A Filosofia e a ética na educação.
Antônio Joaquim Severino
Feusp
Introdução
A educação é processo inerente à vida dos seres humanos, intrínseco à condição da
espécie. A reprodução dos seus integrantes não envolve apenas uma memória
genética mas, com igual intensidade e cogência, pressupõe ainda uma memória
cultural. Em decorrência dessa condição, cada novo membro do grupo precisa
recuperar essa memória, inserindo-se no fluxo de sua cultura. Ao longo da
constituição historico-antropológica da espécie, esse processo de inserção foi se
dando, inicialmente, de forma espontânea, quase que instintiva, prevalecendo o
processo de imitação dos indivíduos adultos pelos indivíduos jovens, nos mais
diferentes contextos pessoais e grupais que tecem a malha da existência humana.
Mas, com a complexificação da vida social, foram implementadas práticas
sistemáticas e intencionais destinadas a cuidar especificamente desse processo,
instaurando-se então instituições especializadas que se encarregam de atuar de
modo formal e explícito na inserção dos novos membros no tecido sócio-cultural.
Nasceram então as escolas. Sem prejuízo dos esforços e investimentos sistemáticos
que ocorrem no seio de suas práticas formais, o processo abrangente de educação
informal continua presente e atuante no âmbito da vida social em geral, graças às
atividades interativas da convivência humana. Mas a formalização cada vez maior da
interação educativa decorre da própria natureza da atividade humana, que é sempre
atividade intencionalmente planejada, sempre vinculada a um telos que a direciona.
Desse modo, todos os agrupamentos sociais, quanto mais se tornaram complexos,
mais
desenvolveram
práticas
formais
de
educação,
institucionalizando-as
sistematicamente.
Desde sua gênese mais arcaica, essa inserção sócio-cultural envolve sempre uma
significação valorativa, ainda que o mais das vezes implícita nos padrões
comportamentais do grupo e inconsciente para os indivíduos envolvidos, pois se
trata de um compartilhamento subjetivamente vivenciado de sentidos e valores.
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O existir histórico dos homens realiza-se objetivamente nas circunstâncias dadas
pelo mundo material – a natureza física – e pelo mundo social -- a sociedade e a
cultura – como referências externas
de sua vida. No entanto,
essa condição
objetiva de seu existir concreto está intimamente articulada à vivência subjetiva,
esfera constituída de diferentes e complexas expressões de seus sentimentos,
sensibilidades, consciência, memória, imaginação. Esses processos põem em cena
a intervenção subjetiva dos homens no fluxo de suas práticas reais, marcando-as
intensamente. Mas, ao mesmo tempo, as referências objetivas condicionantes da
existência, atuam fortemente na gestação, na formação e na configuração dessa
vivência. Daí falar-se do processo de subjetivação, modo pelo qual as pessoas
constituem e vivenciam sua própria subjetividade. A percepção dos valores integra
esse processo tanto quanto a intelecção lógica dos conceitos.
É esse processo de subjetivação que permite aos homens atribuir significações aos
dados e situações de sua experiência do real, o que faz sempre de forma
plurivalente, pois essa atribuição de significações não leva a sentidos unívocos, mas,
o mais das vezes, plurais e mesmo equívocos.
Proponho então desenvolver em três momentos o caminhar desta reflexão. Num
primeiro momento, procuro mostrar o caráter práxico da educação, ver a educação
como uma prática histórico-social, o que a destina ser mediadora das práticas reais
dos homens; num segundo momento, desenvolvo a tese de que, como toda práxis, a
educação precisa fundar-se em valores éticos, o que me leva a explicitar o sentido
da dimensão ética em nossa existência histórica. No terceiro passo, busco então
compreender a inserção da ética na formação humana, para dela tirar implicações
para o processo mediador do ensino, discutindo, particularmente, a questão da
transversalidade.
