Josep Mª Pascual Esteve
GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA:
CONSTRUÇÃO COLETIVA DO
DESENVOLVIMENTO DAS CIDADES
Tradução: João Carlos Vitor Garcia
Belo Horizone, 2009
A minha esposa, Àngels Guiteras, pelo
seu apoio, confiança e sugestivas observações quanto ao conteúdo do texto.
Agradeço a confiança das pessoas e entidades que promoveram a edição brasileira, em especial à Fundação Astrojildo Pereira e a João Carlos Vitor Garcia, pela tradução e adaptação do texto. E minha especial
gratidão pelos comentários e correções do
texto original feitos por Júlia Pascual.
Sumário
Prefácio..................................................................................11
Apresentação..........................................................................15
Introdução à edição brasileira..................................................19
Introdução..............................................................................23
1.Governança: Uma nova arte de governar............................ 27
Ideias Principais......................................................................27
Governança: descentralização, participação e colaboração
com a sociedade civil..............................................................28
A governança democrática é mais do que uma dimensão
da ação de governo ...............................................................32
Os modos de governar na democracia: Burocrático,
Gerencial e Governança...........................................................37
A governança é a arte de governar própria do governo
relacional emergente...............................................................43
A governança é o modo de governar da sociedade do
conhecimento.........................................................................55
2. Governança Democrática: Construção coletiva do
desenvolvimento humano.................................................. 59
Ideias Principais .....................................................................59
A finalidade da governança democrática é o desenvolvimento
humano..................................................................................60
A governança exige e precisa de democracia............................62
A coesão social é o motor do desenvolvimento econômico e
social......................................................................................63
A coesão social é o principal objetivo da governança................66
A gestão relacional é a modalidade de gestão característica da
governança.............................................................................70
A gestão relacional se assenta em um conjunto de técnicas e
instrumentos...........................................................................73
Para desenvolver-se, a governança precisa ter êxitos eleitorais
visíveis....................................................................................78
3.O Governo Relacional e a Governança se assentam
nas mudanças sociais e na emergência da
sociedade-rede.................................................................. 81
Ideias Principais .....................................................................81
Nova desigualdade social e nova visão da pobreza...................84
A individualização das relações sociais e a geração de
capital social...........................................................................86
Risco e vulnerabilidade social..................................................90
Imigração: identidade e multiculturalidade..............................92
Mudanças na família...............................................................94
A cidade à medida das mulheres.............................................96
Uma nova visão do tempo e espaço.........................................99
A centralidade dos valores na organização social....................100
A globalização do social .......................................................102
Mudanças nas formas de prestação e gestão dos serviços de
bem-estar social . .................................................................107
Conclusão: da gerência à governança.....................................108
4.A revalorização da política no Governo Relacional............ 111
Ideias Principais....................................................................111
O governo provedor e a crise da política local .......................112
A democracia é básica para o desenvolvimento econômico
na sociedade-rede . ..............................................................114
O governo relacional necessita de qualidade democrática.......117
A política democrática como capacidade de representação.....118
Um novo papel para o eleito local.........................................119
5. A liderança do Político Eleito na governança..................... 121
Ideias principais....................................................................121
Capacidade de visualizar os interesses e habilidades da
cidadania..............................................................................122
Uma nova visão do poder.....................................................125
A liderança representativa é relacional ..................................126
A liderança representativa é capacitadora..............................128
A distinção entre política e gerência.......................................129
A liderança estabelecida através da direção política e
moral ..................................................................................132
O representante político é o principal agente de mudança......134
A nova tarefa: tornar visível o apoio social às políticas............135
6. Fundamentos para liderar a coesão social a partir
do governo local.............................................................. 137
Ideias Principais....................................................................137
Os 7 pilares para a liderança política.....................................139
O envolvimento do governo local .........................................142
Antecipar-se e canalizar situações de conflito.........................146
O apoio necessário à liderança relacional ..............................149
7. Perfil político para a liderança representativa na
governança: Valores, habilidades e atributos.................... 151
Ideias Principais ...................................................................151
Os valores que sustentam a liderança representativa...............152
Habilidades ou aptidões do perfil político para a prática da
governança...........................................................................155
Principais atributos para a prática da governança...................158
8. Os Governos Locais: Protagonistas na era da governança.. 161
Ideias Principais....................................................................161
As condições de êxito do nível local . ....................................162
A prefeitura como organizador coletivo.................................163
O Poder Local: riqueza dos países e regiões . .........................165
Os municípios autoinssuficientes............................................166
A crescente importância dos governos intermunicipais . .........167
9. A governança do Bem-Estar Social.................................... 169
Ideias Principais ...................................................................169
O Bem-Estar Social: vanguarda da governança.......................170
A reestruturação da gestão dos serviços públicos do
bem-estar social....................................................................173
A visão do conjunto da oferta de serviços do território...........177
A qualidade das redes: as marcas de garantia.........................180
A contratação externa para a gestão de serviços com base
no desenvolvimento comunitário...........................................182
A gestão de redes e a participação cidadã .............................185
A participação como envolvimento da cidadania na
construção da cidade............................................................188
O apoio social às estratégias e políticas .................................192
A organização municipal necessária para a governança
democrática..........................................................................194
Referências selecionadas...................................................... 197
1. Bibliografia.......................................................................198
2. Links eletrônicos ..............................................................199
Prefácio
Qual é o lugar da cidade nas sociedades globalizadas? Como
produzir cidades democráticas e como democratizar a convivência
nas cidades? Buscando responder estas e outras perguntas, este
livro, de autoria do celebrado intelectual Josep Ma Pascual Esteve,
aborda um tema, e um problema, da maior relevância para a política contemporânea: o da governança democrática das cidades.
O autor parte de um referencial analítico que explicita e distingue os conceitos de governabilidade, governança e bom governo (p.11); de governança burocrática, gerencial e relacional.
Apresenta três modelos de governação: burocrático, gerencial e
governança (p. 20). E afirma: a governança é o modo de governar
próprio do governo-rede ou relacional, que é adequado à nova sociedade em rede, também denominada sociedade do conhecimento (p.
21). A partir daí, Pascual Esteve propõe-se o desafio de pensar
as conexões e disjunções entre as cidades e os espaços políticoadministrativos cada vez mais ampliados, que desaguam, hoje,
em instituições supranacionais cujo exemplo mais acabado é o da
União Européia.
Há algumas décadas, em trabalho magistral, Norberto Bobbio
referiu-se à demanda crescente por democracia em um contexto
cada vez mais adverso para a sua efetivação: sociedades complexas, de grandes números, atravessadas por clivagens as mais diversas ­- étnicas, religiosas, linguístivas, socioeconomicas, etc. Suas
reflexões ganham corpo com o avanço da globalização e a multiplicação de organizações multilaterais, instituições supranacionais
e a superação das barreiras nacionais para o livre trânsito de pessoas, idéias e mercadorias.
O livro Governança Democrática: Construção Coletiva do Desenvolvimento das Cidades refere-se à importância das cidades para a
construção de uma globalização mais integradora, em que as cidaPrefácio
11
des formam uma rede de nós urbanos a partir da qual se tecem as
interações entre os diferentes atores nos diversos patamares em
que se organiza a convivência democrática: as cidades, os países,
as organizações multilaterais, as instituções supranacionais: … as
cidades são a riqueza das nações e (…) a era infoglobal se assenta em
um sistema mundial de cidades (p. 105).
Pascual Esteve afirma que a finalidade da governança democrática é o desenvolvimento humano, traduzido como democracia, equidade social e desenvolvimento econômico. E ressalta a
importância da coesão social, considerada por ele como o principal objetivo da governança democrática.
Enfrentando o espinhoso tema relativo ao como fazer, o autor apresenta um conjunto extenso de ferramentas já disponíveis
para a operacionacionalização da governaça democrática: os planos estratégicos; a negociação relacional dos conflitos públicos; as
técnicas de mediação; as técnicas de participação cidadã e apoio
social às políticas públicas; os métodos e as técnicas de gestão de
projetos em rede; a gestão da cultura empreendedora e cívica da
cidadania; o coaching para a liderança relacional; as técnicas de
construção de consensos; o enfoque abrangente nas ciências sociais e a direção sistêmica por objetivos (ps 44-46).
Vale, no entanto, mencionar que Pascual enfatiza que não se
trata de uma questão apenas ou eminentemente técnica: a dimensão política da governança democrática emerge com o tratamento
dos temas da participação cidadã e da representação política e
com a necessidade de estabelecimento de sinergia entre ambas. A
respeito, afirma o autor:
Uma sociedade educadora dificilmente é compatível com a visão
de uma gestão pública distante das preocupações e demandas dos
cidadãos (…). A democracia na nova cidade significa descentralização
de competências e recursos para os governos locais, para que eles possam (…) inaugurar uma nova forma de governar baseada na gestão
de redes cidadãs (p. 55).
12
Prefácio
Crítico do modo gerencial de governar, Pascual propõe sua
substituição pela gestão relacional ou das interdependências próprias
da governança (p. 65), na qual a liderança representativa deve
ser relacional e capacitadora, e não dominadora, e na qual fica
clara a distinção entre os papéis do político e do gerente. Em suas
palavras:
Hoje a governaça se encontra em uma etapa ascendente, deslocando o caduco modo gerencial de governar que (…), comportou ­– e,
sobretudo, sua permanência ainda comporta ­– grandes deficits nas
duas grandes dimensões da democracia: a qualidade da representação
do eleito e a participação e colaboração cidadã na gestão da cidade
(p. 110).
Por contraste, na governança democrática, o gerente deveria
preocupar-se com uma gestão eficiente, isto é, com a produtividade;
porém uma produtovidade posta a serviço do cumprimento de objetivos sociais, cuja identificação tenha sido liderada pelo representante
eleito (p. 82).
Em instigante coincidência, o nosso atual modelo de gestão
em Minas Gerais já antecipa esta metodologia, vez, que nossa
maior obsessão é, exatamente, pela eficiência e pelos resultados,
em favor da sociedade e dos cidadãos, por meio de políticas públicas urdidas em comum com os setores representativos das forças sociais. Poderíamos, assim, ousar afirmar que, em certas circunstâncias, a prática preconizada por Pascual Esteve encontra-se
já vigente em nossas Minas Gerais.
Boa leitura!
Antonio Augusto Junho Anastasia
Vice-Governador de Minas Gerais
Prefácio
13
14
Apresentação
O leitor atento poderá chegar ao final deste livro com a sensação de que suas teses e propostas estão a uma distância imensurável da realidade brasileira. Um sentimento semelhante ao de
um amigo meu, ao ler os originais, cuja identidade não cabe aqui
revelar: “Aproveitei a parada de carnaval para finalizar a leitura do
livro... Muito avançado para nós, pobres brasileiros encalacrados
com os... [partidos] da vida... Deu um certo desalento, confesso.
Na fase da vida em que estou, muito pouca esperança me resta
de que algo venha a mudar aqui, no meu tempo. Sou mais pessimista que você, ou talvez menos idealista. Não enxerguei, em nenhuma linha, a mais tênue característica ou valores que os nossos
políticos possam [ter para], um dia que eu possa ver, agir com tal
grandeza ou compromisso.”
Tamanha descrença, certamente resultado de uma leitura
cuidadosa, não é de todo exagerada à primeira vista. Seja pelas instigantes reflexões a respeito das transformações hoje em
curso no mundo e seus desdobramentos na cultura política vigente, seja pelas categóricas afirmações que faz sobre a necessidade de mudanças de posicionamento dos governos perante
a sociedade, o trabalho de Josep Ma Pascual Esteve não deixa
o leitor indiferente. Ele tem clareza e força suficientes para fustigar as práticas de governo estabelecidas – segundo Pascual,
corroídas pelo tempo – e, ao mesmo tempo, para demonstrar
o árduo e longo caminho a percorrer se quisermos promover
a sua necessária transformação, ajustando-as às exigências da
chamada sociedade do conhecimento e da informação. Vem
daí, pois, o natural abatimento inicial, que pode ser atribuído
mais propriamente à enormidade da tarefa a ser conduzida do
que a qualquer outra impossibilidade estrutural ou moral da
sociedade brasileira.
Apresentação
15
Sim, porque o livro é um contundente chamamento à ação
e traz o entusiasmo e a autoconfiança de quem sabe aonde quer
chegar. Sua energia se concentra na proposta de fortalecimento
dos governos das cidades, para que possam enfrentar as dificuldades mais importantes e os obstáculos mais comuns encontrados
na gestão das demandas cidadãs. Examina em detalhes como os
desafios, que dificultam a conquista dos resultados esperados, podem arranhar a sua legitimidade democrática e fragilizar o apoio
da cidadania às políticas públicas. A tese que defende localiza tais
dificuldades no tipo de relação estabelecida entre governo local e
cidadania, em que o primeiro aparece quase que exclusivamente
como provedor de serviços e gestor dos recursos públicos.
Pascual desenvolve o argumento de que esse modo de governar – identificado na sua forma mais avançada com a introdução
de práticas gerenciais do setor privado na esfera pública – precisa
ser superado. Não apenas porque os recursos públicos são e serão
cada vez mais insuficientes para atender as crescentes e complexas demandas da população, mas também porque as transformações que ocorrem hoje na sociedade – em suas bases econômicas,
sociais, políticas e tecnológicas – criam as condições necessárias
para o surgimento de um novo tipo de governo, denominado
pelo autor de governo relacional. Neste, as funções burocráticas
e, principalmente, as gerenciais não desaparecem, mas perdem
importância relativa diante da concepção de que na sociedaderede cabe aos governos reposicionarem-se para gerir interdependências – assim como as principais redes sociais – e melhorar a
capacidade de organização e ação da sociedade para alcançar o
desenvolvimento humano.
Nessa perspectiva, o gerente perde posição para o político.
Ganha relevância o capital político local, formado pela equipe
de governo, para articular socialmente o município e influir positivamente no desenvolvimento da cidade. Em outras palavras,
impõe-se a revalorização da política ante a gestão e a importância
da liderança representativa para organizar a ação do conjunto da
16
Apresentação
sociedade com base em objetivos democraticamente compartilhados.
Não é preciso muito esforço ou conhecimento especializado
para reconhecer que em nosso país há enormes dificuldades para
implantação, com sucesso, até mesmo do modo gerencial de governo – esse modo que Pascual diz estar numa encruzilhada – ou
que os nossos governos locais muito raramente têm sido dinamizadores do desenvolvimento das cidades. Daí a relevância da
reflexão sobre os caminhos alternativos a serem perseguidos por
nós, um enfrentamento que implica a necessidade da construção
de uma nova cultura política diante das grandes transformações
em curso no mundo e seus impactos no país. Tal construção passa, indiscutivelmente, pelo fortalecimento da capacidade institucional dos municípios e da capacidade pessoal dos políticos eleitos com a responsabilidade de governar, cuja preparação exige o
conhecimento dos principais instrumentos técnicos e pessoais de
trabalho político necessários à gestão estratégica e ao exercício
da liderança política. Isso significa, sobretudo, deter o domínio
dos conteúdos mínimos das estratégias e ações de governo que
traduzem as concepções e valores relativos à absoluta relevância
da política democrática para promover patamares de qualidade
de vida mais elevados para todos.
Nesse sentido, por pretender ser propositivo e útil aos políticos e técnicos que atuam na administração dos municípios, o livro
é bastante didático. Desenvolve de maneira concreta e detalhada uma nova perspectiva da atuação dos governos locais, em
que a cidade é considerada uma construção coletiva e o governo local o dinamizador e organizador da capacidade de ação da
sociedade. Examina em profundidade temas relevantes como a
participação e envolvimento cidadão, o planejamento estratégico
urbano, a gestão de projetos em rede e a gestão para uma cultura
empreendedora. E, sobretudo, apresenta com firmeza a opção
pela qualidade do meio ambiente, pelos valores que devem preApresentação
17
sidir o desenvolvimento e pela radical melhoria da qualidade da
democracia local.
Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento das cidades traz à reflexão, portanto, referências teóricas
e proposições práticas inovadoras em um campo da política democrática brasileira cujo acúmulo é ainda muito pequeno. A expectativa é que sua circulação possa contribuir para uma pauta de
discussão tão importante quanto a necessidade de revalorização
da política e da sua centralidade para o desenvolvimento do país
e das nossas cidades. Uma contribuição abrangente que perpassa,
desde a renovação da nossa velha arquitetura governamental e
dos mecanismos de participação da sociedade civil nas políticas
públicas, até a mais apaixonada defesa de valores democráticos
fundamentais como liberdade, coesão social e respeito aos direitos humanos, em uma sociedade sempre mais interdependente.
João Carlos Vitor Garcia
Fundação Astrojildo Pereira
18
Apresentação
Introdução à edição brasileira
Os conceitos nas ciências sociais e políticas nem sempre têm o
mesmo significado para todas as escolas e autores: poder, classe
social, sociedade civil, capital social etc. Isto também ocorre nas
ciências físicas, como no caso da incerteza quântica ou mesmo do
conceito de relatividade, o que pode dificultar tanto a compreensão dos fenômenos como a organização da ação que tenham
tais conceitos em conta. Esta é uma dificuldade que não se pode
evitar, dados os distintos contextos socioculturais em que são usados ou seus significados em idiomas diversos. Portanto, é preciso
explicitar os conceitos que se utilizam e diferenciá-los de outros
usos, em especial dos que têm um significante ou significado contrário. Este é o caso do conceito de governança, que é utilizado
em alguns meios intelectuais e políticos como modo de governar
corporativo, que diminui a importância da democracia e do papel
da política, ou seja, em sentido completamente antagônico do
utilizado neste livro. Por esta razão, é importante explicitar o conceito de governança neste prólogo.
O que se entende por governança? Como assinala Renate Mayntz
em um trabalho que reúne os distintos significados do conceito,
por governança se entende, desde os anos 90, uma nova maneira
de governar, diferente do modelo hierárquico, um modo mais corporativo em que os atores estatais e não estatais – e, em geral, a
sociedade civil – participam em redes públicas e privadas.1 Desde
aquela década, tem aumentado o consenso no sentido de que a
eficácia e legitimidade da atuação do governo fundamentam-se na
qualidade da interação entre os distintos níveis de governos e, em
especial, entre os governos e as organizações empresariais, sociais
e a cidadania em geral. Governança é, portanto, uma nova forma
1
Ver “New challenges to governance theory”, European University Institute, The Robert
Schuman Centre Florence – Jean Monnet Chair Papers nº 50 (1998).
Introdução
à edição brasileira
19
de governar própria da sociedade-rede, é o modo de governar
para fazer frente à crescente complexidade e diversidade das sociedades contemporâneas, que se caracterizam pela interação de
uma pluralidade de atores, relações horizontais, pela participação
da sociedade no governo e sua responsabilidade de fazer frente
aos desafios socialmente colocados.
Este conceito foi intencionalmente mal interpretado por alguns
setores, que consideraram que a governança permite um certo
“relaxamento” das funções do governo democrático e prioriza as
relações entre o governo e as grandes corporações empresariais e
institucionais em detrimento das relações com a cidadania em geral, produzindo, deste modo, o aviltamento dos valores públicos
e da própria política. Esta concepção é própria tanto dos neoconservadores, que buscam a dominação da sociedade através dos
grandes interesses corporativos, como dos críticos que vão a seu
reboque e tão somente invertem seus argumentos, sem, contudo,
serem capazes de encontrar uma estratégia própria. Seja como for,
é preciso diferenciar-se desta concepção e, para isso, é necessário
entender o uso do conceito de governança que se faz neste livro
como governança democrática.
O que é governança democrática? O movimento de cidades e regiões denominado AERYC (América-Europa de Regiões e Cidades),
que promove a governança democrática como sendo o modo de
governar cidades mais adequado à sociedade contemporânea, a
define como “uma nova arte de governar os territórios (o modo
de governar próprio do governo relacional), cujo objeto é a capacidade de organização e ação da sociedade, através da gestão
relacional ou de redes, tendo como finalidade o desenvolvimento
humano”.2 Em outras palavras, não se trata apenas de gerir as relações e interdependências dos atores e setores da cidadania que
interagem em determinada situação ou diante de desafios sociais
2
20
Ver www.aeryc.org
Introdução
à edição brasileira
que nos propomos a enfrentar, mas de fazer isso em função dos
valores do desenvolvimento humano.3 Governança democrática
implica a condução do desenvolvimento econômico e tecnológico
em função dos valores de equidade social, coesão territorial, sustentabilidade, ética e ampliação e aprofundamento da democracia e da participação política.
A governança democrática, de acordo com o conceito que
adotamos, se caracteriza por:
• O envolvimento da cidadania na solução dos desafios sociais.
Uma boa governança necessita de uma cidadania ativa e
comprometida com a coisa pública, isto é, a de todos e
de todas. Por isso, é preciso que existam canais de participação e de responsabilidade de todos, porque a cidade
é uma construção coletiva cujo resultado depende das
ações e interações de todos os cidadãos.
• O fortalecimento dos valores cívicos e públicos. O progresso
e a capacidade de inovação de uma cidade dependem
da densidade e diversidade das interações de toda a população. Os valores de respeito, convivência, confiança,
solidariedade e colaboração são essenciais para construir
a cidade de todos e de todas. Governança democrática é
uma opção por valores cívicos e democráticos.
• A revalorização da política democrática e do papel do governo representativo. A governança representa uma mudança
no papel do governo em relação à sociedade. O governo
não aparece simplesmente como provedor de recursos
ou de serviços, mas fundamentalmente como representante da cidade, de suas necessidades e desafios. O governo não apenas dispõe de competências, mas também
de incumbências. A ele cabe tudo o que preocupa a cidadania, e por isso ele assume o papel de estruturador
3
Como definidos pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
Introdução
à edição brasileira
21
da capacidade de organização e ação da cidade e das
relações entre os distintos níveis de governo. Portanto,
na governança democrática o papel do governo como
representante da cidadania adquire maior importância
do que nas etapas de governo anteriores.
• A construção compartilhada do fortalecimento do interesse
geral. Na governança, o interesse geral não é atribuído
a um grupo de funcionários ou de políticos. O interesse
geral é uma construção coletiva que deve ser liderada
pelos políticos eleitos como representantes da cidadania,
a partir das necessidades e interesses legítimos de todos
os setores cidadãos. Governança democrática significa
uma ação de governo específica para que todas as necessidades e desafios dos cidadãos estejam presentes tanto
na deliberação como no desdobramento das políticas e,
muito especialmente, dos setores mais vulneráveis.
