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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
LICENCIATURA PLENA EM LETRAS
HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
LIDIANE ARAÚJO DA SILVA
A memória em “Menino de Engenho” e “Fogo Morto”, de José Lins do
Rego
JOÃO PESSOA
MARÇO 2014
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LIDIANE ARAÚJO DA SILVA
A memória em “Menino de Engenho” e “Fogo Morto”, de José Lins do
Rego
Trabalho apresentado ao Curso de
Licenciatura em Letras da Universidade
Federal da Paraíba, como requisito para
obtenção do grau de Licenciado em Letras,
habilitação em Língua Portuguesa.
Prof. Dr. Rinaldo Nunes Fernandes
Orientador
JOÃO PESSOA
MARÇO 2014
3
S586m
Silva, Lidiane Araújo da.
A memória em Menino de Engenho e Fogo Morto, de
José Lins do Rego / Lidiane Araújo da Silva.-- João
Pessoa, 2014.
31f.
Orientador: Rinaldo Nunes Fernandes
Trabalho de Conclusão de Curso - TCC (Graduação)
– UFPB/CCHL
1. Rego, José Lins do, 1901-1957 - crítica e
interpretação. 2. Literatura brasileira - crítica e
interpretação. 3. Memória.
UFPB/BC
CDU: 869.0(81)(043.2)
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LIDIANE ARAÚJO DA SILVA
A memória em “Menino de Engenho” e “Fogo morto”, de José Lins do
Rego
Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal da
Paraíba como requisito para a obtenção do grau de Licenciado em Letras, habilitação
em Língua Portuguesa.
Data da aprovação: ____∕____∕__Banca Examinadora:
______________________________________
Prof. Dr. Rinaldo Nunes Fernandes, DLCV, UFPB
Orientador
____________________________________
Prof. Dr. Amador Ribeiro Neto, DLCV, UFPB
Examinador
_____________________________________
Prof. Dr. Expedito Ferraz Jr, DLCV, UFPB
Examinador
5
Para minha família
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AGRADECIMENTOS
Antes de tudo, agradeço a Deus. À minha mãe, pelo incentivo desde o início do
curso, sempre tão dedicada, compreensiva e amorosa. Ao meu pai, que sempre me
ajudou nessa caminhada. Agradeço ao meu marido, Kayan, por todo o companheirismo,
por todo amor e carinho dedicado a mim, pela paciência, com todos os meus estresses.
À minha irmã Larissa, que atendia a todos os meus gritos: Larissa fala baixo, baixa o
volume da TV. Todas as minhas amigas do curso (PAROXÍTONAS), que tornavam
minhas manhãs mais animadas. Às Mariana‟s, que transformaram os estágios
supervisionados em momentos únicos, que serão pra sempre guardados em minha
memória. E finalmente, agradeço ao professor Rinaldo Nunes Fernandes, pela
orientação e paciência ao me ajudar na elaboração desse presente trabalho.
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“Quero sempre recordar, estar sempre me lembrando. É outra
palavra que gosto de ver pegada à minha obra. Dizem que sou um
homem que me sirvo da memória. De fato, a saudade me tem dado o
que há de belo nos meus romances.” (REGO)
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RESUMO
Este trabalho objetiva analisar as obras “Menino de Engenho”, escrita no ano de
1932, e “Fogo Morto”, de 1943, ambas de José Lins do Rego, que é considerado um
autor que utiliza de sua memória para compor suas obras. Então, a categoria que se
pretende analisar nos romances citados é a memória. Para isso, tomamos como base
teórica conceitos de memória.
Palavras-chaves: José Lins do Rego. Menino de Engenho. Fogo Morto. Memória
ABSTRACT
This paper aims to analyze the works: "Menino de Engenho" written in 1932 and
"FogoMorto" in 1943, both the author José Lins do Rego which is considered an author
who uses his memory to compose his works, and thus a memoirist. Then, the category
to be analyzed in the novels cited is memory. For this, we take as theoretical base
concepts of memory.
Keywords: José Lins do Rego.Menino de Engenho. Fogo Morto. Memory
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SUMÁRIO
1- INTRODUÇÃO……………………………………………………………………...9
2-SOBRE JOSÉ LINS DO REGO...............................................................................10
3-CLASSIFICAÇÕES DA OBRA DE JOSÉ LINS DO REGO PELA CRÍTICA..12
3.1- SOBRE MENINO DE ENGENHO.........................................................................14
3.2- SOBRE FOGO MORTO..........................................................................................15
3.3- MENINO DE ENGENHO X FOGO MORTO........................................................16
4- MEMÓRIA................................................................................................................17
4.1- ESTUDO DA MEMÓRIA NAS OBRAS MENINO DE ENGENHO E FOGO
MORTO...........................................................................................................................22
CONCLUSÃO................................................................................................................30
REFERÊNCIAS............................................................................................................31
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1-INTRODUÇÃO
O presente trabalho monográfico consiste em apresentar José Lins do Rego, que
é um dos principais romancistas brasileiros. Ele escreveu doze romances e foi eleito
membro da Academia Brasileira de Letras em 1956. O romancista, nascido no mundo
rural do nordeste brasileiro, tornou-se um marco histórico na literatura regionalista por
representar o declínio do Nordeste canavieiro nas suas primeiras obras. O autor utiliza
de suas próprias experiências para escrever alguns de seus romances. Além da
apresentação do autor, o início do trabalho abordará também algumas das características
e aspectos da obra do romancista paraibano, trazendo ainda considerações da crítica.
Para este estudo, são usados ensaios de vários autores. São eles: José Aderaldo
Castello, Neroaldo Pontes de Azevedo, Antonio Candido, Eduardo F. Coutinho, Sônia
Lúcia Ramalho de Farias Bronzeado e Sérgio Milliet, todos integrantes da “Coleção
Fortuna Crítica 7” (1991). São apresentadas as duas mais importantes obras de José
Lins do Rego: Menino de Engenho, que foi o seu primeiro romance, escrito em 1932, e
Fogo Morto, síntese de um ciclo, denominado de Ciclo da Cana de Açúcar, que foi
publicado em 1943.
