Definição da Filosofia ! ! ! ! ! ! ! ! ! Alain Badiou, 1991 A filosofia é prescrita por condições que são os tipos de procedimentos de verdade ou procedimentos genéricos. Esses tipos são a ciência (mais precisamente, o matema), a arte (mais precisamente, o poema), a política (mais precisamente, o político em sua interioridade, ou a política de emancipação) e o amor (mais precisamente, o procedimento que faz verdade da disjunção das posições sexuadas). A filosofia é o lugar de pensamento onde a existência e compossibilidade das verdades é enuciada [la philosophie est le lieu de pensée où s’énonce le “il y a” des vérités, et leur compossibilité]. Com esse propósito, a filosofia constrói uma categoria operacional, a Verdade, que abre um vazio ativo dentro do pensamento. Esse vazio é localizado através da inversão de uma sucessão (o estilo de exposição argumentativo) e do mais além de um limite (o estilo de exposição persuasivo, ou subjetivante). Portanto, a filosofia, enquanto discurso, agencia a superposição de uma ficção do saber e uma ficção da arte. No vazio aberto pela lacuna ou intervalo de dois “ficcionamentos”, a filosofia apreende verdades. Essa apreensão é seu ato. Através desse ato, a filosofia declara que existem verdades, e trabalha para que o pensamento seja tomado por essa existência. Essa apreensão pelo ato é testemunha a unidade do pensamento. Enquanto ficção do saber, a filosofia imita o matema. Como ficção de arte, ela imita o poema. Enquanto intensidade de um ato, é como o amor sem um objeto. Endereçada a todos, para que todos participem da apreensão da existência de verdades, a filosofia é como uma estratégia política sem nenhum investimento no poder. Através dessa quádrupla imitação discursiva, a filosofia enoda consigo mesma o sistema de suas condições. Essa é a razão pela qual uma filosofia é homogênea à estilística de uma época. Contudo, essa contemporaneidade permanente é orientada não pelo tempo empírico, mas por aquilo que Platão chamava o “sempre do tempo”, a essência atemporal do tempo, que a filosofia chama de eternidade. A apreensão filosófica das verdades as expõe à eternidade - podemos dizer, com Nietzsche, à eternidade de seu retorno. Essa exposição eterna é ainda mais real por conta da precariedade e extrema urgência com que as verdades são apreendidas em seu trajeto temporal. O ato de apreensão, tal qual a eternidade o orienta, extirpa as verdades da lama do sentido, ele as separa da lei do mundo. A filosofia é subtrativa, na medida em que ela produz um furo no sentido, ou produz uma interrupção na circulação do sentido, para que as verdades sejam ditas todas juntas. A filosofia é um ato insensato, e, por isso mesmo, racional. A filosofia nunca é uma interpretação da experiência. É um ato da Verdade que concerne as verdades. E esse ato, que é improdutivo do ponto de vista da lei do mundo (nem mesmo uma verdade ele produz), dispõe um sujeito sem objeto, um sujeito aberto apenas às verdades que transitam em sua apreensão. Chamemos de “religião” tudo o que pressupõe a continuidade entre as verdades e a circulação do sentido. Diremos assim;: contra qualquer hermenêutica, isto é, contra a lei religiosa do sentido, a filosofia dispõe verdades compossíveis com o vazio como seu pano de fundo. Assim, ela subtrai o pensamento de toda pressuposição de Presença. As operações subtrativas através das quais a filosofia apreende verdades “fora do sentido” estão relacionadas à quatro modalidades: o indecidível, relacionado a um evento (uma verdade não é, ela acontece); o indiscernível, relacionado à liberdade (o caminho de uma verdade não é constrangido, mas arriscado); o genérico, relacionado ao ser (o ser de uma verdade é um conjunto infinito subtraído de todo predicado no saber); o inominável, relacionado ao Bem (forçar a nomeação do inominável leva ao desastre). O esquema da conexão destas quatro figuras do subtrativo (indecidível, indiscernível, o genérico e o inominável) caracteriza a doutrina filosófica da Verdade. Esse esquema dispõe o pensamento do vazio como o pano de fundo sobre o qual as verdades são apreendidas. Todo o procedimento filosófico está polarizado por um adversário específico, o sofista. O sofista é externamente (ou discursivamente) indiscernível do filósofo já que sua operação também combina uma ficção do saber com uma ficção da arte. Subjetivamente, ele se opõe ao filósofo pois sua estratégia linguística tem como objetivo evitar qualquer posição assertiva referente a verdades. Assim, a filosofia pode também ser definida como o ato através do qual discursos indiscerníveis são todavia opostos. Ou como o gesto de se separar de seu duplo. A filosofia é sempre uma maneira de quebrar o espelho. Esse espelho é a superfície da linguagem, onde o sofista encena tudo aquilo de que a filosofia trata em seu ato. Se o filósofo pretende contemplar a si mesmo nessa superfície, ele vê o seu duplo, o sofista, repentinamente surgir ali e pode tomar a si mesmo pelo sofista. Essa relação com o sofista expõe interiormente a filosofia a uma tentação cujo efeito é dividí-la em dois novamente. Porque o desejo de acabar com o sofista de uma vez por todas atrapalha a apreensão das verdades: “de uma vez por todas” significa inevitavelmente que a Verdade anularia a aleatoriedade das verdades, e que a filosofia se declararia, incorretamente, uma produtora de verdades. Gesto através do qual o serverdade ganharia o lugar de redobrar o ato da Verdade. Assim, o triplo efeito do sagrado, do êxtase e do terror corrompe a operação filosófica, e pode levá-la, do vazio aporético que sustenta seu ato, à prescrições criminais. Daí o papel da filosofia em induzir todo desastre no pensamento. A ética da filosofia, evitando o desastre, pode ser resumida em sua constante reserva em relação ao seu duplo sofístico, uma reserva graças a qual a filosofia se subtrai da tentação de se dividir em duas (de acordo com o par vazio/substância) para lidar com essa duplicidade originária que a funda (sofista/filósofo). A história da filosofia é a história de sua ética: uma sucessão de gestos violentos através dos quais a filosofia se retira de seu redobramento desastroso. Mais precisamente: a filosofia, em sua história, não é nada mais que a dessubstancialização da Verdade, que é também a auto-liberação de seu ato. ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! Badiou, A. (1992) Conditions Paris: Éditions du Seuil (p.79-82)