Ensaios e Ciência: Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde ISSN: 1415-6938 [email protected] Universidade Anhanguera Brasil dos Reis, Bruna; Novaes Paraizo, Marcelo Fabiano; Campos, Denise MOTRICIDADE DE LACTENTES QUE VIVEM EM ABRIGO Ensaios e Ciência: Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde, vol. 16, núm. 4, 2012, pp. 39-50 Universidade Anhanguera Campo Grande, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=26029236003 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto Ensaios e Ciência Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde MOTRICIDADE DE LACTENTES QUE VIVEM EM ABRIGO Vol. 16, Nº. 4, Ano 2012 RESUMO Bruna dos Reis Faculdade Anhanguera de Campinas unidade 3 [email protected] Marcelo Fabiano Novaes Paraizo Faculdade Anhanguera de Campinas unidade 3 [email protected] Denise Campos Faculdade Anhanguera de Campinas unidade 3 [email protected] Acredita-se que por carência de estimulação, de vínculos afetivos e atenção emocional, as crianças que vivem em abrigos podem apresentar alterações no desenvolvimento neuropsicomotor. Objetivo: Avaliar a motricidade de lactentes que vivem em abrigo, visando detectar precocemente possíveis atrasos ou alterações motoras, e encaminhá-los para intervenção. Metodologia: Tratou-se de um estudo transversal. Foram incluídos 5 lactentes, com idade entre 7 e 12 meses, de ambos os sexos, que vivem em abrigo. Para avaliação foi utilizada a Alberta Infant Motor Scale (AIMS), uma escala canadense que visa detectar lactentes com suspeita de atraso ou alteração no desenvolvimento motor. Resultados: Pôde-se notar que a maioria dos lactentes (80%) foram classificados abaixo do percentil 50, ou seja, abaixo da média do grupo normativo canadense. Cabe destacar ainda que 40% dos lactentes apresentaram suspeita de atraso motor e por isso foram encaminhados para estimulação na clínica de fisioterapia da Faculdade Anhanguera de Campinas (FAC). Palavras-Chave: motricidade; lactentes; fatores de risco; abrigo. ABSTRACT It is believed that children living in shelters may show alterations in motor development due to lack of stimulation, affective linkages and emotional care. Objective: To evaluate the motor performance of infants living in shelter, in order to detect possible early motor delays or alterations, and direct them to intervention. Methodology: This was a cross-sectional study. It was included five infants, aged between 7 and 12 months, of both sexes, living in shelter. For evaluation, it was used Alberta Infant Motor Scale (AIMS), a Canadian scale that aims to detect infants with suspected delay or alteration in motor development. Results: It should be noted that the majority of infants (80%) were classified below the 50th percentile, or below the average Canadian normative group. It is important to emphasize that 40% of infants had suspected motor delay and therefore they were referred to stimulation in the Physiotherapy Clinic of Faculty Anhanguera de Campinas (FAC). Keywords: motor activity; infant; risk factors; shelter. Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 4266 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 [email protected] Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 16/07/2012 Avaliado em: 26/11/2012 Publicação: 11 de dezembro de 2013 39 40 Motricidade de lactentes que vivem em abrigo 1. INTRODUÇÃO Desenvolvimento significa crescimento, progresso, ampliação. Nós seres humanos crescemos externamente, com ganho de peso e altura, e internamente, com ampliação das capacidades psicológicas. Sendo assim, conforme crescemos novas capacidades físicas e psicológicas vão se desenvolvendo (Rios, 1999). A organização do desenvolvimento começa na concepção, de modo que o domínio motor, afetivo-social (conduta pessoal-social) e cognitivo (conduta adaptativa e linguagem) se diferenciam gradualmente. Inicialmente o comportamento motor é a expressão da integração de todos os domínios. Este caráter do movimento indica o importante papel do domínio motor no desenvolvimento do ser humano (Tani et al., 1988). O primeiro ano de vida é considerado um dos mais críticos para o desenvolvimento infantil. Neste período, o desenvolvimento motor apresenta