UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
4ª Semana do Servidor e 5ª Semana Acadêmica
2008 – UFU 30 anos
RESISTÊNCIA NEGRA NO BRASIL: A “HISTORY FROM BELOW” E
ALGUNS ELEMENTOS PARA A CRÍTICA DA TESES DAS RELAÇÕES
HARMONIOSAS NO BRASIL ESCRAVISTA
Fabrício Luís Duarte1
Universidade Federal de Uberlândia
[email protected]
Vinícius Oliveira Santos2
Universidade Federal de Uberlândia
[email protected]
Resumo: O presente artigo tem como objetivo confrontar duas obras que assumiram
importância em diversos campos das ciências humanas: Casa Grande & Senzala de Gilberto
Freyre, e Negociação e Conflito de João José Reis e Eduardo Silva. A historiografia brasileira
tendeu a abordar, como Freyre, e, também, por conseqüência deste, as relações entre escravos e
senhores priorizando as relações harmoniosas, criando o mito da democracia racial no Brasil,
concepções que serão contrariadas. Há na abordagem de Gilberto Freyre, a visão corrente da
dominação absoluta dos senhores em relação a “seus” escravos, estes últimos seriam objetos que
se adequariam às vontades imediatas dos seus senhores que faziam concessões benevolentes aos
seus serviçais. Vimos então, a necessidade, de estabelecer uma crítica contundente aos argumentos
anteriores, com base numa inovadora orientação teórico-metodológica utilizada por Reis e Silva.
Nesta posição, os escravos são tratados como sujeitos políticos e, por isso, agentes de poder.
Através de sua resistência cotidiana, impunham limites à vontade senhorial seja através da
negociação, seja através do conflito, garantindo que suas reivindicações fossem atendidas. Assim
sendo, os argumentos das relações harmoniosas e adocicadas por meio da dádiva senhorial são
contestados. Somente assim é possível fazer uma “história vista por baixo”, no sentido de incluir os
excluídos na análise e, conseqüentemente, refutar a posição da “história vista de cima”, ou seja,
sob a ótica das classes dominantes, conforme apresenta E.P. Thompson. Empiricamente, decorre
que, através de diversos mecanismos de contestação, os escravos conseguiam que seus anseios
fossem atendidos, tal como mostraremos no decorrer do trabalho.
Palavras-chave: Escravidão no Brasil, Resistência Negra, Emancipação.
1. INTRODUÇÃO
É corrente nos estudos sobre a escravidão no Brasil, a perspectiva teórica que aborda o
sistema escravista como uma sociedade em plena conformidade com os interesses senhoriais.
Segundo tal vertente, os senhores de terras exerciam uma forma de dominação absoluta em relação
aos escravos que seriam meros objetos dos desejos e vontades dos senhores. Conseqüentemente, o
escravo era apreendido por meio de modelos dicotômicos, ou seja, era analisado como vítima inerte
1
Fabrício Luís Duarte é graduando do curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Uberlândia. Desenvolve
monografia sobre mercantilização e uso político do esporte no capitalismo contemporâneo sob a orientação do prof. Dr.
Edilson José Graciolli. É membro do Grupo de Pesquisa Trabalhadores, Sindicalismo e Política.
2
Vinícius Oliveira Santos é graduando do curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Uberlândia.
Desenvolve monografia sob a temática “Trabalho material e Trabalho imaterial” sob a orientação do prof. Dr. Edilson
José Graciolli. É membro do Grupo de Pesquisa Trabalhadores, Sindicalismo e Política.
ou como herói. Logo, a resistência cotidiana não era objeto de análise. É neste sentido que Azis
Simão (1966) afirma que na organização econômica escravista havia uma “plena sujeição do
produtor direto ao regime de trabalho”. Em outros termos, o escravismo seria o sistema de maior
heteronomia no regime de trabalho na qual não havia possibilidade de alterar ou influenciar a
autoridade ou o exercício do poder senhorial. Decorre que tal abordagem privilegia a posição
teórico-metodológica da “história vista por cima”, ou seja, sob a ótica dominante, há, portanto, a
exclusão dos escravos como sujeitos da história da própria escravidão. Com esta mesma
característica podemos relacionar a contribuição de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala que
tratamos no primeiro capítulo.
Sucintamente, neste trabalho propomos uma nova abordagem da relação senhor-escravo.