Para o presente estudo, o tema “memória” foi utilizado como base, já que tal
tema é muito presente nas obras de José Lins Rego – que, assim, pode ser considerado
um autor memorialista. O estudo está dividido em duas partes. A primeira refere-se às
definições e aos conceitos de Memória, com base teórica de autores que detém
conhecimento do assunto, entre eles: Le Goff (1990), com seu livro História e
Memória; Bergson (1999), com Matéria e Memória; Walter Benjamim (1994), com O
Narrador; e Ecléa Bosi (1994), com o livro Memória e Sociedade. A segunda parte
consiste na aplicação dessas teorias nos dois romances escolhidos.
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2-SOBRE JOSÉ LINS DO REGO
José Lins do Rego nasceu no dia 3 de junho de 1901, na cidade de Pilar, na
Paraíba. Filho de uma família patriarcal, seus pais foram João do Rego Cavalcanti
Sobrinho e Amélia Lins Cavalcanti de Albuquerque. Com a morte da mãe, foi morar
com o avô materno no Engenho Corredor. Em 1923 conclui o curso de Direito, um ano
depois casa-se com Filomena Massa Lins do Rego, com quem teve três filhas. Em 1932
publicou seu primeiro livro, Menino de Engenho. O livro recebeu críticas favoráveis e
tornou-se grande sucesso, obtendo o Prêmio da Fundação Graça Aranha. José Lins
escreveu doze romances: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934),
O moleque Ricardo (1935), Usina (1936), Pureza (1937), Pedra Bonita (1938), Riacho
doce (1939), Água mãe (1941), Fogo Morto (1943), Eurídice (1947) e Cangaceiros
(1953).
O romancista passou toda a sua infância em meio à realidade dos engenhos de
cana de açúcar. Este contato que teve com a realidade do Nordeste fez com que relatasse
suas próprias experiências de forma espontânea e nostálgica na maioria de seus
romances. Em entrevista a Gusmão, diz José Lins do Rego:
O engenho Corredor foi a minha primeira fonte literária. Lembrandome dele fui escritor, contando a sua história escrevi os meus
romances, fiz viver criaturas. Foi a terra que me deu força para
trabalhar em 10 romances o que nunca imaginei ser possível. Dizem
que sou um instintivo, um narrador como são todos os cantadores
nordestinos. Agrada-me o instintivo, e gosto de ouvir esta palavra
pregada aos meus livros. Vim da terra, sou da terra e quero continuar
da terra. O velho engenho Corredor continua a me alimentar, a me dar
o que minha imaginação carece. O massapé paraibano tem muito que
dar. A cana que se acama na várzea e se repete em socas e ressocas. O
instintivo não quer outra vida (GUSMÃO, 1941)
O engenho e o Nordeste açucareiro são os espaços utilizados por José Lins do
Rego como matéria-prima para sua práxis literária, usando a mesma temática, com a
mesma “força expressiva”, como afirma Carpeaux (1943). No Ciclo da Cana de Açúcar,
o principal assunto é o processo de mudanças sociais ocorridas no período da Primeira
República e que leva, segundo o romancista, a uma crise geral da sociedade açucareira
nordestina.
Em suas obras, José Lins do Rego conta seu passado, recorda toda sua infância,
traz à tona toda a realidade da vida nos engenhos, utilizando da arte/realidade para
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compor suas histórias. A memória é usada pelo autor de maneira saudosista, já que,
escrevendo seus romances, relembra dos momentos vividos em sua própria vida.
Assinala Castello (1961, p. 15):
Ora, é sabido que todo romancista é um memorialista, no sentido em
que o romance é a libertação de um estado interior profundo, soma de
experiências observadas e vividas. E sendo esse também o caso do
romancista José Lins do Rego, é importante, para melhores
esclarecimentos de sua obra, que se considere, acima de tudo, o seu
processo de reconstituição vivencial das experiências pessoais da
infância e da adolescência, cujo esquema, sem maiores
complexidades, é o próprio roteiro da evocação espontânea, muito
mais acumulativa do que surpreendentemente associativa e
intensamente emotiva.
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3- CLASSIFICAÇÕES DA OBRA DE JOSÉ LINS DO REGO PELA CRÍTICA
É característica principal dos romances de 1930 a tentativa de análise e crítica da
realidade brasileira. Os romances dessa época eram considerados um veículo de
denúncia, uma espécie de literatura de protesto, mas José Lins do Rego escapa do
tradicional em seus romances nesse período, pois fez surgir um novo tipo de
regionalismo. Não era mais um romance preocupado pura e simplesmente com a
natureza, com a paisagem. Esse novo regionalismo não colocaria o homem em segundo
plano como era feito, como assinalou Castello (1961, p. 18):
Regionalismo para ele não é a simples fotografia de traços típicos ou
característicos de uma região, é muito mais. É o depoimento sentido,
profundamente humano e lírico da própria natureza e das condições
humanas sob contingências telúricas e sob efeitos de transformações
econômicas e sociais. É alteração de valores, ao mesmo tempo que a
fixação de tradições, assim como também a compreensão de aspectos
esclarecedores da realidade brasileira, convergindo para o interesse da
posição humana.Visa, em última análise, muito mais ao universal do
que o limitadamente típico ou exótico, procurando conduzir o
interesse do leitor para o drama humano que encerram esses
depoimentos sobre a vida do Nordeste, que são os próprios romances
cíclicos de José Lins do Rêgo.
Apesar de serem construídos sob perspectivas distintas, tanto Menino de
Engenho quanto Fogo Morto possuem traços de um regionalismo universal. Menino de
Engenho é uma autobiografia das cenas da infância de José Lins do Rego, que ainda
estavam marcadas em sua mente. Segundo depoimento do próprio autor, a sua intenção
ao elaborar a obra era escrever a biografia do avô, o coronel José Paulino, a quem
considerava uma figura das mais representativas da realidade patriarcal nordestina, além
de descrever os problemas de sua região e de seu povo. Em Fogo Morto, o autor usa a
figura de três personagens de três tipos sociais distintos para contar a decadência do
patriarcado rural, fazendo com que haja vários pontos de vista.
