídios audiovisuais para o Ensino Religioso. Uma hipótese que percorreu todo
esse percurso é a de que o audiovisual é capaz de contribuir para uma experiência
do sagrado, especialmente no contexto cultural contemporâneo, tão marcado pela
linguagem eletrônica das mídias.
Buscamos na história do Ensino Religioso no Brasil uma fundamentação
jurídica para justificar a necessidade de subsídios audiovisuais que correspondam às
exigências da educação religiosa na cultura eletrônica. Percorremos o percurso da
construção do Ensino Religioso ao longo da história, passando por diversas políticas
educacionais, que finalmente se consolidaram em leis que apontam critérios para
uma educação religiosa voltada para o desenvolvimento pleno do ser humano, numa
perspectiva de busca de sentido e de valores para a vida. Constatamos que esse
novo Ensino Religioso não admite mais uma educação religiosa apologética ou
confessional, e exige uma abordagem madura do fenômeno religioso, que
contemple a rica diversidade cultural e religiosa brasileira.
Em busca da matriz religiosa que deu origem ao caldo cultural e religioso
brasileiro, percebemos que nossa religiosidade é originalmente plural, herdeira do
catolicismo hibérico e da magia européia, mixada às multisseculares tradições
indígenas e às influências das religiões africanas, articuladas num vasto sincretismo.
A entrada do kardecismo europeu e a influência do catolicismo romanizado
consolidam a matriz religiosa brasileira no século XIX. Essa paisagem religiosa
propicia o surgimento de uma religiosidade singular no Brasil, que ultrapassa as
fronteiras confessionais e as filiações religiosas. Trata-se do substrato da matriz
religiosa brasileira, que denominamos religiosidade matricial. Uma religiosidade
popular, que reapropria e reinterpreta os conteúdos pertencentes aos sistemas
religiosos institucionalizados, e os reinventa com criatividade. Ao mesmo tempo, os
sistemas religiosos institucionalizados se apropriam destes elementos próprios da
religiosidade popular, de maneira natural ou como uma estratégia de crescimento. A
religiosidade matricial é um substrato religioso presente na memória inconsciente
dos brasileiros, que opera no nível da intuição, da emoção e do afeto, e é ratificado
pela busca do êxtase religioso ou pelo transe, com toda a sua carga emocional e
95
sentimental, em torno das presenças sobrenaturais. O audiovisual contribui para
despertar a religiosidade matricial do educando, porque toca-lhe justamente nestes
níveis da intuição, da emoção e do afeto.
As deliberações legais e a religiosidade matricial brasileira delimitaram nossa
busca de critérios para a produção de subsídios para o Ensino Religioso no Brasil. O
foco da reflexão não poderia ser a veiculação de conteúdos doutrinais dos sistemas
religiosos institucionalizados, e sim a rica diversidade religiosa que compõe e dá
sentido à religiosidade brasileira. Daí surge os primeiros critérios para a produção
desses subsídios:
 O material audiovisual produzido para o Ensino Religioso deve
contemplar a diversidade cultural e religiosa brasileira;
 A abordagem madura do fenômeno religioso, na sua pluralidade de
expressões, deve ser o foco destas produções;
 A mensagem veiculada pelos subsídios audiovisuais deve contribuir
para o desenvolvimento pleno do ser humano, numa perspectiva de
busca de sentido e de valores para a vida;
 Por ser a religiosidade matricial brasileira expressa nos níveis da
intuição, da emoção e do afeto, esses subsídios devem tocar a
sensibilidade do educando nestes mesmos níveis, para comunicar a
mensagem.
Na busca de uma ou mais epistemologias que fundamentassem essa
pesquisa, recorremos à Transdisciplinaridade de Barsarab Nicolescu, à Modulação
de Pierre Babin e ao Pluralismo Metodológico Integral de Ken Wilber. Esse
referencial de conhecimento subsidiou a investigação do filme Deus é brasileiro,
produção cinematográfica utilizada pelos professores nas aulas do Ensino Religioso.
