Desenvolvimento de um truque customizado para o padrão de operação da ferrovia As grandes ferrovias de Heavy Haul vêm sofrendo com problemas relacionados à performance dos truques aplicados em seus vagões. Alto percentual de rodas com RCF (Rolling Contact Fatigue) e desgastes muitas vezes assimétricos de frisos e pista de rolamento são os principais sintomas de que os truques (incluindo os rodeiros) não estão bem ajustados à condição de operação a eles imposta. Os trilhos, ativo de grande valor financeiro nas ferrovias, também são prejudicados por essa performance inadequada, e como sistema estão envolvidos diretamente nessa dinâmica. Essa observação remete a uma nova realidade no projeto dos truques atuais: a customização. O período de produtos padronizados para diferentes ferrovias ficou para trás, uma vez que com as atuais demandas do transporte, e consequentemente exigência sobre os ativos operados, exige-se performance cada vez mais superior. Essa performance só pode ser obtida através de um profundo entendimento da condição operacional aplicada e do desenvolvimento de uma solução altamente preparada para essa aplicação. O resultado esperado é o ganho na performance operacional, com redução de custos de manutenção e ganho na segurança, uma vez que performando bem os truques tendem a circular com menor relação L/V. O ganho em eficiência energética também é um produto esperado, uma vez que as perdas mecânicas no rolamento pela via são diminuídas. É objetivo desse trabalho apresentar o projeto de um truque customizado para uma determinada operação ferroviária, partindo-se de fundamentos e conceitos da dinâmica ferroviária, passando pela definição da especificação do truque e concluindo com os resultados do teste de protótipos. INTRODUÇÃO E REVISÃO BIBLIOGRÁFICA O primeiro passo para o adequado desenvolvimento de um truque (incluindo seus rodeiros) para uma determinada operação ferroviária é justamente o entendimento da condição de operação, e a resposta que os atuais truques vem apresentando para essa condição. Este trabalho irá focar no desenvolvimento de um truque ferroviário para vagão de carga para ser utilizado em uma ferrovia que adota como padrão truques convencionais AAR de três peças, de bitola de 1,6m, operados com 30,0t e 32,5t métricas por eixo, em um fluxo Heavy Haul. De forma resumida, é observado nessa ferrovia que: • • • • • • • • • • Há predominância de curvas se comparado aos trechos de tangente; A velocidade operacional é menor ou igual à 63km/h, mas em um futuro próximo estima-se operação em velocidade ligeiramente superior; Existem trechos com significativa carga térmica nas rodas, oriundas da frenagem; Há evidências de hunting em alguns trechos de tangente percorridos com o vagão vazio (mais comum e de maior risco operacional) e carregado; Há predominância de desgaste de friso (muitas vezes assimétrico), quando comparado ao desgaste de pista de rolamento de roda; Há elevado índice de RCF nas pistas de rolamento das rodas. Observa-se o RCF em rodas de todos os tipos de truques manga T, sendo mais crítico nos que operam com 32,5t por eixo (130t brutas). O RFC é o defeito predominante para remoção das rodas de operação; Há evidências verificadas na manutenção de truques circulando fora do padrão dimensional. O controle dimensional na manutenção dos truques antigos é um processo recente; Há drenos que descarregam água sobre as rodas e trilhos; Adotou-se em um passado recente um programa de esmerilhamento de trilhos com perfil não completamente compatibilizado com o perfil médio das rodas; Experiências passadas com truques de melhor performance em curvas foram bastante positivas. Analisando detalhadamente as observações acima, pode-se gerar um diagrama de causa e efeito para o problema de RCF nessa ferrovia, mais critico do ponto de vista de performance dos truques. Tensões oriundas da conformação (ou não) dos perfis de Roda & Trilho Creepage (escorregamentos na região do contato) RCF Temperatura na roda Pressão hidrostática Carga vertical FIGURA 1 – Causas mapeadas do RCF Efetivamente o RCF irá aparecer quando se ultrapassar o limite do diagrama de Shakedown do aço da roda (aparecimento do defeito na roda) ou trilho (no caso do RCF de trilho). A figura 2 ilustra esquematicamente um diagrama de Shakedown. FIGURA 2 – Esquemático de um diagrama de Shakedown (fonte Amsted Maxion) Ao se ultrapassar os limites acima, trincas são nucleadas subsuperficialmente e propagam em direção à superfície da roda ou trilho. Quando mais trincas se encontram, partes do material são desprendidas gerando as covas por RCF. Essas covas, ou o shelling como é tratado pelas ferrovias, geram altos impactos durante a operação dos trens, levando à fraturas de trilhos e danos ao próprio vagão, além de forçarem a sua