um ritmo acelerado de mudanças, as quais resultam na aquisição de mobilidade, visto que o lactente evolui de uma postura passiva em decúbito dorsal para a postura ortostática (Santos, Campos, 2010; Silva et al., 2011). Sabe-se que o desenvolvimento neural é fundamental para aquisição de habilidades, porém outros fatores como a prática e a interação com o ambiente, também exercem influência sobre o desenvolvimento motor. Admite-se então, que o desenvolvimento motor tem uma base genética, mas as habilidades inatas só se desenvolvem conforme o lactente encontra um ambiente favorável (Campos et al., 2005; Campos, Santos, 2005). Embora o desenvolvimento seja comum a todas as crianças, a idade para a aquisição de novas habilidades varia, pois a evolução se dá tanto por fatores genéticos como ambientais. Acredita-se que a velocidade do desenvolvimento motor, principalmente durante os primeiros 12 e 18 meses de vida, é influenciada pela maneira com que os pais manejam o lactente (Shepherd, 1988). Além disso, vários estudos mostram que fatores ambientais, tais como condições sócio-econômicas da família, grau de escolaridade, situação conjugal, e ocupação da mãe, também influenciam o desenvolvimento infantil (Sameroff, 1998; Sonnander, 2000; Halpern et al., 2002; Campos et al., 2007). Nesse sentido, as instituições de abrigo são frequentemente mencionadas como locais de impacto negativo para o desenvolvimento psicomotor (Nascimento et al., 2010). Ensaios e Ciência: Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde Vol. 16, Nº. 4, Ano 2012 p. 39-50 Bruna dos Reis, Marcelo Fabiano Novaes Paraizo, Denise Campos 41 De acordo com a Lei No. 8069 (1990), toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. A perda e suspensão do pátrio poder são decretadas judicialmente, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações. O abrigo é uma medida provisória e excepcional, utilizada como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade. A permanência breve ou continuada no abrigo está inteiramente relacionada à história singular de cada criança e/ou adolescente. Desta forma, a promoção de ações efetivas de inserção social se constitui um objetivo permanente, para que o abrigo seja realmente uma medida protetiva, de caráter excepcional e transitório (Estatuto da criança e do adolescente, 1990). O abrigo é um ambiente ecológico de muita importância para as crianças e adolescentes institucionalizados, configurando o microssistema onde eles realizam um grande número de atividades, funções e interações, como também um ambiente com potencial para o desenvolvimento de relações mútuas, de equilíbrio de poder e afeto (Siqueira, Dell'Aglio, 2006). A família proporciona para a criança um ambiente de carinho, amor, segurança, proteção, valores, religião, além de condições materiais, lazer, passeios e apoio emocional. Este ambiente proporciona um desenvolvimento saudável à criança. No abrigo, as crianças sofrem privação materna, associada à carência de estímulos (Torquato et al., 2011). Acredita-se que por falta de estimulação, vínculos afetivos e atenção emocional, as crianças de abrigo podem apresentar deficiências motoras, cognitivas, dificuldade em processar a linguagem e, consequentemente, prejuízo no processo de aprendizado (Silva et al., 2006). A vida em orfanatos tende a inibir as áreas de inteligência das crianças, interferindo na coordenação motora geral, interação social e linguagem. Verificou-se que 78% das crianças romenas provenientes de orfanato estavam atrasadas quando foram adotadas. Além disso, observou-se que cerca de 20% dos adotados eram “crianças prejudicadas”, ou seja, crianças muito afetadas pela institucionalização em orfanatos. Ensaios e Ciência: Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde Vol. 16, Nº. 4, Ano 2012 p. 39-50 42 Motricidade de lactentes que vivem em abrigo Essas crianças, após quatro anos de sua adoção, continuaram tendo problemas emocionais e de desenvolvimento (Ballone, 2004). 