O COZINHEIRO DO REI D. JOÃO VI Hélio Loureiro O COZINHEIRO DO REI D. JOÃO VI Romance A Esfera dos Livros Rua Garret, 19, 2.º A 1200-203 Lisboa — Portugal Tel. 213 404 060 Fax 213 404 069 www.esferadoslivros.pt Distribuição: Sodilivros, S. A. Praceta Quintinha, lote CC4 – 2.º Piso R/c e C/v 2620-161 Póvoa de Santo Adrião Tel. 213 815 600 Fax 213 876 281 [email protected] Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor © Hélio Loureiro, 2008 © A Esfera dos Livros, 2008 1.ª edição: Abril de 2008 Capa: Compañia Imagem da capa: © akg/Album; © Corbis Fotografia do autor: João Ribeiro Retrato de D. João VI: D.D.F. – Instituto dos Museus e da Conservação, Museu Nacional dos Coches, fotografia de José Pessoa Revisão: Eda Lyra Paginação: Júlio de Carvalho Impressão e acabamento: Manuel Barbosa & Filhos Depósito legal n.º 274 258/08 ISBN 978-989-626-098-9 Agradecimentos Agradeço aos meus queridos amigos Raquel Coelho, pelo incentivo que me foi dando durante a construção deste pequeno romance, Francisco Morais da Fonte, pela companhia nos caminhos percorridos no Rio de Janeiro à procura de D. João e dos seus lugares. Ao meu querido amigo João Mendes Pereira que, estando em Portugal ao serviço do Brasil na embaixada em Lisboa, me foi dando motivos para que desse a conhecer a figura do Rei que fez o Brasil. À minha mulher, com as minhas desculpas pelo tempo que lhe roubei nos carinhos e afectos que ficaram por dar durante o tempo de investigação e de escrita. À Sofia Santos Monteiro, única razão de eu ter chegado ao fim desta história, pois sempre me foi apoiando e instigando a fazê-lo; sem ela nunca a teria concluído! À D. Hermínia Pais do Palácio da Brejoeira, Quinta do Vale das Rosas, onde um dia nasceu uma paixão intensa que nunca esquecerei. 7 STEFAN ZWEIG 8 CARTA DE UMA DESCONHECIDA À Memória de D. João VI 9 STEFAN ZWEIG 10 CARTA DE UMA DESCONHECIDA Introdução Não quis neste livro julgar a História nem rescrevê-la, apenas romancear com algum rigor a vida de um cozinheiro que não existindo podia ter vivido e que saindo da sua casa do Minho encontra um mundo novo, numa corte dividida, e um príncipe solitário no meio de uma multidão de gente que o pressionava num mundo em completa mudança. Mostrar que por detrás de uma pessoa pública existe um ser humano por vezes frágil, com medos, angústias e frustrações, mostrar que D. João foi de facto um grande rei que sonhou o Brasil e que amou Portugal como poucos. Demonstrar que ontem como hoje a mesa é palco de convívio, de alegria, mas que pode também ser local de conspirações. Que ontem como hoje se morre pela ingestão de alimentos. Por fim, demonstrar a fragilidade humana que com muita facilidade se vende e se corrompe, ontem como hoje, desviando-se dos princípios que por vezes são valores inabaláveis. 11 HÉLIO LOUREIRO Esta obra é, pois, de ficção com algumas personagens e alguns factos verídicos. Quem matou D. João, até hoje não se sabe, mas sabe-se com toda a certeza que a causa da morte foi arsénico. A quem servia a morte do rei? Não sei, ninguém sabe… pode ser que um dia se descubra mas não terá mais importância. A única coisa importante mesmo foi a vida deste homem que nasceu para ser príncipe e chegou a imperador, que enganou e venceu Napoleão como ninguém o tinha feito em toda a Europa até ao tempo da partida para o Brasil, que sonhou e uniu o Brasil da forma como permanece até hoje, que viu nascer um novo regime assente no liberalismo o qual aceitou, que viu a destruição de muitas casas reais pela Europa, que teve de lutar com a própria família em querelas que o desgastaram. Quem o matou ou mandou matar por certo queria também o