Todavia, se já em seu primeiro romance José Lins efetua o
deslocamento mencionado ao servir-se de uma técnica narrativa de
cunho evocativo ou memorialista, é curiosamente ao libertar-se desta
mesma em Fogo Morto que ele irá consolidar tal deslocamento,
explorando suas diversas possibilidades e construindo uma narrativa
multifacetada, baseada na pluralidade de visões, em que o homem
assoma a um primeiro plano com toda sua complexidade e
contradições (COUTINHO, 1968, p. 9).
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Os cincos primeiros livros que compõem o Ciclo da Cana de Açúcar permitem
esboçar uma proximidade com a realidade dos engenhos vivenciada pelo autor, que
nasceu nesse mundo rural nordestino. José Lins do Rego transforma suas experiências
vividas na infância em ficção, de maneira reflexiva, descrevendo sua terra, a situação
histórica social, o mandonismo dos coronéis, os conflitos entre patriarcas rurais e as
condições de classes da região Nordeste.
As obras de José Lins do Rego são divididas em ciclos pelos críticos, embora
não sejam todas corretas, pois possuem algumas divergências. Em nota ao seu quinto
romance, Usina, o próprio escritor atribuiu a denominação de Ciclo da Cana de Açúcar
aos cinco romances até então publicados, que eram: Menino de Engenho, Doidinho,
Bangüê, O Moleque Ricardo e Usina. Logo depois viria uma problemática nessa
classificação no momento em que ele escreve Fogo Morto, já que este poderia ser
incluído neste ciclo.
Peregrino Júnior (1968) divide em três ciclos: O primeiro (Ciclo da Cana de
Açúcar) caberia Menino de Engenho, Doidinho, Bangüê, O Moleque Ricardo, Usina e
Fogo Morto; o segundo (Ciclo do Lirismo Erótico) caberia Pureza, Água-Mãe, Riacho
Doce e Eurídice; o terceiro (Ciclo dos Beatos e Cangaceiros) contém Pedra Bonita e
Cangaceiros. Contudo, ele mesmo reconhece que ela é “artificial” e “arbitrária”, pois
acha que os romances do Ciclo da Cana de Açúcar também caberiam segundo ciclo.
José Aderaldo Castello (1961) divide as obras de José Lins do Rego em cinco
ciclos. Assim:
1) Ciclo da Cana de Açúcar: Menino de Engenho, Doidinho, Bangüê, Usina e
FogoMorto;
2) Ciclo do Cangaço, Misticismo e Seca: Pedra Bonita e Cangaceiros;
3) Obras independentes dos ciclos: O Moleque Ricardo e Pureza;
4) Tentativa de “fuga” à paisagem nordestina: Riacho Doce, Água-Mãe e
Eurídice;
5) Retorno à paisagem nordestina: Meus Verdes Anos.
Constata-se que fica difícil tentar classificar as obras de José Lins do Rego,
como opina Milliet (1956, p. 408): “ainda é cedo, parece-me, para classificar
definitivamente a obra de José Lins do Rego”.
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3.1 SOBRE MENINO DE ENGENHO
Menino de Engenho foi publicado em 1932 e foi o livro de estreia de José Lins
do Rego, que, por ser do Nordeste, soube fazer do regionalismo nordestino a sua
característica mais marcante. Esse livro é narrado em primeira pessoa, em que o
narrador é o protagonista (Carlinhos), o qual conta toda sua infância no engenho, dentro
de um contexto em que os engenhos de cana de açúcar estavam em decadência, dando
lugar às usinas.
Assinala Azevedo (1987):
O livro vai constituir-se, assim, numa obra feita de memória e de
observação, sobretudo da primeira em que o narrador- protagonista
adulto procura recriar a sua infância, marcada pelo temor da morte,
pela nostalgia do amor materno, pela asma, pela angústia sexual, pela
experiência, enfim, de uma menino de engenho em seus “verdes
anos”.
A obra Menino de Engenho é uma narrativa de 40 capítulos, em que aos poucos
o leitor vai conhecendo toda trajetória da vida do narrador/protagonista Carlos. No
início da narrativa, Carlinhos possui quatro anos de idade e no término estará com doze.
Carlinhos começa contando sobre a morte da mãe, do temperamento do pai e de como
ficou órfão, motivo pelo qual foi morar com seu avô no engenho, mundo totalmente
novo para ele. No engenho, conhece seus primos, suas tias, as primeiras letras, o amor e
a sexualidade até ir estudar em um internato, aos doze anos, cena do último capítulo do
livro, deixando de ser “menino de engenho, menino perdido”.
José Lins do Rego foi além de suas expectativas neste romance, pois o que era
de início uma biografia de seu avô, tornou-se uma representação de uma sociedade
rural, latifundiária e escravocrata. O grande êxito de Menino de Engenho está em sua
capacidade de ser verdadeira, uma vez que a obra nasce diretamente da vida, onde o
autor conta o que viu e viveu no sertão.
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3.2 SOBRE FOGO MORTO
Fogo Morto (FM) foi publicado no ano de 1943. Com esta obra, José Lins do
Rego encerra um ciclo denominado de Ciclo da Cana de Açúcar. Para a crítica, FM é
uma representação da decadência da economia açucareira e considerada uma obra-prima
do autor. Milliet (1957) afirma:
...é permitido assinalar a sua enorme importância [de Fogo Morto] na
ficção nacional bem como a sua representatividade indiscutível. Não
escapou, com efeito, a nenhum de seus críticos, que através de suas
trágicas histórias ele contou a decadência do patriarcalismo nordestino
e fixou o drama da substituição da economia dos engenhos pela
economia das usinas, a passagem, em suma, do feudalismo
aristocrático ao capitalismo anônimo.
