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A borracha com o formato da República Dominicana
"Preciso de voluntários. Alguém se oferece?", pergunta a sra. Brown. Estamos preparando pecinhas de teatro para
o dia de Ação de Graças, duas semanas adiante. Embora os peregrinos jamais tenham posto os pés na República
Dominicana, freqüentamos a Escola Americana e temos, portanto, de celebrar feriados norte-americanos.
A tarde está quente e abafada. Sinto preguiça e tédio. Do lado de fora da janela, as palmeiras não se mexem. Não
sopra nem sequer uma brisa. Alguns dos alunos norte-americanos estão reclamando de que, nesse calor que mais
parece de 4 de julho, nada lembra o dia de Ação de Graças.
Os olhos da sra. Brown passeiam pela sala. Sentada na carteira logo à frente, minha prima Carla ergue o braço.
A sra. Brown a chama e, em seguida, convoca também a mim. Carla e eu deveremos representar os papéis de dois
índios dando boas-vindas aos peregrinos. A sra. Brown sempre atribui os papéis não tão bons aos dominicanos na
sala.
Ela entrega a cada uma de nós uma faixa a ser usada em torno da cabeça, da qual uma pena se eleva, como se fosse
uma orelha de coelho. Eu me sinto ridícula. "Muito bem, índios, avancem para cumprimentar os peregrinos." A
sra. Brown sinaliza na direção de Joey Farland e de Charlie Price, postados com seus rifles de brinquedo e os
chapéus de pele à Davy Crockett que tinham convencido a sra. Brown a deixá-los usar. Até eu sei que os pioneiros
do Velho Oeste vieram bem depois dos peregrinos...
"Anita" - ela aponta para mim -, "eu quero que você diga 'Bem-vindos aos Estados Unidos'."
Antes que eu possa murmurar minha fala, Oscar Mancini levanta a mão. "Por que os índios dizem Iunaitedistêitis,
se os Iunaitedistêitis ainda não existiam naquela época, senhora Brown?"
A sala toda emite um suspiro. O Oscar está sempre fazendo perguntas. "Iunaitedistêitis! Iunaitedistêitis!", alguém
começa a imitar no fundo da sala. Muitos alunos dão risadinhas, até mesmo alguns dominicanos. Eu odeio quando
os americanos zombam do nosso jeito de falar inglês.
"Boa pergunta, Oscar", a sra. Brown responde, lançando um olhar de desaprovação ao restante da turma. Ela
também deve ter ouvido o suspiro. "Isso se chama licença poética. Uma coisa que a gente pode fazer numa
história, mas que não é bem assim na vida real. Como uma metáfora ou um símile."
Foi então que a porta da sala se abriu. Vislumbro nosso diretor e, atrás dele, a mãe da Carla, tia Laura, que parecia
muito nervosa. Mas a tia Laura sempre parece nervosa. Meu pai costuma brincar que, se preocupação fosse esporte
olímpico, a República Dominicana ganharia a medalha de ouro com a irmã dele no time. Ultimamente, porém, o
papi também tem andado meio preocupado. Agora, quando pergunto alguma coisa, ele responde com um "criança
é bom de se ver, não de se ouvir", em vez do seu habitual "curiosidade é sinal de inteligência".
A sra. Brown caminha do fundo da sala até a porta e conversa um pouquinho com o diretor, antes de acompanhálo até o corredor, onde está a tia Laura. A porta se fecha.
Em geral, sempre que a professora deixa a sala, Charlie Price, o palhaço da turma, faz das suas. Coisas como
mexer nos ponteiros do relógio, para que a sra. Brown se confunda e nos deixe sair mais cedo para o intervalo.
Ontem, por exemplo, ele escreveu na lousa em grandes letras de forma: NÃO TEM TAREFA PARA AMANHÃ.
Escreveu aquilo bem acima da data: QUINTA-FEIRA, 10 DE NOVEMBRO DE 1960. Até a sra. Brown achou
engraçado.
Agora, porém, a classe toda aguarda em silêncio. A última vez que o diretor veio até nossa sala foi para dizer ao
Tomasito Morales que a mãe dele tinha vindo buscá-lo. Alguma coisa tinha acontecido com o pai dele, mas nem
mesmo o papi, que conhecia o señor Morales, quis dizer o que era. Tomasito nunca mais voltou para a escola.