parada. Outro ponto negativo é a necessidade do torneamento das rodas muitas vezes ainda dentro dos limites de desgaste de friso e pista. A figura 3 mostra uma evolução clássica do RCF (da esquerda para a direita). Trincas subsuperficiais detectadas pelo ensaio de Partículas Magnéticas FIGURA 3 – Evolução do RCF RCF (shelling) em nível severo remoção imediata Atuar no RCF é interessante pois as melhorias impostas para seu combate normalmente geram redução nos índices de desgaste de rodas, tendo como resultado final uma maior vida útil desse componente e o mesmo efeito esperado para o trilho. Analisando o diagrama da figura 1, percebe-se também que há grande espaço para ações externas ao truque, como: • • • • Aplicação de perfis de trilho, através do esmerilhamento preventivo, 100% adequados aos perfis de roda em circulação, podendo ajudar na performance dos rodeiros e consequentemente dos truques; Redução da carga térmica nas rodas através de formações de trens com maior disponibilidade de frenagem dinâmica; Eliminação de drenos que geram gotejamento de água sobre rodas e trilhos; Controle efetivo do carregamento dos trens evitando sobrecargas nas rodas. Essas ações porém não serão foco desse trabalho, que irá se ater no desenvolvimento do truque. De qualquer forma é importante conhecer em detalhe esses pontos pois influenciarão sobremaneira a performance do truque desenvolvido. Como resumo do que foi apresentado, pode-se dizer que essa ferrovia precisa prover os truques e rodas de melhor capacidade de inscrição em curvas e alinhamento rápido em tangentes, sem se esquecer do controle de hunting. O que é necessário ser feito então? Para responder a essa questão, há cinco tópicos importantes que devem ser observados. Primeiro Tópico – Resistência ao warp, ou distorção do truque Truque losangulares, ou em warp, são prejudiciais às inscrições em curvas e tangentes pois aumentam o ângulo de ataque da roda em relação ao trilho. São determinantes para a geração de escorregamentos (creepage) na região do contato da roda com o trilho, elevando as tensões e gerando a ultrapassagem dos limites do diagrama de Shakedown, culminando no aparecimento do RCF. A figura 4 mostra um truque em warp inscrevendo uma curva. FIGURA 4 – Truque em warp Para o controle do warp, pode-se lançar mão dos seguintes artifícios: a) Utilizar um intertravamento das laterais do truque AAR de três peças (cross brace); b) Aumentar o momento resistente à saída de esquadro propiciado pelas cunhas de fricção; c) Limitar geometricamente a saída de esquadro pela redução das folgas entre laterais e travessa central; d) Utilização de um truque “H” rígido, como projetos padrão UIC. O aumento da resistência ao warp traz também como efeito positivo o aumento da velocidade crítica de hunting, tornando os truques mais estáveis. Segundo Tópico – Liberdade de giro do rodeiro É interessante buscar no projeto dos truques o conceito de inscrição radial, que é o posicionamento dos rodeiros de forma que as projeções de seus eixos se encontrem no centro geométrico da curva em inscrição. Dessa forma consegue-se eliminar o ângulo de ataque durante a inscrição, reduzindo drasticamente tensões e desgastes nas rodas e trilhos. A figura 5 ilustra o conceito de inscrição radial. r o r o BR-Fp BR+Fp Ambos os rodeiros apontando para o centro geométrico do raio de curva e laterais e travessa ortogonais FIGURA 5 – Conceito de inscrição radial Para se obter a inscrição radial, é importante: a) Garantir uma folga suficiente entre os adaptadores e os pedestais (Fp na figura 5); b) A movimentação dos adaptadores nos pedestais nas entradas de curva, e seu retorno à posição central nas tangentes deve ser facilitada. Normalmente utiliza-se um elemento intermediário elástico na ligação entre os adaptadores e os pedestais: o PAD. Folgas elevadas de pedestal e/ou PAD macios podem reduzir a velocidade crítica de hunting, instabilizando os truques em velocidades mais altas. Terceiro Tópico – A inscrição do rodeiro por rolamento puro Nesse terceiro tópico o rodeiro, através da sua conicidade de roda, deve produzir uma diferença de raio efetivo de rolamento (conhecido como delta r) suficiente para a inscrição da curva em questão por rolamento puro, ou seja, sem arraste. Assim garante-se baixas tensões e desgaste na inscrição. A figura 6 ilustra o conceito. FIGURA 6 – Formação do delta r no rodeiro Nota-se pela figura 6 que a formação do delta r necessário para a inscrição em curva é uma função direta da conicidade efetiva das rodas, do jogo lateral entre o rodeiro e a via e do ponto de contato entre roda e trilho. Esses parâmetros podem ser trabalhados através da alteração dos perfis de roda e trilho, além da bitola de eixamento dos rodeiros e bitola da via. A interação desses parâmetros deve