• A transparência e a prestação de contas são também condições essenciais da governança democrática. Sem elas
dificilmente o governo da cidade poderá articular os distintos atores em uma ação comum com apoio e envolvimento da cidadania.
Consequentemente, a governança democrática exige e necessita de democracia, e seu desdobramento significa não só o aprofundamento nos aspectos da representação da cidadania como da
participação cidadã na construção de uma cidade voltada para o
desenvolvimento humano.
José Mª Pascual Esteve
22
Introdução
à edição brasileira
Introdução
Este livro discute a importância da política para promover a
coesão social nas cidades e nos municípios. Em especial, pretende
mostrar o valor que a liderança política representa para a construção coletiva de cidades com maior inclusão social.
A política democrática está sofrendo uma crise de legitimidade, não por ser incapaz de resolver os seus problemas, mas porque
a maioria dos políticos não pode enxergá-los.4 Neste sentido, para
contribuir com o entendimento de aspectos desta questão através
da reavaliação da política e da figura do político como elementos
essenciais para o desenvolvimento humano, o livro trata de um
novo enfoque da relação entre o governo local e a cidadania, de
uma nova arte de governar denominada governança democrática,
em cuja base se acha a gestão relacional ou a gestão das interdependências nas interações sociais.
O trabalho examina uma nova arte de governar e gerir os territórios, que se assenta nas mudanças em curso na nossa sociedade
e nas transformações que levaram à superação das formas de governar centradas na prestação e gestão de recursos e serviços. Tais
transformações são analisadas, especialmente, nos seus aspectos
sociais e sua relação com o modo de governar e de entender a
política, como são os casos das políticas de bem-estar social e da
liderança política necessária para articular iniciativas cidadãs de
coesão e inclusão social.
Além de analítico, o livro é fundamentalmente propositivo e
destinado aos políticos e técnicos que atuam na administração
dos municípios, assim como àqueles que prestam serviços aos governos locais. Sua leitura, entretanto, pode ser útil a todos que se
interessam pelo conjunto dos temas de âmbito local. As propostas
4
24
A. Einstein já havia observado que “os problemas importantes que enfrentamos não podem ser resolvidos com o mesmo enfoque de pensamento que tínhamos quando os criamos.” O especialista em grandes organizações J. Gardner observou, nos anos 60 do século
XX, que “a maioria das organizações doentes desenvolveram uma cegueira funcional em
relação aos seus próprios defeitos. Não sofrem por não poder resolver seus próprios problemas, mas por não poder vê-los.”
Introdução
apresentadas têm por base a análise da evolução da sociedade e
da crise da maneira de governar e de entender a política e, especialmente, do papel do político. Por isso, descreve as características da nova liderança política e dos apoios e suportes técnicos e
organizacionais que a liderança relacional requer.
Uma vez que um dos seus objetivos é servir como ferramenta
para os políticos com responsabilidades de governo, e como estes, geralmente, são pessoas muito envolvidas e empenhadas nas
tarefas do dia a dia e com pouco tempo para a leitura, concebemos os capítulos de tal modo que a sua leitura seja inteligível em
si mesma, não sendo necessária, embora desejável, a leitura dos
capítulos antecedentes ou posteriores. Pela mesma razão, além de
elaborarmos um índice detalhado, enfatizamos no início de cada
capítulo as ideias-chave.
O primeiro capítulo, intitulado “Governança: Uma nova arte de
governar”, introduz e explicita as diferenças entre os conceitos de
governabilidade, governança e bom governo. É um capítulo analítico e conceitual, cujo objetivo é distinguir os principais tipos de
governo e modos de governar observados nos regimes democráticos. A conclusão é que o governo relacional, através do modo de
governar denominado governança democrática, em cuja base está a
gestão relacional ou a gestão das interdependências entre agentes e
setores da cidadania, é o governo que corresponde à sociedade do
conhecimento ou sociedade-rede.
O segundo capítulo, “Governança Democrática: Construção
coletiva do desenvolvimento humano”, discute a finalidade e as
características distintivas da governança e da gestão relacional
como arte de governar. O terceiro capítulo identifica e descreve as
grandes mudanças sociais em curso nas nossas cidades e municípios e que hoje estão moldando as novas agendas políticas.
O capítulo seguinte descreve a crise política que as mudanças
sociais têm provocado no modo de governar denominado “gerencialismo”, que esteve em voga até o final da década de 90.
Introdução
25
Por outro lado, é reforçado o papel da democracia – entendida,
sobretudo, como eleição e representação –, tanto como valor e
fim quanto como meio para o desenvolvimento social contemporâneo. Também é analisado o novo papel do político eleito como
uma das chaves para a qualidade democrática.
O quinto capítulo identifica as principais características da liderança relacional ou representativa, que aparece como o principal
agente da mudança direcionada para o desenvolvimento humano.
No sexto capítulo, com base em uma definição de coesão social,
em consonância com os programas URBAL da União Europeia, são
tratados os pontos-chave para que o governo local possa liderar a
coesão social do seu território e o apoio técnico de que precisa.
O capítulo seguinte descreve o perfil do político necessário
para poder liderar as cidades inclusivas, bem como as principais
habilidades e capacidades requeridas.
No oitavo capítulo são identificadas as razões por que os governos locais assumem um papel mais importante na sociedaderede, assim como a importância dos governos intermunicipais. No
nono e último capítulo, intitulado “A Governança do Bem-Estar
Social”, é examinada a reestruturação da gestão dos serviços públicos do bem-estar social na era da governança. Em particular,
são identificados os desafios da provisão de recursos e da gestão
dos serviços por parte das prefeituras e como eles devem ser abordados.
O livro é complementado por uma bibliografia e alguns links
eletrônicos para quem quiser se aprofundar no tema.
26
Introdução
1. Governança:
Uma nova arte de governar
Ideias Principais
1. Governança Democrática é:
descentralização, participação e
colaboração com a sociedade civil.
2. A
governança democrática é mais do que uma dimensão de
cooperação ou particiapação na ação de governo: é uma nova
arte de governar.
3. Os
modos de governar na democracia são:
rencial e
Governança.
Burocrático, Ge-
Governança: descentralização, participação
e colaboração com a sociedade civil
A governança é um conceito que está se estendendo amplamente na Europa, especialmente após a publicação pela União
Europeia, em 2001, do Livro Branco sobre Governança Europeia,
elaborado pela Comissão Europeia e dirigido por J. Vignon.5
O fato de que tenha sido a Comissão Europeia que promoveu o
conceito de governança como uma forma de governar baseada na
horizontalidade e no acordo está relacionado, precisamente, com
a prática deste governo supranacional, que tem que articular os
interesses dos diferentes governos dos estados-nação. Mas o que o
relatório trata é da incorporação dos governos regionais e governos
locais, além da sociedade civil, na construção da Europa.
R. Mayntz, J. Prats e o próprio Vignon, em textos posteriores
ao relatório europeu, têm definido a governança como uma nova
arte de governar na democracia. J. Prats6 assinala que, apesar dos
diferentes significados do conceito de governança, nos últimos
anos está ocorrendo na Europa um amplo acordo para considerar
a governança como um novo modo de governar. Isto porque vem
se constatando, gradualmente, que a eficácia e a legitimidade dos
governos democráticos baseiam-se cada vez mais na qualidade da
interação entre eles e as organizações empresariais e sociais, bem
como em uma boa gestão das relações entre os diferentes níveis
de governo.
28
5
No citado Livro Branco, o conceito de governança está associado a cinco princípios fundamentais: abertura, participação, responsabilidade, eficácia e coerência. Princípios que
visam a reforçar as relações da UE com a sociedade civil e uma maior utilização das capacidades dos agentes locais e regionais para lançar as bases para uma definição clara dos
objetivos políticos da UE e estabelecer os papéis e as responsabilidades de cada instituição.
Governança está diretamente associada a uma aposta do governo na descentralização, participação cidadã e colaboração com a sociedade civil.
6
J. Prats, “Gobernabilidad democrática para el desarrollo humano: Marco conceptual y
analítico” em Instituciones y Desarrollo nº 10, 2001, pp. 103 a 148.
Governança:
uma nova arte de governar
A palavra governança7 é frequentemente utilizada, de modo
pouco preciso, como sinônimo de governabilidade ou de bom
governo. Governança é uma nova arte de governar que tem na
gestão das interdependências entre os atores seu principal instrumento de governo. A governança gere as relações entre os atores
para tomar decisões sobre a cidade e desenvolver projetos complexos com a colaboração interinstitucional, público-privada ou
envolvimento dos cidadãos. É, portanto, um termo não qualificativo no sentido de que se refere a um mecanismo de gestão governamental. Bom governo, sim, é como se pode classificar a ação
de um governo através de sua forma de governar. Esta forma de
governar pode ser a governança, de modo que poderíamos falar
de “boa governança” (como também de “má governança”), mas
também pode ser o modo de classificar qualquer outra forma de
governar diferente da governança, como a gerencial ou a burocrática. Por governança se entende, em sentido restrito, a aceitação
e o cumprimento de regulamentos, processos institucionais e de
resolução de conflitos, bem como de políticas do setor público
por parte da sociedade civil e, em particular, dos seus principais
atores. Ingovernabilidade é, por outro lado, a desobediência civil, incapacidade dos mecanismos institucionais para resolver os
conflitos sociais, não aceitação das regras do jogo institucional. A
governabilidade é um atributo ou classificação de uma situação
social e, em qualquer caso, pode ser um resultado das ações de
governo, de um bom governo, de uma boa governança, ou de
outro modo de governo bem exercido em uma determinada situação. Mas é importante não confundir um atributo ou um resultado com o modo objetivo de governar.
7
O vocábulo governança ainda não está inserido no dicionário do Instituto de Estudos Catalães, mas seu uso foi autorizado como uma tradução de “governance”, em 2001. Ele foi,
entretanto, incluído, em 2001, no Dicionário da Real Academia da Língua Espanhola com
uma definição muito genérica, mas de forma correta. Governança é definida como “a arte
ou o modo de governar que se propõe como objetivo alcançar o desenvolvimento econômico, social e institucional sustentável, promovendo um equilíbrio saudável entre Estado,
sociedade civil e economia de mercado.”
Governança:
uma nova arte de governar
29
Em algumas ocasiões, também tem sido equiparado a uma
concepção anterior do termo político inglês “governance”, que se
referia ao impacto da gestão das políticas e dos recursos do setor
público no desenvolvimento de uma sociedade ou território. Por
exemplo, a Comunidade Autônoma da Cantábria tem um excelente sistema de indicadores para medir o impacto da ação governamental em sua comunidade.
Também não podemos confundir governança democrática
com a dimensão relacional, ou seja, com a colaboração e a participação da sociedade civil no modelo de governo atualmente dominante, o denominado governo provedor ou gestor de recursos
e serviços. Ela é uma nova maneira de governar que implica uma
nova forma de compreensão da política e do papel do político.
R. Gomà e I. Blanco assinalam que entender a governança
como uma arte de governar que se baseia em um sistema de participação e colaboração e atores significa também reconhecer a
complexidade como elemento intrínseco do processo político, o
que situa os poderes públicos em uma nova posição nos processos
de governo. E para assumir esse novo posicionamento a administração precisa exercer novos papéis e dispor de novos instrumentos.8
Para J. Subirats, a importância da governança tem tamanho
peso que as diferenças entre as comunidades derivam de sua capacidade de avançar na governança e, concretamente, da capacidade de suas instituições representativas disporem de um projeto
de futuro compartilhado e das cumplicidades que este projeto
possa gerar no conjunto da cidadania.9
30
8
I. Blanco e R. Gomà, “Gobiernos locales y redes: retos e innovaciones”. Instituto de Gobierno y Políticas Públicas, 2002.
9
Ver J. Subirats, “¿Qué gestión Pública para qué sociedad? Una mirada prospectiva sobre el
ejercicio de la gestión pública en las sociedades europeas actuales”. Instituto de Gobierno y
Políticas Públicas. UAB, 2003.
Governança:
uma nova arte de governar
Enfim, é muito frequente confundir, na ação de um governo, a
governança com a dimensão relacional de participação cidadã ou
de cooperação, seja esta público- privada ou interinstitucional, e
não percebê-la como um novo modo de governar. Por esta razão,
é preciso que vejamos o tema com um pouco mais de cuidado
neste capítulo e, especialmente, no seguinte.
Argumenta-se de modo cada vez mais frequente por parte dos
especialistas em ciências sociais e políticas, particularmente, que o
envolvimento da cidadania é fundamental para que um governo
atue e desenvolva serviços em função das necessidades e desafios
dos cidadãos e, desse modo, desenvolva uma gestão de qualidade. Também se aponta, de modo perfeitamente compatível com a
afirmação anterior, que a participação cidadã é uma garantia para
a melhoria da qualidade democrática de uma administração.
Por outro lado, dada a insuficiência de recursos públicos para
fazer frente às necessidades sociais, bem como o fato de que a
sociedade atual é cada vez mais interdependente, considera-se
que são gerados mais espaços de interação, como é o caso de desenvolvimento de projetos, em que são necessárias a colaboração
institucional e a cooperação pública e privada. Portanto, concluise que esta dimensão da gestão das interdependências será um
tema de grande desenvolvimento por parte dos governos, especialmente dos governos locais.
Ou seja, tanto do ponto de vista participativo como da colaboração entre atores, a governança será a dimensão da gestão
governamental à qual teremos que dar mais atenção a partir de
agora. Em minha opinião, essas afirmações estão corretas, mas
são insuficientes porque tratam a governança simplesmente como
mais uma dimensão de governo, e não como uma nova arte de
governar ou modo de governar que tem na dimensão relacional
(isto é, na colaboração interinstitucional e público-privada e no
envolvimento da cidadania) a sua principal prioridade e o eixo
estruturante da ação de governo.
Governança:
uma nova arte de governar
31
A governança democrática é mais do que
uma dimensão da ação de governo
Para melhor caracterizar a governança como uma nova arte
(modo) de governar e para diferenciá-la de outras maneiras, creio
ser adequado distinguir, por um lado, os governos-tipo ou modelos de
governo que se diferenciam pela relação principal que estabelecem
com a cidadania; e esta relação do governo com a cidadania leva a
uma articulação específica das diferentes funções de governo.
Por outro lado, distinguimos os modos de governar ou modelos
de governação,10 que constituem a maneira pela qual o governo
exerce sua ação de governar. Eles se definem fundamentalmente pelas finalidades que buscam alcançar, os valores e princípios
em que baseiam suas funções, o tipo de gestão específico que
desenvolvem para atingir seus objetivos, bem como a “função”
que atribuem aos políticos, aos profissionais da administração e à
cidadania na maneira de governar.
Com frequência se confundem os modelos de governo com os
modos de governar ou modelos de governação11 porque, como parece razoável, a cada governo deveria corresponder um modo de
governar específico. Mas, como teremos oportunidade de aprofundar, isto nem sempre foi assim, o que tem causado muitos
problemas. Em particular, no modelo ou paradigma de governo
10 Governação é usado no mesmo sentido como definido pelo Dicionário da Real Academia
da Língua Espanhola: “Ação e efeito de governar/exercício do governo.” Compreendemos,
naturalmente, por um governo um “conjunto de organizações e indivíduos que dirigem um
território e as funções que eles desempenham”. Assim, modelos de governação ou formas
de governar são modelos de exercer a ação dos governos.
11 Quando se fala tanto de modelos de governação ou de governos-tipo se utiliza a metodologia do tipo ideal de Max Weber, que a define como: “Construção mental para analisar
um fenômeno histórico ou social em que se elegem e enfatizam determinados aspectos do
fenômeno. O objetivo da construção de tipos ideais é o de servir como base de comparação
na análise dos fenômenos históricos e sociais concretos, uma vez que torna possível mostrar
a proximidade ou afastamento deles em relação ao tipo ideal (puro). Ver M. Weber, Conceitos sociológicos fundamentais, edição de J. Abellán. Madri: Alianza Ed., 2006, p.180.
32
Governança:
uma nova arte de governar
provedor e gestor, ao qual corresponderam dois modos de governar ou modelos de governação: o burocrático e o gerencial. O modelo de governação pode ser implementado tanto por governos
supranacionais, nacionais, regionais ou locais.
Para entender melhor esta tríplice diferenciação começaremos
pelo mais simples ou básico, isto é, pelas funções e dimensões de
toda ação de governo territorial em relação à sociedade.
Existem três grandes funções ou dimensões básicas da ação
de qualquer governo territorial em relação à sociedade: a função
legal ou normativa para regular a atividade da sociedade civil,
mas também política; a função provedora e gestora (direta ou
indireta) de serviços à comunidade; e uma terceira, que podemos
chamar relacional – que inclui todas as atividades relacionadas à
participação cidadã, aos acordos e cooperação com a sociedade
civil e também com outras administrações.
A função legal e normativa (L) é, por exemplo, dar cumprimento a uma norma urbanística, de ordenamento do uso do solo,
de vigilância sanitária, de mobilidade etc. O cumprimento dessas
normas necessita, além dos órgãos jurídico, administrativo e de
fiscalização, de alguns serviços de polícia municipal, limpeza e
coleta de lixo etc.
Portanto, encontramos uma segunda dimensão ou função de
gestão de serviços (G), que foi ampliada na Espanha, sobretudo a
partir dos anos 80, com os serviços sociais, desportivos, culturais,
educacionais, de saúde, promoção do emprego e desenvolvimento econômicos etc., ou seja, com recursos e serviços não apenas
associados ao desempenho da sua competência e função reguladora, e destinados a gerar proteção ou bem-estar público.
A terceira função, que temos denominado relacional (R), abrange
as questões da consulta, do diálogo, participação, parceria e cooperação com a sociedade civil, principalmente, mas também com
outras instituições, sejam elas nacionais ou internacionais.’
Governança:
uma nova arte de governar
33
Os modelos de governo ou governo-tipo – ou, ainda, se preferirem, paradigmas de governo12 – são definidos pelo tipo de relacionamento que se estabelece entre governo e cidadania. Ou seja, pela
principal finalidade (e não só) que se atribui à ação de um governo
para proporcionar à sociedade, seja ela a garantia da ordem legal
ou o bem-estar a partir da provisão de recursos ou melhoria da
capacidade de organização e ação de uma sociedade.
Todos os tipos de governo desenvolvem as três dimensões ou
funções de governo, mas em cada tipologia ou modelo de governo existe uma função principal ou prioritária distinta, que desempenha um papel estruturante em relação às outras duas.
Assim, identificamos três governos-tipo na democracia ou modelos de governo territorial: governo racional ou jurídico, governo
provedor e gestor, também chamado protetor, e governo relacional.
O governo racional-legal tem por finalidade velar ou garantir o
funcionamento do mercado e a sociedade liberal; a função predominante é a normativa e legal. As outras funções ou dimensões
têm um papel secundário. O esquema básico de articulação das
funções do governo racional-legal é o seguinte:
Esquema I: Articulação das funções básicas do
governo racional-legal
L
Legal
G
Provedor e Gestor
R
Relacional
12 Deve-se o uso do termo paradigma no âmbito científico ao historiador e filósofo da ciência
Thomas Khun, que o introduziu no seu livro clássico A estrutura das revoluções científicas.
Nele, paradigma é definido como “uma constelação de realizações – conceitos, valores,
técnicas etc.” – compartilhadas por uma comunidade científica e usadas por ela para definir
problemas e soluções legítimas.
34
Governança:
uma nova arte de governar
O governo protetor ou provedor e gestor tem como finalidade
principal a proteção social e o bem-estar; sua função predominante é a prestação e gestão de serviços. A gestão de serviços pode ser
realizada diretamente pelo governo ou organismo público, ou ser
contratada externamente. O esquema é o seguinte:
Esquema II: Articulação das funções do governo provedor
e gestor
G
Provedor e Gestor
R
L
Relacional
Legal
O governo relacional ou promotor é o governo próprio da
sociedade-rede ou sociedade do conhecimento. Sua finalidade é
melhorar a capacidade de organização de uma sociedade e gerir
as principais redes sociais para o desenvolvimento humano. Sua
principal função estruturante é a relacional. O esquema é o seguinte:
Esquema III: Articulação das funções básicas do governo
relacional
R
Relacional
L
Legal
R
Relacional
Para exercer a ação governamental baseada na relação principal que se estabelece entre o governo e a cidadania, isto é, com
Governança:
uma nova arte de governar
35
base na função que tem o papel principal ou estruturador das demais, os governos desenvolvem maneiras diferentes ou modelos
de governação ou modos de governar. Ou seja, um governo-tipo
atua através de um modelo de governação.
Por modelo de governação ou modo de governar, entenderei
propriamente o enfoque com que um governo assume e exerce seu
papel em relação à sociedade civil ou, o que quer dizer o mesmo, o
tipo de atuação através do qual um governo torna efetiva a articulação e coordenação das três funções e dimensões do governo.
O modelo de governação inclui a finalidade e os valores que
presidem a ação, o tipo de gestão característico da maneira de
governar e os perfis do político e do profissional da administração.
Identificaremos, seguindo a classificação feita por J. Prats, em um
recente e excelente trabalho, três modelos de governação: burocrático, gerencial e governança.13
Esquema IV: Articulação das funções, modelos de governo
e de governação
Funções
básicas
Legal, Provisão e Gestão,
Relacional
Modelos de governo
ou
Governo-Tipo
Articulação funções básicas
(Relação Governo com a
cidadania)
Modelos de Governação
(modos de governar)
- Valores
- Gestão: técnicas
- “Papéis”: político,
cidadania, adminisrador
13 J. Prats, “La Construcción Social de la Gobernanza” em Vidal J. M. Beltrán e J. Prats, Gobernanza. Diálogo Euro-Iberoamericano. Madri: INAP, 2005, pp. 21-78.
36
Governança:
uma nova arte de governar
Portanto, a governança não é a dimensão ou a função relacional da atuação de um governo, mas o modo de governar específico do governo relacional, que assim se caracteriza porque
a função relacional assume o papel principal e estruturador das
ações de governo.