FM é narrado em terceira pessoa e é dividido em três partes, que trazem em seus
títulos o nome de três personagens principais. A primeira parte é dedicada ao mestre
José Amaro, um seleiro, trabalhador de saúde frágil que vive nas terras de outro
personagem importante, Seu Lula, um coronel decadente e dono do engenho, que se
torna protagonista na segunda parte do livro. O capitão Vitorino Carneiro da Cunha está
no foco da história na terceira parte da história, e é considerado um dos personagens
mais bem construídos, tratando-se de um personagem quixotesco, numa referência a
Dom Quixote. Segundo Coutinho (1968, p. 15):
A fala desses três protagonistas, bem como as dos demais personagens
do romance, oferece visões diferentes da problemática básica da
narrativa, e a ideologia que se desprende dessas visões forma um
quadro complexo.
Em FM, José Lins do Rego possibilita ao leitor uma narrativa múltipla, com
várias vozes e um leque de visões e opiniões, em que cada personagem fala do mesmo
assunto de acordo com sua experiência vivida, expressando individualmente suas
reações perante o que está acontecendo. Conforme explica Coutinho (1968, p. 3), “O
autor projeta em Fogo Morto a imagem de uma vivência coletiva através do destino
individual, e é isto que confere à obra uma dimensão que a situa além do puro
documento”.
Constata-se que nessa obra existe uma representação humanizada, em que o
homem e não a natureza está no foco principal. Coutinho (1968, p. 9) afirma ainda que
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“aqui o homem não é mais a mera extensão de uma paisagem específica, mas a espinha
dorsal do relato [...]”.
3.3 MENINO DE ENGENHO x FOGO MORTO
Menino de Engenho e Fogo Morto são, respectivamente, o primeiro e o último
romance escrito por José Lins do Rego no chamado Ciclo da Cana de Açúcar. Apesar de
o autor escrever ambas as obras numa mesma ambientação (Nordeste brasileiro,
engenho), sob uma mesma temática, podemos perceber perspectivas diferentes.
Como Menino de Engenho, conforme foi dito anteriormente, é narrado em
primeira pessoa e Fogo Morto é narrado em terceira, temos, então, na primeira obra
uma narrativa com apenas um ponto de vista, que é
o de Carlinhos
(narrador/protagonista), em oposição à última obra, que fornece ao leitor várias
perspectivas e opiniões diferentes dos três protagonistas e os outros personagens
existentes na obra sobre o mesmo assunto. Acerca dessa diferença, Gomes (apud
BRONZEADO, (1986) explica:
Nos romances iniciais do Ciclo da Cana de açúcar, a narração na
primeira pessoa é facilmente identificável com a voz do autor. Em
FM, por sua vez, há um narrador que não se nomeia. Muitas vezes este
parece apenas encaminhar o que se passa no íntimo dos personagens,
como que desprovido de um pensamento próprio. FM é um texto que
mais fala de si próprio, nem dos propósitos que determinam a sua
realização. A cena textual apresenta personagens, ambientes,
situações: tudo isso se mostra, é entregue ao leitor, sem que o processo
que gerou sua criação seja mencionado.
De acordo com a crítica, os romances narrados em primeira pessoa têm um valor
memorialístico, em que as experiências de vida do autor são expostas, ao contrário de
FM, que não existe autor nomeado e que o homem é visto como o centro da narrativa.
De acordo com Cândido (1945):
Enquanto certos escritores se tornam grandes engolfando na
subjetividade, José Lins do Rego se realizou integralmente à medida
que dela se libertou, destacando uma visão objetiva do mundo dentre
as penumbras do tateio autobiográfico. Por isso, seria o caso de
arriscar paradoxo e dizer que apenas aparentemente a memória
constitui o elemento fundamental na sua arte, pois ele cresceu à
medida em que foi se libertando dela.
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4-MEMÓRIA
A memória faz parte de cada indivíduo, desde o nascimento do ser, permitindo
uma construção de identidade e da criação de sentido à vida, já que é através dela que
possuímos uma história de vida, uma história que nos pertence, algo único e individual.
A memória coletiva surge de experiências e de histórias individuais, fornecendo a um
grupo uma função social. Segundo Le Goff (1990, p. 476): “a memória é um elemento
essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma
das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na
angústia”.
A memória está presente em todos os momentos da vida. A partir dela, temos
lembranças de acontecimentos e experiências, ou seja, ao começar por ela sabemos
quem somos e o que fomos, podendo tirar proveito ou não de fatos que já ocorreram. Le
Goff (1990, p. 423) afirma que “memória, como propriedade de conservar certas
informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças
às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele
representa como passadas”.
Ser autor da sua própria história significa dizer que as experiências passadas
podem ser narradas e registradas; nesse sentido, nada melhor do que entrar em contato
com sua própria trajetória. Segundo Le Goff (1990), “a memória, onde cresce a história,
que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.
Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para
a servidão dos homens” (p. 477).
A construção de uma cronologia estimula as pessoas a organizar sua própria
história, pois permite que cada um visualize a sua trajetória como um todo, ao mesmo
tempo em que se vê diante do desafio de fazer escolhas e selecionar o que quer contar e
registrar. Le Goff (1990, p. 424) diz ainda que “o processo da memória no homem faz
intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios”.
Para Bergson (1999), em seu livro Matéria e Memória, existem dois tipos de
memória: a memória que repete (memória dos mecanismos motores) e a memória
espontânea. A primeira é a lembrança aprendida, trata-se de um hábito, algo que é
aprendido através de repetições. Sobre este tipo de memória, o autor exemplifica:
quando alguém quer aprender uma lição de cor, consegue memorizar as imagens que as
precede a partir de repetições. Bosi (1994, p. 49) complementa afirmando que este tipo
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de memória “faz parte de todo nosso adestramento cultural”, pois tudo que um
indivíduo se esforça para aprender faz parte das “exigências da socialização” e servirão
para a “vida cotidiana”. A fixação de algo só é conseguida a partir de esforço e atenção.
A segunda é chamada por Bergson (1999) de lembrança pura, que é a que registra e
armazena o passado, e ela é considerada como a memória efetivamente.