Para tanto, a contribuição teórico-metodológica da reciprocidade dialética da “history from
below”de E.P. Thompson é torna fundamental. O autor apreende que as relações históricas são
construídas mediante lutas, conflitos, negociações, barganhas, acomodações, etc. Portanto, a relação
entre senhores e escravos é edificada pelas ações de senhores e escravos enquanto sujeitos
históricos, políticos e agentes de poder. Alinhados nesta perspectiva, estão João José Reis, Eduardo
Silva, autores que trataremos no segundo capítulo; que tratam de incluir os excluídos na análise e
por isso, os escravos passam a ser vistos como sujeitos históricos na sua vivência cotidiana e
conseqüentemente sua coisificação é deixada de lado. Assim sendo, através da relação estabelecida,
ora de conflito, ora de negociação, os escravos impunham limites à vontade senhorial, buscando a
melhoria das suas situações de vida.
Mediante tal posição, há uma recusa do privilégio do caráter paternal e benevolente da
escravidão no Brasil e, antes de tudo, a resistência cotidiana é levada em conta. Não queremos,
contudo, preconizar o escravo tomado na constante atitude heróica. Os escravos não foram vítimas
nem heróis o tempo todo. Agiam conforme as circunstâncias. Ele é, portanto, um homem real não
coisificado e nem mitificado. Tal perspectiva só começou a tomar lugar nas teorias, muito
recentemente.
Mostraremos ainda, os mecanismos de reivindicação escrava e suas lutas por melhores
condições. Em vários lugares, nota-se a presença da chamada “brecha camponesa” que era um
pedaço de terra que os escravos conseguiam para plantar produtos de subsistência ou de troca. Há
aqui um elemento de negociação: se os senhores aceitam ceder um pedaço de terra aos escravos é
porque, deste modo, podem ter um maior controle sobre eles. E se os escravos reivindicam e
aceitam é para melhorar suas condições materiais.
2. GILBERTO FREYRE E O CARÁTER PATERNAL E BENEVOLENTE DA
ESCRAVIDÃO BRASILEIRA
A obra de Gilberto Freyre intitulada Casa-Grande & Senzala carrega o mérito de ser a
primeira obra científica que caracteriza a identidade nacional brasileira, desmontado o primeiro tipo
de brasileiro criado por Monteiro Lobato (Jeca Tatu) e colocando um novo tipo: o brasileiro
mestiço, híbrido e múltiplo. Decorre que o autor faz um elogio à mestiçagem, e mais do que isto,
concebe que a mestiçagem seria um aspecto fundamental na construção da identidade nacional
brasileira. Tal valorização da nação mestiça que tem origem no contexto do plantation
(monocultura, trabalho escravo e latifúndio), contrapunha os ideários de nacionalismo e progresso
europeus, onde a miscigenação era vista como fator degenerante da humanidade e como caractere
de subdesenvolvimento das nações. Aqui já cabe um apontamento da sua perspectiva teóricometodológica que Freyre toma de Franz Boas: a diferença entre raça e cultura:
Foi o estudo da antropologia sob a orientação do professor Boas que primeiro me
revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do
ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a diferença entre
raça e cultura; a discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de
influências sociais, de herança cultural e de meio. Neste critério de diferenciação
fundamental entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio. Também no da
2
diferenciação entre hereditariedade de raça e hereditariedade de família. (FREYRE, 2003:
32).
Percebe-se que o autor se apóia na antropologia cultural e se coloca contra os determinismos
biológicos e geográficos, enunciando seu livro como anti-racista.
Segundo o autor, as relações estabelecidas entre os europeus e as demais raças foram
mediadas pela monocultura latifundiária e pela escassez de mulheres brancas. Este déficit
demográfico resultou em “zonas de confraternização” entre senhores e escravos, e senhores e
índios, na qual a relação entre essas raças adocicaram-se devido à necessidade dos colonos europeus
estabelecerem família mediante tal realidade. Assim sendo, este contato sexual entre as raças, que
mais tarde deu gênese ao mestiço, contribuiu para encurtar as desigualdades entre as raças. Para ser
fiel às palavras do autor:
A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de
outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casagrande e a senzala. (FREYRE, 2003: 33)
A transgenia genética e social teria contribuído para reduzir as distancias entre as diferentes
raças. Destarte, Freyre está delineando sua tese da democracia racial que só ocorrera mediante a
coabitação de negras e índias pelos senhores de terras, ou seja, pelo intercâmbio social e sexual com
as raças de cor. Este seria um aspecto da colonização portuguesa no Brasil: a utilização da mulher
nativa como elemento de formação da família e não apenas instrumento de trabalho, uma vez que
muitos dos colonos chegam aqui sozinhos.