propiciar a busca pelo delta r suficiente, o que vai garantir uma inscrição suave e adequada do rodeiro. Uma importante observação é que o uso de rodas de alta conicidade efetiva pode reduzir a velocidade crítica de hunting. Quarto Tópico – A adequação do ampara balanço Os ampara balanços exercem grande influência na dinâmica dos vagões, em especial no controle de instabilidades dinâmicas como hunting e rock and roll. Com relação às inscrições em curvas, pré-cargas excessivas combinadas com altos coeficientes de atrito entre o ampara balanço da caixa e o do truque aumentam o momento resistente de giro do truque sobre a caixa, prejudicando o posicionamento correto dos truque durante a inscrição. A escolha de um ampara balanço adequado é fundamental para a performance do truque. De forma resumida, truques e rodeiros mais instáveis ao hunting e vagões mais instáveis a balanços de rock and roll demandam ampara balanços de contato constante. Truques mais estáveis ao hunting montados em vagões de baixa incidência de problemas de rock and roll que circulam por vias sinuosas podem utilizar ampara balanços de baixa resistência ao giro do truque, como os de rolete. A figura 7 ilustra a posição dos truques em relação à caixa durante a inscrição em curvas, e alguns dos tipos de ampara balanços utilizados nos vagões de carga. Castanha com folga Contato Constante com molas internas Contato Constante com elastômeros Rolos com folga FIGURA 7 – O ampara balanço Quinto Tópico – O momento de giro do truque no prato de pião Como dito anteriormente, nas curvas os truques devem girar sob a caixa do vagão. Para se garantir o giro e o posicionamento adequado pode-se reduzir o momento resistente de giro do truque no prato de pião. Isso pode ser obtido através da aplicação de lubrificantes, normalmente sólidos, ou utilização de materiais especiais nas chapas de desgaste do prato de pião da travessa do truque. O momento resistente de giro no prato de pião é especialmente relevante quando se opera o vagão carregado, chegando a superar nessa condição o momento resistente imposto por um ampara balanço de contato constante. A figura 8 ilustra a aplicação de uma lubrificação sólida a base de grafite no prato de pião inferior. FIGURA 8 – Lubrificação sólida aplicada no prato de pião inferior Nota-se em alguns tópicos abordados que a ação para melhoria da capacidade de inscrição em curva dos truques (propriedade conhecida como curving) implica em redução da velocidade crítica de hunting, ou seja, deve-se “dosar” a ação sob pena de gerar um truque de grande capacidade de inscrição porém instável em velocidades mais altas. O paradoxo do curving versus o hunting é bem ilustrado por Joe Kalousek no ábaco da figura 9. O eixo vertical do gráfico é a rigidez do truque à saída de esquadro (rigidez ao warp), e o eixo horizontal, a rigidez do truque em permitir o posicionamento radial dos rodeiros, conforme abordado no segundo tópico. As linhas cheias coloridas representam as velocidades críticas de hunting, e as pontilhadas coloridas o índice de desgaste de rodas. Percebe-se claramente que quanto maior a rigidez ao warp e ao posicionamento radial do rodeiro (essa última prejudicial ao curving), mais estável ao hunting o truque se torna, porém o índice de desgaste de roda pelo prejuízo ao curving se eleva. Em resumo, pode-se dizer que trata-se de um problema de solução de compromisso, como acontece em vários outros casos envolvendo dinâmica. FIGURA 9 – Curving versus hunting A ESPECIFICAÇÃO PROPOSTA PARA O TRUQUE Com base em toda a informação levantada e sabendo da necessidade de se obter uma solução de compromisso, além de não se esquecer dos fatores externos ao truque que influenciam diretamente a sua performance, definiu-se a seguinte especificação de truque para a ferrovia em questão utilizando como matriz um truque Ride Control original. Configuração Básica (truque standard): • Truque padrão AAR de 3 peças, de bitola de 1,60m, com pedestal estreito 6.1/2”x12”, com adaptadores estreitos para rolamento 6.1/2”x9”, apto a 32,5t brutas por eixo, fabricado em aço AAR M-201 grau B, com sistema de amortecimento por pressão constante (Ride Control). • Dimensões Básicas: • Base rígida: 70” (1.778mm); • Centro a centro das mangas de eixo: 2.197mm; • Centro a centro dos ampara balanços: 1.397mm; • Prato de pião: diâmetro de 15”; • Altura do prato de pião ao nível do boleto do trilho: 704,8mm sob o vagão vazio; • Roda: diâmetro nominal de 36”. • Suspensão: • Suspensão de duplo estágio com pacote padrão (2 por truque): 8 molas D3 externas, 3 molas D3 internas e 3 molas internas especiais (mais altas). • Timoneria de freio: • Tipo inclinada (48º), com alavancas de 195mmx390mm e 140mmx280mm, e graduação nominal de 547,5mm. Melhorias para a operação na ferrovia em