Acerca das duas memórias, Bergson (1999, p. 97-98) define:
A primeira, conquistada pelo esforço, permanece sob a dependência
de nossa vontade; a segunda, completamente espontânea, é tanto
volúvel em reproduzir quanto fiel em conservar. O único serviço
regular e certo que a segunda pode prestar à primeira é mostrar-lhe as
imagens daquilo que precedeu ou seguiu situações análogas à situação
presente, a fim de esclarecer sua escolha: nisto consiste a associação
de idéias. Não há nenhum outro caso em que a memória que revê
obedeça regularmente à memória que repete.
A maior preocupação de Bergson (1999, p. 100) é entender como as percepções
passadas podem se relacionar com as percepções presentes, pois a “percepção presente
vai sempre buscar, no fundo da memória, a lembrança da percepção anterior que se
assemelha”. Bosi (1994), ao citar Bergson em seu livro Memória e Sociedade, assegura
que “o seu cuidado maior é o de entender as relações entre a conservação do passado e a
sua articulação com o presente, a confluência de memória e percepção” (p. 49).
Temos consciência de um ato sui generis pelo qual deixamos o
presente para nos recolocar primeiramente no passado em geral, e
depois numa certa região do passado: trabalho de tentativa,
semelhante à busca do foco de uma máquina fotográfica. Mas nossa
lembrança permanece ainda em estado virtual; dispomo-nos
simplesmente a recebê-la, adotando a atitude apropriada. Pouco a
pouco aparece como que uma nebulosidade que se condensasse; de
virtual ela passa ao estado atual; e, à medida que seus contornos se
desenham e sua superfície se colore, ela tende a imitar a percepção.
Mas continua presa ao passado por suas raízes profundas, e se, uma
vez realizada, não se ressentisse de sua virtualidade original, se não
fosse, ao mesmo tempo que um estado presente, algo que se destaca
do presente, não a reconheceríamos jamais como uma lembrança
(BERGSON, 1999, p. 156, grifos do autor).
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O uso das narrativas orais é de grande valor para sociedade, mas hoje em dia a
arte de narrar está dando lugar à imprensa, que nos fornece informações que logo serão
esquecidas. As narrativas deveriam fazer parte do cotidiano das pessoas e serem
perpassadas de geração em geração a fim de transformar coisas ruins do passado em
coisas boas no presente.
Para Benjamin (1994, p. 5), em seu ensaio intitulado O Narrador, “o narrador
retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros.
E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”. Ainda conforme
Benjamim, uma narrativa histórica tem uma função útil, proveitosa. Quando se conta
uma história, quem ouviu pode levar consigo um ensinamento, um conselho.
Ela [narrativa histórica] tem sempre em si, às vezes de forma latente
uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num
ensinamento moral, seja numa sugestão pratica, seja num provérbio ou
numa norma de vida, de qualquer maneira, o narrador é um homem
que sabe dar conselhos (BENJAMIM, 1994, p. 4).
Para Benjamim (1994), o narrador pertence a dois grupos, tem dois estatutos: 1)
“o narrador como alguém que vem de longe” (p. 198), que detém muitas histórias para
contar, por ser um homem viajado, conhecedor de várias culturas; 2) e o “narrador como
alguém que ganhou honestamente sua vida sem sair de seu país e que conhece suas
histórias e tradições” (p. 198). Ou seja, são homens que contam sua própria história,
evocando suas próprias terras e tradições. Benjamim (1994) compara os dois grupos,
respectivamente: o primeiro seria o “marinheiro comerciante” e o segundo o “camponês
sedentário”. O “camponês sedentário” benjaminiano é aquele homem que leva uma vida
sedentária, que não saí de casa, que não deixa seu país. É um detentor de sabedoria, que
conhece o povo, a cultura e as tradições do local em que vive. Suas experiências servem
para transmitir ensinamentos. É um homem de memória, suas ou alheias.
Quando Bosi (1994) diz “Uma lembrança é diamante bruto” (p. 81), ela se refere
à importância que a memória desempenha na sociedade. Sabe-se que quando nasce uma
criança, ela não detém nenhum saber. Cabe, portanto, aos pais ensinar e educar os filhos
de acordo com suas crenças, seus valores e tradições. Eis que surge o papel da memória,
pois é dela que uma criança receberá ensinamentos já vivenciados pelos mais velhos, e
22
esses ensinamentos a tornarão um ser que possui o mesmo estilo de vida do grupo em
que está inserida, permitindo-a preservar valores. Bosi (1994) afirma:
É a essência da cultura que atinge a criança através da fidelidade da
memória. Ao lado da história escrita, das datas, da descrição de
períodos, há correntes do passado que só desapareceram na aparência.
E que podem reviver numa rua, numa sala, em certas pessoas, como
ilhas efêmeras de um estilo, de uma maneira de falar, que são
resquícios de outras épocas (BOSI, 1994, p. 75).
As histórias são divididas em marcos, pontos marcantes, momentos
inesquecíveis. Os momentos que uma criança viveu no ambiente familiar consistem em
momentos inesquecíveis. Mãe, pai, irmãos, avós, tios, primos, são pessoas que de
alguma forma vão compor histórias e acontecimentos que se perpetuarão na memória.
A lembrança que se tem dos pais é marcada por muito amor e proteção. E é
agregada à lembrança de irmãos, avós, tios, primos – são muitas aventuras, brincadeiras
e traquinagens. Segundo Bosi (1994), “a história da família é fascinante para a criança”
(p. 424):
Uma forte impressão que esse conjunto de lembranças nos deixa é a
divisão do tempo que nelas se opera. A infância é larga, quase sem
margens, como um chão que cede aos nossos pés e nos dá a sensação
de que nossos passos afundam. Difícil transpor a infância e chegar á
juventude. Aquela riquíssima gama de nuanças afetivas de pessoas, de
vozes, de lugares... (BOSI, 1994, p. 415)
Tantos lugares, pessoas, cheiros nos fazem retornar ao passado. O primeiro
ambiente que a criança conhece é a casa, aquela que acolhe e conforta e que a faz se
sentir protegida, um lugar de amor e ternura. As primeiras experiências, as visitas dos
tios, dos primos, as brincadeiras, os almoços que reúnem toda a família – tudo ocorre na
casa onde vivemos e onde passamos a infância e que se perpetua na memória.