Os portugueses, ao contrário dos outros europeus colonizadores da América, não eram
partidários de divergências políticas ou ideológicas, e não estavam preocupados em manter a pureza
de sua raça. Assim, criou-se uma massa de homens mestiços, livres e miseráveis. Esta flexibilidade
e a disponibilidade de se adaptar e se misturar característicos da cultura portuguesa (afinal, Portugal
era um país maritimamente privilegiado, recebia sempre povos de vários lugares, ali raças se
misturavam há muito tempo) entrou em contanto com a cultura indígena com mediação da cultura
africana. Tal mediação teria encurtado o abismo entre os dois extremos:
A mediação africana aproximou os extremos, que sem ela dificilmente se teria
entendido tão bem, da cultura européia e da cultura ameríndia, estranhas e antagônicas em
muitas das suas tendências. (FREYRE, 2003: 116)
Segundo Freyre, a constituição da identidade nacional brasileira teve como movimento
balizador um processo de equilíbrio de antagonismos econômicos e culturais. Conforme o autor
aproximou-se:
A cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena.
A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico do herege. O jesuíta do
fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O
pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto.
Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor
e o escravo. (FREYRE, 2003: 125)
De tal modo, os antagonismos eram amortecidos e até mesmo harmonizados devido às
condições de confraternização e a mobilidade social específica do Brasil: a miscigenação permitiu a
dispersão de herança, a possibilidade de alternação de cargos profissionais, etc. Houve assim uma
reciprocidade cultural e econômica no Brasil. Logo, foram se desenvolvendo laços patriarcais e
paternalistas entre senhores e escravos na qual o senhor fazia concessões generosas e paternais aos
escravos. Freyre, dá atenção central à uma escravidão amena, suave e adocicada. Ele não nega que
houve conflito, mas este não é seu foco. A análise é feita sob uma perspectiva onde o cativo tem
direitos assegurados gentilmente pelos senhores que, graças à miscigenação, quebrou-se a rigidez
social harmonizando as relações sociais. Neste processo de moderação dos antagonismos, as raças
3
se misturavam no interior da casa-grande e alteravam as demais relações sejam elas sociais ou
culturais.
Na visão do autor, vão se desdobrando relações e afeição entre o branco e o negro no Brasil
durante os séculos de predomínio da escravidão. Devido tal generosidade ou interesse, essas
relações distinguem nossa colonização das outras e será um fator predominante na formação da
cultura brasileira.
A noção patriarcalismo e a bondade dos senhores viriam, na perspectiva do autor, ocupar o
lugar de “direitos” inexistentes. Esta perspectiva de que certos direitos seriam concedidos, se
expressa na imagem do homem pobre que dependia dos favores do senhor territorial para poder
usufruir de condições elementares de sobrevivência, de tal modo, a vida, o trabalho, pequenas
posses, etc. eram "direitos” cedidos como dádivas pelos senhores de terras.
A decorrência desta forma de pensar não apreende o conflito como central na análise, mas
superestima-se o encurtamento das distancias sociais explanada sob a forma de conciliação.
Assim, há na obra um esvaziamento do conflito entre colonizador e colonizado. Em suma,
segundo o autor, a formação patriarcal no Brasil emergiu com um sistema social assentado na
família, no açúcar e no escravo corrigindo em larga escala tendências antagônicas, estabilizando as
relações na casa-grande.
Nesta obra, Freyre enfatiza as relações predominantemente harmoniosas entre senhores e
escravos entre senhores e escravos, sob o signo da benevolência e do paternalismo. Posteriormente,
a vertente que tem sua linha de frente representada por Florestan Fernandes, Octavio Ianni e
Fernando Henrique Cardoso faz a ruptura com esta concepção e passam a destacar a coisificação do
escravo e a utilização de meios extremamente violentos na relação entre senhor e escravo. Porém,
pode-se afirmar que tais vertentes possuem um pressuposto metodológico comum: ambas
constroem a imagem de um mundo (no caso, o Brasil) em plena conformidade com os interesses
senhoriais, seja ele de caráter pretensamente paternal e benevolente (no caso de Freyre), seja ele
calcado na dominação absoluta por meio da violência. Nos dois casos, privilegia-se a ótica senhorial
que resultava na exclusão dos escravos, ou seja, os escravos eram colocados à margem da história
da própria escravidão. Nesta perspectiva, criam-se teorias que vêem a “história vista por cima”, ou
seja, sob a ótica das classes dominantes, desconsiderando o relacionamento entre senhor/escravo
numa perspectiva literalmente relacional, onde a noção de reciprocidade dialética seja pano de
fundo.