As contribuições dessa análise têm o alcance de proporcionar critérios não só para
aqueles que produzem esse tipo de subsídio, mas também para os educadores das
escolas públicas e particulares do Brasil.
Para o novo Ensino Religioso é preciso uma mudança de cultura na
educação. Essa é uma exigência do nosso tempo. Estamos vivendo uma época de
transformações sem precedentes na história, potencializada pela evolução das
96
tecnologias eletrônicas, que concerne desde o imaginário e a sensibilidade popular
até a concepção mesma de ciência. Ultrapassamos a era de Gutemberg e estamos
na era Eletrônica, passamos pela modernidade e estamos no que se convencionou
chamar de pós-modernidade. Concomitante a essas transformações culturais,
mudam também os modos de compreender, antes marcados pelo cientificismo
moderno, agora regidos por uma lógica ternária não-linear. É preciso ultrapassar o
nível da interdisciplinaridade e adentrar no nível da transdisciplinaridade; É preciso
modular em estéreo, ou seja, transitar pela cultura eletrônica, sem abandonar as
aquisições da cultura tradicional. Na educação deve predominar os dois canais, o
dos sentidos e afetividade, e o canal da abordagem conceitual; os canais de
abordagem intuitiva e os canais de abordagem dedutiva. Na cultura do audiovisual, a
educação deve dar lugar aos dois modos de compreender, conjugando-os no tempo
e nos métodos. São necessárias pedagogias que conjuguem de maneira equilibrada
esses saberes, o intuitivo, lúdico e artístico, e o dedutivo e racional, predominando
um de cada vez na educação dos jovens.
A lógica transdisciplinar aplicada ao audiovisual nos ajudou a compreender a
trama do conhecimento na cultura eletrônica. E a análise do filme Deus é brasileiro
corroborou, na prática, a teoria transdisciplinar, e apontou critérios para uma
produção adequada à linguagem do nosso tempo. Para a análise do filme, optamos
por uma abordagem a partir dos operadores audiovisuais da linguagem cinética.
Esta metodologia contribui para uma análise do audiovisual através dos próprios
caracteres desta linguagem (dramatização, enquadramento, cenário, áudio,
montagem, etc.). Com a contribuição da teoria da Modulação de Pierre Babin,
entramos na dinâmica do conhecimento Transdisciplinar em quatro fases: o choque
inicial, o abalo sem conteúdo preciso, a elaboração do sentido, e a ressonância, que
nos conduziu ao Pluralismo Metodológico Integral de Ken Wilber como metodologia
recomendada para a conceitualização e o julgamento crítico.
A análise do filme Deus é brasileiro nos ajudou a perceber que na linguagem
audiovisual a apropriação da mensagem se dá na medida em que entramos em
outros níveis de percepção e Realidade, como nos mostrou a Figura 7. A análise se
deu desde o nível imediato, que chamamos de nível de Realidade e de percepção
Audiovisual. Neste nível ocorre o choque inicial propiciado pelas primeiras imagens e
sons do filme, provocando uma mudança de registro em nossa percepção.
97
Em seguida passamos pelo nível de Realidade Eletrônica, que é assimilado
no nível de percepção Sensitivo, onde ocorre um abalo sem conteúdo preciso, que
nos envolve no drama e produz um conhecimento embrionário. Uma vibração nos
toca neste nível mais imanente dos sentidos e nos acompanha durante todo o filme,
dando o tom da mensagem. No filme Deus é brasileiro vimos que a comédia pode
dar uma tonalidade afetiva à mensagem, além de ser um bom recurso para falar de
temas relativos à religiosidade para os jovens nascidos na cultura audiovisual.
Porém, a comédia está no limite do caricato, podendo chegar ao jocoso e à
zombaria, e se não for bem trabalhada, pode causar efeitos nocivos, como o de
desdém ou deboche do diferente.
A tecnologia eletrônica é a responsável pela
capacidade dos sons e imagens tocarem cada vez mais os nossos sentidos e
provocar reações que nos mantêm atentos à história.