A governança, portanto, vai implicar, de uma forma concreta,
a reestruturação global da maneira de governar de um governo
local. Na governança existem as dimensões da gestão de recursos
e da normativo-legal, mas estas se reestruturam a partir da priorização da função relacional do governo, isto é, da participação
cidadã, da cooperação com a sociedade civil e da colaboração
intergovernamental.
É por isso que dizemos que a governança é o modo de governar próprio do governo-rede ou relacional, que é o adequado
à nova sociedade em rede, também denominada sociedade do
conhecimento.
Os modos de governar na democracia:
Burocrático, Gerencial e Governança
Iremos começar por uma breve descrição dos vários modos de
governar, ou modelos de governação, para depois descrever, na
seção seguinte, os governos-tipo que põem em prática tais modelos.
O modo burocrático.Tem por objetivo garantir o cumprimento
da lei e a igualdade jurídica de oportunidades dos cidadãos, com
a finalidade de contribuir com a regulação das condições de estabilidade econômica e social, o desenvolvimento do estado de
direito e do livre mercado.
Este modo se desenvolve a partir dos Estados liberais e democráticos da metade dos anos 50 do século XIX e predomina até os
anos 80 do século XX. Os valores do governo são: respeito e sujeiGovernança:
uma nova arte de governar
37
ção à lei, igualdade de todos os cidadãos perante a lei, autonomia
da sociedade civil para identificar o interesse geral e racionalidade
(adequação dos meios aos fins).
Para exercer a função de regulação e de segurança jurídica, a
administração se vale de uma categoria profissional: a burocracia ou funcionalismo. Esses profissionais, para poder realizar seu
trabalho, requerem independência política, objetividade e impessoalidade do seu próprio trabalho, que deve ajustar-se à legislação em um contexto de racionalidade (adequação dos meios aos
fins). Para que possam cumprir sua missão, os funcionários são
protegidos legalmente e os postos de trabalho regulamentados.
Os valores que presidem a burocracia são os que acabamos de
apontar e que se diferenciam plenamente dos valores relacionados à economia, produtividade e eficiência que predominam no
modo gerencial. Entre os profissionais da burocracia predominam
as especialidades vinculadas ao direito.
O político eleito com a responsabilidade de governar é o representante dos cidadãos para dar cumprimento às normas da sociedade com a ajuda da burocracia, que, por ter proteção especial,
impede o governante eleito de usar o poder para fins pessoais ou
partidários. Os políticos, com o apoio da burocracia, identificam e
gerenciam o interesse geral.
A cidadania, neste modo de governar, tem um papel inativo,
limitado praticamente à consulta. Tanto a cidadania como a iniciativa privada e social são os que devem, através do mercado e
da livre iniciativa, alcançar o maior bem-estar possível através do
marco legal-regulador e garantidor da liberdade do mercado e da
ação social. O governo é o representante eleito da sociedade e em
seu nome exerce sua ação normativa e reguladora.
O tipo de gestão que se desenvolve neste modo de governar é
a gestão de procedimentos. Trata-se de estabelecer cuidadosamente os processos e regulamentá-los. A tarefa do burocrata é seguir
os procedimentos e não assegurar resultados. Estes, se supõe, re38
Governança:
uma nova arte de governar
sultarão do cumprimento da regulamentação estabelecida. Nisto,
não difere dos processos próprios do maquinismo industrial, dos
métodos tayloristas. A diferença com a produção de bens e serviços reside em que seu posto de trabalho não é flexível e que os
processos da administração não estão organizados em função da
produtividade. Os serviços, para garantir a conformidade com os
regulamentos, são organizados por estes mesmos processos.
O modo gerencial de prestação e gestão de recursos públicos. Começa nos anos 80, tem seu esplendor nos 90 e na atualidade
ainda é o modo dominante.
Os objetivos são a economia, a eficácia e a eficiência (os três
“E”) na prestação e gestão de serviços. Sua preocupação principal
é a produtividade na produção dos serviços e, em geral, do conjunto da administração.
A gestão específica deste modo de governar é a gestão empresarial dos serviços. Ou seja, o conjunto de técnicas, instrumentos
e processos através dos quais se enfrenta a prestação e gestão
dos serviços são introduzidos, ou melhor, tenta-se introduzi-los,
a partir do mundo empresarial; e os principais profissionais dirigentes da administração são buscados no mundo empresarial e,
mais concretamente, do mundo dos negócios. Assim, fala-se da
terceirização de serviços, gestão da qualidade orientada ao cliente-usuário, reengenharia de processos, marketing de serviços etc.
Pretende-se orientar a gestão para os resultados econômicos e de
produtividade.
Acredita-se que a produtividade e os três “E” acima mencionados devam ser os valores dominantes não apenas em função dos
serviços públicos, mas também do conjunto da administração; e
não poucas vezes se quis aplicar a reengenharia de processos, própria da gestão de serviços, às funções governamentais destinadas
a assegurar os direitos da cidadania e às funções relacionais, gerando não só colapsos de governabilidade, mas também importantes colapsos no funcionamento da democracia.
Governança:
uma nova arte de governar
39
Entre os profissionais do governo, há uma demanda de formação em economia, mas é dada prioridade, em especial, à formação nas escolas empresariais e de administração.
Dada a importância da gestão empresarial dos serviços neste
modo de governar, o papel do político eleito fica desfocado e se
confunde com o de gerente. Desponta e se valoriza, especialmente, o papel dos administradores ou gerentes, que assumem papéis
de maior relevância à custa dos políticos eleitos, saídos das fileiras
dos partidos políticos – ou acabam predominando os extratos gerenciais dos altos escalões da direção política.
A governança democrática. É um modo de governar que está
emergindo na atualidade como consequência da crise do governo
provedor e gestor de recursos e, em especial, pela obsolescência e
anomalias provocadas pelo modo gerencial.
Nas palavras de D. Inneraty, sua finalidade é “a colaboração
entre o governo e a sociedade civil para a regulação dos assuntos
coletivos com critérios de interesse público”.14
O que caracteriza a governança como modo de governar é a
gestão das interdependências, gestão relacional (ou de redes). É
um tipo de gestão específico que se baseia em um conjunto de
técnicas e instrumentos e processos para alcançar a construção
compartilhada do desenvolvimento humano em um território.
Os valores próprios da governança que a fazem avançar como
modo de governar são: respeito, tolerância, participação, racionalidade, confiança, compromisso e colaboração.
Ou seja, a governança se baseia na gestão das interdependências, mas não é igual à gestão relacional, sendo, na verdade,
muito mais ampla. Governança é uma ação de governo que tem
múltiplas dimensões: normativo-legal, provedora e de gestão de
serviços; porém, ao ter como seu principal objetivo a colaboração
14 Ver D. Inneraty, El nuevo espacio público. Madri: Ed. Espasa – Calpe, 2006, p. 209.
40
Governança:
uma nova arte de governar
entre a sociedade civil e o governo para responder aos desafios
sociais, é a gestão relacional que assume a relevância e o papel
estruturante de todas as funções de governar. As funções legal e
de gestão de serviços são reestruturadas pela governança, de tal
modo que as características exigidas das mesmas serão diferentes
das que adquiriram nos modos burocrático e gerencial.
A governança coincide com o modo gerencial em sua rejeição
ao governo hierárquico, mas, ao contrário dele, não vê no mercado nem nas técnicas empresariais aplicadas à gestão governamental a alternativa aos problemas e desafios sociais, identificando na
própria sociedade a solução dos problemas. A tarefa do governo é
a de envolver os cidadãos na resolução dos seus próprios problemas, cooperando com eles e melhorando a capacidade coletiva
de atuação. A governança também partilha com o modo burocrático a ideia de legalidade, de controle público e da necessidade de
procedimentos administrativos, mas atribui grande prioridade aos
procedimentos informais de interação cidadã, na qual intervém
para mediar e facilitar a cooperação entre os atores e setores da
cidadania envolvidos.
Na governança o político tem um papel de representante eleito, mas diferentemente do modo burocrático, este papel é muito
relevante na sociedade devido ao fato de que atua como aglutinador e organizador do interesse geral, a partir dos legítimos interesses e desafios dos diferentes atores e setores da cidadania.
A cidadania e a iniciativa social e privada têm um papel muito ativo. A tarefa do governo consiste em articular uma ampla
cooperação pública e privada, e uma intensa colaboração cidadã
no desenvolvimento humano. Ou seja, fortalecer e coordenar as
principais redes sociais em uma determinada direção.
Por sua vez, passa a ter mais valor um tipo de profissional
polivalente, que tem como funções a mediação e a negociação relacional, em apoio aos políticos eleitos, dotado de amplos conhecimentos na elaboração de estratégias e possuidor de um enfoque
Governança:
uma nova arte de governar
41
abrangente das ciências sociais. Esta área das ciências sociais é
a que apresenta maior desenvolvimento na era da governança.
Prevê-se que, dada a complexidade e variedade das situações sociais na governança, bem como a necessidade de amplos conhecimentos e novas técnicas, será necessária uma ampla terceirização
da assistência técnica e, mais particularmente, com entidades que
correspondem à classificação de “think tanks”.
No quadro I, são apresentadas de maneira resumida as características diferenciadoras dos distintos modos de governar, em
relação às suas principais variáveis.
QUADRO I: MODOS DE GOVERNAR NA DEMOCRACIA
Principais características
Modo de
Governar
Burocrático
Gerencial
Governança
Normativa / Legal
Prestação e Gestão
Infraestruturas e
serviços
Relacional
Variáveis
Função ou
dimensão
estruturante da
atividade do
governo
42
Tipo de gestão
predominante
Gestão por
procedimentos
Gestão Empresarial
por produtividade
ou resultados
Gestão de
redes sociais
ou relacional
(construção
coletiva do
desenvolvimento
humano)
Principais valores
Legalidade,
autonomia
sociedade civil.
Neutralidade
Economia
Eficácia
Eficiência
Confiança
Compromisso
Colaboração
Governança:
uma nova arte de governar
Visão da
qualidade no
exercício do
governo
Credibilidade e
confiabilidade dos
procedimentos
Satisfação do
cliente e usuário
Credibilidade e
confiabilidade da
organização das
interdependências
Papel do cidadão
Peticionário
Administrado
Demandantepassivo: cliente ou
usuário
Demandante-ativo:
cooperador e
corresponsável
Papel das
associações e
empresas
Reivindicativo
Reivindicativo
contratado externo
Reivindicativo
contratado externo
corresponsável
Eleito/gerente
Líder da
construção social
(organizador
coletivo)
Papel do político
Representante do
eleitorado
Fonte: Elaboração própria, inspirado em J. Alguacil (2006), R. Gomà (2003), J.
Prats (2005).
A governança é a arte de governar própria
do governo relacional emergente
Já vimos que existem três funções ou dimensões-chave da
ação de governo. A organização assimétrica destas funções-chave
e o seu desenvolvimento pela ação do governo deram lugar a distintos modos de governar. Nesta seção veremos os governos-tipo
ou modelos de governo que se configuraram nos distintos modos
específicos de governar.
A classificação dos tipos de governo que se configuraram de
maneira singular nos modos ou artes de governar, que proponho,
é a que tem como critério classificatório a relação principal que
se estabelece ou pretende estabelecer-se entre o governo territorial e a cidadania. O resultado são três governos-tipo: o governo
racional-legal, o governo provedor e gestor, também denominado
Governança:
uma nova arte de governar
43
“protetor” ou do “bem-estar”15 e o governo relacional ou governo em rede, que também foi denominado “promotor” (J. Prats),
“cooperador” ou “capacitador” (D. Innerarity).
O governo racional-legal
O governo racional-legal corresponde à visão de governar anterior ao do Estado protetor ou do bem-estar. Nesta concepção a
função principal de um governo em relação à cidadania é garantir
as condições gerais para o bom funcionamento da economia de
mercado e do estado de direito. O governo tem um papel claramente regulador.
A função principal e estruturante do governo é o cumprimento das
normas. Seu modo de governar específico é o que já se assinalou como
burocrático, que foi descrito magistralmente por Max Weber.16
O governo racional-legal, especialmente em seu nível local, gerencia e presta diretamente serviços como segurança, limpeza, atenção à população de rua (pessoas sem teto etc.). Mas esta é uma função menor ou mesmo marginal, e sempre se justifica em relação ao
apoio destes serviços ao papel regulador ou como forma de estabelecer garantias ao livre desenvolvimento das iniciativas das empresas
e cidadãos. A função do governo não é atuar de maneira ativa com
recursos públicos na economia, nem no apoio à igualdade de oportunidades sociais ou redução da pobreza e da exclusão social.
Neste modelo existe a função relacional, que consiste em desenvolver a participação e o acordo da cidadania na elaboração
das normas legais, que o governo deverá fazer cumprir, e na aprovação prévia pelas câmaras municipais. Não se trata da participação na definição dos serviços e dos sistemas de qualidade na
15 Pretendo objetivar ao máximo a descrição e por isso não uso as palavras proteção e bemestar, por estarem envolvidas em disputas políticas e gerarem reações imediatas e pouco
críticas de apoio ou rejeição.
16 Max Weber o definiu como tipo de dominação racional-legal, descrito em seu famoso
Economía y Sociedad Madri: F.C.E., 1929, pp. 170-217.
44
Governança:
uma nova arte de governar
prestação de serviços próprias do governo gestor, muito menos
da participação cidadã e da colaboração público-privada para
transformar a cidade ou o território, em geral, na perspectiva do
desenvolvimento humano.
No governo racional-legal, a função relacional é muito reduzida; a cooperação cidadã, em não poucos casos concretos de governo, fica circunscrita ao diálogo para alcançar a manutenção da
ordem pública.
As funções estruturadas deste governo, como a prestação de
serviços e a função relacional, são administradas pelo tipo de gestão que já assinalamos como própria do modo burocrático: a gestão por procedimentos.
Neste modelo de governo racional-legal o papel do governo é
subordinado sempre aos governos nacionais e regionais. A principal função é normativa e reguladora e, neste aspecto, os governos
locais são necessariamente subordinados à legislação cujo cumprimento corresponde ao nível nacional ou federal ou similar, a qual,
logicamente, não podem transgredir.
As alterações nesta forma de governo se originaram nos desequilíbrios que o próprio mercado gera. A não intervenção dos
fundos públicos na economia e na coesão social levou ao agravamento das desigualdades, à ampliação da pobreza e à instalação
de uma situação de conflito social permanente. O papel de garantidor do cumprimento de uma legislação e de manutenção das
condições do mercado levou à percepção de que o governo é um
obstáculo e se opõe às reivindicações sociais dos mais desfavorecidos (ainda que, em não poucos casos, esta atitude governamental
fosse uma vontade manifesta).
O governo provedor e gestor
O governo provedor e gestor – nascido nos anos 50 do século
XX e ainda hoje modelo de governo dominante – corresponde à
visão do que se denominou Estado protetor do bem-estar.
Governança:
uma nova arte de governar
45
O papel do governo provedor e gestor de recursos e serviços
se desenvolveu na Europa. Foi assumido no contexto da Guerra
Fria e da ameaça do denominado “bloco socialista dos países do
leste”, pela aplicação das teses de Keynes sobre a intervenção do
governo na economia, através do gasto público, e as propostas de
Beveridge sobre a ampliação da cobertura da seguridade social
para todos os cidadãos.
Os desafios do desenvolvimento econômico e as necessidades
sociais ou de bem-estar tornaram-se matéria de intervenção governamental e os cidadãos se voltaram para todos os níveis de governo
na busca da satisfação de suas demandas e reivindicações sociais.
Neste paradigma encontramos duas etapas definidas pelo
modo de governar que prevaleceu em cada período: o burocrático e o gerencial.
A etapa burocrática
O modo burocrático próprio do governo racional-legal foi o
que se aplicou ao novo paradigma de governo a partir dos anos
50, e que se tornou hegemônico até os anos 80. Ele foi aplicado
com os mesmos valores e com a proteção jurídica dos funcionários públicos, porém agora já não era somente gerenciar algumas
poucas prestações e serviços ligados às funções de regulação, mas
também a prestação de serviços orientados à satisfação de necessidades sociais, que estavam se convertendo na função principal e
prioritária dos governos.
Os políticos e profissionais da gestão pública não entenderam
que se encontravam ante um novo paradigma de governo, ou
seja, ante uma reestruturação da organização e funções do governo, e agiram como se fosse tão somente uma ampliação da sua
atuação. Não tiveram a consciência de que era preciso governar
de um modo diferente.
Efetivamente, Max Weber (que sem dúvida foi quem melhor
caracterizou o modelo racional-legal, ou modo burocrático de do46
Governança:
uma nova arte de governar
minação) considerava que a burocracia era também um modo de
gerir os serviços e não apenas de garantir a legalidade, a independência e a estabilidade do governo. Porém, era bastante consciente das limitações de uma gerência ampla dos serviços por este tipo
de gestão. Neste sentido, Giddens17 nos recorda que o principal
argumento de Weber contrário ao socialismo era que este significaria uma grande burocratização do Estado e, em particular, do
governo, o que acabaria levando à ineficiência na gestão e à autonomia da burocracia como grupo de poder, que faria o governo
funcionar em função de seus interesses de grupo particular, como
efetivamente ocorreu.
De fato, a gestão de recursos e serviços públicos exige economia, eficácia e eficiência (os denominados três “E”), que, como
já observado, não são valores próprios da burocracia e nem valores pelos quais ela é protegida como grupo profissional. A gestão
burocrática aplicada à gestão de serviços foi e é altamente ineficiente, provocou e ainda provoca significativas deseconomias que
devem ser sustentadas com mais carga fiscal para os cidadãos e,
pior ainda, limita o alcance dos serviços públicos a eles.
O paradigma do governo gestor, ao desenvolver-se com o
modo burocrático, trouxe com ele a necessidade de reforma permanente, desde o seu começo, para torná-lo mais eficiente. Entretanto, os distintos instrumentos de reforma – descentralização,
centros de controle, orçamentos-programas etc. – inscreveram-se
no modo burocrático e no tipo de gestão que o caracteriza – a
gestão de procedimentos.
A etapa gerencial
O modo gerencial baseado na imitação da gestão das empresas privadas recebe o nome de sua principal escola, o new mana17 A. Giddens, Política y Sociología en Max Weber. Madri: Ed. Alianza, 1976, pp. 76-82.
Governança:
uma nova arte de governar
47
gement ou “nova gestão pública”.18 Pretende não apenas substituir o modo burocrático nos serviços voltados para satisfazer uma
necessidade social (serviços sociais, assistência médica, centros
culturais, equipamentos desportivos etc.), como os que apoiam
diretamente o cumprimento de uma norma governamental (coleta de lixo, serviços de limpeza, estacionamento e, inclusive, alguns
tão problemáticos como polícia, gestão urbana e segurança), pela
aposta na terceirização dos serviços públicos, pela criação de um
“mercado” ou “quase-mercado” de serviços públicos, pela gestão
orientada ao cliente ou usuário etc.
Considera-se que a produtividade e os três “E” antes mencionados devem ser os valores dominantes, não apenas da função
da prestação e gestão de serviços, mas do conjunto da administração.
Nesta etapa, a função relacional e participativa se desenvolve
mais que no modelo racional-legal, mas de forma sempre vinculada e subordinada ao papel de provedor de recursos desempenhado pelo governo. De fato, o modelo provedor e gestor teve
por base um acordo social através do qual o setor público proporcionou serviços e benefícios econômicos que constituem salário
indireto. Isso possibilitou a estabilidade dos rendimentos e dos
salários nas empresas privadas. A participação cidadã, por sua vez,
fica restrita ao âmbito das necessidades e no desenho das políticas e serviços, não se traduzindo em compromisso de cooperação
para dar uma resposta coletiva aos desafios sociais.
Por outro lado, a concepção gerencial passa a incorporar não
apenas a gestão dos serviços financiados com recursos públicos,
mas também a prestação de serviços pelas empresas privadas e
iniciativas sociais. A justificativa desta incorporação se deu a partir
do argumento de que o governo teve seu peso relativo diminuído,
18 Os autores mais conhecidos desta escola, assim como seu principal livro, são D. Osborne e
T. Gaebler, La Reinvención del Gobierno. Barcelona: Ed. Paidós, 1995.
48
Governança:
uma nova arte de governar
dadas as limitações do crescimento do gasto público para atender
as necessidades sociais. Na etapa gerencial, não apenas se considera a necessidade de incorporar novos atores sociais, e em especial as empresas, mas também prospera a ideia de que o governo
deve imitar o modelo de gestão empresarial. Em última instância,
o objetivo era dar maior destaque aos empresários e às empresas,
tanto na gestão e prestação de serviços como na iniciativa social,
como forma de suplementar a ação de governo, que somente se
entendia como prestador de serviços.
A adoção do modo gerencial no paradigma de governo provedor e gestor, no entanto, tinha igualmente uma justificativa ética
baseada na necessidade de se evitar o desperdício do dinheiro
público e, sobretudo, de criar mais infraestrutura e serviços com
uma despesa pública que se constatava não poder crescer indefinidamente. A extensão dos três “E” para toda e qualquer ação
governamental, como uma cópia dos métodos empresariais das
multinacionais, aliada ao fato de se enxergar o cidadão como um
mero cliente ou usuário, em muitos casos levou à desconsideração
do conceito de serviço público e ao questionamento das garantias
legais e do respeito pelos direitos que a ação do governo deve
proporcionar, o que tem acontecido em muitos governos, e não
apenas na América Latina.
Neste caso, não apenas a prestação e gestão de benefícios
e serviços eram considerados dominantes, mas toda a ação de
governo. Considerava-se que o modo de governar deveria corresponder aos valores empresariais da gestão de serviços. Desta
maneira foi favorecida a consolidação de uma concepção clientelista da ação de governo e da política em geral, sobretudo onde os
valores democráticos estavam pouco consolidados.
Em suma, o enfoque que estamos expondo, de definir o modelo de governo como uma maneira de abordar a articulação das
funções do governo, leva a dizer que o lema do governo gestor
poderia ter sido burocracia o quanto for necessário, gestão eficiente o
Governança:
uma nova arte de governar
49
quanto for possível e, certamente, teria tido menos efeitos perversos do ponto de vista democrático.
No esquema gestor, as prefeituras têm um papel mais relevante como prestadoras de serviços do que no modelo racional-legal,
porém secundário em relação aos governos nacionais e federais
ou similares; na maioria dos casos, os governos locais dependem
das competências e transferências de recursos dos outros níveis de
governo.
