10 Entrevista 1 - 14 Julho 2009 Milton Hatoum Escrever é viver A Cidade Ilhada, um primeiro livro de contos, e a novela Órfãos do Eldorado, recentemente publicados no nosso país, sublinham a singularidade do universo ficcional de Milton Hatoum, que em 20 anos de escrita se tornou um dos nomes de referência da actual literatura brasileira É um escritor da primeira linha da ficção brasileira contemporânea, uma voz poderosa e singular, que se faz ouvir desde a Amazónia, de uma Manaus natal, mas ganha mundo, línguas, lugares e realidades diversas, que passam pelas origens familiares libanesas, mas também por outras geografias, numa espécie de diáspora narrativa ou de literatura de mestiçagem . Há uma década que Milton Hatoum, 57 anos, vive em São Paulo, mas como confessa, todos os dias, às sete da manhã, ‘viaja’ para Manaus, de onde saiu na juventude, e outros lugares imaginários. Transporta-o a escrita, a que se dedica a tempo inteiro, embora reconheça ser «uma aventura temerosa», no Brasil. Mas decidiu correr esse risco, deixando a carreira universitária, em 1998, ainda que continue a dar conferências em escolas e universidades e assine uma crónica no suplemento cultural do jornal O Estado de S. Paulo. Não se terá dado mal com a exclusividade literária. Está traduzido em vários países e por vezes, assevera, até o assusta a quantidade de ensaios e de estudos que estão a ser feitos sobre a sua obra. Hatoum estreou-se em 1989, justamente com uma ‘viagem’ ao Líbano, com Relato de um Certo Oriente e publicou já três romances – Dois irmãos e Cinzas do Norte distinguido com os prémios PT e Jabuti, além do inicial – e uma novela, Órfãos do Eldorado, recentemente editado em Portugal pela Teorema. Mas apesar de terem sido os contos de Machado de Assis que lhe deram a vontade imperiosa de escrever, só agora arrisca essas narrativas breves. A Cidade Ilhada, que acaba de sair entre nós, numa edição Cotovia, reúne um conjunto de 14 contos, onde é possível reencontrar o irresistível fio da prosa do escritor, sempre entre a memória e a imaginação, o mito e a realidade, como diz ao JL, nesta entrevista feita por mail. Jornal de Letras: Apesar de alguns dos contos de A Cidade Ilhada aparecerem com um narrador, por vezes «travestido», narrados no feminino, estas histórias têm uma forte vertente biográfica? Milton Hatoum: A experiência do narrador não coincide com a do autor. Ou nem sempre coincide. Mas, como dizia Conrad, a inspiração não vem do céu, e sim da terra e de tudo o que é demasiado humano. Um dos enigmas da literatura é a passagem da experiência para a linguagem. Experiência significa a nossa vida e a dos outros, e também o que sonhamos e lemos. O narrador do meu primeiro romance (Relato de um Certo Oriente) é uma mulher. Penei um bocado para mudar de sexo, mas a verdade é que, aos poucos, essa narradora começou a fazer parte de mim. A mão que escrevia era a minha, mas era movida pela narradora. No livro de contos há dois textos que foram escritos a partir da minha experiência: Encontros na península e Manaus, Bombaim, Palo Alto. Nos outros doze, a imaginação fez a sua parte. Como é o trabalho do escritor sobre a memória? Memória e imaginação são inseparáveis. Para que a memória seja movida pela imaginação, é necessário que haja um distanciamento temporal. Jorge Luis Borges dizia que a pintura encontra-se no espaço, e a literatura, no tempo. Eu só começo a escrever quando o passado torna-se nebuloso, incerto ou impreciso. Porque são as imprecisões e o esquecimento que dão espessura à memória e movem o trabalho da escrita. Manaus é uma das cidades do seu universo, mas também há, por exemplo, um conto em Barcelona, onde trabalhou como professor de português. São lugares importantes na sua geografia literária? Que outros lhes acrescentaria? Saí de Manaus aos 15 anos de idade e fui morar sozinho em Brasília. Depois vivi toda a década de 70 em São Paulo. Morei quatro anos na Europa, em Madrid, Barcelona e Paris; na década de 90, passei várias temporadas nos Estados Unidos, sobretudo na Califórnia, em Berkeley e Stanford (Palo Alto), onde fui professor e escritor visitante. Alguns desses lugares e cidades fazem parte da minha vida e foram reinventados nas ficções que escrevi. Isso acontece em vários contos e também no Relato e no Cinzas do Norte. No primeiro romance a narradora escreve uma carta para o irmão que mora em Barcelona. No segundo, o personagem Mundo erra por Berlim e Londres, antes de morrer no Rio de Janeiro. São cidades que conheço, e participaram dos meus livros. Mas é possível escrever