1. A educação como prática histórico-social
Falar de fundamentos éticos e políticos da educação pressupõe assumi-la na sua
condição de prática humana de caráter interventivo, ou seja, prática marcada por
uma intenção interventiva, intencionando mudar situações individuais ou
sociais
previamente dadas. Implica uma eficácia construtiva e realiza-se numa necessária
historicidade e num contexto social. É constituída de ações mediante as quais os
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agentes pretendem atingir determinados fins relacionados com eles próprios, ações
que visam provocar transformações nas pessoas e na sociedade, são ações
marcadas por finalidades buscadas intencionalmente. Pouco importa que essas
finalidades sejam eivadas de ilusões, de ideologias ou de alienações de todo o tipo:
de qualquer maneira são ações intencionalizadas das quais a mera descrição
objetivada obtida mediante os métodos positivos de pesquisa não consegue dar
conta da integralidade de sua significação. O lado visível do agir educacional dos
homens fica profundamente marcado por essa construtividade e historicidade da
prática humana, e como tal, escapa da normatividade nomotética e de qualquer
outra forma de necessidade, seja ela lógica, biológica, física ou mesmo social, se
tomado este último aspecto como elemento de pura objetividade. Vale dizer que os
fenômenos de natureza política e educacional não se determinam por pura
mecanicidade, ou melhor, só a posteriori ganham objetividade mecânica, transitiva,
mas, a essa altura, já perderam sua significação espeficamente humana. É que eles
se dão num fluxo de construtividade histórica, construção esta referenciada a
intenções e finalidades que comprometem toda logicidade nomotética de seu
eventual conhecimento.
O caráter práxico da da educação, ou seja, sua condição de prática intencionalizada,
faz com que fique vinculada a significações que não são da ordem da
fenomenalidade empírica dessa existência e que devem ser levadas em conta em
qualquer
análise
que
se
pretenda
fazer
dela,
exigindo
epistemológicas que interferem em seu perfil cognoscitivo.
diferenciações
Educação é prática
histórico-social, cujo norteamento não se fará de maneira técnica, como ocorre nas
esferas da manipulação do mundo natural, como, por exemplo, naqueles da
engenharia e da medicina.
No seu relacionamento com o universo simbólico da existência humana, a prática
educativa revela-se, em sua essencialidade, como modalidade técnica e política de
expressão desse universo, bem como investimento formativo em todas as outras
modalidades de práticas. Como modalidade de trabalho, atividade técnica, essa
prática é estritamente cultural, uma vez que se realiza mediante o uso de
ferramentas simbólicas. Desse modo, é como prática cultural que a educação se faz
mediadora da prática produtiva e da prática política, ao mesmo tempo em que
responde também pela produção cultural. É servindo-se de seus elementos de
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subjetividade que a prática educativa prepara para o mundo do trabalho e para a
vida social.
E os recursos simbólicos de que se serve, em sua condição de prática cultural, são
aqueles constituídos pelo próprio exercício da subjetividade, em seu sentido mais
abrangente, sob duas modalidades mais destacadas: a produção de conceitos e a
vivência de valores. Conceitos e valores são as referências básicas para a
intencionalização do agir humano, em toda sua abrangência. O conhecimento é a
ferramenta fundamental de que o homem dispõe para dar referências à condução de
sua existência histórica. Tais referencias se fazem necessárias para a prática
produtiva, para a política e mesmo para a prática cultural.
Ser eminentemente prático, o homem tem sua existência definida como um contínuo
devir histórico, ao longo do qual vai construindo seu modo de ser, mediante sua
prática. Essa prática coloca-o em relação com a natureza, mediante as atividades do
trabalho; em relação com seus semelhantes, mediante os processos de
sociabilidade; em relação com sua própria subjetividade, mediante sua vivência da
cultura simbólica. Mas a prática dos homens não é uma prática mecânica, transitiva,
como o é a dos demais seres naturais; ela é uma prática intencionalizada, marcada
que é por uma sentido, vinculado a objetivos e fins, historicamente colocados..
Além disso, a intencionalização de suas práticas também se faz pela sensibilidade
valorativa da subjetividade. O agir humano implica, além de sua referência
cognoscitiva, uma referência valorativa. Com efeito, a intencionalização da prática
histórica dos homens depende de um processo de significação simultaneamente
epistêmico e axiológico. Daí a imprescindibilidade das referências éticas do agir e da
explicitação do relacionamento entre ética e educação.
2. A prática educacional como prática ético-política.
Na esfera da subjetividade, a vivência moral é uma experiência comum a todos nós.