O governo-rede ou relacional
O governo relacional é aquele que tem como finalidade a
construção do desenvolvimento humano de forma compartilhada
com a sociedade civil, e cujo modo específico de governar é o que
denominamos governança democrática.
Como já assinalamos reiteradamente, sempre existiu a governança entendida, simplesmente, como gestão das interdependências ou das relações entre o governo e os atores e setores da cidadania. Isto, porém, de maneira altamente residual e condicionada
por outras funções e dimensões que serviram de eixo vertebrador
da ação de governo.
A novidade, a mudança de paradigma, está no fato de que a
governança torna-se o modo próprio do governo relacional. E este
modo de governar, que se baseia e se estrutura a partir da gestão
relacional ou das interdependências, deixa de ser residual para
ser o modo principal ou estruturante do governo.
Hoje em dia a cooperação entre atores, a participação e a colaboração da cidadania não são consideradas apenas uma dimensão
emergente, mas uma função estrututurante da ação de governo na
sociedade do conhecimento ou sociedade-rede. Isto se deve, fundamentalmente, à constatação de que existem cada vez mais desafios e necessidades sociais que não podem ter resposta em uma
ação baseada no gasto público, por mais eficiente que seja a sua
gestão. O governo se vê, assim, diante da necessidade de propor a
melhoria da capacidade de organização e ação para que o conjunto
50
Governança:
uma nova arte de governar
da sociedade enfrente os desafios e as necessidades crescentes que
condicionam o progresso humano.
Tal como na última fase do governo provedor, considera-se
necessário incorporar novos atores para a obtenção da melhoria
da qualidade de vida; porém, ao contrário da etapa gerencial, não
se trata de reduzir a relevância do governo democrático, mas de
atribuir a ele um novo papel como organizador coletivo de uma
ampla ação social.
Neste contexto, a gestão relacional ou gestão das interdependências (ou de redes) passa a ser a base da nova ação de governo.
Portanto, o governo relacional deve realizar uma reestruturação
das funções de proteção legal de direitos, da gestão eficiente da
qualidade dos recursos e serviços para colocá-los em função da
construção coletiva do território, que tem na gestão relacional seu
principal, embora não único, instrumento.
Reestruturação significa mudança de orientação. A função
relacional se converte em estruturante (porque agora o objetivo
do governo relacional é a melhoria da capacidade de organização e ação dos territórios) e aumenta sua complexidade e a
magnitude de seus objetivos, assim como os âmbitos em que
se aplica. A participação cidadã (elemento essencial da função
relacional) é agora, fundamentalmente, corresponsabilização e
compromisso.
Por sua vez, a gestão de serviços na governança deve ser eficaz
e eficiente, mas não apenas do ponto de vista da redução dos custos e da produtividade, uma vez que esta mesma gestão deve incorporar uma melhoria no compromisso de ação comunitária dos
usuários e familiares envolvidos e contribuir para o fortalecimento
do tecido associativo do lugar em que se situa. Os benefícios e
serviços se integram e apoiam os processos de desenvolvimento
comunitário.
A função normativa e legal, que sem dúvida deve ser exercida
por funcionários, deve adequar os procedimentos de contratação
Governança:
uma nova arte de governar
51
externa de serviços às novas finalidades de eficácia e contribuição
ao desenvolvimento comunitário, assim como ao fortalecimento
e ampliação dos novos espaços da cidadania; ou seja, frente aos
espaços de deliberação e acordos entre governo, atores, iniciativa
social e movimentos sociais em geral, o papel singular da função
legal ou normativa em um governo relacional será o de conceber
os marcos institucionais reguladores, assim como os incentivos e
restrições da atuação dos atores e setores da cidadania para estimular, fortalecer e dar estabilidade à ação coletiva em que os
participantes procuram maximizar suas expectativas no âmbito do
interesse geral. Isto é, ter em conta que o interesse geral é uma
construção coletiva na qual participam.
A seguir, veremos com mais detalhe, aplicada ao setor de bemestar social, a reestruturação das diferentes funções no governo
relacional e, especialmente, a orientação que recebem através do
seu modo de governar: a governança.
Neste modelo de governo é fundamental a proximidade às
interdependências dos atores para construir projetos coletivos
e promover uma cultura empreendedora e cívica na cidadania.
Por isso, o papel dos governos locais no sistema do conjunto
dos Estados-nação é claramente emergente e relevante. Também
o são os governos regionais, porém estes entendidos, cada vez
mais, como gestores das interdependências entre os distintos
municípios.
Como conclusão desta seção, é fundamental reter a seguinte
visão do governo relacional:
O governo relacional assume um papel renovado e uma centralidade social na sociedade-rede, ao considerar-se a articulação social, a
melhoria da capacidade de organização e ação das sociedades, uma
responsabilidade pública democrática, com grande impacto no desenvolvimento humano das cidades e regiões.
No quadro II é apresentado um resumo dos governos-tipo a
partir dos seus principais elementos distintivos.
52
Governança:
uma nova arte de governar
QUADRO II: GOVERNOS – TIPO NA DEMOCRACIA
(relação entre governo e sociedade)
Governo-Tipo
Elementos
distintivos
Relação
estruturante com
a sociedade civil
Racional-legal
Provedor e Gestor
Relacional
Regulador/
normativo
Provedor de
infraestruturas
e serviços
Organizador
coletivo do
desenvolvimento
Modo de
governar
Burocrático
Burocrático (1ª
etapa) Gerencial
(2ª etapa)
Governança
(expectativa
racional)
Papel do
município no
modelo de
administração
nacional
Subordinado
Secundário
Protagonista
(expectativa
razoável)
Fonte: Elaboração própria, inspirado em J. Alguacil (2006), R. Gomà (2003), J.
Prats (2005)
As vantagens ou desvantagens de se usar uma concepção ou
outra, desde que sejam rigorosas e se adaptem às regras da lógica,
dependerão da capacidade de previsão das mesmas.
A concepção que é apresentada acima, ao destacar como governo-tipo o governo provedor, registrou um modo de governar
adequado a outro modelo de governo (racional-legal), porém totalmente inadequado à nova relação que o governo estabelecia
com a sociedade civil. Isso nos serve de alerta para que, ao surgir o governo relacional, não continuemos utilizando o modelo
de governação gerencial ou que a governança seja considerada,
de maneira incorreta, simplesmente como uma dimensão a mais
deste modo de governar, o que sem dúvida dificulta alcançar os
objetivos do desenvolvimento humano.
Governança:
uma nova arte de governar
53
A confusão é real. Recentemente um conhecido autor, M. Shapiro19, chamou a atenção para o fato de que a perspectiva da
governança se desenvolve no âmbito da gestão pública através da
sua conexão com a escola da “nova gestão pública” e os perigos
que esta acarreta para a legitimidade democrática. Outro importante autor, Guy B. Peters, embora reposicione o tema e identifique a governança como uma nova arte de governar distante do
modo gerencial, que proporciona um renovado papel ao governo
democrático, também aponta para o perigo de se associar a governança com a corrente que atribui ao governo um papel menor,
para dar mais importância a outros agentes, em especial aos econômicos.
Entender a governança como uma dimensão a mais do governo provedor, e ou geri-la através do modo gerencial, significaria
retardar o novo papel do governo como um organizador coletivo
e a valorização do governante eleito como representante da cidadania.
Por esta razão é que no quadro anterior foi colocado como
expectativa razoável que a governança seja o modo de governar
próprio do governo relacional na sociedade-rede ou sociedade do
conhecimento, por ser o mais adequado. Porém, mesmo que seja
o mais apropriado, isso não quer dizer que o seu desenvolvimento
esteja assegurado. Ainda mais quando temos o exemplo de que o
governo provedor se desenvolveu, numa primeira etapa, através
do modelo de governação próprio do governo racional-legal: o
modo burocrático.
Ainda que a governança comece a ser um paradigma com progressiva importância nas ciências sociais como arte de governar, é
incipiente e, em não poucos casos, se desenvolve no interior do
19 M. Shapiro “Un derecho administrativo sin límites: reflexiones sobre el gobierno y la gobernanza”. Em A. Cerrillo (coord); La Gobernanza hoy: 10 textos de referencia. Madri: Ministerio
de Administración Pública, Instituto Nacional de la Administración Pública, 2005, pp 203212.
54
Governança:
uma nova arte de governar
modo gerencial de governar, confundindo-se com uma nova fórmula para dar maior relevância ao papel dos agentes econômicos.
O aparecimento da governança como prática de governo precisa
de êxitos bem conhecidos e de vitórias eleitorais para aqueles que
a implementarem. Para isto são necessários métodos e técnicas
específicas e um novo tipo de liderança política, que é preciso
sistematizar e difundir.20 O predomínio do modo gerencial atrasa
e dificulta a inovação do modo de governar.
O governo local, por sua proximidade com as relações que
se estabelecem entre os atores no território, pode gerir melhor
a complexidade social. Mas isso tampouco significa que venha
a ocorrer, mas simplesmente que, de um ponto de vista racional, existem condições para que haja um incremento do papel
dos governos locais. Se vão conseguir ou não, vai depender, fundamentalmente, de sua ação prévia, de que sejam capazes de
abrir espaços como organizadores da coletividade, e dos êxitos
que alcancem no desenvolvimento humano nos territórios em que
abram os espaços mencionados.
A governança é o modo de governar da
sociedade do conhecimento
A denominada globalização, tal como a define o Fundo Monetário Internacional, consiste em fluxos de informações, mercadorias, serviços e pessoas que cruzam os territórios e os fazem interdependentes. Os fluxos são produzidos, distribuídos, recebidos
e consumidos fundamentalmente nas cidades e áreas metropolitanas. A economia e a sociedade globais se assentam no sistema de
20 Para isso, foi criado o movimento de governantes eleitos e profissionais, em 2003, voltado
para o desenvolvimento da governança, denominado América Europa de Regiões e Cidades, AERYC. Ver a página web www.aeryc.org
Governança:
uma nova arte de governar
55
cidades. Os territórios se tornam mais interdependentes econômica, social e culturalmente.
A sociedade do conhecimento ou sociedade informacional, na
expressão conceitual de Castells, ao basear-se na inovação permanente, favorece a especialização flexível nas empresas e entidades
sociais. Estas, para inovar, não podem fazê-lo em todos os aspectos, necessitando fazê-lo naquilo que mais conhecem, em suas
melhores habilidades e capacidades. Este processo de inovação
requer a organização em rede das diferentes empresas, entidades
e instituições para produzir bens e serviços. A capacidade de articular as funções de pesquisa, formação, produção, comercialização e distribuição é a chave para o desenvolvimento. A organização em rede e o uso das tecnologias da informação são, segundo
Castells,21 fator central tanto para o desenvolvimento econômico
quanto para o social.
A sociedade do conhecimento se baseia em redes, na gestão
dos conhecimentos das pessoas nos departamentos, empresas,
entidades e organismos públicos. Ela posiciona os profissionais e
as equipes no topo dos processos produtivos. Na sociedade industrial, o trabalhador era um apêndice da máquina; o importante
era o processo no qual se inseriam as pessoas. Contrariamente,
na sociedade do conhecimento, as tecnologias da informação e
os processos produtivos são desenhados para servirem de suporte
para que as pessoas e equipes possam gerar valor através da produção de conhecimentos. A densidade e qualidade das interações
entre departamentos e empresas é o principal fator crítico para a
criatividade e inovação.
A principal vantagem econômica de um território é cada vez
mais a vantagem colaborativa. Neste sentido, a economia depende da coesão social ou, para ser mais preciso, do capital social,
que foi definido por Putnam de uma maneira muito semelhante
21 Ver M. Castells, Observatorio Global. Barcelona: Ed. La Vanguardia, 2006, pp.151-193.
56
Governança:
uma nova arte de governar
à capacidade de organização e ação: “O capital social refere-se ao
conjunto formado pela confiança social. Às normas e redes para
resolver os problemas comuns. As redes de compromisso cívico,
tais como associações de bairros, as federações desportivas e as
cooperativas, constituem uma forma essencial de capital social.
Quanto mais densas forem estas redes, mais possibilidades existirão de que os membros de uma comunidade cooperem para
obter um benefício comum.”22
Os indivíduos são cada vez menos autossuficientes. Por um
lado, aumentam sua autonomia em relação à família e às instituições sociais e políticas; por outro, suas necessidades são cada
vez mais crescentes e complexas e, para satisfazê-las, precisam de
uma grande amplitude de redes sociais.
A sociedade e a economia aparecem como uma construção
coletiva assentada em redes. Gerir a sociedade-rede é gerir as relações, é desenvolver a governança.
A tarefa principal de um governo democrático consistirá em
promover o desenvolvimento humano no território a partir da
criação, fortalecimento e coordenação das redes econômicas, sociais e culturais. Por isso é que, sem dúvida, a governança é o
modo mais adequado de governar.
22 R. D. Putnam, Making Democracy work: Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton
University Press, 1993, p.125.
Governança:
uma nova arte de governar
57
58
Governança:
uma nova arte de governar
2. Governança Democrática:
Construção coletiva do
desenvolvimento humano
Ideias Principais
1. A finalidade da governança democrática é o desenvolvimento
humano: democracia, equidade social, desenvolvimento econômico.
2. A
governança como modo de governar exige e precisa de de-
3. A
coesão social é o motor e não o resultado do desenvolvi-
4. A
coesão social entendida como capacidade de organização e
mocracia.
mento.
ação é o principal objetivo da governança democrática.
Ao longo do presente livro serão tratadas mais detalhadamente as características da governança e, em especial, sua aplicação
na área do bem-estar social. Ao chegar até este ponto, porém, me
atrevo a propor uma definição de governança democrática:
• A governança democrática é a arte de governar os territórios do novo governo relacional, próprio da sociedade
do conhecimento, cujo objeto é a capacidade de organização e ação de uma sociedade; seu principal meio é a
gestão relacional ou das interdependências e sua finalidade é o desenvolvimento humano.
Neste capítulo, comentarei os distintos aspectos desta definição, para uma maior compreensão.
A finalidade da governança democrática é
o desenvolvimento humano
Utilizo aqui o conceito de desenvolvimento humano adotado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD). Ou seja, o desenvolvimento humano compreende não
somente o desenvolvimento econômico, mas também a redução
das desigualdades sociais, a sustentabilidade ambiental e o fortalecimento da democracia.
O desenvolvimento humano inclui os temas do chamado capital ético, isto é, os valores dos atores e da cidadania em especial – o capital social ou a capacidade de gerar tecido organizativo empresarial e social para finalidades relacionadas com o bem
comum. Inclui objetivos de bom governo democrático, isto é,
relacionados ao aprofundamento da democracia, a participação
e deliberação cidadã, a reforma da administração pública, a colaboração intermunicipal e regional. Trata-se de um conceito de
desenvolvimento integral que inclui, naturalmente, critérios de
atuação e objetivos que serão referência para os diversos planos
60
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
setoriais e políticas públicas, em especial planos de ordenamento territorial e, particularmente, urbanístico. O desenvolvimento
humano se apoia em um quadrilátero virtuoso: econômico, social, territorial-sustentável e democrático.
A opção pelo desenvolvimento humano é uma opção pluralista. Não significa que todas as opções políticas coincidem
com as propostas eleitorais apresentadas à população. Claro que
o desenvolvimento humano implica que se leve em conta os
quatro fatores do desenvolvimento, mas as prioridades ou pesos
atribuídos a cada um deles nas políticas concretas é o que irá
distinguir as opções eleitorais.
Este conceito de desenvolvimento humano está relacionado
com a mudança de visão do desenvolvimento e do papel das pessoas nele, que a sociedade do conhecimento ou a sociedade-rede
incorpora. De fato, durante o pleno desenvolvimento da sociedade industrial, o homem (entendido como genérico de mulher e
homem) era considerado um apêndice da máquina. Sua produtividade, multiplicada pela divisão do trabalho e pelas máquinas,
era o elemento-chave do desenvolvimento. Este, por sua vez, era
entendido em sua vertente mais restrita como crescimento econômico, em cuja origem estavam os investimentos em infraestrutura
e grandes equipamentos. Já na sociedade do conhecimento, ao
ser este a principal fonte de valor agregado, as pessoas, as equipes profissionais e a organização em rede das empresas atingem
a sua máxima relevância. A tecnologia – e, em especial, as tecnologias da informação – se converte no suporte necessário para
que as pessoas e equipes produzam conhecimentos. Ao centrarse nas pessoas, o desenvolvimento e a visão que se tem dele se
aproximam mais das múltiplas dimensões de suas necessidades e,
portanto, se tornam mais amplos. Por outro lado, o bem-estar já
não se encontra no governo (em sua oferta de serviços), mas está
nas pessoas. São elas que produzem bem-estar a partir de sua capacidade de usar os serviços colocados à sua disposição.
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
61
A governança exige e precisa de
democracia
É possível entender a governança sem que a sua finalidade
seja o desenvolvimento humano, ou, ainda, pensar em uma governança não democrática?
Se entendermos a governança em sentido estrito, como uma
atividade especial do governo que busca a colaboração de atores
em um tema concreto, e não como uma forma habitual de governar, é possível entendê-la como não democrática, sempre que
os acordos entre o governo e os atores sejam realizados de costas
para os cidadãos e motivados por uma política clientelista. Ao
contrário, como modo de governar habitual, de um governo local
que busca melhorar a capacidade de organização e ação de uma
sociedade, se exige democracia, uma vez que se tornam necessárias a liberdade de circulação das ideias e interesses, assim como
organizações abertas e flexíveis com as quais seja possível chegar
a acordos sobre interesses legítimos. Por outro lado, a governança
exige participação e envolvimento cidadão. Dificilmente uma política que não se baseie em valores democráticos e de desenvolvimento humano poderá desenvolver-se através de amplos processos de compromisso social. Para outro tipo de objetivos prefere-se
que não haja luz nem taquígrafos.
De fato, e para evitar qualquer tipo de confusão ao denominar
o modo de governar próprio do governo relacional, utilizamos a
expressão governança democrática, conscientes de que se pode
usar a gestão de interdependências em um sentido contrário ao
desenvolvimento humano e aos próprios direitos humanos, ainda
que sempre como atividade isolada e não como modo habitual
de governar.
Na governança democrática, infelizmente, também podem
acontecer espaços de encontro clientelista, mas de maneira isolada, como em qualquer modo de governar. Porém, neste modo de
62
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
governar, por seu caráter aberto e participativo, é muito mais fácil
conhecer estas práticas clientelistas e, por isso mesmo, torna-se
mais difícil que aconteçam.
A coesão social é o motor do
desenvolvimento econômico e social
A coesão social foi tradicionalmente entendida como o desenvolvimento de políticas públicas e mecanismos de solidariedade para o acesso da cidadania aos benefícios e serviços
de bem-estar financiados com fundos públicos. A coesão social, portanto, era considerada como um resultado do desenvolvimento econômico, entendido fundamentalmente como
crescimento da renda. Esta é básica para poder aumentar os
impostos e financiar os serviços públicos de saúde, serviços sociais, educação, cultura etc., que geram bem-estar social e educação. Neste esquema próprio do modelo de crescimento da
sociedade industrial, ao situar o desenvolvimento econômico
como principal prioridade, justificou-se a sua busca por qualquer meio, não somente suspendendo os direitos sociais, mas
também os direitos democráticos. O importante e fundamental
era que houvesse investimento, especialmente em infraestrutura, tecnologia e grandes equipamentos que incrementassem a
produtividade.
Na atualidade, o tema está passando por grandes transformações. O conceito de coesão social foi ampliado e, paralelamente
com o surgimento da sociedade-rede ou do conhecimento, a coesão social começa a ser entendida como um fator prévio ao desenvolvimento econômico e social sustentado e sustentável. Vejamos
ambos os aspectos.
O escritório de coordenação do programa Eurosocial observa:
“De uma perspectiva individual, a coesão social supõe a existência de pessoas que se sentem parte de uma comunidade, particiGovernança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
63
pam ativamente em diversos âmbitos de decisão e são capazes de
exercer uma cidadania ativa.” 23 Acrescenta três novos elementos
à coesão social: sentimento de enraizamento, cidadania ativa e
participação social.
No mesmo sentido do programa mencionado, a organização
do governo britânico I&DEA24 define uma comunidade socialmente coesa através de quatro características:
1. Tem uma visão e um sentimento de enraizamento compartilhado.
2. A diferença de circunstâncias, ambiente e culturas é valorizada como um fato positivo.
3. Independentemente do seu ambiente, as pessoas têm
oportunidades de vida semelhantes.
4. Desenvolve relações fortes e positivas entre pessoas de
ambientes muito diversos, quer seja no trabalho, na escola ou no bairro.
Neste ponto, e considerando que o programa Eurosocial e, em
especial, o I&DEA definem a coesão social pela qualidade, complexidade e diversidade das relações entre os cidadãos e vizinhos,
antecipo uma tese: a coesão social, entendida como atributo de
relações sociais, deve ser considerada como fator-chave e desencadeante do desenvolvimento humano. Isto é, mais do que resultado da distribuição de renda ou acesso a equipamentos e serviços financiados pelo desenvolvimento econômico anteriormente
ocorrido no território, defendo que é preciso existir coesão social
prévia, concebida como condição para que ocorra um desenvolvimento territorial endógeno, sustentável e sustentado no tempo.
23 Ver Fundación Internacional y para Iberoamérica de Administración y Políticas Públicas –
FIIAPP, Documento de discussão da Jornada “A coesão social: um desafio para a Europa e
América Latina”, 2007, p. 1.
24 Ver www.idea-knowldege.gov.uk
64
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
De fato, como consequência do aparecimento da sociedaderede ou sociedade do conhecimento, que transformou tanto a
concepção do desenvolvimento econômico como a do desenvolvimento social, constatou-se que não são as infraestruturas que
geram o crescimento econômico e a renda. Estas impactam a sociedade gerando produtividade e alto valor agregado apenas se
inseridas na organização de redes sociais e empresariais. Este novo
enfoque serviu para demonstrar a caducidade do ponto de vista
anterior, e pode ser mostrado que o fundamental e prioritário é
conseguir o avanço da coesão social, entendida como capacidade
de organização e ação. Ao propiciar a utilização dos recursos físicos e humanos disponíveis, ela é que é capaz de gerar atualmente,
por si mesma, não apenas um maior desenvolvimento da produtividade, e consequentemente da renda e dos serviços públicos,
mas do desenvolvimento humano em geral, uma vez que promover a coesão de uma sociedade exige democracia e, naturalmente,
sustentabilidade, isto é, capacidade de regeneração dos recursos
do entorno territorial.