também sobre lugares desconhecidos, lugares apenas imaginados ou inventados, como acontece na literatura de H.G. Wells e de outros narradores. São infindáveis as histórias que pode contar em torno das personagens e memórias de Manaus? Como chega a essas histórias? A memória é um poço sem fundo. Cada narrativa começa com uma questão, uma inquietação ou imagem. Por exemplo, uma das fontes do romance Cinzas do Norte é uma imagem. Isso aconteceu em Manaus, em 1967, quando nosso vizinho português morreu. Era o pai de um amigo meu e pertencia a uma das famílias mais ricas da Amazónia. Quando esse homem morreu, a esposa e o filho foram morar no Rio. Um mês depois, minha mãe quis me mostrar uma «cena triste», como ela disse. Vimos o cão do finado estendido na soleira de uma porta fechada. A porta da sala. O animal, morto, era uma ossada com pelanca. Não sei se foi esquecido ou abandonado pela viúva. Esta cena me impressionou bastante. E mais de 30 anos depois ela reapareceu na minha memória. A primeira cena do Cinzas é o cão (Fogo) e seu dono. Não quis que Fogo fosse um personagem secundário do romance. Às vezes uma narrativa surge de uma imagem ou de um sonho, ou de uma intuição que sugere muitas coisas e aponta para um mundo em expansão, uma teia de eventos e conflitos que configuram um microcosmo ficcional. Curiosamente, são histórias que não ficaram presas a um tempo antigo. Alguns dos contos são mesmo próximos. Interessa-lhe fazer correr a sua escrita entre esses «dois tempos»? Sim, mas sempre com algum recuo no tempo, como se o presente fosse deslocado. Não por acaso o título de um dos contos é Dois tempos. Mas há também um arco temporal no livro. O primeiro FOTO DE LUCILA WROBLEWSKI ■ MARIA LEONOR NUNES “ Um dos enigmas da literatura é a passagem da experiência para a linguagem. Experiência significa a nossa vida e a dos outros, e também o que sonhamos e lemos Um escritor não escreve para alcançar a glória, mas sim para enfrentar dificuldades e saber que vale a pena a luta com as palavras A coragem de silenciar é infinitamente maior que a coragem de publicar asneiras A humanidade do futuro será mestiça ” conto (Varandas da Eva) remete-se à juventude do narrador, algo em torno dos anos 60. Já o relato final (Dançarinos na Última Noite) está ambientado na Manaus contemporânea, a cidade industrializada e caótica, cuja população é de dois milhões de habitantes. Mandamento da brevidade Um dos traços mais singulares das suas histórias, da sua literatura, é o cruzamento de várias referências culturais, a alusão a diferentes línguas. De alguma maneira esse é o caldo da sua escrita? Tudo isso faz parte da minha vida. Na minha infância, os adultos conversavam em árabe e português. Minha avó Emily, uma libanesa cristã, gostava de rezar e cantar em francês. Minha mãe era católica praticante. Aos 9 anos de idade fiz minha primeira comunhão; aos 12 anos, vi meu pai rezar em seu quarto, com o corpo voltado para Meca. Soube então que ele era muçulmano. Aos Domingos ele acompanhava minha mãe até à igreja, e fez isso durante meio século. A comida na nossa casa era uma culinária híbrida: pratos da Amazónia, iguarias libanesas e portuguesas. Meu avô me contava histórias que eram versões adaptadas do livro das Mil e uma Noites. A casa da infância é o lugar dos primeiros traumas e alegrias conscientes, da relação visceral com pais e familiares, das primeiras amizades. É quando você se confronta com o mundo e com a perplexidade de estar no mundo. A casa da infância pode ser nosso paraíso possível, mas a literatura transforma essa casa num paraíso perdido, talvez para sempre. Em que medida essa «mestiçagem» é uma tendência actual da literatura brasileira? Não sei dizer se é uma tendência. A mestiçagem encontra-se na base da formação da sociedade brasileira. A humanidade do futuro será mestiça, queiram ou não os puristas e essencialistas de todas as latitudes. Na literatura brasileira há muitos personagens mestiços e estrangeiros. Uma das frases do Grande Sertão: Veredas é: «Sempre gostei muito de estrangeiros». Neste grande romance de Guimarães Rosa há personagens alemães e árabes no sertão de Minas Gerais. É importante assinalar que há séculos a Europa é mestiça. Penso que os europeus se esqueceram disso. Se pensarmos nas sociedades da Península Ibérica, vamos encontrar uma imensa mistura de povos. E a literatura é o discurso sobre o Outro, é uma construção da alteridade a partir de uma experiência particular. De alguma maneira, todos nós somos mestiços. O que decidiu a escolha dos contos para esta antologia?