2. METODOLOGIA Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Anhanguera Educacional (n°2394/2012). Tratou-se de um estudo transversal. Foram incluídos 5 lactentes, com idade entre 7 e 12 meses, de ambos os sexos, que vivem no abrigo Associação de Educação do Homem de Amanhã (AEDHA). Foram excluídos lactentes que apresentaram síndromes genéticas e malformações congênitas. Para avaliação do desempenho motor foi utilizada a Alberta Infant Motor Scale (AIMS). A AIMS é uma escala canadense, que foi projetada para mensurar a evolução da motricidade desde o nascimento até o período de marcha independente. Segundo Piper e Darrah (1994), os objetivos da escala são: identificar os lactentes com desempenho motor atrasado ou anormal, proporcionar informações sobre as atividades motoras já alcançadas, as que estão se desenvolvendo e aquelas que os lactentes ainda não realizam. Além disso, a escala se propõe a mensurar o desempenho motor antes e depois de um programa de intervenção, e avaliar a eficácia de programas de reabilitação de lactentes com disfunções motoras. De modo geral, a AIMS é caracterizada pela observação, pelo mínimo manuseio do lactente e reconhecida como um instrumento bastante sensível para detectar alterações nos lactentes de risco, devendo ser utilizada apenas por profissionais devidamente capacitados. Essa escala é composta por 58 itens, que ilustram a seqüência de desenvolvimento do controle postural em 4 posições: prono (21 itens), supino (9 itens), sentado (12 itens) e em pé (16 itens). Cada item apresenta uma ilustração do lactente em uma posição específica e uma descrição chave sobre o local de descarga de peso, o alinhamento postural e os movimentos realizados contra a gravidade. Os materiais utilizados na avaliação foram: ficha de avaliação padronizada, brinquedos adequados para a idade do lactente, colchonete, e um móvel que serviu de apoio para a postura ortostática. O tempo médio para administração da avaliação foi de 20 minutos para cada lactente. Durante a avaliação, para cada uma das posições (prono, supino, sentado e em pé) foi identificada uma “janela de desenvolvimento”, a partir da observação da habilidade mais primitiva e mais complexa exibida pelo lactente. Cada item dentro da “janela” foi registrado como observado “O” ou não observado “NO”. Um item foi Ensaios e Ciência: Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde Vol. 16, Nº. 4, Ano 2012 p. 39-50 Bruna dos Reis, Marcelo Fabiano Novaes Paraizo, Denise Campos 43 registrado como observado, somente se o lactente manifestou a postura como mencionada na descrição chave do manual e da ficha de avaliação. Acredita-se que os itens anteriores à “janela de desenvolvimento” sejam habilidades motoras já alcançadas pelos lactentes, os itens dentro da “janela” sejam habilidades motoras que estão se desenvolvendo e os itens posteriores à “janela” sejam habilidades motoras ainda não adquiridas pelos lactentes. Sendo assim, dentro da “janela de desenvolvimento”, foram pontuados somente os itens observados durante a avaliação, e fora da “janela”, foram pontuados todos os itens que antecedem a mesma. Considerando que cada item equivale a um ponto, foi calculado um escore total, a partir da somatória de pontos obtidos nas 4 posições (prono, supino, sentado e em pé). A seguir, o escore total e a idade do lactente foram projetados numa curva de desenvolvimento, que classifica o lactente em uma faixa de percentil que varia entre 5 e 90 . Esse percentil foi responsável por indicar a posição de cada lactente em relação à amostra normativa canadense de mesma idade. Quanto mais alto o percentil de classificação, menor a probabilidade de atraso no desenvolvimento motor. Nesse sentido, as autoras da escala sugerem maior atenção ao desenvolvimento de crianças classificadas no percentil 10 ou abaixo (Piper, Darrah, 1994). 