Bosi (1994) cita o lar como um “espaço de memória”, um lugar onde foram
vividos os melhores momentos da infância e que é o ponto de partida das lembranças
passadas, já que, quando começa uma história de infância, na maioria das vezes, é desse
espaço que lembramos primeiro. Tudo que foi observado dentro da casa permanece
conservado na memória. Quando chega a fase adulta, o indivíduo vai perdendo esses
simples momentos da vida, pois existe o trabalho, preocupações do dia a dia e o lar não
é mais aquele espaço de aventuras, correrias e travessuras, restando ao adulto sentir
23
saudades do que passou e lembrar com afeto todos os mínimos detalhes que a vida
proporcionou na infância. Sobre esse espaço de memória, afirma Bosi (1994, p. 436):
A criança muito pequena pode ignorar que seu lar pertence a um
mundo vasto. O espaço que ela vivencia como o dos primitivos, é
mítico, heterogêneo, habitado por influências mágicas [...]. Tudo é tão
penetrado de afetos, móveis, cantos, portas e desvãos, que mudar é
perder uma parte de si mesmo; é deixar para trás lembranças que
precisam desse ambiente para reviver. [...] Há sempre uma casa
privilegiada que podemos descrever bem, em geral a casa da infância
[...].
24
4.1 – O ESTUDO DA MEMÓRIA EM MENINO DE ENGENHO E FOGO
MORTO
4.1.1 – MENINO DE ENGENHO
Nota-se, principalmente em Menino de Engenho, que a realidade representada
diz respeito à vida do autor e à sua fantasia. Nas palavras do romancista, para entrevista
a Gusmão (1941): “tem sempre pelo menos um quarto de realidade”. De fato, José Lins
do Rego foi órfão de mãe ainda na infância; não teve a presença do pai; morou no
Engenho Corredor; foi criado por uma tia chamada Maria, a qual considerava a sua
segunda mãe; teve a presença do avô, a quem respeitava muito; e estudou em um
internato quando criança. Esses são alguns fatos da vida real de José Lins do Rego que
foram transformados em ficção em seus romances.
Vejamos alguns trechos do livro Menino de Engenho (REGO, 2001) :
 “Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu” (p. 33);
 “[...] levaram- me para o engenho do meu avô materno” (p. 37);
 “Sentado em uma cadeira, perto de um banco, estava um velho que me
levaram para receber a bênção. Era meu avô” (p. 39);
 “A moça que parecia com a minha mãe, que era sua irmã mais nova, me
levou para mudar de roupa. - Agora vou ser sua mãe” (p. 39);
 “No dia seguinte tomaria o trem para o colégio. O meu tio Juca me levaria
para os padres [...]” (p. 146).
A maior pretensão de José Lins do Rego ao escrever suas obras era de evocar
suas terras, expressar como era seu povo, sua região, enfim, sua cultura. O escritor era
um grande narrador de sua própria história, ele podia reviver seu passado através da
memória.
As obras do romancista cabem muito bem no conceito benjaminiano do
“camponês sedentário”, que narra sua vida, sua história e evoca a terra onde nasceu e
viveu, sem esquecer suas raízes. Ainda nas palavras de Benjamim (1994, p. 211): “O
grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas
artesanais”.
25
Os trechos retirados da obra Menino de Engenho (REGO, 2001) caracterizam o
que foi dito:
“A minha mãe sempre me lembrava do engenho como um recanto do
céu. E uma negra, que ela trouxera para criada, contava tantas
histórias de lá, das moagens, dos banhos de rio, das frutas e dos
brinquedos...” (p. 38)
“Tio Juca começou a me mostrar como se fazia o açúcar...” “Dois
homens levavam caçambas com mel batido para as fôrmas estendidas
em andaimes com furos. Ali mandava o purgador, um preto, com as
mãos metidas na lama suja que cobria a boca das fôrmas” (p. 42)
“Lá um dia, para as cordas das nascentes do Paraíba, via-se, quase
rente do horizonte, um abrir longínquo e espaçado de relâmpago: Era
inverno na certa no alto sertão.” (p. 54)
“Restava ainda à senzala dos tempos do cativeiro. Uns vinte quartos
com o mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô, mesmo
depois da abolição, ficaram todas no engenho, não deixaram a rua,
como elas chamavam a senzala.” ( p. 83)
“Eu ficava com os mestres de ofício vendo os seus trabalhos. Os
tanoeiros com as fôrmas e as cubas, os carpinas com as rodas de carro
ou lavrando as cumeeiras. A enxó descascava os paus-d‟arco, e as
plainas iam aos poucos desbastando, analisando as tábuas de cedro.
Seu Firmino carpina, Pixito tanoeiro, seu Rodolfo mecânico tomavam
conta da casa do engenho na vaga da safra. Tiveram os seis meses de
inverno raspando madeira e batendo ferro.” (p. 97)
“Da calçada da casa-grande viam-se no meio do canavial aquelas
cabeças de chapéu de palha velho subindo e descendo, no ritmo do
manejo da enxada: uns oitenta homens comandados pelo feitor José
Felismino, de cacete na mão, reparando no serviço deles.” (p. 113)
José Lins do Rego contribuiu, através de seus romances, para o conhecimento de
um contexto social da época em que viveu, mostrou em suas obras os engenhos de cana
de açúcar dando lugar às usinas. O leitor desses romances possui uma gama de
conhecimentos de uma época passada: o convívio dos negros com os brancos, a
liberdade das crianças, a produção do açúcar, o mandonismo dos coronéis. Enfim, a
vida rural como um todo.
26
Percebemos nos romances de José Lins do Rego uma lembrança de seus bons
tempos, uma saudade de seus familiares e de seus amigos, como se, ao escrever, ele
pudesse reviver seu passado. No romance, relembra de seus pais, seu avô, dos cuidados
de suas tias e das aventuras com os primos. As lembranças de sua infância fazem
renascer aquele menino de engenho. A perda de um parente próximo é um fato muito
marcante que eterniza na mente, principalmente quando se trata de uma criança.