Ao que cada um pode observar em si mesmo e ao que se pode constatar pelas mais
diversificadas formas de pesquisas científicas e de observações culturais, todos os
homens dispõem de uma sensibilidade moral, mediante a qual avaliam suas ações,
caracterizando-as por um índice valorativo, o que se expressa comumente ao serem
consideradas como boas ou más, lícitas ou ilícitas, corretas ou incorretas. Hoje se
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sabe, graças às contribuições das diversas ciências do campo antropológico, que
muitos dos padrões que marcam o nosso agir derivam de imposições que são de
natureza socio-cultural, ou seja, os próprios homens, vivendo em sociedade, acabam
impondo uns aos outros determinadas normas de comportamento e de ação. Mas a
incorporação dessas normas pressupõe uma espécie de adesão por parte das
pessoas, individualmente, ou seja, é preciso que elas vivenciem, no plano de sua
subjetividade, a força do valor que lhe é, então, imposto. Os usos, os costumes, as
práticas,
os
comportamentos,
as
atitudes
que
carregam
consigo
essas
características e que configuram o agir dos homens nas mais diferentes culturas e
sociedades constituem a moral. A moralidade é fundamentalmente a qualificação
desses comportamentos, aquela ‘força’ que faz com que eles sejam praticados pelos
homens em função dos valores que esta qualificação subsume. Podemos constatar
que é em função desses valores que as várias culturas, nos vários momentos
históricos, vão constituindo seus códigos morais de ação, impondo aos seus
integrantes um modo de agir que esteja de acordo com essas normas. Mas por mais
que se encontre premido por essas normas, o homem defronta-se com a experiência
insuperável de que participa pessoalmente da decisão que o leva a agir desta ou
daquela maneira, sente-se responsável por sua ação e muitas vezes bem ciente
das conseqüências dela.
Assim, a norma moral tem um caráter imperativo que o impressiona. Os valores
morais impõem-se ao homem com força normativa e prescritiva, quase que ditando
como e quando suas ações devem ser conduzidas. Não segui-las lhe dá a
impressão de estar fazendo o que não devía fazer, embora continue com um nível
proporcional de liberdade para não fazer como e quando a norma parece lhe impor.
Se toda e qualquer ação do homem dependesse deterministicamente de fatores
alheios à sua vontade livre, então não seria o caso de sentir-se responsável por
elas; mas, ocorre que, apesar de toda a gama de condicionamentos que o cercam e
o determinam, há margem para a intervenção de uma avaliação de sua parte e para
uma determinada tomada de posição e de decisão. Goza, por isso, de um
determinado campo de liberdade, de vontade livre, de autonomia, não podendo
alegar total determinação por fatores externos à sua decisão.
Hoje, os conhecimentos objetivos da realidade humana, proporcionados pelas
Ciências Humanas, de modo especial, a Psicologia, a Sociologia, a Economia, a
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Etologia, a Psicanálise, a Antropologia, a História, permitem identificar com bastante
precisão aquelas atitudes que são tomadas por imposição de forças superiores à
vontade pessoal. Mas permitem ver igualmente mais claro o alcance da vontade e o
nível de arbítrio que dispõe quando se tem de escolher entre várias alternativas, e a
possibilidade de saber qual a “melhor” opção cabe em cada caso. Pode-se falar
então da consciência moral, fonte de sensibilidade aos valores que norteiam o agir
humano, análoga à consciência epistêmica, que permite ao homem o acesso à
representação dos objetos de sua experiência geral, mediante a formação de
conceitos. Assim, como tem uma consciência sensível aos conceitos, tem
igualmente uma consciência sensível aos valores.
E do mesmo modo que a Filosofia sempre se preocupou em discutir e buscar
compreender como se formam os conceitos, como se pode acessa-los, o que os
funda, ela procura igualmente compreender como se justifica essa sensibilidade aos
valores. Desenvolveu então uma área específica de seu campo de investigação, no
âmbito da axiologia, para conduzir essa discussão: é a ética.
Cabe aqui um breve excurso semântico. Moral e ética são termos com origem
etmológica análoga, ética procedendo do grego ethos e moral, do latino, mos,
termos que significam originariamente costume, o agir costumeiro de uma
comunidade, que tem uma valoração pelo que representa para essa comunidade.