Esse envolvimento crescente conduz-nos a um nível de Realidade e
percepção mais transcendente, o nível de Realidade Ficcional, que é assimilado no
nível de percepção Imaginário. Nesta fase da elaboração do sentido passamos a
compreender e não somente sentir. A perda da distância crítica diante da história é o
que nos dá a sensação de estarmos em outra temporalidade, em outro cosmos; em
Deus é brasileiro, o sertão nordestino. Temos a sensação de estar “dentro” do filme,
seguindo Deus, Taoca e Madá na busca do santo, sentindo com eles as emoções
vivenciadas pelo caminho.
A dinâmica Transdisciplinar do conhecimento é de outra lógica, a lógica do
terceiro incluído, que difere da lógica tradicional binária. Vimos que no filme Deus é
brasileiro a lógica do terceiro incluído atua em toda a trama, reconciliando as
dicotomias do humano e sagrado em níveis cada vez mais profundos de imanência e
transcendência. No filme, Deus se humaniza na relação com o ser humano,
enquanto Taoca e Madá se divinizam na medida em que descobrem o amor. A
comunicação da mensagem se dá na medida em que os fluxos de conhecimento e
de percepção perpassam todos os níveis de Realidade na direção de uma maior
imanência e transcendência, passando pelas zonas de transparência do Real, o que
possibilita a apropriação da mensagem no ponto que chamamos de Modulação. A
Modulação faz o papel do terceiro incluído que permite a comunicação da
mensagem na linguagem audiovisual. É o ponto onde a polissemia da linguagem
audiovisual se aglutina em um sentimento primordial que dá sentido à mensagem.
98
A abordagem transdisciplinar confirmou nossa tese de que o audiovisual é um
ambiente ideal para vivenciar o sagrado na cultura eletrônica. Percebemos que a
concepção de diversos níveis de Realidade realiza um papel mistagógico na cultura
audiovisual, ou seja, possibilita ao educando entrar num estado de consciência e de
adesão tal às vibrações sonoras e visuais, que provoca sentimentos análogos aos
sentimentos mais profundos experimentados pela experiência do sagrado. A
linguagem audiovisual possibilita despertar no educando os sentimentos próprios de
sua religiosidade matricial.
Nossa análise demonstrou que não basta ficar no sentimentalismo próprio da
linguagem audiovisual. Para a educação religiosa é fundamental a fase da
ressonância, onde tomamos um distanciamento crítico para aprofundar a mensagem
recebida e realizar um julgamento maduro da mesma. Vimos que o educador tem
um papel preponderante como motivador de uma reflexão em torno do que se viveu
e sentiu durante a exibição do filme. E apontamos o Pluralismo Metodológico Integral
como uma metodologia adequada para uma compreensão dos fenômenos que
apareceram no filme. A abordagem Integral ajuda a ter uma visão abrangente de
qualquer fenômeno, especialmente do fenômeno religioso em todas as suas
dimensões e em todas as possibilidades de abordagem pelas ciências. Desta
maneira, não se corre o risco de interpretações equivocadas, que considerem suas
conclusões como as únicas e verdadeiras acerca de temas relevantes para a
educação religiosa, a partir de um único ponto de vista da realidade.
A lógica da comunicação audiovisual na cultura eletrônica é um alerta de mão
dupla, tanto para os realizadores das produções audiovisuais destinadas à educação
religiosa, quanto para os educadores do Ensino Religioso. Aos produtores
audiovisuais, especialistas da linguagem audiovisual, imersão na experiência do
sagrado; Aos professores, acostumados à lógica formal da cultura de Gutemberg,
formação por imersão na cultura eletrônica. Mas como transitar bem nesta cultura
eletrônica? Como realizar esta imersão? O filme Deus é brasileiro nos dá uma
valiosa pista: Na formação simbólica se aprende primeiro pela viagem e pelo andar,
pela vibração e pela expressão do corpo. A formação por imersão se dá
primeiramente pela experiência vivida pelo meio. O ground é mais importante que a
figura em primeiro plano, o ambiente conta tanto como o ensinamento formal.