A meu lado, Carla está enfiando os cabelos atrás das orelhas, sinal de que está nervosa. Meu irmão, Mundín,
também tem um tique nervoso. Rói as unhas sempre que faz alguma coisa errada e tem de ficar sentado na cadeira,
de castigo, até o papi voltar para casa.
A porta da sala torna a se abrir e, por ela, entra a sra. Brown, com aquele sorriso falsificado que os adultos fazem
quando querem esconder más notícias. Com uma voz animada, ela pede a Carla que por favor junte o material.
"Você pode dar uma ajuda a ela, Anita?", acrescenta.
Caminhamos de volta para nossas carteiras e começamos a guardar o material da Carla. A sra. Brown anuncia à
sala que continuarão com o teatrinho mais tarde. Até lá, todos devem pegar seus vocabulários e começar a lição
seguinte. A classe finge voltar ao trabalho, mas é claro que todos lançam olhares furtivos a Carla e a mim.
A sra. Brown vem ver como estamos nos saindo. A Carla guarda a tarefa de casa, deixando sobre a carteira o
material que sempre fica na sala de aula.
"Este material é seu?", a sra. Brown pergunta, apontando para os cadernos novos, a fileira arrumadinha de canetas
e lápis, a borracha com o formato da República Dominicana.
Carla faz que sim com a cabeça.
"Guarde tudo, meu amor", pede calmamente a sra. Brown.
Guardamos na maleta escolar da Carla tudo o que é dela. O tempo todo fico imaginando por que a sra. Brown não
me pediu para guardar minhas coisas também. Afinal, a Carla e eu somos da mesma família.
O Oscar levantou a mão, que balança feito uma palmeira no meio de um ciclone. Mas a sra. Brown não o chama.
Dessa vez, acho que todos nós compartilhamos a esperança de que ele tenha a oportunidade de fazer sua pergunta,
provavelmente a mesma que vai pela cabeça de todo mundo: aonde a Carla está indo?
A sra. Brown toma a mão dela. "Vem comigo", diz, fazendo um sinal para que eu as acompanhe.
A professora vai na frente, pela lateral da sala. Eu a sigo, com medo de cair no choro, se meu olhar cruzar com o
de alguém ali. Olho para cima, para o retrato do nosso benfeitor, El Jefe, pairando sobre a sala, seus olhos velando
por nós. À esquerda dele, George Washington e sua peruca branca, o olhar perdido na distância. Será que não está
com saudade do seu próprio país?
Já olhar para El Jefe impede que minhas lágrimas escorram. Quero ser valente e forte, para que, se algum dia
encontrar o líder da nação, ele me cumprimente. "Então você é a menina que nunca chora?", dirá ele, sorrindo para
mim.
Ao cruzarmos a frente da sala, a sra. Brown se vira, a fim de se certificar de que a estou seguindo. Ela me estende
o braço, e eu seguro a mão ainda livre.
Vamos para casa no Plymouth dos García, com aqueles rabos-de-peixe prateados que me lembram o tubarão visto
na praia no verão passado. Viajo espremida no banco de trás, com a Carla e suas irmãs mais novas, a Sandi e a Yo,
também elas retiradas de suas respectivas salas de aula. Quieta e com uma expressão de preocupação, a tia Laura
vai no banco da frente, ao lado do papi, que está dirigindo.
"O que aconteceu?", pergunto a todo momento. "Algum problema?"
"Cotorrita", meu pai me adverte, brincalhão. É meu apelido na família, porque às vezes falo demais, como um
papagaio, segundo diz a mami. O curioso é que, na escola, sou o contrário, e a sra. Brown reclama que preciso
falar mais.
O papi começa a explicar que os García finalmente receberam permissão para deixar o país e que, dentro de
algumas horas, vão pegar um avião para os Estados Unidos. Tenta dizer aquilo num tom animado, enquanto olha
para nós pelo retrovisor. "Vocês vão conhecer a neve!"
Nenhuma das irmãs García se manifesta.