A melhoria da capacidade de organização é um valor intangível, com maior impacto no desenvolvimento humano.
Por desenvolvimento humano (econômico, social, cultural,
sustentável e democrático) de um território, na atualidade, se entende, sobretudo, alcançar um diferencial entre o que uma sociedade faz e o que é capaz de fazer em relação ao seu entorno
econômico e social. Pode-se objetar que esta definição é também
válida para outros períodos históricos, o que é absolutamente
certo. Entretanto, o predomínio do enfoque do pensamento da
sociedade industrial e dos governos gestores e provedores, que
atribuía o desenvolvimento econômico às infraestruturas e equipamentos, dificultava visualizar outros fatores que atualmente
podemos identificar. Com as lentes da antiga concepção, não se
podia observar a amplitude dos fatores que geram o desenvolvimento e, em especial, a importância da capacidade de transformação da própria sociedade. Como explicaria Einstein, é preciso
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
65
um novo enfoque para conseguir um avanço nas ciências, neste
caso, na teoria do desenvolvimento.
As infraestruturas, podemos afirmar claramente, são importantes para o desenvolvimento econômico, mas não são estritamente necessárias e em absoluto suficientes. O desenvolvimento
depende da capacidade de organização e ação de uma sociedade.
Em outras palavras, da capacidade de articular seu potencial humano e o capital físico com a finalidade e objetivo de promover o
progresso de modo amplamente compartilhado. Do mesmo modo
que existe uma capacidade de organização adequada, é possível
identificar projetos de capital físico adequados para melhorar sua
competência e a geração de valor. O esquema é o seguinte:25
Desenvolvimento
territorial
Capital físico e humano
Capacidade de
organização
A coesão social é o principal objetivo da
governança
As razões anteriores justificam que a capacidade de organização e ação de um território seja o objetivo principal do novo
modo de governar.
Pois bem. Quais são os fatores estruturantes da capacidade de
organização e ação ou, o que é o mesmo, da construção coletiva do
25 J. M. Pascual Esteve em La Gestión Estratégica de las Ciudades: Un instrumento para Gobernar
las Ciudades en la Era Infoglobal. Sevilha: Junta de Andalucía, 2002.
66
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
desenvolvimento humano? No meu entendimento, hoje já podemos identificar os seguintes fatores:26
• Existência de uma estratégia compartilhada entre os principais atores. Uma estratégia integral e integradora com
claros compromissos de ação em permanente atualização, centrada no bem-estar das pessoas e baseada nos
interesses dos principais atores.
• Um modelo de interação social entre os principais atores,
adequado:
✦✦
✦✦
✦✦
Aos desafios e exigências do desenvolvimento contemporâneo, que permita enfrentar os conflitos inevitáveis com flexibilidade e confiança de chegar a
acordos com benefícios recíprocos.
Às correlações de força ou equilíbrio de poder entre
eles.
Às configurações mentais ou culturais que promovam
o respeito e o conhecimento recíproco e se orientem
à ação a partir de compromissos igualmente recíprocos.
O modelo de interação entre os agentes econômicos, sociais e políticos é fundamental para a determinação da
estrutura produtiva de qualquer região ou país. A falta
de flexibilidade do modelo e a cooperação entre poucos, através do qual se “submete” a maioria, produzem
insegurança e, com ela, a ausência de visão de médio
e longo prazos, assim como o uso de tecnologias que
utilizam pouco capital fixo. Um modelo aberto e flexível
favorece a confiança e a aposta empresarial e social, que
se traduz em um importante desenvolvimento econômico e social.
26 Para uma explicação mais detalhada, ver J. M. Pascual Esteve, Estrategia Urbana y Gobernanza. Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona (Área de Promoción Económica), 2007.
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
67
• A presença de redes de atores para o desenvolvimento de projetos-chave e complexos. Os projetos em rede permitem articular os esforços de distintos atores públicos e privados,
ao serem capazes de combinar os diferentes interesses e
desafios de objetivos comuns e socialmente úteis.
A estratégia territorial exige o compromisso de ação por
parte dos principais atores do território para desenvolvêla. Porém, a partir de uma posição de atores entendidos
como organizações coerentes em si mesmas, com relações entre elas frequentemente conflitantes, é necessário
um processo de construção de redes até que os compromissos concretos de ação sejam alcançados. Isto a partir
de uma situação inicial distinta em cada território, até
que as relações entre os âmbitos público e privado, entre
administração e sociedade sejam situadas no terreno da
corresponsabilidade.
Este processo de melhoramento relacional27 deve ter um
tratamento coordenado, mas, logicamente, diferenciado
do processo de definição da estratégia territorial. O resultado do processo é conseguir a identificação de uma
estratégia concreta com um compromisso claro de ação.
• Uma cultura de ação e compromisso cívico distanciada tanto
da cultura da satisfação quanto da queixa, do burocratismo e do niilismo. A cultura de ação deve proporcionar:
✦✦
✦✦
Um sentimento de enraizamento e identificação com
a cidade ou região. Dispor de um sentido coletivo
aberto, não fechado.
Atitude aberta, tanto à inovação como à integração
social e cultural de novas pessoas e à inserção em
27 Ver a respeito X. Mendoza, “Las transformaciones del sector público en las sociedades
avanzadas: Del Estado del Bienestar al Estado Relacional”, Papeles de Formación de la Diputación de Barcelona (1996) e A. Vernis, “La relación público-privada en la provisión de
servicios sociales”, Papeles de Formación de la Diputación de Barcelona (1995).
68
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
estratégias territoriais mais amplas que o próprio município, a própria região e nação.
✦✦
✦✦
✦✦
Esperança realista no futuro, que permita ver além da
realidade, se esta é sombria (“Queremos promessas,
não mais a realidade”, diziam os argentinos durante uma de suas crises econômico-financeiras), e que
gere expectativas racionais nas inversões de capitais e
nos esforços humanos.
Legitimação e reconhecimento social da figura da
pessoa e instituição promotora.
Respeito e confiança na atuação dos outros atores,
que é a base para a geração do capital social.
• O apoio social e a participação cidadã. As estratégias e os
principais projetos estruturantes devem dispor de um
importante apoio social, e este será mais efetivo se a
participação cidadã for estimulada e garantida, entendida em dois sentidos: como garantia de que seus principais desafios e expectativas serão considerados nas estratégias, e como condição para sua responsabilização e
envolvimento social gerador de capital social.
• A existência de lideranças formais e informais entre os atores
institucionais-chave, com capacidade de aglutinar e representar a maioria dos interesses, pactuar e respeitar institucionalmente suas decisões. A liderança principal deve
corresponder, como já assinalamos, à instituição mais
democrática, isto é, a escolhida por toda a cidadania.
Do contrário, nos encontraríamos com uma liderança
corporativa a partir da qual não é possível construir o
interesse geral, uma vez que se reduz ao corporativo.
Como assinala J. Subirats, “o grau de liderança das instituições representativas no processo de governança das
comunidades vai derivar de sua capacidade para envolver o restante dos atores, agentes e pessoas presentes
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
69
na sociedade na construção de um modelo de futuro
compartilhado”.28
• A articulação de políticas regionais e locais. Trata-se de conceber a região como sistema de cidades e municípios,
com capacidade de:
✦✦
Combinar as políticas regionais e locais com objetivos
e instrumentos no conjunto do território, com as estratégias locais com capacidade de dar especificidade
e integridade ao conjunto de ações, fortalecendo a
cooperação pública e a colaboração cidadã.
✦✦
Articular os municípios não a partir de uma organização territorial fixa, mas de uma maneira flexível e
adaptável em função do projeto-rede. Quer dizer, dos
territórios que abarcam o desenvolvimento do projeto.
✦✦
Dispor de regras de jogo formais e informais que
pautem a interação entre administração regional e as
municipais, assim como as intermunicipais.
• A habilidade de uma cidade para posicionar-se frente ao futuro. Isto é, a capacidade de antecipar-se a novos desafios,
renovando permanentemente a estratégia, gerando novos
projetos e dando novos enfoques aos temas sociais.
A gestão relacional é a modalidade de
gestão característica da governança
O fato de serem as cidades os principais centros de inovação
e desenvolvimento econômico e social dos países deve-se, fundamentalmente, à densidade das interações entre seus distintos
28 J. Subirats, “¿Qué gestión pública para qué sociedad?. Una mirada retrospectiva sobre el
ejercicio de la gestión pública, en la sociedades europeas actuales” em Instituto de Gobierno
y Políticas Públicas. UAB.
70
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
membros e organizações. Da complexidade, diversidade, intensidade e qualidade dessas interações dependerão as vantagens
comparativas do desenvolvimento humano que uma cidade ou
região metropolitana terá.
A gestão relacional é o tipo de gestão pública que, no nosso
caso, é levada a cabo pelos governos territoriais para incrementar
a intensidade, qualidade e diversidade das interdependências e
interações dos atores econômicos, sociais e institucionais e os distintos setores da cidadania. Seu objetivo é melhorar a criatividade,
a confiança, a colaboração e a cultura empreendedora e de ação
cívica do conjunto da cidadania para conseguir, coletivamente e
de maneira compartilhada e cooperativa, um maior desenvolvimento humano.
A gestão relacional é própria do que se denominou sociedades inteligentes, ou seja, aquelas que, segundo as palavras de A.
Marina, incrementam a capacidade de criação e de solidariedade
dos cidadãos.29
Logicamente, a pretensão não é gerenciar todas as relações
sociais, mas tão somente aquelas que têm relação com a construção compartilhada do desenvolvimento humano. Os âmbitos
privilegiados da gestão relacional entre os governos territoriais e a
sociedade civil são:
Por um lado, as relações com os agentes com maior capacidade de transformação do território, por seus recursos e competências ou por sua legitimação social pelo conhecimento e estatura
moral. Neste grupo encontramos:
• As relações intergovernamentais: tanto entre diferentes
níveis de governo em distintos âmbitos territoriais, como
relações multilaterais entre governos do mesmo nível
territorial, sejam intermunicipais ou inter-regionais.
29 J. A. Marina, La inteligencia fracasada. Barcelona: Editorial Anagrama, 2004.
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
71
• As relações com grandes instituições: universidades, centros
de pesquisa e desenvolvimento, câmeras de comércio, fundações culturais e educacionais de prestigio, igrejas etc.
• As relações com o setor econômico privado: setores econômicos produtivos e financeiros, empresas de capital de
risco, confederações e associações empresariais etc.
• As relações com agentes sociais e profissionais: sindicatos, agremiações profissionais, associações de moradores, importantes movimentos sociais etc.
Por outro lado, relações destinadas a articular o tecido social e
fortalecer o capital social do território:
• As relações com entidades sociais que têm também um
papel de intermediação.
• Uma tarefa de mediação para alcançar um espaço de
inter-relação entre entidades sociais.
Por último, sem que neste caso signifique em absoluto baixa
prioridade:
• Relações diretas com os cidadãos entre os períodos eleitorais. É importante dispor de múltiplos mecanismos de
informação, comunicação e deliberação tanto para conhecer diretamente opiniões, desafios e necessidades, e
conseguir, efetivamente, que as políticas respondam aos
interesses do conjunto da cidadania, como para fortalecer uma cidadania ativa.
• Participação eleitoral. Deve ser considerado que são as
eleições democráticas o principal e mais decisivo modo
de assegurar que as políticas governamentais tenham
em conta as preocupações dos cidadãos. A qualidade da
representação é o que há de essencial numa democracia e a liderança baseada na representação é o principal
fator de êxito na governança democrática.
72
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
A gestão relacional se assenta em um
conjunto de técnicas e instrumentos
A gestão relacional como instrumento de governança não é
somente um enfoque da realidade social e, em especial, do modo
de governar. Ela necessita também de técnicas e instrumentos que
façam dela um mecanismo eficaz do desenvolvimento humano.
Precisamente, este novo enfoque é o que permite transformar novos métodos em instrumentos de gestão ou identificar e adaptar
antigas técnicas, propiciando-lhes um papel renovado na gestão
das relações sociais.
Sem dúvida, o avanço da gestão relacional e as próprias transformações que sua aplicação propicia condicionarão o surgimento
de novas técnicas e o aperfeiçoamento das existentes.
Em uma publicação da Área de Promoção Econômica da Província30de Barcelona, expliquei em detalhes as características de
uma série de técnicas que já demonstraram sua eficácia na gestão
relacional, e que enumero a seguir para que o leitor tome conhecimento do amplo leque de ferramentas já existente:31
• Os planos estratégicos, desenvolvidos nos territórios a
partir da cooperação público-pública e público-privada
e a participação cidadã, constituem um bom início da
gestão relacional própria da governança ao dotar os territórios de uma estratégia compartilhada entre os principais atores e com um amplo apoio social. O planejamento estratégico assim entendido constitui a fase inicial ou
30 No original, Diputación (Província). Trata-se de um governo supramunicipal de âmbito
territorial denominado Província. Na Espanha, a organização territorial é a seguinte: os
municípios se agrupam em Províncias e estas se agrupam em Comunidades Autônomas
(equivalentes aos estados no Brasil). Os órgãos de governo da Província são eleitos pelas
prefeituras em função do número de vereadores, que, por sua vez, depende do tamanho
da população do seu município. (Nota do tradutor)
31 J. M. Pascual Esteve, Estrategia Urbana y Gobernanza, op. cit.
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
73
fase de planejamento propriamente dito da gestão das
interdependências ou gestão estratégica.32 A metodologia dos planos estratégicos é um bom instrumento para
o início da governança territorial.33
• A negociação relacional dos conflitos públicos. As técnicas
de negociação relacional constituem um bom instrumento para o desenvolvimento da gestão de interdependências ou gestão relacional. A negociação relacional é um
tipo de negociação com características próprias, porque
o resultado buscado por parte de um dos negociadores
é consolidar e melhorar a relação entre os protagonistas
para obter maior confiança mútua e poder desenvolver
projetos com base na cooperação.
• Técnicas de mediação. No paradigma do governo gerencial, era costume o governo ser uma das partes. Em conflitos entre grupos sociais no território, é difícil encontrar
o governo fazendo o papel de mediador entre os atores.
Na perspectiva da governança, em que os governos locais e regionais assumem a liderança na construção coletiva do território, a mediação é, sem dúvida, um dos recursos dos políticos e profissionais da administração. Na
mediação, o papel da administração é intervir para que
uma situação conflituosa entre atores sociais possa encontrar uma solução e, no processo, melhore a imagem
das partes e a confiança entre elas. A ação do governo é
a de ser catalisador de um acordo sem converter-se em
parte do mesmo.
32 Para o desenvolvimento desta tese, ver J. M. Pascual Esteve, De la planificación a la gestión
estratégica. Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona, 2001.
33 J. M. Pascual Esteve, La estrategia de las ciudades. Los planes estratégicos como instrumento:
métodos, técnicas y buenas prácticas. Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona, 1990. Neste livro exponho um conjunto de métodos e técnicas que são úteis para a elaboração de planos
estratégicos territoriais que servem como início da governança.
74
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
• Técnicas de participação cidadã e apoio social às políticas
públicas. Das estratégias de participação deve-se passar
à participação como estratégia para fortalecer a capacidade de organização e ação. Das inúmeras técnicas de
participação, na área da gestão relacional, são especialmente úteis as que: (1) se baseiam em procedimentos
claros e simples, com finalidades precisas que facilitam
a expressão de ideias e desafios sobre um tema ou assunto e, naturalmente, impedem que se prolonguem
eternamente os debates. Participação é método e organização. Do contrário, a participação se reduz a poucos
participantes, pouco reflexivos, dado que seu interesse é
menos convencer do que se impor pelo cansaço; (2) ajudem a gerar confiança, colaboração e responsabilidade
cidadã nos acordos realizados; (3) permitam legitimar
objetivos e projetos da cidade e obter um importante
apoio da cidadania aos mesmos.
• Métodos e técnicas de gestão de projetos em rede. As técnicas para a gestão de redes são fundamentalmente de
dois tipos: a gestão da dinâmica da rede, que abarca
desde a inclusão dos atores-chave ao fomento de projetos que consolidem os interesses comuns. As técnicas
de gestão de estruturas para adequá-las aos objetivos
para os quais foram criadas e permitam fortalecer uma
cultura ou uma perspectiva comum. É particularmente
útil para a gestão de redes o uso das matrizes de atores
no marco da gestão sistêmica por objetivos.34
• Gestão da cultura empreendedora e cívica da cidadania. A
tecnologia para fortalecer as características de uma cultura empreendedora e de ação entre a cidadania é muito
34 Ver J. M. Pascual Esteve La estrategia de las ciudades: métodos, técnicas y buenas prácticas.
Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona, 1999, pp. 157-162.
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
75
recente e tive a oportunidade de sistematizar os indicadores para o monitoramento de sua evolução através
de pesquisas aleatórias e por amostragem para o Centro de Estratégias e Desenvolvimento de Valência (Ceyd,
na sigla em espanhol). O processo de gestão da cultura
empreendedora exige, na perspectiva da governança democrática, uma grande transparência e um acordo democrático entre os principais setores da cidadania para
desenvolvê-la.
Não obstante, dispomos de instrumentos cujos efeitos
podem ser observados em curto prazo, muito embora
sejam poucos os resultados conjunturais. Referimo-nos
às técnicas de “city ou regional marketing” interno, ou
seja, o marketing voltado para a identificação dos próprios cidadãos com o seu território.
A respeito do marketing interno, do ponto de vista da
governança, é recomendável o enfoque e as metodologias propostas por T. Puig, relacionadas à criação de
uma marca do território construída de maneira coletiva
e com capacidade de convencer e comover.35 É aconselhável adotar o posicionamento do Ceyd relativamente à
gestão da memória, cujo direcionamento deve estar voltado para a geração de uma consciência coletiva capaz
de unir tradição e modernidade e aproveitar o passado para fundamentar aspirações e valores democráticos
e solidários para o presente e o futuro, isto é, olhar o
passado com os olhos do futuro, tal como observava H.
Arendt.36
35 Ver T. Puig, La Comunicación cómplice con los ciudadanos. Madri: Siglo XXI, 2003.
36 Ver J. M. Pascual Esteve, “La gestión de la memoria en la estrategia de las ciudades”. Revista
del CEYD, Valência, 2005.(www.ceyd.org)
76
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
• “Coaching” para a liderança relacional. Na governança, o
que se fortalece é o valor da representação do político, e dele se requer capacidade para escutar, dialogar,
compreender, convencer, comover e motivar para a ação
coletiva e para a responsabilização e compromisso social
da cidadania.
• Por outro lado, na governança os resultados da sua ação
já não são tanto os serviços, e sim o nível geral do desenvolvimento econômico e social alcançado no território
durante seu mandato e o grau de coesão social alcançado com a cidadania. É preciso apresentar o balanço da
sua gestão relacional, e para isso são necessárias novas
formas, novas atitudes e novas habilidades.
• As técnicas de construção de consensos. Não é necessário
insistir na importância destas técnicas na governança.
De fato, as técnicas anteriormente citadas sobre negociação relacional e participação cidadã incluem necessariamente o consenso. Mas existe uma grande pluralidade de metodologias e técnicas amplamente testadas,
além das citadas, que devidamente adaptadas podem
ser utilizadas nos diferentes âmbitos em que se desenvolve esta nova arte de governar.
• O enfoque abrangente nas ciências sociais. Na governança é necessário compreender o que diz cada ator em
seu contexto social e poder entender não apenas o que
expressa, mas como e por que o diz. A compreensão
dos atores e a análise dos conflitos a partir das distintas perspectivas das partes são condição absolutamente necessária, embora naturalmente insuficiente para
o bom desenvolvimento da governança. Trata-se de
fazer inteligível a base subjetiva em que repousam os
fenômenos sociais; a análise objetiva desses fenômenos
é perfeitamente possível e compatível com o fato de
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
77
que as ações humanas têm um caráter subjetivo. Este
enfoque, também denominado interpretativo da ação
social, tem em Max Weber seu autor mais clássico, e
está voltado para a compreensão do sentido de uma
ação para um ator, dando a conhecer os motivos entre a atividade objetivamente observada e seu sentido
para o mencionado ator.37
• A direção sistêmica por objetivos.38 As técnicas de administração por objetivos são um bom instrumento para a
gestão relacional. Não é este o caso da direção baseada
em procedimentos protocolizados para se chegar a um
resultado, uma vez que se trata de estabelecer objetivos comuns a um conjunto de atores que constituem um
sistema social e, de acordo com eles, concretizar de maneira inovadora seus objetivos através de projetos cujo
gerenciamento deve ser feito em rede.
Para desenvolver-se, a governança precisa
ter êxitos eleitorais visíveis
Como já observado, o governo relacional, com a governança
como seu modo específico de governar, é um novo paradigma
de governo que está avançando nas ciências sociais, embora não
constitua o modo de governar habitual nem na América nem na
Europa. Para desenvolver-se, além das técnicas, a governança precisa de conteúdos nas políticas públicas e, especialmente, de êxitos eleitorais visíveis.
37 Podemos encontrar a exposição metodológica da sociologia compreensiva em Sobre la Teoría de las Ciencias Sociales (Barcelona, Península, 1971) e também em Economía y Sociedad,
op. cit., no qual mantém a importância da subjetividade para a análise sociológica.
38 Para conhecer o enfoque sistêmico, recomenda-se a leitura de L. Bertalanffy, La Teoría General de Sistemas. Madri: F.C.E, 1981.
78
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
Atualmente, e apesar da sua crise, é o governo gestor com o
seu modo gerencial de governar que constitui a forma dominante
de fazer política. Sem dúvida, uma das razões que explicam a permanência do “gerencialismo” como modo habitual de governar é
que se acha amplamente na consciência das pessoas o modo gerencial como a forma correta de fazer “política” (confundindo-se a
prática dominante e o hábito com a postura correta e adequada).
Considera-se que a política demanda o cidadão (sem ter em conta
que, neste caso, se observa a lei de Say, que nos diz que a oferta,
no caso a política, condiciona a demanda) e que qualquer posicionamento transgressor do modo de governar citado tende a ser
rechaçado. A governança deve superar estes grandes obstáculos
para se constituir como modo comum de governar os territórios.