A abordagem de Freyre não concebe que em meio às relações de dominação, exploração e à
luta de classes, os escravos tenham imposto limites à vontade e o arbítrio absoluto dos senhores,
chegando a conquistar certas vitórias. Ao contrário, segundo o autor, o senhor concedia benefícios
ao escravo quase sob a forma de dádiva.
Havia muitas formas cotidianas de resistência negra: conflitos, compromissos, barganhas,
etc. fazem parte da resistência negra; tal qual, será desenvolvido no capítulo posterior.
3. JOÃO JOSÉ REIS & EDUARDO SILVA – A RESISTÊNCIA NEGRA: NEGOCIAÇÃO E
CONFLITO
As relações entre escravos e senhores, por vezes, foram consideradas harmoniosas - com
reflexos ainda na atualidade acadêmica e na realidade social - como na obra de Gilberto Freyre:
Casa-Grande e Senzala. Esta concepção é um tanto problemática e vem sendo amplamente refutada
em novas pesquisas sobre a escravidão no Brasil. No intuito de reforçarmos essas críticas,
propomos explorar uma importante vertente teórico-metodológica que aborda as relações entre
escravos e senhores de modo alternativo à Freyre – contida na obra intitulada “Negociação e
conflito: a resistência negra no Brasil escravista”, de João José Reis e Eduardo Silva.
Esses autores propõem uma história contada na perspectiva dos escravos, uma “history from
below” – termo tomado de Thompson, historiador inglês -, partindo do princípio segundo o qual as
relações entre escravos e senhores nada tem de harmoniosas, são antes fatos de resistência dos
escravos contra a tirania dos seus senhores, que oscilam entre a negociação e o conflito. É mister
4
clarificar que a proposta desse livro consiste em considerar os escravos enquanto agentes históricos,
enquanto forjadores da história, uma visão contrária àquelas que consideram o escravo enquanto
res. Segundo os próprios autores, “o personagem central deste livro é o escravo. O enredo é sua
resistência permanente a ser um mero objeto nas malhas do sistema” (REIS, SILVA: p. 7).
A despeito da escassez de fontes para uma abordagem histórica “de baixo pra cima”, que
revele o ponto de vista dos escravos enquanto agentes históricos, os autores ressaltam a importância
de se explorar adequadamente aquilo existente, ou seja, de valorizar, sobretudo, qualitativamente,
aspectos que forneçam, mesmo que elementarmente, o exercício da conquista/ampliação de espaços
segundo os interesses dos escravos. Para tanto, esses autores enumeram uma série de fatos
empíricos, antes desconsiderados ou mal interpretados, que elucidam a insubmissão dos escravos
perante seus senhores. Dentre vários, salientamos parte de um documento que revela a negociação
dos escravos para com seus senhores, comprobatórios da desarmonia entre esses sujeitos, contido
no apêndice 1, e relatado no primeiro capítulo:
[...] há de dar os dias de sexta-feira e de sábado para trabalharmos para nós [...]
para podermos viver nos há de dar rede, tarrafa e canoas [...] poderemos plantar o nosso
arroz onde quisermos, em qualquer brejo, sem que para isso peçamos licença [...]
poderemos brincar, folgar, e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos
empeça e nem seja preciso licença (REIS & SILVA 2005: 123-124)
Ademais, é estabelecida uma crítica à dicotomização dos escravos, tidos na historiografia,
majoritariamente, ou como heróis ou como submissos conformados. Ainda no apêndice 1, há uma
prova empírica desse mito da heroicidade dos escravos, prova concreta de que os escravos, além de
serem segregados verticalmente entre senhores/escravos eram também hierarquizados de modo
horizontal. Esse arquivo mostra uma reivindicação dos escravos Ladinos, considerados
“conhecedores da Língua e das manhas para ‘passar a vida’” (REIS, SILVA: p. 20), para com seus
senhores, no sentido de evitar trabalho árduo passando-o para as mãos de outros escravos, para os
africanos recém-chegados, ou Minas, que deteriam poder de negociação reduzido, por razões
óbvias. Uma demonstração concreta de que os escravos não podem ser pensados como um bloco
homogêneo. Há desarmonia entre membros de uma mesma classe.
