Março| 2014
A redução recente dos superávits primários e os desafios à frente
O governo central (que inclui o Tesouro Nacional, o Banco Central e a Previdência Social) alcançou no ano passado um superávit primário de 1,6% do PIB.
Isto denota continuidade da tendência de recuo do superávit já observada em 2012. Como consequência, o saldo já diminuiu 0,7% do PIB em relação aos 2,3% do
PIB registrados em 2011. A queda no ano passado teria sido maior, contudo, não fosse a contribuição de receitas não recorrentes. A arrecadação advinda de
concessões, com destaque para novos campos petrolíferos, foi de 0,46% do PIB em 2013 e, além disto, o governo teve uma arrecadação de 0,43% do PIB com o
Refis, o programa de renegociação de dívidas tributárias.
Excluindo-se o efeito de receitas extraordinárias, tem-se uma queda mais acentuada do superávit primário, vindo de 1,9% em 2011 para 0,8% em 2013. A
trajetória dos últimos dois anos reacende uma discussão, que esteve relegada a um segundo plano desde meados da década passada, sobre a sustentabilidade da
dívida pública brasileira. De fato, os níveis atuais de superávit primário do setor público consolidado (que inclui, além do governo central, também os estados e
municípios), em torno de 1% do PIB se excluirmos receitas não recorrentes, está bastante abaixo do intervalo de 2,5% a 3% do PIB que seria requerido para
estabilizar a relação dívida/PIB.
À luz desses números, parece claro que em algum momento será necessário um esforço de ampliação do superávit primário, de forma a impedir que a
dívida pública tenha uma trajetória contínua de elevação. Considerando-se o ciclo político, o momento em que ajustes dessa natureza costumam ocorrer é o início
de novos mandatos presidenciais. Sendo assim, da ótica dos mercados, a questão fiscal será um tema central das eleições deste ano: a disposição dos candidatos
de implementar um ajuste e os contornos que esse ajuste possa vir a tomar serão fundamentais para o desempenho econômico e a trajetória dos preços dos ativos
brasileiros nos próximos anos.
Como ponto de partida para a discussão sobre a forma de eventuais ajustes em 2015, é interessante que busquemos entender o que determinou a
trajetória de declínio dos superávits nos últimos anos. Nesse sentido, cabe observar que não há sinais de aceleração no crescimento do gasto. Que fique claro, com
isto não queremos dizer que o gasto público não tenha crescido vigorosamente: a expansão real média dos gastos primários nos últimos dois anos foi de 6,2%. Isto
representa, contudo, continuidade da trajetória que temos observado pelo menos desde 1997, quando a base de dados do Tesouro Nacional se tornou disponível.
Ao longo desses 16 anos, o crescimento médio anual da despesa primária em termos reais foi de 6,3%. Como o crescimento médio anual do PIB ao longo desse
tempo foi de 2,9%, a despesa pública primária federal saltou de 14% para 19% do PIB.
Diante do crescimento dos gastos em velocidade muito superior à da expansão do PIB, a geração de superávits primários somente foi possível graças à
continua elevação da carga tributária: desde 1997, a receita total do governo federal com impostos e contribuições saltou de 16,1% para 22,1%. Considerando-se
apenas o governo federal, portanto, tivemos uma impressionante elevação de carga tributária média anual de 0,37% do PIB ao longo dos últimos 16 anos.
Considerando-se que não há uma descontinuidade na trajetória dos gastos primários, que apenas mantêm a tendência de forte elevação das últimas
décadas, a piora do desempenho fiscal nos últimos dois anos se concentra na receita: a arrecadação de impostos e contribuições cresceu 3,3% ao ano em termos
reais nos últimos dois anos, ante uma média de 5,5% entre 2003 e 2010. É importante observar que essa diminuição do crescimento não reflete uma diminuição da
carga tributária. Pelo contrário, a arrecadação ainda cresce a uma velocidade bem superior à expansão do PIB, que foi de apenas de 1,7% ao ano no período.