Por isso, como qualquer paradigma social em fase inicial, a
governança só avança em experiências pontuais. Alguns poucos
dirigentes políticos inovadores, em circunstâncias determinadas,
colocaram em prática processos de governança, muitas vezes sem
conceituá-los como tal.
Essas experiências devem ser objeto privilegiado de análise e
divulgação para melhorar o entendimento e possibilitar a concretização deste modo de governar, sobretudo se com a implantação
da governança for constatado um importante progresso econômico e social através da colaboração entre governo e sociedade civil.
Em especial, é importante para a superação dos velhos modelos
políticos a análise e divulgação dos êxitos eleitorais obtidos depois
da aplicação das políticas baseadas no novo modo de governar.
Estes são os principais caminhos para gerar um “caldo de cultura”
idôneo para o surgimento de novas experiências de governança, para romper o obscurantismo na cultura política representado
pelo gerencialismo.
A governança como modo de governar tem uma grande autonomia em relação aos conteúdos das políticas, mas esta autoGovernança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
79
nomia não é total. Existem as condições especiais, econômicas e
sociais, que favorecem esta nova arte de governar.
Os conteúdos concretos das políticas dos governos territoriais
condicionam o bom desenvolvimento da governança. Sem dúvida,
uma opção por uma cidade compacta, não segregada, baseada na
complexidade e diversidade das relações humanas no espaço público, favorece a gestão relacional de qualidade. O envolvimento
dos usuários e familiares nos programas voltados para o bem-estar
social e para a educação, a difusão dos valores relacionados ao
sentimento de “pertencer”, o comprometimento e a atribuição de
um valor simbólico aos espaços coletivos, para convertê-los em
lugares de encontro e convivência, são também condicionantes
que favorecem o desenvolvimento do governo relacional e da governança como modo de governar as cidades.
Os objetivos do Movimento AERYC (América-Europa de Regiões e Cidades) para a governança territorial têm esta tríplice
finalidade: análise e divulgação das técnicas e instrumentos de
gestão relacional e governança; boas práticas de desenvolvimento
humano e êxito eleitoral baseado na governança; e identificação
de conteúdos para a promoção da governança. Esta última, a partir da perspectiva dos grandes desafios confrontados pelos territórios: cidades, regiões, imigração, gestão do tempo etc.
80
Governança Democrática:
construção coletiva do desenvolvimento humano
3. O Governo Relacional e
a Governança se assentam
nas mudanças sociais e na
emergência da sociedade-rede
Ideias Principais
1. Nova desigualdade social e nova visão da pobreza.
2. A individualização das relações sociais e a geração de capital
social.
3. Risco e vulnerabilidade social.
4. Imigração: identidade e multiculturalidade.
5. Mudanças
de famílias.
6.
na família: socialização com base na diversidade
a cidade à medida das mulheres: uma exigência.
7. Uma nova visão do tempo e espaço na sociedade-rede.
8. A centralidade dos valores na organização social.
9. A globalização do social.
10.Mudanças nas formas
bem-estar social
de prestação e gestão dos serviços de
A mudança nas formas de governar os territórios não se justifica
apenas pela necessidade de governar aprofundando a democracia
e para alcançar maior eficácia e eficiência das políticas públicas,
mas pelo fato de que está ocorrendo uma grande transformação
em nossa sociedade que afeta a economia, a estrutura social, a
organização do espaço, a educação, a cultura e, naturalmente, a
estrutura do governo e o modo de governar.
Estamos vivendo o processo de transição da sociedade industrial para a sociedade-rede ou sociedade do conhecimento. Isto
significa uma mudança social tão importante como foi a passagem
da sociedade agrícola e artesanal à sociedade industrial.39
A sociedade-rede assentada nas tecnologias da informação e
comunicação tem na geração do conhecimento e na inovação, a
partir da interação de diferentes agentes (pessoas, empresas, atores, setores produtivos etc.), a principal fonte de valor agregado. A
principal fonte de produtividade é o capital cultural ou intelectual,
que é gerado e fortalecido a partir da qualidade e intensidade
das interações humanas e empresariais, ou seja, da qualidade da
organização das redes. Nas últimas etapas da sociedade industrial,
predominava a organização fordista, e uma de suas principais características era a absorção pela empresa, na sua própria estrutura,
da maioria das funções relacionadas com a produção (marketing,
assistência jurídica, comercialização etc.). Na atualidade, e dada a
necessidade de inovar permanentemente, as empresas se especializam de maneira flexível naquilo que é a sua atividade central e
terceirizam a maior parte das atividades de apoio à sua produção
específica. Os conceitos de inovação, flexibilidade e adaptabilidade substituíram a especialização, continuidade e reprodução de
atividades e produtos.
Neste capítulo não vamos descrever todas as mudanças que
afetam a transformação das nossas cidades. Trataremos tão so39 Ver M. Castells, La Era de la Información. Madri: Ed. Alianza, 2000. Vol.I.
82
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
mente daquelas que atingem mais diretamente a situação social
das pessoas e grupos sociais, particularmente dos que se relacionam mais diretamente com as políticas de bem-estar social e sua
gestão por parte dos governos locais.
No quadro seguinte, observamos as interdependências das
mudanças tecnológicas, econômicas e sociais e, muito especialmente, das transformações sociais. Identificamos os principais desafios sociais que a gestão estratégica das cidades deve se propor
enfrentar, isto é, aquela gestão cujo objetivo seja conduzir a cidade a patamares de maior qualidade de vida na sociedade global
da informação e do conhecimento.
Para simplificar, só assinalamos no quadro a influência da tecnologia nos desafios sociais, e omitimos o impacto destes desafios na tecnologia. Não obstante, devemos ter presente que existe
uma interdependência dos distintos âmbitos estruturais e variáveis
que o conformam.
Os desafios Sociais
Análise de tendências
Economia
Estrutura Social
Desafios Sociais
Genética
Novos
setores
Econômicos
Sociedade risco
Imigração terceiros países
Sociedade-rede
Importância capital social
Reestruturação do Estado
do bem-estar
Novo papel dos territórios
Centralidade ética e valores
Individualização das relações sociais
Estrutura social / Sociedade-rede
Economia
Global
Nova desigualdade
Mercado de trabalho
Economia
Informacional
ou do
conhecimento
Economia contemporânea
Base tecnológica / Era Conhecimento
Estrutura ocupacional
Informação a
comunicação
Nova pobreza
Risco e vulnerabilidade
Identidade / Multiculturalidade
Mudanças na família
Igualdade de gêneros
Crise na organização dos
benefícios
Crise fórmulas de intervenção
Desafios Sociais
Tecnologia
Globalização do social
Cultura dos valores
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
83
A seguir, descrevemos os desafios sociais a partir das mudanças que estão ocorrendo na estrutura social das cidades.
Nova desigualdade social e nova visão da
pobreza
O fundamental para entender os novos processos de dualidade e polarização social nas cidades, anteriormente mencionados,
é compreender que existe uma mudança no principal fator de
geração das desigualdades de renda e poder em relação às cidades industriais. Nestas, era o acesso à propriedade do capital
o fator fundamental para organizar os processos de produção e
distribuição social dos bens e serviços na cidade, e, em especial,
para alcançar um maior retorno econômico. Da renda dependia
em boa medida o acesso a melhor educação, saúde, cultura e
lazer. Daí resulta terem os benefícios do Estado do bem-estar sido
direcionados tanto para assegurar a universalização dos serviços
sociais, educacionais e de saúde básicos como para garantir determinados níveis de renda para setores vulneráveis da população – aposentados, desempregados, portadores de necessidades
especiais –, como melhor forma de lutar contra a pobreza e a
desigualdade social.
Na atualidade, a União Europeia considera a pobreza em termos relativos de desigualdade. No II Programa de Luta contra a
Pobreza, esta foi definida como aquela situação em que se encontram as famílias que recebem menos da metade da renda média
da sociedade de referência. Esta definição continua hoje vigente
no âmbito europeu.
Na cidade da informação, o acesso ao capital cultural está se
constituindo no principal fator gerador da desigualdade social,
ainda que não o único. Nela, o fundamental é a capacidade de
transformar a informação em conhecimento. Este é o principal gerador de valor agregado. O capital cultural não são conhecimentos
84
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
concretos sobre arte e ciências. Capital cultural é a capacidade
socialmente adquirida de produzir conhecimento partindo do
acesso universal à informação. Capital cultural é proporcionado
pelo domínio da linguagem, do conhecimento de conceitos, das
técnicas de raciocínio, da faculdade de criar e imaginar; é conhecimento e é atitude positiva em relação à inovação e à aprendizagem constante durante toda a vida.40
O capital cultural é fruto de uma educação em sentido amplo,
que acontece na família, na escola, nas interações sociais. Depende da intencionalidade educativa que se atribua aos processos de
socialização primária e secundária que acontecem na cidade.
Nem a igualdade de oportunidades nem a redução da pobreza podem ser alcançadas através da garantia de acesso aos
serviços básicos e níveis de renda mínima. Isto será uma condição
necessária, mas não suficiente. Para garantir habilidades sociais,
educacionais e culturais básicas, será preciso desenvolver uma
ação social global. Só assim poderão ser dadas oportunidades à
equidade na sociedade do conhecimento.
A criação de conhecimento vem sendo o primeiro fator gerador de renda, e o domínio social e empresarial se consolidam por
esta via, como já observado por sociólogos e economistas como
J. K. Galbraith, A. Gouldner, N. Bentham e A. Touraine. São os
novos intelectuais, a inteligência, ou uma nova classe dirigente,
cujos instrumentos de poder são a capacidade de criar e gerir conhecimentos.
Junto a este novo fator diferencial dos processos de desigualdade contemporâneos, encontramos outras singularidades específicas. Em primeiro lugar, a dualização da estrutura ocupacional
urbana. A terceirização nas cidades se desenvolve em dois polos
muitos diferentes, o crescimento dos serviços avançados que requer uma força de trabalho muito qualificada e, também, o in40 B. Bernstein, Clases, Códigos y Control. Vols. I e II. Madri: Ed. Akal, 1988 e 1989.
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
85
cremento do terciário de baixa qualificação, muito relacionado
com os empregos pouco qualificados no setor de lazer e hotelaria.
Porém, também empregos relacionados com o que se denomina
bolsa de empregos intensivos em mão-de-obra. Este é o caso dos
serviços de ajuda a domicílio, assistência doméstica, lavanderia,
mensagens etc. Os empregos intermediários diminuem seu peso
relativo, correlacionados com a redução do tamanho da indústria, do impacto das tecnologias da informação e das técnicas de
gestão baseadas na reengenharia de processos, que reduzem os
postos de trabalho intermediários.
A oferta de postos de trabalho de baixa qualificação nas cidades europeias e norte-americanas constitui um atrativo para imigrantes de países do Terceiro Mundo, e um incentivo para empregadores abrirem o mercado de trabalho aos estrangeiros.
A individualização das relações sociais e a
geração de capital social
A inovação constante em processos e produtos exige flexibilidade na estrutura ocupacional, para o que se requer uma força
de trabalho com uma ampla formação de base polivalente que a
permita adaptar-se às mudanças no sistema produtivo.
A individualização das relações trabalhistas é outra característica da era da informação e do conhecimento. A especialização
flexível e a tendência já assinalada de as empresas formarem redes locais e internacionais reduzem o tamanho de cada uma das
unidades produtivas tomadas individualmente. Do mesmo modo,
o trabalho com tecnologias da informação, da comunicação e
também da robótica, individualiza os processos de trabalho e, ao
contrário do trabalho mecânico da sociedade industrial, os trabalhadores na era do conhecimento não se submetem às maquinas
e controlam o processo produtivo de maneira individual e não
coletiva.
86
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
Isto faz com que as organizações trabalhistas e, muito especialmente os sindicatos, cujas estruturas e objetivos surgiram
na era industrial, estejam atravessando um processo de crise de
adaptação para preservar a dignidade das condições de trabalho
dos novos tipos de trabalhadores – com a tipologia mais ampla
e diversificada de postos de trabalho, mais fragmentados em um
maior número de empresas, com maior autonomia no processo
produtivo e formação, e inseridos em um ambiente que está mudando o processo de formação das classes sociais.
Isto não quer dizer que não existam desigualdades sociais,
inclusive desigualdades crescentes. Porém, as desigualdades baseadas na organização em classes sociais e, em especial, na consciência de classe, perderam sua posição principal ou centralidade
na sociedade.
A individualização nas relações trabalhistas se articula com a
maior individualização das relações familiares, resultantes da revolução social nas práticas sociais e nos valores que as legitimavam,
representada pelo processo de autonomia da mulher através de
sua plena incorporação à educação superior, ao mercado de trabalho e à atividade política. Uma sociedade mais individualizada
não significa, necessariamente, uma sociedade mais egoísta e com
maiores níveis de isolamento, mas simplesmente uma sociedade
menos determinada pelas ações coletivas e mais sujeita às ações
de cada uma das pessoas que formam a sociedade concreta.
Individualização significa, por um lado, um processo de desvinculação das instituições e grandes organizações sociais e, por
outro, um processo de nova vinculação a outras formas de vida
social em que os indivíduos adquirem uma maior importância no
desenvolvimento de suas próprias biografias.
O florescimento das ONGs nas cidades pode ser relacionado
com o trabalho de intermediação que elas exercem entre as pessoas e a sociedade. Quer dizer, uma intermediação mais flexível
e atenta às particularidades ou singularidades pessoais, de caráO governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
87
ter mais voluntário e menos coercitivo do que as grandes organizações tradicionais – partidos, sindicatos e igrejas. A cidade é
cada vez menos um sistema baseado nas grandes organizações,
estruturando-se mais através do conjunto de redes de atores institucionais e pessoais que se formam nos âmbitos da economia, da
cultura, da política e da ação comunitária.
As transformações sociais urbanas situam o indivíduo, enquanto tal, no centro das interações e relações sociais, e isto representa
a crise dos modos de vida urbana tradicionais.
Em algumas cidades que se definem mais por sua constante
transformação do que por sua ordem social, não existe, como
observou A. Touraine,41 nenhum outro lugar fora do próprio indivíduo em que seja possível conjugar estratégias econômicas
e identidades culturais. Um novo direito específico emerge em
nossas sociedades caracterizadas pela globalização econômica e
pelo encontro de culturas, o direito à individualização, que segundo o citado sociólogo tem que fortalecer a capacidade de
cada ator individual ou coletivo alcançar a individualização, isto
é, dar um sentido geral e próprio ao conjunto de condições das
interações e comportamentos que formam sua existência e, portanto, a transformam em uma experiência.
Neste sentido, as sociedades contemporâneas, ao se basearem mais nos indivíduos do que nas grandes organizações
(igrejas, sindicatos, partidos...) e grupos sociais (classes, cooperativas profissionais, grupos com status social elevado...), facilitam as relações horizontais entre a cidadania e, com isso, a
criação de capital social.
Por capital social se entende “as expectativas de cooperação
alimentadas por redes institucionais – as associações – que se materializam em pautas de cooperação continuadas”.42
41 Ver A. Touraine, Igualdad y Diversidad. México: F.C.E., 2001.
42 Ver C. Boix, Introdução ao livro Para que la democracia funcione. Barcelona: Ed. Proa, 2000.
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O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
A geração de capital social, segundo o estudo de Putnam,43 é
o que explica o maior avanço econômico e social e a qualidade
da vida política democrática. A vantagem colaborativa é uma das
principais forças motoras do desenvolvimento social, econômico e
político, com um valor superior à disponibilidade de capital econômico e à oferta de infraestruturas e serviços.
Gerar capital social nas cidades do conhecimento significa,
hoje, em primeiro lugar, capacidade para criar os espaços nos
quais cristaliza o movimento associativo. Porém, o florescimento
de associações e seu fortalecimento é uma condição necessária,
mas não suficiente. Para gerar capital social em uma cidade é preciso que exista ajuda mútua entre associados e, muito especialmente, que as finalidades associativas facilitem a cooperação para
a produção de bens públicos. Uma cidade cheia de associações
com finalidades singulares ou exclusivas para si mesmas será uma
cidade com uma denominada sociedade civil organizada, porém
incapaz de cooperar e promover confiança.44
A ampliação e o fortalecimento do tecido associativo para a
geração de capital social são um desafio inevitável para os governos locais que pretendem desenvolver sua cidade na era do
conhecimento.
Dizer cidades da informação e do conhecimento é o mesmo
que dizer cidades da educação, em que a educação geral aumenta
notadamente e, sobretudo, um grupo social cada vez mais numeroso dispõe de educação superior que se recicla, necessariamente,
em períodos temporais cada vez mais curtos. Isto significa um aumento do que Giddens denominou reflexividade social da cidadania. Nestas condições a política democrática mais adequada é
sem dúvida a que se baseia na autonomia dos cidadãos, na sua liberdade, não apenas de eleger, mas também de produzir a opção
43 Op. cit.
44 Ver Boix, op. cit., pp. 20-29.
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
89
mais interessante. A chave consiste na educação e na cultura de
valores e solidariedade que permitam articular a autonomia como
base de uma interdependência geradora de confiança, colaboração e sentido comunitário, potencializando de forma equilibrada
o reconhecimento de direitos com os deveres ou responsabilidades cidadãs.
Uma sociedade educadora dificilmente é compatível com a visão de uma gestão pública distante das preocupações e demandas
dos cidadãos, como tampouco é compatível com um sistema de
garantias de Direitos e Responsabilidades organizado com base no
Estado-Nação e concebido de cima para baixo. A democracia não
apenas não corre perigo em um mundo global na era do conhecimento, como pode ser fortalecida e aprofundada se o governo
democrático for concebido como um governo de proximidade,
capaz de articular interesses e gerar colaboração e corresponsabilização. Ou seja, a democracia na nova cidade significa descentralização de competências e recursos para os governos locais, para
que eles possam, como veremos, inaugurar uma nova forma de
governar baseada na gestão de redes cidadãs.
Risco e vulnerabilidade social
O desenvolvimento da sociedade-risco impacta a nova estruturação das relações sociais. Por um lado, a vulnerabilidade é consequência da individualização das relações sociais em um tempo de
flexibilização da estrutura ocupacional, no qual as transformações
econômicas e tecnológicas são constantes. Por outro, entretanto,
a vulnerabilidade cria uma nova cultura de provisoriedade que
está favorecendo tanto as respostas do tipo intimista, que buscam
a segurança no próprio “eu” - seja do tipo espiritual, como o budismo, as interpretações subjetivas do cristianismo, as psicológicoterapêuticas do tipo autoajuda, ou o apoio emocional. Ou, ainda,
respostas do tipo social, criando culturas positivas para a mudança
e inovação de natureza pessoal e, em especial, criando ou parti90
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
cipando nas organizações sociais de caráter setorial ou territorial
que estão na origem do aparecimento das teorias sobre o capital
social e do novo impulso comunitário tão em voga na sociologia
atual. Esta, sem dúvida, é uma perspectiva a ser incorporada nas
políticas sociais urbanas que tenham como objetivo fortalecer a
sociedade civil, e que são as que podem ser mais eficazes na cidade contemporânea.
A vulnerabilidade social se associa diretamente a outra característica da vida urbana atual, que é o risco. O fato de entendermos nossas sociedades como sociedades de risco deve-se, fundamentalmente, às pesquisas e reflexões de U. Beck.45 Este professor
da Universidade de Munique considera o risco como uma característica própria da cidade que se volta em direção ao futuro e
que rompe efetivamente com o passado, com suas tradições e
costumes. Não se trata de um risco externo à cidade, mas de riscos
produzidos pela própria cidade em transformação, como a mudança nas relações familiares, na produção, na nossa intervenção
no meio ambiente, nos sistemas de proteção e segurança social,
na ruptura com as tradições. Trata-se de um risco produzido pela
própria cidade (desenvolvimento da indústria genética, insustentabilidade, nova pobreza...).
Sociedade-risco significa que os conflitos sociais deixam de ser
tratados como problemas de ordem e segurança e começam a ser
considerados como problemas de risco. O que significa que não
têm soluções preestabelecidas e inequívocas, mas que se distinguem por sua ambivalência e podem ter suas “soluções” expressas
em termos de probabilidade.
Assumir socialmente o risco significa optar por inovação46 e
criação, e buscar a segurança assumindo os riscos e abandonando
45 U. Beck. La sociedad del riesgo. Madri: Ed. Paidós, 1992.
46 As respostas aos novos desafios e riscos a partir das visões e certezas das políticas próprias
da sociedade industrial e do Estado do Bem-estar contribuem para o colapso social.
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
91
as certezas da sociedade industrial, afrontando e tentando dirigir
as transformações.
Em outras palavras, trata-se de construir um projeto coletivo
para dar intencionalidade às ações dos atores urbanos que são as
geradoras de risco. Não optar por um projeto de futuro integral e
integrador significa dar mais possibilidades ao desenvolvimento,
em nossas cidades, das opções negativas de enfrentamento do
risco, como o fundamentalismo – entendido como defesa de tradições inadequadas, por não serem mais funcionais para a garantia da qualidade de vida na cidade –, ou o racismo, como forma
de culpar terceiros pelos riscos de perda dos costumes e tradições
supostamente autóctones.
Imigração: identidade e multiculturalidade
O baixo crescimento vegetativo da população nas cidades europeias, conjugado ao incremento da oferta de postos de trabalho
pouco qualificados e ao forte incremento da população ativa sem
possibilidades de ocupação nos países pouco desenvolvidos, explica o importante fenômeno imigratório que está ocorrendo em
direção às principais cidades europeias.