melhor para Portugal, mas será que a vida humana está acima de uma Nação? A História mostra-nos que sim, que a vida, mesmo a de um rei, vale pouco quando se fala da Pátria e dos interesses políticos do momento. Morrer pela Pátria é glorioso, ser morto pelos seus interesses torna-nos mártires! Hélio Loureiro 12 de Fevereiro de 2008, Porto 12 1 t 13 14 Quatro de Março de 1826. Eram quatro da manhã, quando me fui despedir daquele a quem aprendera a amar e a servir. Meu pobre e amado senhor D. João VI, imperador, rei querido pelo povo, pela sua clemência e bondade, temente a Deus, sempre ao serviço do reino e do seu povo que amou até ao fim, a quem tudo perdoou, as infâmias, as mentiras, a crueldade. Abandonado pelos filhos a quem sempre inocentou, carregava a cruz de uma mulher com quem não se entendia e de quem tanta maledicência escreviam e contavam. Um rei que a todos soube, com o seu olhar meigo, absolver. Como foram capazes de tal vil façanha? Ali estava ele, coberto com um simples lençol de linho. Iam começar os trabalhos de embalsamamento, iriam abri-lo, despojá-lo das suas entranhas que tantas vezes eu alimentara e de que tanto padecera nos últimos dias da sua vida de sofrimento. Naquela sala onde apenas uma lamparina de azeite luzia, um velho Cristo crucificado na parede, de olhos 15 HÉLIO LOUREIRO cerrados como se não quisesse assistir àquele horror. Não me via, prostrado de joelhos no chão frio de pedra, mas certamente ouviu o meu desespero em gritos esganados de dor que suplicavam perdão. Roguei aos céus que morresse, ali. Queria morrer, queria ter morrido naquele instante com o meu amado rei, que o chão me sugasse e engolisse, e as lamas mais escaldantes da terra derretessem o meu corpo. A porta abriu-se, entraram os médicos do rei, com os seus instrumentos de ciência, seguidos dos cangalheiros. Levantei-me rapidamente, tapei o rosto coberto de lágrimas com o gabão negro e saí pela porta das traseiras do quarto, por onde fogem os que não querem ser vistos, nem reconhecidos. Sem dizer palavra, sem me despedir nem deixar recado ou mensagem, corri pelo corredor de serviço daquele labiríntico Palácio da Bemposta. Sempre odiara aquele palácio. Eram raros os dias em que não sentia ao meu lado o vulto de D. Catarina que ali morrera vinda de Inglaterra, de uma vida de tormento e sofrimento. Estava amaldiçoado aquele local. Agora estava duplamente amaldiçoado. Precisava de fugir daquele lugar, de voltar a casa, à minha terra natal, ao meu Minho, onde já não ia desde 1805. Tinha chegado a Lisboa nesse ano, para o serviço da corte, como cozinheiro, confeiteiro e organizador de serviços, recomendado por meu amo, D. António de Sampaio Menezes e Sousa, meu padrinho de baptismo. Deixara os meus pais, irmãos e irmãs que serviam naquela 16 O COZINHEIRO DO REI D. JOÃO VI casa desde os tempos dos meus avós, que tinham vindo fugidos de Trás-os-Montes e ali nas belas terras do Minho encontraram a paz e o sossego merecidos. Montei a mula e com a noite como única companheira de viagem rumei pela estrada a trote rumo ao Porto. Deixava a corte para trás, a minha cozinha, a minha amiga Clotilde, os meus parcos haveres, mas carregava o peso da culpa, de uma bolsa recheada e uma carta no bolso do meu casaco que deveria entregar sem mais demora. Depois de seis dias de viagem solitária finalmente avistei o Porto, onde me alojei numa casa cedida pela família de José Maria Lopes e Carneiro, na rua das Taipas. Mas antes desfiz-me da carta selada que transportava a mando de Domingos Bem Saúde. Muitas vezes pelo caminho pensei em abri-la. Rasgar o selo lacrado e ler o que continha tão importante missiva, mas