99
Entrar na cultura eletrônica pela via da experiência é mais eloqüente. Vivi esta
experiência quando realizei uma oficina de educomunicação para educadores e
alunos do ensino médio na cidade de Ponte Nova, Zona da Mata mineira. O objetivo
da educomunicação é uma educação pela comunicação, neste caso, através da
imersão na experiência de realizar uma produção audiovisual. A vida de grupo
proporcionada pela relação entre educadores e alunos, a necessidade da criação, o
despertar para a qualidade de expressão, o contato com os equipamentos, levou
esses educadores e alunos a entrarem na cultura eletrônica pela via de um saber
constituído pela experiência. Aqui não importou tanto a qualidade técnica do material
produzido por eles, mas sim a experiência vivida, o rito de passagem entre dois
mundos, que possibilitou, especialmente aos educadores impregnados da cultura de
Gutemberg, falar na linguagem da cultura eletrônica de seus alunos.
Já aos realizadores das produções audiovisuais destinadas à educação
religiosa, imersos na cultura eletrônica, primeiro ser sensível, para depois comunicar
o sagrado na linguagem audiovisual. A Transdisciplinaridade nos mostra que a trama
do conhecimento acontece na relação entre o sujeito e o objeto. E essa relação
modela tanto o sujeito quanto o objeto transdisciplinar. Nossa análise do filme Deus
é brasileiro revelou que a mensagem do filme é carregada do que Pierre Babin
chamou de disposição pela razão de ser, que é justamente a alma do realizador
posta em imagens e sons. Os produtores de material audiovisual para o Ensino
Religioso devem ser pessoas capazes de traduzir em imagens o sentimento religioso
presente na cultura brasileira. Este objetivo só será conseguido na medida em que
os realizadores se sentirem impactados por esta realidade.
Os critérios levantados nesta pesquisa se direcionam aos realizadores,
responsáveis pela transposição dos fenômenos religiosos para a linguagem cinética
audiovisual. Alguns critérios têm validade também para os educadores, responsáveis
pela motivação e dinâmica pedagógica na exibição e análise desses subsídios.
Ambos, realizadores e educadores, são os comunicadores da educação religiosa.
Esta pesquisa nos mostrou que é imprescindível uma produção de subsídios
audiovisuais para o Ensino Religioso que contemple os seguintes critérios:
 O produto audiovisual deve prezar pela boa mixagem dos operadores
audiovisuais. Os elementos que o compõe: som, palavras e imagens,
100
devem se integrar sem superposição, a fim de produzir uma
experiência sensorial global e unificada no educando;
 O audiovisual deve falar na linguagem popular, através do diálogo, sem
sofisticação literária nem intelectual. Por ser da ordem da experiência
sensorial, a linguagem audiovisual pede palavras concretas, mais
familiares, onde o sentir vem primeiro e deve ser ressaltado o efeito de
presença;
 O privilégio é da dramatização. A obra audiovisual deve ser capaz de
criar no educando estados de tensão e relaxamento pela via do prazer.
Sem o prazer de ver não há comunicação na cultura eletrônica. E a
ficção é o gênero audiovisual por excelência, porque conduz o público
a viver uma experiência sensorial fundante. A dissertação é um gênero
adequado para o Ensino Religioso. O seu caráter narrativo contribui
para comunicar o fenômeno religioso com sua riqueza de símbolos e
gestos. A dinâmica transdisciplinar do conhecimento aplicada ao
audiovisual corrobora para a capacidade que a dramatização tem de
conduzir o educando a outros níveis de Realidade cinética onde é
possível vivenciar uma experiência do sagrado;
 A
dramatização
deve
estar
presente
em
todo
o
processo.
