O que podemos apreender com a tragédia das crianças de Realengo – RJ? Muito foi falado sobre a inédita e imensa tragédia acontecida em uma escola de Realengo, ocasião em que 12 pré-adolescentes foram mortos e tantas outras crianças foram feridas. Evidentemente chocou a todos nós deixando-nos perplexos diante de tanta covardia e crueldade. Passado o choque proponho refletirmos sobre o que podemos aprender com essa triste experiência sem nos deixarmos paralisar pela emoção ou evitar pensar no evento como efeito da sobrecarga emocional gerada pelo sensacionalismo com que os mais diversos meios de informação trataram o assunto. Em primeiro lugar, parece-me fundamental admitirmos que não temos explicações que justifiquem e dêem sentido a esse ato insano e destacar que esse tipo de acontecimento constitui-se numa exceção sendo, portanto, muito improvável que ele venha se repetir. Não podemos como afirmou o educador Mario Sergio Cortella em entrevista na TV, sermos “levianos” e sairmos rotulando. Não somos capazes de explicar um fenômeno tão complexo através de um raciocínio linear e uni causal que nos leve a conclusões taxativas do tipo: Wellington sofreu bullying na escola e por isso resolveu se vingar, ou ele resolveu matar porque era louco e delirante ou ainda, era muçulmano e viciado em internet. Qualquer tipo de conexão lógica poderá ser reducionista e nos levar a conclusões simplistas tais como pensar que toda a criança que sofre bullying será um adulto assassino ou que todos doentes mentais são matadores ou ainda, que ele era filho adotivo e por isso tinha problemas. Essas simplificações são perigosas e nos impedem de pensar em todo o processo histórico de vida do autor da violência e no contexto em que a ação está inserida e mais ainda dificulta raciocinarmos sobre que papel a sociedade adulta pode ter para zelar pelo desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes e pelo menos tentar evitar que tragédias desse gênero se repitam. Atualmente a inclusão social é um dos temas mais discutidos entre os educadores, sendo obrigatória a aceitação de crianças com os mais diversos transtornos emocionais, intelectuais e/ou deficiências físicas em escolas regulares. Nada mais politicamente correto do que essa decisão, porem devemos avaliar se os profissionais da educação não estarão apenas cumprindo exigências legais sem a preparação profissional necessária para verdadeiramente incluir os diferentes. Matricular essas crianças especiais em turmas regulares por si só não é a solução. Estão os profissionais das escolas capazes de perceber e orientar os pais quando seus filhos necessitam de tratamentos especiais? Sabem identificar o limiar entre o comportamento normal e o patológico? Há nas escolas especialistas habilitados para reconhecer transtornos psiquiátricos que requeiram tratamento e medicação específicos? Sabemos o quanto é difícil admitirmos que um filho se beneficiaria de medicação para depressão, fobia, ansiedade generalizada ou outros transtornos de ordem emocional. Tendemos a pensar nessas drogas como viciantes e prejudiciais e temos muitos preconceitos relativos a enviar nossos filhos a tratamentos de ordem psicológica ou psiquiátrica. É justamente a falta de tratamento que na maioria das vezes acaba por dificultar a socialização e desenvolvimento escolar da criança deixando-a ainda mais vulnerável. Sabemos o quanto as crianças e adolescentes podem ser cruéis e passar a maltratar os mais vulneráveis, considerados fracos, esquisitos e diferentes se não houver efetiva mediação dos adultos. Esse processo de intimidação, (bullying) em geral, se instala de modo sorrateiro e quase sempre nas situações em que as crianças e adolescentes encontram-se sem supervisão. Certamente ficamos perplexos ao ouvir depoimentos de jovens afirmando que teriam, quando garotos, colocado o colega no lixo e no vaso sanitário da escola em que o massacre ocorreu. Onde estavam os educadores quando esses atos bárbaros ocorreram? Nada sabiam? E os pais desses jovens desconheciam a crueldade ou tinham informações e pensavam como muitos adultos que “isso é coisa de meninos”! Não se trata aqui de querer culpabilizar um lado ou o outro, e sim chamar atenção para a necessidade de supervisionar os jovens e mediar suas relações reais e virtuais para que os mais diversos tipos de violência não se instalem e se cronifiquem. Muitas vezes, com a intenção de evitar a violência e o desrespeito os adultos punem o agressor, mas não tratam com seus filhos ou com suas turmas questões relativas a preconceitos e aceitação do diferente. Torna-se ineficaz apenas punir os agressores, obrigar os envolvidos a pedir desculpas, fazerem as pazes ou orientar os alunos a respeitarem uns aos outros para que a ação não se repita. Insistentemente tenho afirmado que é imprescindível envolver grande parte da comunidade escolar promovendo discussões abertas sobre o que é bullying, de forma a tornar visível a violência, para que em primeiro lugar, possamos desnaturalizá-la. Isto não se faz em um dia! É necessário instalarse um processo continuo de identificação e combate a violência e ao bullying de modo a poder contar com a ajuda de toda a comunidade escolar para dar fim a esses comportamentos indesejáveis. As crianças devem ser preparadas a solicitar socorro quando sofrem ou presenciam o mau-trato e a violência para deixarem de serem testemunhas passivas e se encorajarem a buscar auxilio. Isto se torna viável somente quando percebem que podem contar com adultos que lhes dêem segurança e se mostrem efetivamente interessados em protegê-las e a fazê-las crescer em ambiente tranqüilo. Se toda a comunidade escolar, incluindo pais, estudantes e educadores, estiver atenta é bem provável que não haja lugar para o valentão ou valentões exercerem o seu poder. Medidas simples como uma boa recepção ao aluno que ingressa na escola pode facilitar o processo de inclusão. Preparar crianças para atuarem como cicerones do novo colega pode auxiliar muito no processo de integração dos novos. Treinar mediadores de conflitos entre os pares pode ser outro bom meio de prevenção da violência e de bullying. Porem, se apesar dos esforços comunitários alguma violência ainda ocorrer é fundamental que se permita que as crianças falem de seus sentimentos e angustias diante de situações em que se sintam ameaçadas, humilhadas ou amedrontadas. Necessitam ser confortadas pelos seus cuidadores que devem ser capazes de escutá-las e protegê-las. Alguns leitores podem imaginar que estou tentando provar que tudo se deveu ao autor da violência de Realengo ter sido vítima de bullying em sua vida escolar e que tudo poderia ter sido evitado caso tivessem tomado as devidas precauções. Não, infelizmente nada sabemos sobre o que poderia ter evitado a tragédia. O que podemos, passado o choque inicial é permitir que nossas crianças e jovens falem sobre o acontecimento trágico de modo a darem vazão a sua ansiedade. Falar sobre o evento não significa voltar ao tema a todo instante e sim limitar-se a responder os questionamentos de forma mais natural possível sem incrementar a ansiedade e o temor infantil. O adulto por sua vez necessitará dominar o seu próprio temor e ansiedade a fim de assegurá-las de que não estamos diante de um evento corriqueiro e sim de um ato irracional, insano e cruel pouco provável de ser repetido. Resta-nos a certeza de que devemos trabalhar cada vez mais em conjunto e conscientes de que somos todos responsáveis pela construção de uma sociedade harmônica e que somos nós os adultos os propagadores de valores éticos que incluam o respeito nas relações de modo a tornar a vida uma escola em que se possa aprender também a amar, a contar e confiar no próximo. Denise Duque, CRP 12/00050 Psicóloga Clinica Especialista em Terapia Relacional Sistêmica [email protected]