3. RESULTADOS O abrigo Associação de Educação do Homem de Amanhã – Aedha, possui 28 crianças, 15 do sexo feminino e 13 do sexo masculino, com idade entre zero e 12 anos, sendo uma criança portadora da Síndrome de Down. A instituição é sustentada pela mantenedora Guardinha de Campinas e convênio com empresas. Ao todo foram avaliados 5 lactentes, 3 do sexo masculino e 2 do sexo feminino, com idade variando entre 7 e 12 meses. Verificou-se que a maioria dos lactentes (60%) era do sexo masculino, todos os lactentes nasceram a termo e um lactente apresentou baixo peso ao nascimento. Todas as mães, exceto de um lactente, utilizaram drogas na gestação. Além disso, cabe destacar, que de modo geral, os lactentes apresentaram boa vitalidade ao nascimento, visto que o Apgar de 5’ foi maior que 8 para todos os lactentes, vide Tabela 1. Ensaios e Ciência: Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde Vol. 16, Nº. 4, Ano 2012 p. 39-50 44 Motricidade de lactentes que vivem em abrigo Tabela 1. Dados neonatais dos lactentes avaliados. Lactente Sexo Data de Idade Nascimento Gestacional Peso ao Estatura ao Nascimento Nascimento Perímetro Apgar Apgar Cefálico 1’ 5' 1* F 04/09/2011 39s 5d 3,515 kg 50 cm 35 cm 9 10 2 F 05/09/2011 40s 3d 2,920 kg 46 cm 34 cm 9 10 3 M 01/07/2011 40s 3d 2,730 kg 46 cm 31 cm 9 10 4 M 29/08/2011 37s 1d 2,085 kg 43 cm 33 cm 9 10 5 M 29/03/2011 38s 3,200 kg 50 cm 34 cm 9 9 s= semanas, d= dias, kg= quilogramas, cm= centímetros, * mãe não usou drogas na gestação A Tabela 2 mostra os dados referentes à institucionalização de cada lactente. Verificou-se que todos os lactentes vieram para o abrigo devido a violência doméstica, a maioria deles (60%) foram abrigados logo após o nascimento e nenhum lactente recebe visita de familiares. Tabela 2. Dados de abrigamento. Lactente Motivo do Abrigamento Data de Abrigamento Idade de Abrigamento Tempo de Abrigamento Recebe visita 1 Violência doméstica 05/09/2011 01 dia 7 meses Não 2 Violência doméstica 05/09/2011 01 dia 7 meses Não 3 Violência doméstica 20/07/2011 19 dias 9 meses Não 4 Violência doméstica 29/08/2011 01 dia 7 meses Não 5 Violência doméstica 24/04/2011 26 dias 12 meses Não A Tabela 3 apresenta os resultados da avaliação dos lactentes com a AIMS. Dentre as habilidades avaliadas, as mais prejudicadas estavam relacionadas à posição sentada e em pé. Pôde-se notar que a maioria dos lactentes (80%) foram classificados abaixo do percentil 50, ou seja, abaixo da média do grupo normativo canadense. Cabe destacar ainda que 40% dos lactentes apresentaram suspeita de atraso motor, visto que foram classificados no percentil 5, e por isso foram encaminhados para estimulação precoce na clínica de fisioterapia da Faculdade Anhanguera de Campinas (FAC). Além disso, as cuidadoras do abrigo foram orientadas quanto às atividades que podem ser realizadas para estimular o desenvolvimento motor das crianças. Ensaios e Ciência: Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde Vol. 16, Nº. 4, Ano 2012 p. 39-50 Bruna dos Reis, Marcelo Fabiano Novaes Paraizo, Denise Campos 45 Tabela 3. Desempenho dos lactentes na avaliação com a Alberta Infant Motor Scale. Lactente Idade na Avaliação Pontuação em Prono Pontuação em Supino Pontuação Sentado Pontuação em Pé Pontuação Total Percentil 1 7m 5d 8 8 3 1 20 5 2 7m 4d 13 9 3 3 28 25 3 9m 8d 20 9 12 3 44 50 4 7m 11d 10 7 3 1 21 5 5 12m 11d 19 9 12 10 50 25 m= meses, d= dias Considerando o ambiente do abrigo, os lactentes ficam em um quarto pequeno, contendo 5 berços, armário embutido para roupas e brinquedos, janela grande, e um espaço pequeno para eles ficarem no chão. A rotina dos lactentes começa pela manhã. Após acordarem, tomam banho, mamadeira, e vão para atividades diárias como: banho de sol, atividades com brinquedos e DVD infantis. A seguir almoçam, se necessário, é feita a higiene dos lactentes, descanso da tarde e novamente ficam brincando. Os lactentes recebem Shantala, uma vez por semana, durante 20 minutos e também recebem estimulação uma vez por semana, durante 20 minutos, realizada por voluntários, sem formação profissional específica. A estimulação é feita por meio de brincadeiras, atividades com músicas e massagens. Ao todo são 3 cuidadoras que se revezam para ficar com os lactentes. Duas cuidadoras se alternam durante os dias da semana e uma cuidadora permanece com os lactentes a noite. 