"E vão ver o papai, a mamãe e todos os primos de vocês", ele segue dizendo. "Não é mesmo, Laura?"
"Sí, sí, sí", concorda a tia Laura, que soa como alguém esvaziando um pneu.
Meus avós foram embora para Nova York no começo de setembro. Tios e tias já estavam lá, tendo partido com os
primos mais novos em junho. Quem sabe onde andará o tio Toni? Agora, com a partida dos García, só a minha
família continuará morando na vila.
Eu me inclino para a frente, apoiando os braços no banco dianteiro. "Então nós também vamos, papi?"
Ele faz que não com a cabeça. "Alguém tem de ficar e tomar conta da loja." É o que ele sempre diz quando não
pode ir passear porque tem trabalho a fazer. Papito, meu avô, montou o negócio, Construcciones de la Torre, para
a construção de casas de bloco de concreto capazes de resistir aos furacões. Quando meu avô se aposentou, alguns
anos atrás, o papi - seu filho mais velho - foi posto no comando.
Subindo pela entrada que dá na casa dos García, vejo a mami, a Lucinda e o Mundín, esperando por nós. Alguém
deve ter ido buscar meus irmãos mais velhos no colégio, para que eles também possam se despedir dos García.
Atrás deles, está a Chucha, nossa velha babá em seu longo vestido roxo, segurando nos braços minha priminha
ainda bebê, Fifi.
Tão logo as portas do carro se abrem, corro em direção à mami, que me envolve em seus braços. Ela nem precisa
me perguntar o que houve. Uma fileira de malas aguarda, pronta e alinhada, o momento de ser embarcada no
carro. Ao lado das malas está o sr. Washburn, um homem alto e magro cuja gravata-borboleta faz com que todo o
seu rosto mais pareça um presente embrulhado com grande capricho. O papi já explicou que o sr. Washburn é o
cônsul americano, representante dos Estados Unidos quando o embaixador Farland está fora do país.
"A tropa está toda reunida?", ele pergunta alegremente. "Tudo pronto?"
"Cadê o papi?", a Yo pergunta. Ela e eu somos os "Oscares" da família, sempre fazendo perguntas. Mas nem
sempre consigo fazer as minhas, quando a Yo está por perto.
Um olhar passa de um adulto a outro, como se estivessem brincando de dança das cadeiras, e aquele que sobra tem
de responder à pergunta da Yo. Meu pai então fala: "Ele está esperando vocês no aeroporto".
Não se despedir parece uma atitude rude do tio Carlos. Mas o que está se passando é tão incomum que os bons
modos parecem fora de propósito.
"Está bem, meninas", a tia Laura diz, enfim, batendo palmas. "Quero que vocês vão para o seu quarto e vistam as
roupas que estão em cima da cama. A Chucha vai com vocês." Tia Laura pega a Fifi dos braços da Chucha, para
que a velha babá fique livre para ajudar as meninas.
"Vamos levar nossas coisas com a gente?", a Yo quer saber.
Tia Laura faz que não. "Levem uma coisa só cada uma, alguma coisa muito especial. Só podemos levar dez quilos
por pessoa."
"A Anita pode me ajudar a escolher?", a Carla pergunta. Mas já me pegou pela mão e está me levando com ela.
"Contanto que vocês sejam rápidas!", tia Laura repreende, mas mesmo aquela sua voz brava contém apenas
preocupação.
O quarto que as meninas dividem tem um comprido armário embutido na parede. A porta de correr foi aberta,
assim como muitas das gavetas, as roupas pendendo para fora. Quem quer que tenha feito as malas estava com
pressa.
Os olhos da Carla varrem uma estante lá no alto, onde brinquedos e quinquilharias são mantidos à parte, para não
atrapalhar. Abertas, três caixinhas de música exibem pequenas bailarinas com os braços sobre a cabeça. Atrás
delas estão os bambolês, cada um de uma cor, para que as meninas não briguem.
"Não consigo escolher", Carla admite. Parece prestes a cair no choro, pondo os fios perdidos de cabelo atrás das
orelhas.
"Meninas!", ouvimos sua mãe chamar, lá do vestíbulo.