O problema, evidentemente, é que o crescimento do PIB passou a ser muito menor: enquanto de 2003 a 2010 a economia cresceu em média 4% a.a., nos
últimos três anos tivemos uma desaceleração para 2% ao ano. Com a perda de dinamismo da atividade econômica, é muito mais difícil manter o equilíbrio das
contas públicas.
É importante observar, a respeito, que a desaceleração do crescimento no início desta década não é independente da política fiscal. O padrão de ajuste
fiscal que tivemos nas últimas décadas é extremamente perverso sob a ótica do crescimento. Isto porque, em primeiro lugar, ele nos levou ao maior nível de carga
tributária entre os principais países emergentes: se considerarmos todos os níveis de governo, alcançamos 35,9% do PIB em 2012, e certamente um pouco mais
em 2013. E isto é um problema não apenas porque os impostos são altos, mas também porque o sistema tributário, que ao longo do tempo foi sofrendo mutações
para maximizar a arrecadação, tornou-se extraordinariamente complexo e distorcivo.
A perversidade da política fiscal, porém, não se restringe à carga tributária. A despeito do forte crescimento do Estado nas últimas décadas, a sua
capacidade de investimento se manteve muito baixa. O governo federal, no ano passado, investiu apenas 1% do PIB, o que denota leve queda em relação ao nível
de 2012 (1,1% do PIB) e manutenção do nível de 11 anos antes. A carência de investimentos em infraestrutura é um grave entrave ao crescimento e reduz as
oportunidades de investimentos privados.
Março| 2014
Dado que os investimentos têm estado aproximadamente estagnados, a ampliação do gasto público tem se concentrado nas transferências às famílias e
na ampliação da rede de proteção social. Os benefícios previdenciários pagos pelo INSS, por exemplo, saltaram de 5% para 7,4% do PIB desde 1997. Mais
recentemente, no atual mandato presidencial, houve uma pressão relevante associada à ampliação dos subsídios, com destaque para a decisão em 2013 de não
repassar às tarifas pagas por consumidores o aumento no custo de geração de energia associado à necessidade de utilização mais intensa de usinas térmicas.
O ponto que queremos ressaltar é que estamos claramente em um círculo vicioso. Houve nos últimos anos uma tendência de preocupante recuo dos
superávits primários, e isto deriva da dificuldade cada vez maior de produzir uma expansão da arrecadação capaz de fazer frente ao forte crescimento do gasto
público, que tem sido recorrente desde a promulgação da Constituição de 1988. A dificuldade de expandir a arrecadação, por sua vez, deriva em parte do fato de,
com carga tributária recorde e baixíssimos níveis de investimento público, termos caminhado para um crescimento potencial menor.
Do ponto de vista estritamente econômico, a solução para essa situação parece razoavelmente óbvia. Seria preciso, em primeiro lugar, buscar uma
agenda de reformas que pudessem estimular o crescimento de longo prazo, com destaque para o estímulo à melhoria da produtividade, que esteve próxima da
estagnação nos últimos anos. No que toca à política fiscal, seria necessário empreender esforços para assegurar que, ao longo das próximas décadas, se
implementasse uma lenta, porém persistente, redução do gasto público corrente como proporção do PIB. Além de reforçar uma trajetória de sustentabilidade da
dívida pública, esses esforços contribuiriam também para elevar a poupança doméstica, o que é fundamental para viabilizar o esforço de ampliação do
investimento sem incorrer em desequilíbrios externos.
Não se deve esquecer, porém, que há por trás um problema de economia política dos mais complexos. A trajetória de gastos públicos que observamos nas
últimas décadas reflete escolhas feitas pela sociedade brasileira através de seus representantes democraticamente eleitos. Problemas de economia política não
comportam soluções tecnocráticas. Resta-nos torcer, nesse sentido, para que o processo eleitoral nos traga uma discussão realista sobre o tamanho e a
composição do gasto público, respeitando a necessidade imperiosa de equilíbrio intertemporal das contas públicas e considerando os efeitos dessas escolhas
sobre a distribuição de renda e o crescimento econômico.
Alexandre Bassoli
Economista-chefe do Opportunity e Mestre em Economia pela USP.
Download

A redução recente dos superávits primários e os desafios à frente