Mas esse primeiro sentido, que se refere ao modo concreto de uma forma de agir,
ao que é, à dimensão do ser, agrega o sentido de um modo que deveria ser,
acrescentando-se então a dimensão do dever-ser. Por isso, esses termos, seja
quando usados como substantivos, seja quando usados como adjetivos, têm seus
significado estabelecido pelo seu contexto no discurso, já que, o mais das vezes,
são usados como se sinônimos fossem. Mas, a rigor, moral, como conceito, referese à relação das ações com os valores que a fundam, mas tais como consolidados
num determinado grupo social, não exigindo uma justificativa desses valores que vá
além da consagração coletiva em função dos interesses imediatos desse grupo.
Estamos então no domínio do que é, de um fato social, sociológicamente
apreensível. Já no caso da ética, refere-se a essa relação mas sempre enquanto
precedida de um investimento elucidativo dos fundamentos, das justificativas desses
valores, independentemente de sua aprovação ou não por qualquer grupo. Estamos
agora no domínio do que deve ser, um princípio axiológico, filosoficamente
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apreensível. Por isso, fala-se de ética em dois sentidos correlatos: de um lado, frisase a sensibilidade aos valores enquanto esses são justificados mediante uma busca
reflexiva por parte dos sujeitos; de outro, convencionou-se chamar igualmente de
ética a disciplina filosófica que busca elucidar esses fundamentos.
Mas de onde vem o valor dos valores? Onde se funda a consciência moral? Se o
homem é um ser histórico em construção, em devir, sem vinculação determinante à
essência metafísica e à natureza física, naquilo que lhe é específico, onde ancorar a
referência valorativa de sua consciência moral? O valor fundante dos valores que
fundam a moralidade é aquele representado pela própria dignidade da pessoa
humana, ou seja, os valores éticos fundam-se no valor da existência humana. É em
função da qualidade desse existir, delineado pelas características que lhe são
próprias, que se pode traçar o quadro da referência valorativa, para se definir o
sentido do agir humano, individual ou coletivo. Ou seja, o próprio homem já é um
valor em si, nas suas condições de existência, na sua radical historicidade,
facticidade, corporeidade, incompletude e finitude, enfim, na sua contingência.
Assim, a filosofia, por meio da ética, busca dar conta dos possíveis fundamentos
desse nosso modo de “vivenciar” as coisas, tendo sempre em vista que é necessário
ir além das justificativas imediatistas, espontaneístas e particularistas das morais
empíricas de cada grupo social. A ética coloca-se numa perspectiva de
universalidade enquanto a moral fica sempre presa à particularidade dos grupos e
mesmo dos indivíduos. Mas é possível encontrar um fundamento universal para os
valores éticos? A filosofia ocidental, como mostra sua história milenar, sempre o
procurou e continua a procurá-lo dada a permanência das demandas da consciência
ética.
3. A educação como formação ética para a existência pessoal.
A ética se constituiu então como área de investigação e de reflexão filosóficas
tentando explicar e justificar nossa sensibilidade moral, tentando mostrar onde ela se
fundamentava. Numa primeira fase de sua história, nos períodos abrangidos pela
Antiguidade e pela Idade Média, em coerência com a perspectiva metafísica que a
Filosofia assumiu, a ética tendeu a encontrar na natureza ontológica do homem esse
fundamento. Entendiam os filósofos metafísicos, tanto os gregos como os medievais,
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que na essência dos seres humanos, já estaria inscrita, de maneira estável e
permanente, a referência básica dos valores que deveriam nortear suas ações, uma
vez que essas características intrínsecas já lhe delineavam o próprio fim de sua
existência. É que o homem, como qualquer outro ser, tenderia para a realização de
sua própria perfeição, o que se daria mediante o pleno desabrochar dessa sua
natureza. A sua consciência moral nada mais é do que a expressão, no plano da
subjetividade, daquilo que está presente, de maneira originária, no mais profundo de
seu modo de ser.