Vejamos que Carlinhos, com quatro anos de idade, passou por muitas mudanças, perdeu
a mãe, o pai, mudou de casa, de família, de vida. Esses acontecimentos jamais serão
esquecidos. E quando a lembrança do passado chega, é de coisas boas que Carlinhos
mais lembra: do carinho que recebera de seus pais, da tia Maria, de todas as aventuras
junto de amigos e primos no engenho de seu avô.
Em relação à memória familiar contida em Menino de Engenho, Carlinhos
descreve:
“Ainda me lembro de meu pai. Era um homem alto e bonito, com uns
olhos grandes e um bigode preto. Sempre estava comigo, era a me
beijar, a me contar histórias, a me fazer os gostos.” (p. 35)
“Todos os retratos que tenho de minha mãe não me dão nunca a
verdadeira fisionomia que eu guardo dela - a doce fisionomia daquele
seu rosto, daquela melancólica beleza de seu olhar. Ela passava o dia
inteiro comigo. Era pequena e tinha os cabelos pretos. Junto dela não
sentia necessidade dos meus brinquedos.” (p. 36)
“A moça que se parecia com minha mãe, e que era sua irmã mais
nova, me levou para mudar a roupa. – Agora vou ser sua mãe. Você
vai gostar de mim.” (p. 39)
“O meu avô ficava do lado direito e a minha tia Maria na cabeceira.”
(p. 41)
“Tinham chegado para passar tempo no engenho uns meus primos,
mais velhos que do que eu: dois meninos e uma menina. Agora não
era só com os moleques que me acharia. Meus dois primos, bem
afoitos, sabiam nadar, montar a cavalo no osso, comiam tudo e nada
lhes fazia mal. Com eles fui aos banhos proibidos, os de meio-dia,
com a água do poço escaldando.” (p. 43)
“O meu tio meu punha ao seu lado, fazia brincadeiras comigo. Era o
único sobrinho com quem se dava de intimidade. Ele tinha muita coisa
para me mostrar: os seus álbuns de fotografias, os seus livros de
muitas gravuras, o Malho que assinava cheio de gente de cara virada
pelo avesso.” (p. 110)
27
José Lins do Rego, na citada entrevista a Gusmão (1941), descreve a casa grande
em que viveu seus momentos de infância: “casa enorme, de muitas janelas, de muitas
portas. Aí está a banca de madeira onde o velho sentava, tarde, para receber os seus
auxiliares: o feitor, o mestre-do-açúcar, os carapinas, os pastoreadores”. No livro
Menino de Engenho, Carlinhos faz a seguinte descrição:
Na grande sala de jantar estendia-se uma mesa comprida, com muita
gente sentada para refeição. O meu avô ficava do lado direito e a
minha tia Maria na cabeceira. Tudo que era para comer estava à vista:
cuscuz, milho cozido, angu, macaxeira, requeijão (REGO, 2001, p.
41).
Como foi dito no capítulo anterior, o lar é o ponto de partida para as lembranças
do passado, é dele que tiramos as mais profundas recordações dos bons tempos de
criança. Foi das experiências vividas na casa grande que José Lins do Rego fez reviver,
através de Carlinhos, seus melhores momentos. Sobre esse espaço de memória, com
propriedade afirma Bosi (1994)
Há sempre uma casa privilegiada que podemos descrever bem, em
geral a casa da infância, ou a casa dos recém-casados onde começou
uma nova vida. Alguns detalhes chamam atenção: o número de janelas
que dão para frente, as ruas eram gostosas de se ver, nem havia
preocupação e isolamento...” (p.436)
4.1.2 - FOGO MORTO
José Lins do Rego, assim como em Menino de Engenho, teria usado da memória
para escrever Fogo Morto? Acreditamos que sim, mas não da mesma forma que Menino
de Engenho, pois nesta obra percebemos o autor de mãos dadas com o personagem,
revivendo histórias de infância, enquanto que em Fogo Morto ele descreve problemas
de sua terra, de um contexto social do qual foi testemunha.
Pode-se dizer que Fogo Morto não é apenas uma memória individual do autor, e
sim uma memória coletiva, pois representa a vida sofrida de seu povo nordestino, das
tristezas de uma época, repleta de mudanças. “A obra de José Lins é ele mesmo. É
profundamente triste. É uma epopéia de tristeza, da tristeza da sua terra e da sua gente,
da tristeza do Brasil.” (CARPEAUX, p. 9).
28
O romance é um documento sociológico, é a expressão de um desenvolvimento
cultural, é a preservação da memória histórica do Nordeste em processo de mudanças.
Através da ficção, o autor denuncia a miséria e a exploração de que até hoje grande
parte da população nordestina ainda é vítima. A essa preocupação do autor de mostrar
aos seus leitores um conhecimento de um contexto social, através de uma memória sua
e de seu povo, Ecléa Bosi chama de “Memória como função social”:
É o momento de desempenhar a alta função da lembrança. Não porque
as sensações se enfraquecem, mas porque o interesse se desloca, as
reflexões seguem outra linha e se dobram sobre a quintessência do
vivido. Cresce a nitidez e o número das imagens de outrora, e esta
faculdade de relembrar exige um espírito desperto, a capacidade de
não confundir a vida atual com a que passou, de reconhecer as
lembranças e opô-las ás imagens de agora. (BOSI, 1994, p. 81)
Ao longo da narrativa, nas vozes dos personagens, várias questões da época são
mostradas: desigualdade social, preconceito racial, um modelo político injusto, no qual
as ordens dos senhores de engenho, considerados homens de poder, de mando,
prevaleciam.
Vejamos essas questões em Fogo Morto:
“... Aonde já se viu autoridade ser como criado, recebendo ordem dos
ricos? Estou aqui no meu canto, mas estou vendo tudo. Nesta terra só
quem não tem razão é pobre.” (REGO, p. 10)
“Sou eleitor, dou o meu voto a quem quero. Não voto em governo.
Aqui me pareceu outro dia um parente de Quinca Napoleão pedindo o
meu voto. „Votar em quem, seu Zé Medeiros?‟, fui lhe dizendo.