4. DISCUSSÃO O ambiente em que o lactente vive pode dar diferentes formatos ou moldar aspectos do comportamento motor. O ambiente positivo age como facilitador do desenvolvimento normal, pois possibilita a exploração e interação com o meio. Entretanto, o ambiente desfavorável atrasa o desenvolvimento e restringe as possibilidades de aprendizado da criança. Paralelamente aos fatores de risco biológico, as desvantagens ambientais podem influenciar negativamente a evolução do desenvolvimento das crianças (Melo et al., 2011). O abrigo tem a função de oferecer à criança atendimento dentro de sua faixa etária incluindo cuidados de saúde, higiene, alimentação e atividades lúdicas. Esta instituição a qual pode ser pública e, às vezes até privada, tem recebido significante atenção social por abrigar crianças principalmente de pouca idade contribuindo, então, para seu crescimento e desenvolvimento. As crianças que vivem em abrigos podem apresentar alterações no desenvolvimento neuropsicomotor devido à carência de estímulos, vínculos afetivos e atenção emocional. Além disso, deve-se considerar como Ensaios e Ciência: Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde Vol. 16, Nº. 4, Ano 2012 p. 39-50 46 Motricidade de lactentes que vivem em abrigo agravante a grande demanda de crianças, falta de cuidadores e/ou falta de instrução dos cuidadores. (Lanzillotta et al., 2011). Além da falta de estimulação e experiência no ambiente, é fundamental o entendimento de que a ausência de laços afetivos durante a infância também interfere no desenvolvimento da criança, o que pode afetar suas relações sociais e com o meio. A separação de pessoas significativas e a institucionalização prolongada agem como importantes fatores de risco para o potencial de desenvolvimento da criança (Nascimento et al., 2010). Nesse sentido, acredita-se que as crianças que possuem carência de estímulos corporais e ambientais poderão apresentar dificuldades no decorrer do desenvolvimento atribuídas, em grande parte, ao fato de terem crescido num ambiente carente de estímulos (Lampreia, 1985). Um estudo que comparou o crescimento e desenvolvimento de crianças institucionalizadas com o de crianças que vivem com suas mães biológicas, demonstrou que as crianças sob cuidados institucionais, afastadas do convívio familiar, apresentaram crescimento e desenvolvimento mais pobres, sendo significativo o atraso encontrado nas diferentes áreas do desenvolvimento (Nascimento et al., 2010). Seguindo essa linha de pesquisa, Castanho (2003) caracterizou o desenvolvimento motor de crianças institucionalizadas, e mostrou indícios de que o atraso motor, apresentado pela amostra, pode estar relacionado ao ambiente e a falta de estimulação. Neste estudo 30 crianças de ambos os sexos, com idades entre zero e dezoito meses, abrigadas a mais de 10 dias na instituição, foram avaliadas com a AIMS. Pôde-se notar que 97% das crianças foram classificadas abaixo do percentil 50. Além disso, a análise do grau de desvio motor das crianças, agrupadas por trimestre, mostrou pior resultado para o grupo do 4º trimestre (9 a 12 meses). Semelhante a esses achados, no presente estudo, a maioria (80%) dos lactentes apresentaram baixo desempenho motor, sendo classificados abaixo do percentil 50 da AIMS; e 40% dos lactentes foram detectados como suspeita de atraso motor, visto que foram classificados no percentil 5 da AIMS. Tais resultados concordam com os autores acima, que também verificaram desempenho motor inferior em crianças de abrigo, e atribuíram tal fato ao ambiente institucional, com falta de estimulação e vínculos afetivos. Devido à importância e ao impacto dos atrasos no desenvolvimento no que se refere à morbidade infantil, é fundamental identificar as crianças de risco, o mais precocemente possível, a fim de minimizar os efeitos negativos. A avaliação do desenvolvimento da criança é ineficiente quando utilizada somente a impressão clínica. Ensaios e Ciência: Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde Vol. 16, Nº. 4, Ano 2012 p. 39-50 Bruna dos Reis, Marcelo Fabiano Novaes Paraizo, Denise Campos 47 Os testes de triagem aumentam a taxa de identificação de crianças com suspeitas de atraso, além de possibilitar o encaminhamento para diagnóstico e intervenção em momento oportuno (Campos et al., 2007). Existem evidências suficientes de que quanto mais precoce for o diagnóstico e a intervenção, menor será o impacto desses problemas na vida futura da criança (Miranda et al., 2003; Lanzillotta et al., 2011). Segundo Willrich e colaboradores (2008), a intervenção nos primeiros anos de vida apresenta resultados