"O que eu levo?", a Carla pergunta em desespero, como se eu soubesse do que ela pode precisar nos Estados
Unidos, onde nunca estive.
"A caixinha de jóias", sugiro. Seria um modo de levar mais de uma coisa. A caixa está cheia de pulseiras e tem
ainda a presilha em forma de borboleta e a correntinha com a cruz - nada é ouro de verdade.
Carla concorda. Enquanto subo numa cadeira, o globo de neve com o veadinho dentro, mordiscando o chão, me
chama a atenção. Não resisto à tentação de chacoalhá-lo, sacudindo a tempestade de neve até não conseguir mais
ver o bichinho.
"Isto é meu", protesta a Yo, já tentando alcançar o globo com as mãos. "É o que eu vou levar."
"Mas que besteira, Yo!", Carla a repreende, voltando-se para mim e revirando os olhos, como se nós duas
fôssemos capazes de idéia melhor do que levar um globo de neve para um lugar onde já vai haver neve de
qualquer jeito.
"Besta é você!", reage a Yo.
Logo, estão as duas berrando. Não é preciso muito para que as irmãs García comecem a brigar. As vozes alteradas
chamam a atenção da mãe para o quarto.
"Mais uma palavra e eu deixo vocês duas aqui: vou sozinha para Nova York!", ela ameaça. "Agora, escolham logo
o que vão levar e troquem de roupa. Estão esperando por nós."
A brincadeira acabou. Sobre cada uma das camas, há uma anágua e um vestido formal esperando por elas. As
meninas se vestem com rapidez.
Lá fora, na rampa de entrada, o sr. Washburn já está sentado em seu carrão preto com a bandeirinha dos Estados
Unidos na antena. Debruçado do lado do passageiro, o papi conversa com ele pela janela aberta.
"Estamos fazendo o senhor Washburn esperar", tia Laura adverte, cutucando as garotas para que se despeçam.
De repente, a Yo anuncia: "Eu não quero ir. Quero ficar com a tia Carmen".
Tem início, então, uma reação em cadeia. "Eu também", a Sandi soluça, agarrando-se à minha mãe. Nos braços da
tia Laura, a Fifi começa a gritar, esticando as mãozinhas gorduchas em direção a Chucha, que está parada na porta
com os braços cruzados. Também eu sinto vontade de chorar, mas sei que a mami conta comigo para animar as
García.
"Meninas, por favor, não tenho tempo para isso agora", a tia Laura começa a dizer, mas logo cai no choro também.
Meu pai corre a acudir a irmã. Ele a abraça e fala gentilmente com ela, do mesmo modo como fala comigo quando
tenho um pesadelo.
"Venham aqui, meninas." A mami reúne as García em torno dela e se agacha, a fim de conversar com elas em
particular. "Vocês vão com sua mami e se comportem, por favor. A gente se vê logo, eu prometo!"
Fico surpresa. O papi já disse que precisamos ficar para cuidar da loja. Isso só pode significar que as García
devem estar partindo para uma viagem rápida.
Minhas primas parecem se consolar com aquela notícia. Por um instante, me passa pela cabeça que a mami só
disse aquilo para fazê-las se sentir melhor. Como quando ela diz à minha avó em Nueva York que o tio Toni está
bem, só para que a mamita não se preocupe com meu tio ainda jovem, que não vemos há meses.
O sr. Washburn põe a cabeça para fora do carro e diz: "Está na hora, pessoal!". As García avançam por nós,
enfileiradas, despedindo-se de um por um com abraços e beijos. Já puseram seus brinquedos especiais no banco
traseiro do carro. Pela porta aberta, posso ver o globo de neve da Yo, a tempestade começando a se acalmar e
permitindo ao veadinho comer os flocos espalhados pelo chão.
Quando a Carla se aproxima de mim, as lágrimas me inundam os olhos. Não tenho como evitar. Não há ali um
retrato de El Jefe que me faça valente e forte. Abaixo a cabeça quando as lágrimas começam a cair.
"A gente se vê logo", a Carla me lembra. Mas choro ainda mais quando ela me toca para, distraída, pôr meus
cabelos atrás das orelhas.
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