questão (truque customizado): Para o truque customizado, foram adotadas as seguintes premissas de projeto: a) redução do bending stiffness (rigidez ao posicionamento radial dos rodeiros); b) aumento do ângulo máximo de steering (giro para posicionamento radial) dos rodeiros; c) aumento do steering moment (momento de giro do rodeiro para posição radial) e proteção da roda; d) redução do momento resistente de giro do truque sob o vagão; e) aumento do shear stiffness (rigidez à saída de esquadro); f) redução dos desvios dimensionais (para garantia dos efeitos acima). Para as premissas adotadas, as soluções técnicas foram: a) Redução do bending stiffness: • Utilização de PAD (com 28mm de espessura) nos pedestais. b) Aumento do ângulo máximo de steering dos rodeiros: • Aumento da folga nominal dos pedestais e redução de sua faixa de tolerância (nova folga especificada: mín. 9,0mm e máx. 10,0mm). c) Aumento do steering moment e proteção da roda: • Uso de um novo perfil de roda de alta conicidade efetiva e menor tensão de contato quando conjugado com os novos perfis de trilho aplicados na ferrovia, e de rodas em aço microligado (dureza de 380 à 415 BHN), mais resistentes às cargas térmicas. d) Redução do momento resistente de giro do truque sob o vagão: • Utilização de lubrificação sólida no prato de pião; • Utilização de ampara balanço de rolete (com folga). e) Aumento do shear stiffness: • Utilização de cunhas mais largas (desenho do Super Service Ride Control); • Redução do warp máximo da aranha através da redução das folgas dos gibs da travessa (com usinagem dos gibs - internos e externos - e das colunas de fricção – na sua largura); • Utilização de cross brace em 50% dos protótipos (para avaliação). f) Redução dos desvios dimensionais: • Usinagem da base rígida (referenciada pelas colunas de fricção também usinadas) para tolerância de +/-0,5mm (eliminação dos botões da lateral); • Usinagem das rampas do alojamento da cunha de fricção na travessa; • Usinagem das cunhas de fricção: no contato com a travessa e no contato com a coluna de fricção da lateral; • Usinagem das orelhas de fixação dos adaptadores no PAD. A figura 10 abaixo ilustra um dos protótipos do truque (sem o cross brace) no desembarque para aplicação em teste. FIGURA 10 – O primeiro protótipo OS RESULTADOS ATÉ O MOMENTO, CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÃO Após um ano e sete meses de operação foi realizada uma análise detalhada de dois vagões com os novos truques propostos. Observou-se nessa análise: a) Ausência total de RCF nas dezesseis rodas analisadas; FIGURA 11 – Exemplo do estado das rodas b) Predominância de desgaste de pista de rolamento em relação ao desgaste de friso. Esse efeito era esperado uma vez que truques de boa performance em curva tendem a agredir menos os frisos. A média de desgaste de pista (hollow) foi de apenas 2,1mm, o que projeta a vida entre reperfilamento por hollow para mais de 3 anos. Dado que a remoção de material no torneamento devido ao hollow é muito inferior ao torneamento para recomposição do friso, estima-se que possa ser realizado mais de 7 passes de usinagem nessa condição, gerando uma vida total de roda acima de 2,7 milhões de km, mais do dobro da vida atual, que é em torno de 1,1 milhões de km. c) Baixo desgaste do sistema de amortecimento, provavelmente ajudado pelo bom ajuste dimensional e chapas de desgaste adequadas. A vida estimada do sistema foi superior a 5 anos na condição de operação atual, adequado ao plano de manutenção preventivo de truques da ferrovia, que possui ciclo de 4 anos. A verificação foi feita pela altura da cunha de fricção em relação à extremidade da travessa central. d) Apesar do apertado ajuste dos gibs para redução do warp máximo do truque, o desgaste total combinado (interno mais externo) foi inferior a 3,0mm nesse período, indicando que a maior capacidade de manutenção do esquadro do sistema de amortecimento mais os cuidados dimensionais tomados ajudaram a reduzir as cargas sobre os gibs, mesmo apertados. Como conclusão desse trabalho, pode-se dizer que a performance demonstrada pelos protótipos ratifica os conceitos teóricos demonstrados, e de fato produziu ganhos substanciais para a operação e manutenção (do material rodante e da via permanente), além da redução de custos. Pode-se inferir também que o baixo desgaste principalmente dos frisos de roda evidenciam baixa relação L/V atuante, o que reflete em maior segurança operacional. Desgastes baixos em rodas e trilhos representam menor energia dissipada para movimento do trem, ratificando o ganho em eficiência energética da ferrovia. A recomendação é a manutenção do teste pelo período de quatro anos, que equivale ao ciclo de manutenção do truque na ferrovia em questão, podendo-se então apurar os ganhos finais.