Esta é a linha básica das éticas essencialistas, ou seja, daquelas éticas que
vinculam os valores a que nossa consciência é sensível à própria estrutura
ontológica de nosso ser, ou seja, à nossa essência. Por essência, os metafísicos
entendem o conjunto de características que garantem a identidade de cada ser,
integrando-o à sua espécie e distinguindo-o dos entes que pertencem a outras
espécies. Por outro lado, na medida em que podemos mapear esta essência
mediante o conhecimento, é possível explicitar igualmente os valores que a ela se
vinculam e delinear assim o roteiro mais adequado de nossas ações, ao longo de
nossa existência. Agindo de acordo com esses valores, nossas ações seriam
moralmente boas.
Podemos tomar como exemplos de sistemas éticos de cunho essencialista, a ética
do platonismo, a ética do aristotelismo, a ética do tomismo, a ética do agostinismo e
a ética do cristianismo.
Já na modernidade, no bojo de toda uma revolução epistemológica, a Filosofia se vê
levada a buscar outros fundamentos para a eticidade de nosso comportamento. É
que à luz das novas conquistas do conhecimento produzido pela humanidade, de
modo particular graças à ciência, a idéia de uma essência como natureza
permanente do homem não mais se sustenta. Com efeito, de um lado, de um ponto
de vista epistemológico, não podemos mais garantir nosso acesso à essência das
coisas; delas, nosso equipamento de conhecer só nos revela a fenomenalidade.
Ainda que a essência existisse, nós não teríamos como conhecê-la, como chegar a
ela; de outro lado, de um ponto de vista da existência real dos homens, fomos
levados pela ciência a nos dar conta de sua condição de ser integralmente natural,
como sendo fundamentalmente um organismo vivo, regido pelas leis naturais, tanto
no plano individual como no plano social, nada
garantindo o vínculo dessas
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condições com uma essência permanente, imutável, imperecível. A realidade
imediata do homem era a de um ser natural, compartilhando das mesmas condições
de todos os outros seres naturais, não lhe cabendo uma exceção no quadro geral
dos seres do universo. Portanto, sua ação também terá a ver tão somente com essa
sua naturalidade, sendo bons os valores e as ações que subsidiarem, garantirem e
aprimorarem sua existência natural, assegurando-lhe maior funcionalidade.
Entramos assim na fase dos sistemas da ética naturalista: valores e fins da ação
humana se encontram expressos nas próprias leis naturais que regulam a vida. É
bom tudo aquilo que reforçar a vida natural. Aqui se situam os sistemas éticos do
naturalismo, do funcionalismo, do positivismo, do pragmatismo, do contratualismo,
etc. todos modelos cultivados no período moderno de nossa cultura.
Mas a reflexão filosófica contemporânea tende a ver as coisas de modo diferente
tanto da metafísica como da ciência moderna, tentando superar tanto a visão
essencialista quanto a visão naturalista da ética. Busca equacionar a questão da
ética sob o enfoque praxista. Isto decorre de um modo igualmente novo de pensar o
homem. Embora ele continue sendo entendido como ser natural e dotado de uma
identidade subjetiva que lhe permite projetar e antever suas ações, ele não é visto
mais nem com um ser totalmente determinado nem como um ser inteiramente livre.
Ele é simultaneamente determinado e livre. Sua ação é sempre um compromisso,
em equilíbrio instável entre as injunções impostas pela sua condição de ser natural e
a autonomia de sujeito capaz de intencionalizar suas ações, a partir da atividade de
sua consciência.
O que está em pauta, pois, na reflexão filosófica contemporânea, é a radical
historicidade humana. O homem visto como ser histórico perde tanto sua fusão com
a totalidade metafísica como com a natureza física do mundo. Desse ponto de vista,
ele só é especificamente humano quando, em que pesem suas amarras ao mundo
objetivo, é capaz de ir se construindo efetivamente mediante sua ação real. Ora, a
ética só tem a ver com sua dimensão especificamente humana e é nessa
especificidade que ela pode encontrar suas referências.