Para entender este fenômeno e adotar uma perspectiva adequada ao seu tratamento é preciso perceber quatro questões importantes:
• Mais do que um problema, a imigração será uma solução sempre que coincida com a existência de postos de
trabalhos suficientes para serem oferecidos à população
imigrante, e desde que não exista concorrência entre imigrantes e a população local. A disputa por postos de trabalho é a principal fonte de conflitos e segregação, que se
expressa não poucas vezes em termos racistas por parte
da população local com menor nível de qualificação. A
correlação que os estudos sociológicos têm demonstrado
92
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
no sentido de que um maior nível de escolaridade corresponde a atitudes menos xenófobas encontra explicação
no fato de que a população qualificada não entra em disputa com os imigrantes, já que esta em sua grande maioria é uma força de trabalho de baixa qualificação. • Em segundo lugar, os baixos níveis de renda e a necessidade de encontrar grupos com a maior afinidade possível
para relacionar-se fazem com que em todas as cidades
existam sempre determinados bairros que funcionam,
efetivamente, como receptores de imigrantes. Se a situação de uma boa parte dos imigrantes é de pobreza ou
de extrema pobreza e os governos locais não dispõem
de recursos para investir na renovação urbana, serviços
e equipamentos, tais bairros se degradam e a população
local passa a atribuir à imigração tanto a degradação de
suas condições de vida e de valor dos seus imóveis como a
segregação social dos mesmos, particularmente se existe a
presença de atividades ilícitas e o bairro é rotulado como
perigoso. Em muitas ocasiões os conflitos nesses bairros
são rotulados como racistas, o que leva à segregação de
seus moradores em dois grupos antagônicos, à intensificação e ampliação dos mesmos e, o que é mais importante,
a uma concepção inadequada de sua natureza, o que dificulta encontrar uma solução baseada em acordo.
• A imigração estrangeira (e, em especial, a que vem de
lugares com idioma e religião significativamente diferentes aos do país receptor) se relaciona a setores da sociedade receptora como fator de perda de identidade, de
tradições e costumes. À parte a debilidade histórica e
sociológica desta argumentação, posto que as configurações culturais e idiomáticas de um país em um momento
dado costumam ser produto da interação de realidades
culturais plurais ao longo de sua história, é certo que
hoje (como consequência da globalização e do encontro
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
93
cultural ao nível planetário, assim como da individualização das relações sociais) nos encontramos diante de
uma reafirmação da identidade ou singularidade territorial e cultural.
• Esta identidade entendida como sentimento de pertencer,
como uma expressão de singularidade cultural que interage no interior da cultura universal em constante mudança, conduz à modernidade e à convivência e criatividade
cultural, e à globalização da diversidade, segundo os especialistas.47 Porém, sem uma política ativa de respeito
ao pluralismo e de tolerância cultural, facilmente podem
unir-se, numa mesma visão segregacionista, a reafirmação
da identidade com a defesa fundamentalista das tradições, costumes, e uma intolerância às expressões culturais
respeitosas dos direitos humanos dos novos cidadãos.48
Em resumo, a verdadeira globalização cultural acontece nos
municípios, nas cidades, que são o espaço de relacionamento, de
encontro, de formação de amizades e inimizades entre pessoas
de diferentes origens culturais. As cidades se encontram ante um
fenômeno com novas dimensões, e não somente o seu futuro dependerá do tipo de ação coletiva que triunfe em cada uma delas
e das possibilidades de atuação dos governos locais, como dependerá também a convivência do planeta, que cada vez mais é um
sistema de articulação de cidades.
Mudanças na família
A família formada por dois cônjuges e seus descendentes é,
cada vez mais, apenas um dos diferentes modelos de família que
47 Ver, por exemplo, U. Beck, La democracia y sus enemigos. Madri: Ed. Paidós, 2000, e M.
Castells, La era de la información. Vol. II. El poder de la Identidad. Madri: Ed. Alianza, 2001.
48 Ver G. Sartori. La sociedad multicultural. Madri: Ed. Taurus, 2001.
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O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
encontramos na cidade atual. Sobressai o aumento das famílias
monoparentais por diferentes razões:
• O envelhecimento da população faz com que existam
cada vez mais famílias monoparentais pelo falecimento de um dos cônjuges, geralmente o homem, devido à
maior expectativa de vida da mulher. Este fato se vincula
à separação física dos pais e filhos no território metropolitano. Isto dificulta a ajuda mútua no seio da família e,
portanto, gera maior dependência dos serviços sociais.
• Por outro lado, há também o aumento das famílias monoparentais chefiadas por jovens, principalmente de mulheres com filhos, devido ao rompimento do casamento.
Este tipo de família é consequência direta do processo
de emancipação das mulheres.
Em um patamar inferior ao das famílias monoparentais, porém em ascensão, encontramos famílias polinucleares, nas quais
convivem chefes de família de diferentes núcleos familiares. Esta
é uma das consequências da pobreza em que vivem muitos imigrantes, que se veem obrigados a reagrupar distintas famílias ou
membros de distintos núcleos familiares em uma só família.
A existência de casais de fato, ainda em que muitas cidades tenha pouca relevância estatística, é sem dúvida um fenômeno com
tendência a crescer, particularmente se tomamos como referência
o que ocorreu nos países do norte da Europa.
Este crescimento da tipologia familiar tem consequências muito
importantes, que superam as evidentes implicações para o mercado
imobiliário e se vinculam à programação de novos serviços de assistência e, muito especialmente, ao estímulo dos processos de ajuda
mútua extrafamiliares, em particular nos bairros e setores sociais.
Por outro lado, em uma perspectiva de apoio social que considere a grande maioria da cidadania, o pluralismo no convívio em
nossas cidades faz com que se tenha que falar mais de políticas de
família do que de política de apoio à família.
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
95
A cidade à medida das mulheres
Observamos a importância da emancipação das mulheres, ao
nos referirmos ao processo de individualização das relações sociais e
às mudanças na tipologia das famílias na cidade contemporânea.
Porém, é necessário dedicar uma seção específica ao que, sem
dúvida, é o processo de mudança mais importante nas relações
sociais que atualmente está acontecendo nas cidades do Ocidente:
a chamada revolução das mulheres.
Trata-se de uma revolução pacífica, profunda e perseverante
que está revolvendo as relações de autoridade e poder que se assentam e se reproduzem nos espaços da vida cotidiana em nossas
cidades.
O aparecimento da cidade está intrinsecamente ligado ao papel da mulher. As cidades surgiram por volta do ano 7000 a.C.,
sendo consideradas as primeiras Catal Huyuk, que se situava perto
do Irã e Iraque, e Jericó, atualmente na Palestina. Na cidade, zona
de intercâmbio de objetos entre nômades e caçadores, como pontas de lança e peles, nasceu a agricultura, que fixou a população
e cujos produtos também passaram a ser objeto de comércio. A
cidade cria a agricultura e, portanto, a civilização. Entretanto, a
origem da agricultura e da cidade como promotora da civilização
é a mulher.
Eram elas que se dedicavam à colheita e conservação de alimentos, que começaram a plantar e inventaram a agricultura, permitindo assim sustentar o crescimento demográfico das primeiras
cidades. Nestas não houve patriarcado e a principal protagonista
foi a mulher.49
A mulher deixou de ter um papel relevante quando a agricultura se estendeu para fora das cidades e se converteu na atividade
49 Ver E.W. Soja. “La mujer dominó las primeras ciudades”. Entrevista em La Vanguardia,
8/8/2001.
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O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
dominante. Foi quando então apareceu o patriarcado, contemporâneo em muitas sociedades primitivas do aparecimento da exploração. Desde então, a história do autoritarismo, da repressão
e exploração se relaciona à dominação da mulher. As sociedades,
ou etapas sociais de uma mesma sociedade, mais repressivas e exploradoras coincidem com uma maior intensidade na dominação
da mulher. É difícil saber se foi a opressão generalizada que gerou
a dominação da mulher ou se a dominação dela é que é a chave
para entender o aparecimento do autoritarismo.
O certo é que no Ocidente, nos países do Primeiro Mundo
inseridos na era infoglobal, o processo de emancipação da mulher
está significando a quebra das relações de autoridade e dominação estabelecidas na sociedade industrial, está mudando a estrutura do mercado de trabalho e dá sustentação ao surgimento de
novas relações sociais e familiares.
A cidade infoglobal pressupõe a entrada massiva da mulher
no mercado de trabalho. Na maioria dos países do Primeiro Mundo, o número de mulheres nas universidades é superior ao dos
homens há muito tempo. A população feminina tem maior êxito
escolar que a população masculina. Isto, evidentemente, não significa que na maioria das cidades as desigualdades de gênero e o
domínio masculino nos postos de direção das empresas e instituições públicas ainda não sejam notórios, mas o que nenhum analista pode deixar de ressaltar é o processo de mudança em curso.
As transformações urbanas anteriormente apontadas, como
a individualização das relações sociais, o aparecimento de novos
tipos de família, a criação de capital social etc. estão intrinsecamente ligadas ao processo de emancipação da mulher.
Entretanto, o mais interessante é que o movimento de mulheres tenha se voltado recentemente para a análise da cidade – da
sua morfologia até seus conteúdos, das infraestruturas à cultura,
do seu passado ao seu futuro – e desenvolva suas perspectivas de
ação a partir do ponto de vista da mulher.
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
97
A visão da mulher perpassa a cidade em sua totalidade.50 Os
espaços públicos, a moradia, a mobilidade, a assistência social e
a saúde, a educação e a cultura, o turismo... tudo é repensado a
partir do seu ponto de vista. Estamos diante do posicionamento
mais amplo e integrador que um movimento social jamais fez sobre a cidade, justamente pela ampla diversidade de “papéis” que
as mulheres assumem na cidade: estudante, trabalhadora, mãe...
Por outro lado, a visão da cidade a partir da perspectiva das
mulheres integra outros pontos de vista sobre a mesma. Este é o
caso da cidade das crianças formulada pela pedagogia ativa; em
sua condição de mãe e educadora, a mulher assume a postura
de forjar a cidade a partir da condição dos meninos e meninas.
Ela também assume as posições sobre a acessibilidade defendidas
pelo movimento urbano protagonizado por pessoas portadoras
de necessidades especiais, ao coincidir no tempo as necessidades
de mobilidade de todas as mulheres no período de gestação e
maternidade com as das pessoas com problemas físicos. Assume,
igualmente, as políticas por mais bem-estar e autonomia dos idosos, em razão da sensibilidade derivada do seu papel de guardiã
da família, que a divisão social do trabalho lhe impôs.
A emancipação das mulheres e, em especial, os avanços na
igualdade de gênero em que o homem também assume novos
papéis e perspectivas, contribuirão sem dúvida para o fato de que
tanto mulheres como homens assumam um projeto de cidade
mais equilibrada, acessível, sustentável e equitativa, isto é, um
projeto de cidade de todos.
A Cidade do Conhecimento pode encerrar o ciclo que se iniciou logo depois que as mulheres inauguraram as civilizações, o
fim da era patriarcal, mas o mais certo é que hoje as mulheres já
estão reestruturando as relações sociais e os modos de conceber
a vida cotidiana.
50 Ver as conclusões do I Congresso das Mulheres de Barcelona. Prefeitura de Barcelona.
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O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
Muito embora para isso a política de igualdade de gênero
deva contemplar hoje, mais do que nunca, ações positivas para
os coletivos de mulheres em posição mais desfavorável do ponto
de vista da emancipação da mulher. Em especial, o impacto na
desigualdade das mulheres imigrantes, que vivem em maior nível
de pobreza econômica e relacional associado a uma maior relação
de dependência aos homens.
Uma nova visão do tempo e espaço
O progressivo avanço na direção da cidade da informação e
do conhecimento significa a ruptura dos modelos referenciais de
espaço e tempo próprios da cidade industrial.
Entre tais mudanças, podem ser destacadas as seguintes:
• Rompe-se a separação, ao longo da vida, do tempo de
aprendizagem, tempo de trabalhar e tempo de aposentar. A aprendizagem ocorrerá ao longo de toda a vida,
e será combinada com o tempo de trabalhar e também
com o tempo de aposentadoria. Por sua vez, o tempo de
trabalhar se combina com o lazer e a qualidade de vida.
A aposentadoria rompe os rígidos condicionantes da idade e se estende ou se reduz, atendendo, cada vez mais, a
situações concretas e, inclusive, individuais.
• Todos os tempos da vida se fazem presentes em um momento dado e se tornam interdependentes.
• Aparece uma nova relação tempo/distância. As tecnologias da informação permitem o funcionamento em tempo real da economia, das relações sociais. A comunicação
é feita de modo imediato e as distâncias se aproximam
através da comunicação escrita, sonora e visual.
• O trabalho tem uma continuidade permanente ao longo
do espaço. As diferenças de horário entre os continentes
permitem a continuidade nos trabalhos, nas empresas
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
99
de conhecimento que trabalham em rede, uma vez que
um mesmo projeto pode ser continuado ao finalizar a
jornada de trabalho em outro país com diferença horária.
• O fim da divisão entre espaço de trabalho e o espaço
doméstico, devido ao fato de que as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) permitem às equipes
trabalhar em rede em espaços diferentes e conectar-se a
partir de qualquer lugar e em qualquer momento.
• As TICs permitem em boa medida criar um ambiente
do “lá” no “aqui”, acompanhando as notícias, criando
um ambiente de música e de comunicação, de tradição;
permitem a vivência de culturas diferentes num mesmo
espaço.
Estas rupturas espaço-temporais apenas começaram e ainda é
cedo para identificar com clareza as mudanças em profundidade
que serão capazes de introduzir nas relações sociais e na dinâmica
das cidades. Mas qualquer estratégia urbana deve estar atenta
para tais transformações e seu impacto social para que a cidade
possa ser direcionada a metas de autonomia dos cidadãos e progresso social.
A centralidade dos valores na organização
social
A emergência da ética dos valores, inclusive acima da ética das
normas, é mais uma característica da sociedade contemporânea.
A questão ética na gestão pública e privada e, em geral, sua
revalorização social não são consequência de uma reação social à
sua ausência nos comportamentos econômicos, sociais e políticos
– que é, de fato, um tema muito discutível –, mas se deve, fundamentalmente, a dois temas estruturais:
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O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
• A inovação social
• O desenvolvimento da indústria genética
O intenso e extenso processo de inovação econômica e social
rompe os hábitos e normas de comportamento estáveis para gerar
um ativo, ou, inclusive, proativo processo de adaptação permanente a mudanças e a novos desafios sociais. A mudança, ainda
que possa parecer uma contradição em termos, é a constante das
novas cidades. Por isso, suas regras e normas são um instrumento
inadequado para os comportamentos sociais, econômicos e políticos. Vem daí a necessidade de se enfatizar os valores que inspiram
e são marcos de referência para a constante geração e readaptação dos sistemas e normas de comportamento social e de gestão
empresarial e institucional.
No âmbito empresarial surgiu um novo tipo de gestão:51 a
gestão por valores, que visa a dar um novo quadro de referência
para os empregados, diretores, acionistas, fornecedores e clientes
em um ambiente de mudanças tecnológicas, culturais e pessoais.
Mudanças que, sem dispor de referências, provocam insegurança
e ansiedade em todos os grupos que formam a empresa.
A formação baseada em valores é o que melhor pode orientar
os cidadãos – cada vez menos incorporados às grandes organizações sociais – a renovar seus processos de socialização.
A educação aparece outra vez como o novo fator crítico para a
nova sociedade, mas desta vez a educação orientada para valores.
A pergunta que segue é óbvia: quais valores promover? Como
promover valores e evitar os conflitos éticos e culturais em países
cada vez mais multiculturais? A resposta ainda é mais óbvia que
a pergunta: tolerância e respeito ao pluralismo, solidariedade,
conhecimento e racionalidade, liberdade e equidade. Em outras
palavras, fortalecer os direitos humanos e os valores que os funda51 K. Blanchard e M. O’Connor, Dirección por valores. Barcelona: Gestión 2000, 1998.
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
101
mentam, pois são, como demonstrou A. Sen, entre muitos outros,
uma aspiração verdadeiramente universal.52 Uma só proibição:
proibido proibir. Uma só intolerância: não tolerar a violação dos
direitos humanos.53 Tudo o mais – línguas, religiões, artes, vestimentas – são fatores de conhecimento e enriquecimento cultural.
A educação, ou melhor dito, a socialização através de valores estruturados a partir da tolerância entre diferentes grupos sociais e
culturais, deve ser objeto de um grande pacto social entre todos
aqueles que atuam no espaço das interações sociais cotidianas: a
cidade.
A reafirmação de valores vem, por sua vez, motivada pelo desenvolvimento da investigação genética humana e, em especial,
de suas aplicações, do desenvolvimento de uma nova indústria e,
com ele, de um novo mercado global: o dos produtos genéticos
aplicados aos homens. Este novo setor econômico provoca, neste
caso em escala global, o estabelecimento dos valores que fundamentam um comportamento ético e códigos de conduta que
permitem diferenciar, nas áreas da saúde e da agricultura, as aplicações benéficas das perversas – como a criação de subespécies
humanas. O desenvolvimento desta indústria condiciona a centralidade dos valores como guia consciente da ação humana nos
âmbitos local e global.
A globalização do social
Sem dúvida, um dos principais desafios relativos ao futuro
apontados pelos governos urbanos é a mundialização das políticas
sociais, das políticas urbanas de impacto integrador.
52 A. Sen, Desarrollo y Libertad. Barcelona: Ed. Destino, 1998.
53 W. Kymlicka explica como coexistem os direitos das minorias com os direitos humanos e
também como os direitos das minorias estão limitados pelos princípios de liberdade, democracia e justiça social. Ver seu livro La ciudadanía multicultural. Madri: Ed. Paidós, 1995.
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O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
Como já assinalamos, a globalização é econômica, mas também tecnológica, informativa e cultural. As transformações que
nos afetam não se reduzem a uma zona do planeta, mas se estendem a todas as partes, ainda que sua influência nas estruturas
econômicas, sociais, culturais e familiares seja diferente em função
das coordenadas geográficas e culturais dos países.
A globalização tem, naturalmente, aspectos positivos como o
crescimento da riqueza, a inovação e o desenvolvimento tecnológico, a superação das fronteiras e as novas possibilidades de
encontro entre culturas. Entretanto, é verdade que os efeitos da
mundialização são muito desiguais, e a globalização significa novas formas de exclusão e pobreza para muitos países. A globalização significou maior marginalização para a África Subsaariana –
consumo abaixo do equivalente a um dólar americano – e alcança
215 milhões de pessoas, na Ásia atinge 550 milhões e na América
Latina, 150 milhões de pessoas.54
A globalização em seus aspectos econômicos e tecnológicos
está transformando o próprio conceito de pobreza. Esta já não se
entende como associada ao desemprego, mas à estrutura da renda. Assim, estima-se que, de cada dez famílias urbanas pobres na
América Latina, sete são pobres devido ao baixo rendimento do
trabalho, duas são pelo desemprego de alguns de seus membros,
e uma, por ser formada por um número elevado de crianças. Os
níveis de pobreza relativos à América Latina são superiores aos
dos 25 membros da União Europeia, tomando por base o limiar
de 60% da mediana da renda. A comparação das médias simples
de cada região mostra valores de 28% da população na América
Latina e 15% para a União Europeia.55
É um equívoco considerar a existência apenas de uma via ou
de um só caminho predeterminado no desenvolvimento da glo54 Dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD.
55 Dados da Cepal, 1998 e 2006.
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
103
balização, e que esta, inevitavelmente, gera mais desigualdade e
exclusão. Há uma pluralidade de vias para organizar a crescente
interdependência das distintas partes do mundo. As estratégias
de ação são hoje possíveis e devem ser dirigidas para a transformação necessária e eficaz da organização social do mundo. Um
dos principais atores desta transformação são as cidades, e, muito
especialmente, as políticas e estratégias urbanas.
Já afirmamos que o global emerge do urbano. Por isto, com
a organização da cidade e com o modelo de desenvolvimento
que nossas cidades escolherem, é possível contribuir de maneira
decisiva à organização da sociedade futura em nível mundial. As
cidades formam uma rede de nós urbanos, com distintos níveis,
com distintas funções, que se estendem por todo o planeta e que
funcionam como centro nevrálgico da nova sociedade mundial.
Deste ponto de vista, é um erro de graves consequências sociais fixar-se apenas nos aspectos da concorrência entre as cidades,
como tantas vezes se faz, e deixar de contemplar e fortalecer as
relações de complementaridade e colaboração entre elas.
As cidades, e em especial os governos urbanos responsáveis,
devem assumir de maneira progressiva a gestão dos processos de
suas próprias mudanças e, de maneira coordenada entre elas, o
avanço na direção de uma maior coesão social em nível continental e intercontinental. Os governos das cidades devem articular a
ação local com a global.
Neste sentido, na primavera do ano 2000, as principais federações e associações internacionais de cidades se reuniram em Valência a convite do governo da cidade, no contexto do seu Plano
Estratégico. Ali criaram as bases de um movimento internacional
de cidades, que inclui as associações mencionadas ou redes mundiais de cidades existentes, com o objetivo comum de assumir
como prioridade sua ação de globalização do social, para que as
cidades assumam uma posição relevante na construção da solidariedade mundial.
104
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
Construir uma globalização mais integradora a partir das cidades significa que cada cidade adote uma visão ampla do desenvolvimento urbano, tecnológico, econômico, social, cultural
e educativo, guiado por valores de sustentabilidade, equidade e
pluralismo, e baseado na colaboração e confiança entre os atores
urbanos e no envolvimento da cidadania.
Os desafios sociais urbanos que um movimento internacional
e pluralista de cidades deveria priorizar, por serem os mais comuns, são os seguintes:
• A política de moradia e, em especial, a reabilitação e
revitalização dos bairros urbanos.
• A segurança cidadã que contemple aspectos de prevenção e promoção social.
• A geração de oportunidades de emprego.
• A convivência na diversidade cultural.
Segundo a área de Análise e Previsão da Unesco, dar um teto
digno a todos significaria construir nos próximos 40 anos o equivalente a mil cidades de três milhões de habitantes, ou reconstruir
boa parte das cidades existentes.
É necessário desenvolver políticas de moradia a preços reduzidos e para todos, e fazer isto do modo mais sustentável do ponto
de vista ambiental. É preciso criar espaços públicos de qualidade
que atuem como lugar de encontro, convivência e colaboração
entre os cidadãos, e nos quais se pratiquem a democracia e o respeito à diversidade como forma de enriquecimento cultural.
Os governos locais devem contribuir para reduzir e superar o
apartheid urbano. A polarização social de muitas cidades e a segregação social do espaço urbano estão na base do surgimento dos
“enclaves privados” protegidos por forças de segurança próprias.