no fundo eu sabia exactamente o seu contéudo e tinha vergonha de cada palavra ali gravada. Quando finalmente a entreguei, a cara do destinatário empalideceu. Era um nobre de bom ar, certamente um liberal que queria mal a el-rei. A pouco e pouco a cor voltou à sua face. Um sorriso ocupou os seus lábios e olhando-me de cima a baixo, disse, deixando escapar um sotaque inglês: – Apenas fizeste o que deveria ser feito, agora vai para a rua das Taipas e fica o tempo que achares necessário. Nada te faltará. O seu ar de felicidade após a leitura da carta deu-me vómitos, canalha! Foi quando tentava descansar a alma no travesseiro que escutei da janela do meu quarto, o arauto 17 HÉLIO LOUREIRO que transmitia a triste nova da morte do imperador D. João VI. Estávamos a onze de Março, tinham passado sete dias desde que fugi do Palácio da Bemposta… Até no dia da morte mentiram. Porque precisaram de tanto tempo? Porque foi preciso tanto engano? Pernoitei apenas uma noite no Porto. Fiz-me à estrada já tocava o sino da Igreja de São Bento da Vitória para a primeira missa da manhã. Muita gente já para lá acorria, vestida de luto e de rostos pesados, pela triste notícia da morte do nosso soberano. Com o meu coração despedaçado ainda hesitei em entrar para uma breve oração mas detive-me. Não podia, não devia, não merecia entrar naquele templo sagrado. Com a alma suja de pecado segui caminho para a minha terra natal tentando alegrar-me com as recordações da Casa Grande, junto ao rio. Sentia já o aroma das maçãs do jardim, que se misturavam com o dos morangos selvagens… agora sabia que podia acrescentar natas batidas com açúcar, um requinte que aprendi na corte que abandonara. Nos meus tempos de juventude comia-os colhidos no meio das silvas ou em casa com mel. Sim, era para aqui que queria voltar, mesmo sabendo que já não encontraria os meus pais, as minhas doces irmãs nem os meus irmãos, mortos pelas mãos dos soldados franceses. Meus queridos irmãos, que por valentia se tinham juntado às tropas inglesas, e como bravos que eram, morreram com nobreza no campo de batalha na defesa da ponte de Amarante. Pois não transportavam eles sangue 18 O COZINHEIRO DO REI D. JOÃO VI de antepassados que tinham estado nas lutas da Restauração? Não tinham aqueles meus ilustres familiares sido nobilitados por D. João IV por tais factos? Era de dever que o fizessem, não como tantos outros que por cá ainda encontrei, que usando os seus títulos se entregaram ao serviço desses miseráveis franceses e agora se exibem com os seus ditos títulos de nobreza. Meu padrinho deixara um testamento lavrado poucos dias antes de morrer. Sem saber do paradeiro de um dos seus filhos mais novos, escreveu que os terrenos à volta da casa onde moravam os meus pais, bem como um pequeno palacete que tinha mandado erguer para uma das suas tias que tinha ficado por casar à morte de seu pai, ficariam para mim. «Pela dedicação que sempre teve para com a minha família e devoção com Sua Majestade D. João VI», foram as palavras deixadas no testamento. Mas as verdadeiras razões de tamanha bondade não ficaram escritas e lavradas naquele pergaminho. Nem precisavam… De nada me servia a bolsa de moedas de ouro que carregava nas calças. Porque fiz aquilo se o dinheiro do meu padrinho me assegurava os meus últimos dias na terra? Até a memória de meu padrinho eu traíra. Ficaria com parte do Vale das Rosas, por herança, compraria o restante com o que juntara no trabalho honrado. Para que precisava eu do outro vil dinheiro ganho da pior maneira? Esta seria a morada e o meu sepulcro sobre a Terra. Sem merecimento herdei o que não devia. 19 HÉLIO LOUREIRO 20