Não nos há de obrigar a fazer camboas, nem a mariscar, e quando quiser fazer
camboas e mariscar mandes os seus pretos Minas (REIS & SILVA 2005: 123).
Os ritmos de exploração dos escravos nem sempre eram ditados de acordo com as
imposições dos senhores, estes, antes viam a necessidade ou eram obrigados a ceder às
reivindicações dos escravos visando à manutenção da ordem social. Dessa forma, “os proprietários,
e a sociedade como um todo, foram sempre obrigados a reconhecer um certo espaço de autonomia
para os cativos” (REIS, SILVA: p. 21), reflexos do exercício da política num sentido micro por
parte dos escravos/sujeitos históricos.
REIS E SILVA discorrem consistentemente, no segundo capítulo, sobre aspectos da
denominada “brecha camponesa”, com base num livro escrito por um fazendeiro escravocrata.
Sobre essa chamada “brecha”, o fato era que “(...) os escravos frequentemente brigaram e
conseguiram obter dos senhores o direito a um pedaço de terra para sua subsistência e até o
direito de vender algum excedente da produção” (p.8). A despeito a “brecha” ser considerada
também como uma redução dos custos de manutenção dos escravos ou como estratégia de controle
social de cunho ideológico, fatores favoráveis ao domínio senhorial, era amplamente espaço de
disputa entre escravos e senhores, segundo REIS E SILVA, havia um embate pelo tamanho da área
plantada ou pelo tempo de trabalho nestas.
Sem negar que a “brecha camponesa” tenha cumprido um papel econômico
importante (minimizar os custos de manutenção e reprodução da escravaria), procuramos
ressaltar, no correr do trabalho, o seu papel como mecanismo de controle da força de
trabalho (REIS & SILVA 2005: 31).
5
Dando continuidade à argumentação desses autores, fica cada vez mais clara a dissimulação
contida nas assertivas de Freyre acerca das relações harmônicas entre escravos e senhores. Da
mesma forma trazemos para o debate o capítulo 3 do livro “Negociação e conflito”.
A tese que norteia as explanações dos autores revela ainda que o combate às ações
autonômicas dos escravos era feito através de uma combinação da violência com a negociação –
conceito Gramsciano. “Na escravidão nunca se vivia uma paz verdadeira, o cotidiano significava
uma espécie de guerra não convencional” (REIS, SILVA: 32).
Acresce que mais importante ainda nesse momento, é válido mencionar que “A religião e a
festa, a festa religiosa inclusive, sem dúvida funcionaram como elementos essenciais da política de
rebeldia dos escravos” (REIS, SILVA: 41).
Ainda:
Fazendo alianças com libertos, crioulos e mesmo brancos, ou procurando
esconder-se atrás das costas largas dos seus senhores, os escravos afirmavam seu direito de
tocar, dançar, cantar e brincar em homenagem a seus deuses, sem a intromissão da polícia.
Poucas instituições negras desenvolveram e aperfeiçoaram como o candomblé a sabedoria
da negociação escrava (REIS, SILVA: 9).
Para além das reivindicações por terra e por melhores condições de trabalho, também fazia
parte das negociações entre escravos/libertos e senhores, direitos como os de cantar, dançar, brincar,
folgar, etc. Ademais, a vida espiritual e lúdica autônoma, por vezes considerada “diabólica”, era
bastante reprimida pelo poder policial Estatal – mais um instrumento de dominação favorável ao
poderio senhorial.
Sobre as relações paternalistas, além de favorecer os pretos nascidos no Brasil, REIS e
SILVA afirmam:
Paternalismo, bem entendido, não significava reações escravistas harmoniosas e
ausência de contradição; era estratégia de controle, meio de dominar de forma mais sutil e
eficiente, com menos desgaste e alguma negociação (REIS & SILVA 2005: 45)
Já no capítulo 4, adentramos o universo das fugas, revoltas e formação de quilombos, talvez
expressões das limitações das negociações entre escravos e senhores. As fugas representavam uma
pequena porcentagem da resistência dos escravos, mas nem por isso deve ser desconsiderada, pois
expõe certos limites da dominação e garante-lhe espaço para a negociação no conflito. As fugas
consistiam em dois tipos: reivindicatórias (vislumbravam ainda a possibilidade de melhorias para os
escravos) e de rompimento (por sinal, óbvias).