Assim, a ética contemporânea entende que o sujeito humano se encontra sob as
injunções de sua realidade natural e histórico-social, que até certo ponto o
conduzem, determinando seu comportamento, mas que é também constituida por
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ele, por meio de sua prática efetiva. Ele não é visto mais como um sujeito
substancial, soberano e absolutamente livre, mas nem como um sujeito empírico
puramente natural, escravo dominado pela natureza e pela sociedade. Ele existe
concretamente nos dois registros, na medida mesma em que é um sujeito históricosocial, um sujeito cultural. É uma entidade natural histórica, determinada pelas
condições objetivas de sua existência, ao mesmo tempo que atua sobre elas por
meio de sua praxis.
Ser eminentemente prático, o homem tem sua existência definida como um contínuo
devir histórico, ao longo do qual vai construindo seu modo de ser, mediante sua
prática. Esta prática o coloca em relação com a natureza, mediante as atividades do
trabalho; em relação com seus semelhantes, mediante os processos de
sociabilidade; em relação com sua própria subjetividade, mediante sua vivência da
cultura simbólica. Mas a sua não é uma prática mecânica, transitiva, como o é a
prática dos demais seres naturais; ela é uma prática intencionalizada, marcada que
é por uma sentido, vinculado a objetivos e fins.
Desse modo, as coisas e situações relacionam-se com nossos interesses e
necessidades, através da experiência dessa subjetividade valorativa, atendendo, de
uma maneira ou de outra, a uma sensibilidade que temos, tão arraigada quanto
aquela que nos permite representar as coisas e conhecê-las mediante os conceitos.
Dessa maneira, a ética só pode ser estabelecida através de um processo
permanente de decifração do sentido da existência humana, tal qual ela vai se
desdobrando no tecido social e no tempo histórico, não mais partindo de um quadro
atemporal de valores, abstratamente concebidos e idealizados. E esta investigação
é inteiramente compromissada com as mediações históricas da existência humana,
não tendo mais a ver apenas com ideais abstratos, mas também com referências
econômicas, políticas, sociais, culturais. Nenhuma ação que provoque a degradação
do homem em suas relações com a natureza, que reforce sua opressão pelas
relações sociais ou que consolide a alienação subjetiva, pode ser considerada
moralmente boa, válida e legítima.
O respeito e a sensibilidade com relação ao eminente valor representado pela
dignidade da pessoa humana não tornam nossa postura ética abstrata, idealizada e
alienada. Ao contrário, exigem o aguçamento de nossa sensibilidade às condições
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históricas e concretas de nossa existência, afinal, suas únicas mediações reais. E
este aguçamento exige, por sua vez, o pleno compromisso de aplicação do uso de
nossa única ferramenta para a orientação de nossas vidas: o conhecimento que
precisa tornar-se, então, competente, criativo e crítico. A mais radical exigência ética
que se faz manifesta, neste quadrante de nossa história, para todos os sujeitos
envolvidos na e pela educação, é, sem nenhuma dúvida, o compromisso de
aplicação do conhecimento na construção da cidadania.
Os valores éticos, a que somos sensíveis, como tudo o mais que é humano, se
expressam concretamente sob formas culturais. Nem poderia ser diferente, pois é
toda a existência humana que necessita de mediações para se efetivar. Mas essa
encarnação dos valores morais não elimina seu caráter normativo e prescritivo,
quase que ditando como nossas ações devem ser praticadas, dizendo-nos o que
deve ser feito, mesmo que decidamos não seguir essa orientação. Podemos não
seguir a prescrição de nossa consciência valorativa, no caso ética, mas assim
fazendo, experimentamos concretamente que nossa ação não é mecânica, que
temos uma flexibilidade no direcionamento de nosso agir, mas experimentamos ao
mesmo tempo que estamos agindo contra a nossa própria consciência, sentindo-nos
inteiramente responsáveis pela nossa decisão, podendo inclusive avaliar suas
eventuais consequências. A vivência valorativa abrange a nossa consciência
subjetiva com a mesma amplitude de nossa vivência conceitual.
Mas quais as relações entre ética e educação? Em primeiro lugar, a questão da
moralidade do agir é de caráter universal, ou seja, interessa diretamente a todos os
homens, quaisquer que sejam as circunstâncias concretas que constituem suas
mediações históricas e sociais. Podem variar os conteúdos dos sistemas éticos mas
todas as comunidades humanas vivenciam, sob formas particularizadas, a sua
sensibilidade ética. Assim, variam os sistemas morais, mas não variam a exigência
da moralidade e a sensibilidade dos homens aos valores morais.