Simplesmente exibir o filme não basta. É preciso uma metodologia. A
metodologia somente funciona na cultura eletrônica, se contém em si
mesma o drama, se é uma metodologia dramatizada. O Pluralismo
Metodológico Integral se apresenta como uma metodologia adequada
para a etapa de aprofundamento do que foi vivenciado na experiência
sensorial de assistir um filme, porque contribui para uma visão integral
do fenômeno religioso, e evita o absolutismo de abordagens
unilaterais;
 Prezar pelo equilíbrio entre figura principal e fundo, tanto em relação à
composição visual, na criação de uma ambientação, quanto nas
distâncias entre a voz e o silêncio, entre a música e a imagem, entre a
tonalidade da voz e a palavra pronunciada, entre a cor dominante e a
cor secundária é fundamental por causa da polissemia da linguagem
101
audiovisual. Nesta linguagem todos os elementos vistos e ouvidos são
portadores da mensagem e determinam o acesso aos níveis de
percepção e de Realidade;
 Trabalhar com bons atores, treinados na linguagem audiovisual, para
garantir a autenticidade da mensagem e a coerência do enredo. A
análise do filme Deus é brasileiro mostra a importância do elenco para
o êxito da mensagem;
 Garantir a qualidade técnica do som e das imagens é fundamental na
linguagem audiovisual. A Fotografia, os planos, as cores, o figurino, a
trilha sonora, devem estar a serviço da mensagem que se quer
comunicar, do tipo de ambientação que a determina. É critério
fundamental uma boa equipe de direção em uma obra cinematográfica,
composta pelos quatro pilares formados pela direção, diretor de arte,
diretor de fotografia e diretor musical;
 A direção de uma obra audiovisual deve ter a capacidade de transmitir
para toda a equipe sua “disposição pela razão de ser”, critério
imprescindível numa produção, que perpassa todo o processo e é
portador da mensagem que será veiculada pelo produto final. Esse
envolvimento do diretor com o fenômeno religioso que está sendo
colocado em imagens não é do nível da fé, mas sim da experiência e
da percepção de que existem ali valores éticos, estéticos e/ou culturais
que lhe afetam sensivelmente e que são importantes para a sociedade
contemporânea.
 O educador deve encarnar essa “disposição pela razão de ser”
veiculada na obra audiovisual para motivar o educando, preparando-o
previamente para a exibição do filme. Não basta apenas o
conhecimento intelectual da tradição religiosa que está sendo
retratada, nem mesmo da obra cinética que será exibida. O educador
deve estar imerso na linguagem audiovisual da cultura eletrônica e ser
afetado pela experiência que será trabalhada em aula, a fim de criar no
educando a predisposição necessária para assistir ao filme.
102
 Por ser a cultura eletrônica marcada pela linguagem do flash, é
importante imprimir um ritmo definido, com vigor, que exprima uma
vibração positiva e decidida, a fim de tocar o educando em seus
sentimentos mais profundos. A lógica transdisciplinar aplicada ao
audiovisual afirma que a mensagem só é comunicada na medida em
que o educando é tocado sensivelmente no nível de percepção
imaginário e é conduzido a vivenciar uma experiência sensorial
profunda em um nível de Realidade ficcional. Tocado nestes níveis,
experimenta sentimentos da mesma ordem da experiência espiritual
que está sendo comunicada.
Nossa abordagem dos subsídios audiovisuais usados pelos professores do
Ensino Religioso contribui para o estatuto epistemológico das Ciências da Religião
por sua natureza transdisciplinar. As asserções das Ciências da Comunicação se
apresentaram como um importante referencial no estudo do fenômeno religioso que
aparece na mídia eletrônica. A teoria da Modulação de Pierre Babin revela o
potencial do audiovisual como oportunidade de viver uma experiência do sagrado na
cultura eletrônica. Os referenciais epistemológicos da Transdisciplinaridade e do
Pluralismo Metodológico Integral conferem novas possibilidades de abordagem do
fenômeno religioso em sua complexidade, colocando tais fenômenos no seu devido
lugar no rol das ciências.
103
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5 INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem como objetivo