Para finalizar essa exposição argumentativa, nos dois últimos capítulos (5 e 6) expõe-se um
apanhado de duas revoltas mencionadas por REIS e SILVA: sobre o “partido negro” e o levante dos
malês. O que significaram?
Fugas, quilombos e revoltas ocorriam mais frequentemente quando os escravos
percebiam que os homens livres, os brancos sobretudo, estavam divididos (REIS & SILVA
2005: 11).
No caso do “partido negro”, trata-se do desenrolar dos acontecimentos da Independência na
Bahia, uma somatória de diversas forças sociais, na maior parte das vezes contrárias. O partido
negro representava, dentre esses, vários grupos negro-mestiços de escravos, libertos ou homens
livres, que tentaram negociar uma participação no movimento de Independência, ou subverter a
ordem escravocrata nos momentos de conflito luso-brasileiro, mas não podem ser considerados
numa unidade estratégica.
Sobre o levante dos malês, constatado no sexto e último capítulo, é proposta uma
argumentação em torno não mais da negociação, mas do conflito. Segundo REIS e SILVA:
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[...] houve uma rebelião escrava e, portanto, uma luta de classe num sentido
amplo. Mas “luta de classe” não é visto como uma panacéia que explica tudo. Houve
também luta étnica e luta religiosa (REIS & SILVA 2005: 100).
Não podemos considerar a luta de classes num sentido restrito em se tratando desse
episódio, mas sim relacionada à etnia e também à religião, isto é, associada à cultura, para além de
uma análise economicista.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não negamos que pudesse haver relações harmoniosas entre escravos e senhores, como
exemplo, citamos o caso das práticas “médicas” ou curandeiras, pelas quais alguns brancos tinha
grande inclinação, talvez por inexistência de instituições brancas relacionadas à Medicina e também
pela destreza individual dos negros nessas práticas. Porém, predominantemente a relação era
conflituosa
Pretendemos com o trabalho, desconstruir a perspectiva que exclui os escravos da história da
escravidão, e adotamos assim, a posição da história vista por baixo, onde há a inclusão dos
excluídos: os escravos enquanto agentes políticos, dotados de poder e sujeitos históricos.
A resistência cotidiana escrava propiciou direitos e concessões, estas não foram fruto da
benevolência dos senhores, mas antes negociações e conflitos que impunham limites ao arbítrio
absoluto dos senhores.
A abordagem de Freyre adota a perspectiva teórica da história vista sob a ótica da classe
dominante. Certa vez perguntaram a Gilberto: “Casa Grande & Senzala é um livro sobre a
sociedade brasileira do ponto de vista da casa grande, quando é que vai ter outro do ponto de vista
da senzala?” e sua resposta: “quando tiver outro gênio igual a mim.” Não negamos que sua obra não
seja importante, mas ela desconsidera o conflito e a resistência negra no âmbito da luta de classes.
A complexidade do real pressupõe contradições que a obra de Freyre e a perspectiva da história
vista de cima não dá conta.
Por fim, REIS E SILVA ressaltam ainda que:
O próprio Freyre, aliás, alertava para o fato de que a “benignidade nas relações de
senhores com escravos [...] não é para ser admitida [...] senão em termos relativos”. Na
verdade, completava, “senhor é sempre senhor” (REIS & SILVA 2005: 78)
5. AGRADECIMENTOS
Nossa gratidão para com os professores João Marcos Alem e Adalberto Paranhos pelos
ensinamentos que permearam a discussão desta pesquisa. Ao professor Edilson Graciolli pelo
trabalho prestado na orientação de nossos projetos individuais de monografia.
6. REFERÊNCIAS:
FREYRE, G. “Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia
patriarcal”, São Paulo, Editora Global, 2003.
REIS, J. J. & SILVA, E. “Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista”, São
Paulo, Companhia da Letras, 1989.
SIMÃO, A. “Sindicato e Estado”, São Paulo, Dominus Editora, 1966
THOMPSON, E.P. “A Formação da Classe Trabalhadora Inglesa”, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1987. Vol.1.
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