Desse modo, na perspectiva do modo atual de se conceber a ética, ela se encontra
profundamente entrelaçada com a política, concebida esta como a área de
apreensão e aplicação dos valores que atravessam as relações sociais que
interligam os indivíduos entre si. Mas, a política, por sua vez, está intimamente
vinculada à ética, pois ela não pode ater-se exclusivamente a critérios técnico-
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funcionais, caso em que se transformaria numa nova forma de determinismo
extrínseco ao homem, à sua humanidade.
Isto quer dizer que os valores pessoais não são apenas valores individuais, eles são
simultaneamente valores sociais, pois a pessoa só é especificamente um ser
humano quando sua existência se realiza nos dois registros. Assim, a avaliação ética
de uma ação não se refere apenas a uma valoração individual do sujeito; é preciso
referi-la igualmente a um índice coletivo.
É pela mediação de sua consciência subjetiva que o homem pode intencionalizar
sua prática, pois essa consciência é capaz de elaborar sentidos e de sensibilizar-se
a valores. Assim, ao agir, o homem está sempre se referenciando a conceitos e
valores, de tal modo que todos os aspectos da realidade envolvidos com sua
experiência, todas as situações que vive e todas as relações que estabelece são
atravessadas por um coeficiente de atribuição de significados, por um sentido, por
uma intencionalidade, feita de uma referência simultaneamente conceitual e
valorativa.
É assim que, à luz das contribuições mais críticas da Filosofia da Educação da
atualidade, impõe-se atribuir à educação como sua tarefa essencial a construção da
cidadania. A educação já se deu outrora como objetivo a busca da perfeição
humana, idealizada como realização da essência do homem, de sua natureza; mais
recentemente, esta perfeição foi concebida como plenitude da vida orgânica, como
saúde física e mental. Hoje, no entanto, as finalidades perseguidas pela educação
dizem respeito à instauração e à consolidação da condição de cidadania, pensada
como qualidade específica da existência concreta dos homens, lembrando-se
sempre que essa é uma teleologia historicamente situada.
Com efeito, a educação só se compreende e se legitima enquanto for uma das
formas de mediação das mediações existenciais da vida humana, se for efetivo
investimento em busca das condições do trabalho, da sociabilidade e da cultura
simbólica. Portanto, só se legitima como mediação para a construção da cidadania.
Por isso, enquanto investe, do lado do sujeito pessoal, na construção dessa
condição de cidadania, do lado dos sujeitos sociais, estará investindo na construção
da democracia, que é a qualidade da sociedade que assegura a todos os seus
integrantes a efetivação coletiva dessas mediações.
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À educação cabe, como prática intencionalizada, investir nas forças emancipatórias
dessas mediações, num procedimento contínuo e simultâneo de denúncia,
desmascaramento e de superação de sua inércia de entropia, bem como de anúncio
e instauração de formas solidárias de ação histórica, buscando contribuir, com base
em sua própria especificidade, para a construção de uma humanidade renovada.
Ela deve ser assumida como prática simultaneamente técnica e política, atravessada
por uma intencionalidade teórica, fecundada pela significação simbólica, mediando a
integração dos sujeitos educandos nesse tríplice universo das mediações
existenciais: no universo do trabalho, da produção material, das relações
econômicas; no universo das mediações institucionais da vida social, lugar das
relações políticas, esfera do poder; no universo da cultura simbólica, lugar da
experiência da identidade subjetiva, esfera das relações intencionais. Em suma, a
educação só se legitima intencionalizando a prática histórica dos homens...
Conclusão
Mas se fica clara a dimensão ética no processo da formação humana, não é nada
evidente quando se indaga como despertar nos educandos, em processo de
formação, essa sensibilidade ética. Seria a ética ensinável?
Como se dá a
transposição didática no caso da ética? Teria ela um conteúdo disciplinar como
todas as demais disciplinas, que pudesse ser repassado aos aprendizes, num
contexto de ensino formal?