mais eficazes. Uma gama de fatores de risco pode levar ao surgimento de disfunções motoras, dentre os quais se destaca o baixo peso ao nascimento (Halpern et al., 2002; Mancini et al., 2004; Reis et al., 2009). Lactentes nascidos com baixo peso apresentam maiores taxas de crescimento subnormal, condições de saúde adversas e problemas no desenvolvimento. Quanto aos aspectos motores, esses lactentes apresentam comportamento abaixo do normal no controle da motricidade axial, apendicular e visuo-motora (Santos et al., 2004). Cabe destacar que, neste estudo, uma criança (número 4) apresentou baixo peso ao nascimento e foi classificada no percentil 5 da AIMS. Neste caso, o fator de risco biológico (baixo peso ao nascimento) se somou ao fator de risco ambiental (institucionalização). Tal fato pode justificar o baixo desempenho motor encontrado. Outro fator de risco descrito pela literatura refere-se ao uso de drogas durante a gestação. No século XX o índice de mulheres usuárias de alguma droga, tabaco ou álcool aumentou significativamente, e com isso, há preocupação com o seu consumo, pois uma mulher dependente química pode não estar escravizando apenas a si própria, mas também a outro ser ainda em fase de desenvolvimento. Este ser, ainda em desenvolvimento, pode apresentar comprometimento do desenvolvimento bio psicosocial (Fabbri, Pedrão, 2000). Estudos mostram que a cocaína atravessa rapidamente a barreira placentária, sem sofrer metabolização, agindo diretamente nos vasos sanguíneos do feto, determinando vasoconstrição, além de malformações urogenitais, cardiovasculares e do sistema nervoso central (Yamaguchi et al., 1998). Segundo Corradini et al. (1996), o uso da cocaína durante a gestação pode provocar atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor. Com relação ao álcool e tabaco, é importante dizer que o consumo durante a gestação pode causar atrasos no desenvolvimento físico e mental do lactente (Corradini et al., 1996). Há ainda riscos de malformação congênita, morte súbita na infância e alterações do comportamento (Cruz et al., 2011). No presente estudo todas as mães, exceto uma, utilizaram algum tipo de droga durante a gestação. Sendo assim, acredita-se que o uso de Ensaios e Ciência: Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde Vol. 16, Nº. 4, Ano 2012 p. 39-50 48 Motricidade de lactentes que vivem em abrigo drogas durante a gestação também tenha influenciado o baixo desempenho motor dos lactentes institucionalizados. O presente estudo apresenta algumas limitações que devem ser levadas em conta quando se considera o estudo e suas contribuições. Primeiro, foram incluídos 5 lactentes no estudo, de modo que não se pode generalizar tais achados para a população. Segundo, houve dificuldade para discutir os resultados encontrados, devido à carência de pesquisas publicadas sobre o assunto na área de fisioterapia. Existem vários trabalhos investigando os aspectos emocionais e psicoafetivos de crianças institucionalizadas, mas há uma carência de pesquisas verificando a influência do ambiente institucional no desenvolvimento motor. 5. CONCLUSÃO O presente estudo avaliou a motricidade de lactentes que vivem em abrigo e verificou que a maioria dos lactentes foi classificada abaixo do percentil 50, ou seja, abaixo da média do grupo normativo canadense. Além disso, 40% dos lactentes apresentaram suspeita de atraso motor, sendo encaminhados para estimulação precoce. Acredita-se que o baixo desempenho motor pode estar associado ao ambiente institucional, o qual proporciona poucas oportunidades para os lactentes brincarem e interagirem com o meio. REFERÊNCIAS Ballone GJ - Criança Adotada e de Orfanato - in. 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Atualmente é Pesquisadora do Grupo Interdisciplinar de Avaliação do Desenvolvimento Infantil (GIADI / FCM / Unicamp), Grupo de Pesquisa Cadastrado no CNPq; Professora e Supervisora de Estágio de Fisioterapia em Neurologia Adulto e Infantil na Faculdade Anhanguera de Campinas (FAC). Tem Experiência na Área de Fisioterapia, com Ênfase em Neurologia Adulto e Infantil. Ensaios e Ciência: Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde Vol. 16, Nº. 4, Ano 2012 p. 39-50