„Quinca Napoleão é ladrão de terra. O Pilar é uma terra infeliz;
quando sair da mão do velho José Paulino, vai parar na bolsa do
Quinca Napoleão‟.” (REGO, p. 11)
“Vinha passando pela sua porta a carruagem do senhor de suas terras,
do dono de sua casa. Era o coronel Luís César de Holanda Chacon,
senhor do engenho de Santa Fé, que passava com a família.” (REGO,
p. 12)
29
“Negro só servia mesmo para cativeiro.” (REGO, p. 12)
“O coronel Lula é homem de opinião. É um homem de tanto luxo.
(REGO, p. 14)
“Um homem vale pelo que é e não pelo o que tem. Você esteve
comendo na mesa do coronel José Paulino e veio para minha casa me
meter inveja.” (REGO, p. 17)
“Em casa do coronel Lula havia piano. Era o único que existia por
ali.” (REGO, p. 30)
“D. Amélia quando saía de cabriolé era como se fosse dona de todas
as terras por onde ela passava de carro. As negras não gostavam dela
porque não vivia na cozinha, ouvindo enredadas, metida nas conversas
dos camumbebes.” (REGO, p. 30)
“Chegou a abolição e os negros do Santa Fé se foram para os outros
engenhos. Ficara somente com seu Lula o boleeiro Macário, que tinha
paixão pelo ofício. [...] O povo cercava os negros para ouvir histórias
de torturas.” ( REGO, p. 168)
O primeiro personagem do livro, denominado de José Amaro, retrata a divisão
entre as classes sociais. É um homem pobre, de saúde frágil, artesão, que lida com
couro, mora nas terras do engenho Santa Fé, pertencente ao coronel Lula de Holanda.
José Amaro é um homem amargurado e sofrido, que se rebela contra a prepotência dos
senhores de engenho:
“Trabalho para homem que me respeite. Não sou um traste qualquer.
Conheço esses senhores de engenho da Ribeira como a palma da
minha mão.” (REGO, p. 4)
“- É encomenda do Santa Rosa? Pois, meu negro, para aquela gente
não faço nada. Todo mundo sabe que não corto uma tira para o
coronel José Paulino.” (REGO, p. 9)
“É o que digo a todo mundo. Não aguento grito. Mestre José Amaro é
pobre, é atrasado, é um lambe-sola, mas grito não leva.” (REGO, p. 9)
,
30
“O coronel Lula passa por aqui, me tira o chapéu como um favor,
nunca parou para saber como vou passando. Tem o seu orgulho. Eu
tenho o meu.” (REGO, p. 13)
A segunda parte do livro tem como personagem Seu Lula, homem orgulhoso,
mas que não consegue fazer o engenho que recebeu de herança de seu sogro prosperar.
O antigo dono, chamado de Capitão Tomás, dera o nome ao engenho de Santa Fé.
Desse capítulo, podemos perceber a decadência de um engenho açucareiro: as duas
primeiras citações caracteriza o engenho do Santa Fé quando era de posse do Capitão
Tomás, e as duas últimas quando o dono morre e deixa o engenho para seu genro tomar
conta:
“E o Santa Fé, com o capitão Tomás Cabral de Melo, chegou à sua
maior grandeza.” (REGO, 1973, p. 137)
“Família criada, engenho moendo e corrente, gado de primeira ordem,
partidos de cana, roçado de algodão [...]” (REGO, 1973, p. 137)
“E assim corriam os anos no Santa Fé. Safras pequenas. Não havia
feitor que parasse, o eito minguado [...]” (REGO, 1973, p. 175)
“Acabara-se o Santa Fé.” (REGO, 1973, p. 204)
O romancista, assim, através de seus personagens, retrata uma realidade social
de uma época, representada por uma memória coletiva. Ele une essas desigualdades na
igualdade coletiva, na substituição do engenho pela usina, na afirmação da história do
capitalismo no Brasil.
José Lins do Rego, enfim, dá vida às suas experiências, buscando sentido no
povo de sua região, e faz com que haja uma reflexão do presente, através de um
passado, que se torna do conhecimento de todos graças a seus escritos.
31
CONCLUSÃO
Diante do exposto, ressaltamos a importância dos estudos das obras de José Lins
do Rego sob o viés da memória, pois foi a partir deste elemento tão fundamental em
suas obras que foi possível aprofundar ainda mais o tema.
A memória, no presente trabalho, é muito mais que um ato de lembrar, como
vimos, já que possui várias utilidades, por ser algo universal, por cada ser possuir a sua
forma individual de recordar e por ser a partir dela que se constrói uma identidade.
Bergson (1999) trata a memória como uma conservação do passado, que, por sua
vez, pode sobreviver no presente sob formas de lembranças, onde averiguamos dois
tipos de memória, conforme suas teorias: memória hábito e memória espontânea;
respectivamente, referem-se à que é aprendida e à que é conservada. Também foi
estudada a memória como forma de função social, aquela que, de algum modo,
contribui para um futuro, que ensina ou aconselha.
Sobre a arte de narrar, assinala Benjamim (1994, p. 221):
O narrador figura entre os mestres e os sábios, ele sabe dar conselhos:
não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos,
como o sábio. Pois pode recorrer a um acervo de toda uma vida. Seu
dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira.
Assim, de acordo com os teóricos citados ao longo do trabalho, a memória tem
relação com várias coisas, podendo se relacionar com o meio social – por “reconhecer
as lembranças e opô-las às imagens de agora” (BOSI, 1994, p. 81) –, com o corpo e o
espírito – como afirma Bergson (1999 p. 6), “a relação entre alma e corpo, logo se
restringe em torno da questão da memória”– e com a história – pois, segundo Le Goff
(1990, p. 477), “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura
salvar o passado para servir o presente e o futuro”.
Por fim, o estudo da memória nos romances nos faz perceber sua importância,
pois José Lins do Rego, através de seu passado, nos deixou o registro de um contexto
histórico que, de alguma forma, permanece vivo.
32
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Download

Memória nas obras de José Lins do Rego. - CCHLA