As coisas não parecem nada simples e fáceis de ser equacionadas. Os sujeitos
educandos já chegam à escola plenamente envolvidos por uma moral, ou seja,
acolhem e aplicam em seu agir aqueles valores consagrados pelo seu grupo social,
da família aos grupos mais amplos. Essa moral se propaga espontaneamente
mediante processos interativos do convívio humano. Assim, os educandos trazem
incorporados valores morais advindos das religiões, das ideologias,
do senso
comum, que impregnam seu meio sócio-cultural, numa palavra, valores gestados e
vigentes no seio de sua cultura concreta. Mas o problema é que estes valores
morais nem sempre são éticos, ou seja, confundem-se com interesses particulares,
do próprio indivíduo ou de seu(s) grupo(s), não correspondendo aos interesses
comuns, levando por isso, muitas vezes, ao desrespeito pela dignidade humana. É
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por isso mesmo que a educação tem o compromisso de elevar o educando de sua
condição de indivíduo condicionado à condição de pessoa autônoma, precisa levá-lo
a reavaliar os valores de sua moral, para que possa assumir valores éticos em seu
agir.
Diante da dificuldade de realizar esse processa via ensino disciplinar, muitos
gestores do sistema educacional, assim como outros tantos teóricos da educação,
têm defendido a proposta de uma educação transversal dos valores, particularmente
dos valores éticos. Como se trata mais de uma postura, de uma atitude do que de
um conteúdo, tendo mais a ver com o sentir do que com o saber, a intervenção
pedagógica da ética deveria distribuir-se capilarmente por todas as disciplinas.
A prática educativa, no concernente a sua responsabilidade na formação ética dos
estudantes, em qualquer nível e modalidade de ensino, é realmente muito
complicada. De um lado, é mesmo verdade que não basta conhecer os valores para
aplicá-los, agindo bem, de forma ética, em que pese a clássica argumentação
socrática. De outro lado, a educação não deve impor, via mecanismos opressores,
os valores consagrados pelas moralidade históricas, pois assim fazendo, não cria
condições para que os estudantes construam, vivenciem, sua autonomia pessoal.
Toda imposição ideológica e doutrinária aliena, submete, oprime. A escola não pode
agir como uma igreja ou como um partido. Por isso mesmo, em que pesem todas as
limitações,
a
mediação
para
a
formação
ética
dos
aprendizes,
passa
necessariamente pelo esclarecimento, ou seja, embora não baste saber, é preciso
compreender. Compreender aqui significa vivenciar um saber que não apenas toca o
intelecto mas
também move a vontade, desvelando um sentido valorativo,
despertando a sensibilidade ao nexo desse valor ao valor da dignidade humana. Daí
a função pedagógica da filosofia, de modo geral, e da ética, como disciplina
filosófica, de modo particular. Por isso, a exigência da transversalidade da postura
ética (que atravessa todas as dimensões da nossa existência) não pode ser
entendida ou alcançada osmoticamente pela influência difusa das diferentes
disciplinas. Embora se espere dos professores de todas as disciplinas de um
currículo que sejam testemunhas vivas da dimensão ética, não cabe às suas
disciplinas a responsabilidade pelo esclarecimento sistemático da significação dos
valores éticos.
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A identidade específica do educador e do educando, a ser construida para o
enfrentamento dos desafios históricos lançados na atualidade, se apóia no tripé
formado pelo domínio do saber teórico, pela apropriação da habilitação técnica e
pela sensibilidade ao caráter político das relações sociais. Mas essas três
dimensões só se consolidam se soldadas, se articuladas pela dimensão ética. O
envolvimento pessoal, a sensibilidade ética do educador estão radicalmente
vinculados a um compromisso com o destino dos homens. É à humanidade que
cada um tem que prestar contas. Por isso mesmo, é que o maior compromisso ético
é ter compromisso com as responsabilidades técnicas e com o engajamento político.
Trata-se, pois, para todos os homens de vincular sua responsabilidade ética à
responsabilidade referencial de construção de uma sociedade mais justa, mais
equitativa, vale dizer, uma sociedade democrática, constituída de cidadãos
participantes em condições que garantam a todos os bens naturais, os bens sociais
e os bens simbólicos, disponíveis para a sociedade concreta em que vivem, e a que
todos têm direito, em decorrência da dignidade humana de cada um.
Leituras complementares
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A Filosofia e a ética na educação.