Estes enclaves são social e culturalmente homogêneos, como o
são os subúrbios pobres, e a ampliação de uns e outros significa
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
105
o desaparecimento dos espaços públicos que são a base da cidadania.56
Superar estes enclaves de exclusão significa proporcionar segurança cidadã. A segurança urbana tem três componentes – os três
“P” da segurança: Proteção aos cidadãos, porém num sentido amplo. Que os cidadãos se sintam seguros ante o delito e a violência,
mas também frente a catástrofes, enfermidades, envelhecimento
etc. Para isto é necessária a prevenção, no sentido da antecipação,
mas também a promoção social dos socialmente segregados. Devemos ter sempre claro que são os processos de marginalização e
exclusão social que explicam em grande medida a delinquência
urbana.
Reduzir as condições de exclusão significa, além disso, gerar
novas oportunidades de ocupação e de coesão no tecido social
para inserir as pessoas na comunidade. Para o primeiro, é necessário gerar investimentos produtivos e desenvolver a educação.
Educação permanente ao longo de toda a vida para todos os cidadãos e cidadãs, baseada nas quatro aprendizagens que o informe
Delors para as Nações Unidas aponta: aprender a fazer, aprender
a conhecer, aprender a ser e aprender a conviver.
Esta última aprendizagem é a que permite que o agrupamento
de pessoas de diferentes procedências geográficas e origens culturais construa a nova cultura urbana, transformando com criatividade e pluralismo cultural, e em convivência com a diversidade, o
que poderia se tornar um choque entre culturas.
Os desafios sociais urbanos são interdependentes, condicionam-se, razão pela qual é preciso, como dito anteriormente, darlhes uma solução integral em um projeto de desenvolvimento
urbano. Este projeto deve aglutinar e coordenar os esforços de
todas as administrações envolvidas, de todos os atores privados
e de toda iniciativa social que interfira na transformação da cida56 F. Mayor, Un mundo nuevo. Unesco, 2000.
106
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
de. Logicamente, a direção deste projeto deve ser exercida pelo
governo democrático mais próximo dos cidadãos, que é o que
melhor pode organizar a rede de atores envolvidos.
Mudanças nas formas de prestação e
gestão dos serviços de bem-estar social
Foram introduzidas importantes modificações na gestão pública dos serviços na área do bem-estar social na década de 90 do
século XX. Do predomínio da gestão pública direta dos serviços,
passou-se, paulatinamente, à gestão indireta ou contratação externa para a gestão de serviços financiados com fundos públicos.
Esta contratação fez com que surgisse o setor privado, tanto com
finalidades lucrativas quanto não lucrativas, como opção para a
gestão de serviços públicos terceirizados.
Por outro lado, a ampliação de determinados benefícios sociais a vários setores da população também favoreceu os serviços
de bem-estar social financiados pelo setor privado por sua rentabilidade. O setor privado foi também favorecido pela extensão da
responsabilidade social corporativa das empresas, através da qual
as empresas decidem de maneira voluntária integrar a realização
de uma série de objetivos sociais em suas operações comerciais e
produtivas, e nas relações com seus interlocutores.
Por último, os processos de individualização, não de individualismo social, e a crise das grandes organizações sociais – partidos,
sindicatos, igrejas – fez surgir uma nutrida oferta de associações
e movimentos sociais que têm como finalidade contribuir para a
resposta aos desafios sociais que as cidades apresentam.
Tudo isto leva a que estejam sendo produzidas mudanças nas
respostas da sociedade aos desafios sociais. Na atualidade, nenhum setor, seja público ou privado, dispõe de toda a informação
e, muito menos, da capacidade de atuação para fazer frente às
demandas da sociedade.
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
107
Conclusão: da gerência à governança
Hoje é preciso trocar o modo gerencial de governar pela gestão relacional ou das interdependências próprias da governança.
As principais razões são:
• Estamos diante de novas formas de desigualdade e pobreza, distintas do não acesso a determinado nível de
benefícios econômicos e serviços que justificaram o aparecimento do governo provedor. Ante as novas formas
de desigualdade relativas ao capital cultural e social e à
dualização digital etc., a prestação pública continua sendo necessária, mas é absolutamente insuficiente.
• O surgimento de desafios e necessidades intangíveis torna ineficaz uma ação baseada nos recursos econômicos
e na prestação de serviços.
• O gasto público, que supera 50% do PIB, pode crescer, mas de maneira lenta. Já as necessidades e desafios sociais disparam. Isto é, as necessidades crescem em
proporção geométrica enquanto os recursos públicos
crescem em proporção aritmética. O crescimento das necessidades sociais e a busca de novos caminhos para sua
satisfação são sinônimo de progresso.
• A multiplicação de agentes no âmbito do bem-estar social implica o reposicionamento do papel do governo
para assegurar a qualidade e a coordenação da oferta
para que esta possa chegar a todos e, especialmente, aos
cidadãos mais necessitados e vulneráveis.
Tudo isso exige um novo posicionamento do governo local. Este
deve priorizar seu papel de organizador de uma resposta coletiva.
O novo papel do governo é o de promover e articular a construção
coletiva da cidade, especialmente do bem-estar social.
Assumir esta posição exige, como veremos, atuar em muitas
direções e dimensões. Uma delas é a dimensão política. A neces108
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
sidade de qualidade da representação política e da cidadania, o
novo papel que deve ter o político eleito com responsabilidades
de governar e o tipo de liderança que deve exercer são exigências
das quais não se pode escapar para alcançar o desenvolvimento
da governança, embora em muitas ocasiões se tenha evitado o
tema e privilegiado as abordagens técnicas, metodológicas ou da
organização da participação social. Por isso vamos tratar em detalhes estes temas nos próximos capítulos.
O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
109
110
4. A revalorização da política
no Governo Relacional
Ideias Principais
1. Crise da política em razão da permanência do governo provedor e gestor.
2. A
democracia é básica para o desenvolvimento econômico na
3. O
governo relacional é uma oportunidade para fortalecer a
4. A
política democrática é entendida, prioritariamente, como
sociedade-rede.
qualidade democrática.
capacidade de representação.
5. A participação é básica para assegurar a boa representação.
6. Um novo papel para o político local é chave para a qualidade
democrática.
A governança democrática requer a revalorização da política e
do político eleito, ao situar as relações entre o governo e a política
de um modo muito diferente do governo provedor e gestor e,
muito especialmente, do modo gerencial de governar.
O governo provedor e a crise da política local
A crise do governo que estabelece a relação principal com a
cidadania através da oferta de recursos financiados com fundos públicos e da gestão de serviços públicos, como já observado, deve-se
ao fato de que o gasto público sobre o PIB atinge cifras próximas ou
superiores a 50%. Os governos já não podem confiar que os gastos
públicos sejam suficientes para satisfazer as necessidades sociais,
cada vez mais amplas e complexas. Por outro lado, a perspectiva
da sociedade-rede ou interdependente mostra que a resposta aos
desafios sociais é coletiva, uma pluralidade de atores intervém, e o
envolvimento de amplos setores da cidadania se torna necessário.
A continuidade do governo provedor e do modo gerencial de
governar, em especial, uma vez quebradas as bases que o sustentavam, provoca, em boa medida, a desvalorização da política e do
político vivida pelas sociedades democráticas. Hoje, quando mais
se estende a democracia no planeta, menos valorizada ela se encontra em muitos países.
A substituição do governo provedor faz-se necessária para a revitalização da democracia entre a cidadania pelos seguintes motivos:
• A política parece ser menos relevante no modo como as pessoas veem os seus destinos individuais e coletivos. A restrição
da oferta de novos recursos sem visualizar um novo paradigma de governo significa que os governos democráticos
não respondem às novas necessidades sociais, o que acaba
produzindo uma desvalorização e descrédito da política e
do político.
112
A
revalorização da política no governo relacional
• O não cumprimento dos programas eleitorais: a desconfiança na oferta política. A continuação de programas políticos
baseados na oferta de serviços para os quais não há recursos provoca uma primeira reação de engodo, passa para
a desconfiança e pode chegar à indiferença e ao mais alto
absenteísmo dos cidadãos em relação à política.
• A diferenciação política pela desqualificação. Este é outro
dos efeitos da persistência do governo provedor. A ausência de políticas inovadoras e não centradas em serviços
e benefícios para os que têm poucos recursos leva à não
diferenciação entre os programas eleitorais. A semelhança programática é acompanhada em não poucas ocasiões pela diferenciação pessoal, pelo insulto. As acusações
constantes e não comprovadas de corrupção ou desperdício entre os próprios políticos produziram um grave retrocesso democrático e a descrença nos valores da representação dos eleitos, que são, nem mais nem menos, os
valores da democracia. Os políticos são a principal causa
do seu próprio desprestígio.
• O comportamento político de “soma zero” ou “todos perdem”. O sistema democrático é um sistema de ganharperder. O número de vereadores, deputados e senadores
é fixado por lei; se um partido ganha deputados, outros perdem. Em matéria eleitoral não se pode aplicar o
ganha-ganha, o que leva à dureza da luta política.57 Esta
57 Outra razão da crise da política, porém desvinculada do governo provedor, é a existência de
instrumentos políticos dos partidos, sem dúvida necessários à democracia, que não levam
em consideração a cidadania. O fato de que as cadeiras sejam em número fixo e, portanto,
a abstenção seja desconsiderada, leva a que a luta frontal entre os partidos não tenha muito
em conta a participação eleitoral e a opinião dos cidadãos. Chega-se, inclusive, a desenhar
estratégias eleitorais para aumentar a abstenção, o que é sem dúvida uma perversão. Para
uma estreita relação entre partidos e cidadania, assim como para limitar a luta virulenta pela
vitória ou a derrota apenas para o outro, talvez fosse conveniente vincular, em alguma medida, o número de eleitos ao nível de participação eleitoral. Desse modo, havendo incremento
do número de eleitos pelo aumento da participação, existiria um motivo para os partidos
colaborarem entre si e uma maior sensibilidade em relação às preocupações cidadãs.
A
revalorização da política no governo relacional
113
dureza, em um contexto de modelo de governo inadequado e na ausência de inovação política, se estende ao
terreno da desqualificação mútua dos contendores, e esta,
por sua vez, leva ao descrédito generalizado da política.
A democracia é básica para o desenvolvimento
econômico na sociedade-rede
Sen, Prêmio Nobel de Economia, sem dúvida é o economista que estudou com maior profundidade a relação entre liberdade, desenvolvimento e equidade.58 Para este autor, a democracia
constitui o principal meio para conseguir o desenvolvimento econômico e social. Seus principais argumentos sobre o impacto da
democracia no desenvolvimento econômico são:
• Em primeiro lugar, assinala que o desenvolvimento não
pode ser entendido apenas como incremento da renda,
mas também como maiores oportunidades para a equidade e bem-estar. Para Sen, o exercício dos direitos e liberdades também tem um valor em si mesmo para a vida e o
bem-estar social.
• A democracia propicia que maior atenção seja dada às
necessidades das pessoas, entre elas a educação, a saúde e os serviços sociais. Estes são fatores-chave para a
geração de capital humano que, juntamente com o capital social, são as principais bases do desenvolvimento
econômico.
• A democracia permite o livre intercâmbio de valores e
ideias, a partir dos quais podem ser criadas prioridades
compartilhadas de grande alcance social e de grande
mobilização dos recursos humanos.
58 Ver especialmente o livro Desarrollo y Libertad. Barcelona: Ed. Destino, 1998.
114
A
revalorização da política no governo relacional
Aos argumentos de Sen podemos acrescentar outros que os
complementam:
• Castells observou, como principal fator da evolução dos
países da antiga URSS59 para a democracia, que os regimes autoritários não podiam fazer frente ao novo desafio da economia informacional, que exigia liberdade de
informação para poder produzir conhecimentos e inovação.
• No mesmo sentido, Prats60 mostra como as relações institucionais entre os atores ou, o que é o mesmo, o modelo de interação deles, incide diretamente no desenvolvimento econômico. O modelo de interação revela a
capacidade de inovação, a flexibilidade para a incorporação de novos atores e a reforma das estratégias dos
atores tradicionais. O marco de interação determina a
classe de conhecimentos e habilidades necessárias para
adaptarmos à era infoglobal. As características do modelo de interação hoje necessárias são: abertura, flexibilidade e integração. Estas, como é óbvio, se baseiam
nos mesmos valores da democracia política.
• Putnam demonstrou que a maior capacidade de colaboração entre os atores, que é o que se denomina capital social, nas cidades do Norte da Itália, é o fator que
explica o desenvolvimento diferenciado em relação às
cidades do Sul.61 A democracia não só facilita a geração
destas vantagens colaborativas, mas também o capital
social, ao significar participação e colaboração cidadã,
que é condição para que a democracia funcione.
59 M. Castells, La Era de la Información. Vol. 3. Madri: Alianza Ed., 2000.
60 J. Prats, Bolivia: El desarrollo posible, las instituciones necesarias. Barcelona: Instituto de Gobernabilidad, 2003.
61 D. Putnam. Making Democracy Work. Princeton: Princeton University Press, 1990.
A
revalorização da política no governo relacional
115
• O bom funcionamento das instituições facilita o desenvolvimento econômico, como bem registrou o BID em seu
informe: “Mais além da política”, de 2000. Concluindo,
são justamente as instituições democráticas as que melhor facilitam o desenvolvimento, ao possibilitar uma representação efetiva e permitir o controle dos políticos e
governantes.
• Em um importante estudo empírico em 90 países, entre
1960 e 1989, Rodrik62 mostrou que os sistemas democráticos contribuíam com quatro vantagens econômicas frente
aos autoritários: a variação do crescimento a longo prazo
era menor, a estabilidade a curto e médio prazos era maior,
as crises exógenas eram melhor controladas e o nível de
salários era mais elevado. Ainda que Rodrik não aponte,
estas vantagens sem dúvida podem ser consequência das
razões antes enunciadas.
As razões pelas quais as democracias permitem articular o desenvolvimento econômico com equidade e sustentabilidade são ainda
mais evidentes:
• As democracias, por respeito aos direitos civis e políticos
de toda a população, permitem levar em consideração
os interesses e necessidades dos grupos sociais mais desfavorecidos. De fato, com as mobilizações dos trabalhadores na Europa, foram incorporados os direitos sociais
aos direitos políticos e civis democráticos.
• Na busca da estabilidade política, os governos democráticos tentam estabelecer amplos acordos e alianças sociais,
para o que devem articular diferentes interesses sociais.
• Dotados de um maior poder político, os movimentos
sociais pressionaram para uma maior equidade na distri62 D. Rodrik, Democracy and Economic Performance. 1997.
116
A
revalorização da política no governo relacional
buição da renda, no acesso igualitário aos serviços e no
respeito à sustentabilidade.
• As oportunidades observadas nas democracias para impulsionar o desenvolvimento econômico e social estão diretamente relacionadas às possibilidades que oferecem para
articular formas de interação flexíveis e estáveis, baseadas
na confiança e na cooperação, nas possibilidades de articular diferentes interesses em amplos projetos, na capacidade
de mobilização e responsabilização da cidadania a partir de
valores compartilhados.
• Em conclusão, o aproveitamento das potencialidades e
oportunidades do desenvolvimento econômico e coesão
social depende da capacidade de gestão das interdependências dos atores sociais e institucionais. Esta gestão
das interdependências é precisamente, como vimos, o
que caracteriza a nova arte de governar: governança ou
governo-rede, tal como indicou Mayntz, entre outros.63
O governo relacional necessita de
qualidade democrática
O governo assume um novo e singular papel, com o que adquire uma nova importância política em sua qualidade de representante eleito: assume o papel de articulador do interesse geral,
a partir dos interesses legítimos dos diferentes atores e setores da
cidadania. O governo já não deve imitar as empresas, mas inovar
na sua relação com a cidadania.
O governo já não vê a sua atuação limitada pela relação entre
gasto público e PIB, mas, sim, que pode assumir novas e complexas necessidades a partir do envolvimento de todos os atores e
63 R. Mayntz, “Nuevos Desafíos a la teoría de la Governance” em Instituciones y Desarrollo. Nº
7. Instituto Internacional de Gobernabilidad, 2000.
A
revalorização da política no governo relacional
117
setores que influem favorável ou desfavoravelmente nas respostas
às mesmas.
Os programas econômicos e sociais, pelas razões anteriores,
podem aumentar substancialmente o escopo dos objetivos de desenvolvimento a serem considerados, podendo, portanto, se diferenciar das propostas eleitorais.
As ações de governo sustentadas na definição de objetivos de
desenvolvimento humano, e não na prestação de serviços no território, permitem uma maior e melhor colaboração em vários níveis
de multilateralismo entre governos. Isto é, entre governos locais,
regionais ou estaduais ou, ainda, entre governos do mesmo nível.
Dá um significado mais amplo e profundo à participação cidadã,
entendida como corresponsabilização da cidadania, e não simplesmente como reivindicativa ou auxiliar das políticas públicas.
A política democrática como capacidade de
representação
A governança democrática exige o fortalecimento organizativo e
da representação da sociedade civil. A tarefa de construir o interesse
geral a partir dos interesses dos distintos atores e setores sociais é
mais efetiva se os diferentes interesses estiverem bem definidos e
os interlocutores representarem os diversos coletivos. Governança
democrática e capacidade de representação são conceitos que se
condicionam mutuamente. Maior representatividade, melhor governança e vice-versa. De todos os modos, o papel determinante é
o da governança. Isto é, uma prática decidida do governo baseada
na gestão das interdependências tem, sem dúvida, efeitos organizativos e de melhoria da representação da sociedade civil.
Porém, sem dúvida, o fator crítico para uma boa governança
democrática é a qualidade de representação do governante eleito.
Se a liderança na gestão das interdependências em um território
pertence a uma universidade, ao empresariado ou à igreja etc.,
118
A
revalorização da política no governo relacional
estamos diante de uma liderança corporativa, pois mesmo que ela
se origine de uma instituição democrática, seu representante foi
eleito por empresários, universitários, comunidade religiosa etc.
Na verdade, o único representante votado por todos os cidadãos
e apenas enquanto cidadãos é o político eleito. Apenas se este
assumir a liderança, existirão as condições para que a governança
seja realmente integradora.
Sem dúvida, um dos déficits democráticos que pode envolver a
governança é a exclusão dos setores que não dispõem de capacidades organizativas ou de interlocução na defesa de seus interesses. O
político-governante caracterizará sua aposta na democracia através
de ações positivas que desenvolva para conseguir a melhoria da capacidade de representação dos interesses de todos os setores e, em
especial, dos mais vulneráveis. Esta tarefa, ainda que se refira a todos
os âmbitos do governo local, corresponde muito frequentemente de
modo específico aos políticos com responsabilidades de governo nas
áreas de bem-estar social.
A democracia, como afirma com veemência Zafra,64 é representação. Se esta falha, o que falha é a democracia. As denominadas democracias participativas e deliberativas são, sem dúvida,
aspectos que contribuem para assegurar que se produza uma boa
representação ao longo dos mandatos entre as eleições, mas é
muito pouco razoável pensar que um complemento possa substituir o essencial, que é a eleição do representante e a qualidade da
representação como ingredientes básicos da democracia.
Um novo papel para o eleito local
Em um governo relacional, cujo principal papel é organizar a
capacidade coletiva para promover o desenvolvimento humano,
64 M, Zafra, El Ayuntamiento como Gobierno Facilitador de Consensos. Barcelona: F. Pi i Sunyer,
2003.
A
revalorização da política no governo relacional
119
o papel do eleito é justamente o de gestor65 dos processos das
interdependências dos distintos atores e setores da cidadania.
Para reger a articulação das interdependências, para encaminhá-las na direção do desenvolvimento humano, o gestor municipal dispõe de sua capacidade como produtor de legislação (que
em um governo local é pouco significativa, com exceção da área
de urbanismo), de algum recurso econômico que pode aplicar
(cujo crescimento, como foi apontado, tende a zero, ainda que a
descentralização seja um tema pendente na maioria dos países da
UE e, particularmente, na Espanha) e da legitimidade e reconhecimento como eleito (que na atualidade está em crise, mas que
pode ser recuperada).
Sem dúvida, é a legitimidade política que valoriza o papel nos
processos de negociação relacional, mediação e busca de acordo.
A valorização da política importa para que o eleito possa influir na
coordenação e mediação das relações entre os distintos atores.
Podemos agora dizer: a legitimidade importa para que o gestor possa ser o organizador coletivo; porém, assumir o novo papel
também é fonte de legitimidade. O que, então, é mais importante
ou tem um papel determinante, se não quisermos cair numa tautologia?
Sem dúvida, ambos os processos interagem, mas o papel determinante hoje, por parte dos políticos, é assumir a mudança do
papel de eleito local para o de gestor de recursos para a construção coletiva do desenvolvimento humano e do interesse geral
do conjunto do território, ou de um setor de atividade. E fazê-lo
dispondo das habilidades específicas e das técnicas necessárias,
o que propiciará a revalorização e o reconhecimento da representação política, à qual a perspectiva do governo relacional e a
governança dão novas e renovadas oportunidades.
65 Vereador, que na Espanha tem função executiva. No original, consejal, quer dizer o que rege
ou governa. Dicionário da Língua Espanhola.
120
A
revalorização da política no governo relacional
5. A liderança do Político Eleito
na governança
Ideias
principais
1. Liderança representativa: capacidade de visualizar os interesses
e habilidades da cidadania.
2. A liderança representativa é relacional e não dominadora ou
substituta da cidadania.
3. A liderança representativa é capacitadora e não dominadora.
4. Saber
a distinção entre os papéis do político e do gerente é
básico na governança.
5. A liderança pela direção política e moral.
6. O reprentante político é o principal agente de mudança.
7. Uma
nova tarefa política: tornar visível o apoio social, para
que a participação possa fluir.
Capacidade de visualizar os interesses e
habilidades da cidadania
Existe uma infinidade de definições de liderança. Covey66 seleciona 15, mas elas se referem, em sua grande maioria, a lideranças em empresas e grandes organizações. Para encontrar uma definição adequada a um líder democrático é preciso recorrer ao que
há de mais elementar. Líder é aquele que conta com seguidores.
Para um líder democrático, os seguidores são os eleitores. Portanto, a liderança política representativa será aquela que dispõe de
eleitores que consideram que seus interesses estão representados
pela política da pessoa a quem denominamos líder.
Isto significa que um líder político representativo não é tanto o
que conhece e oferece programas atraentes para ter um eleitorado,
mas uma pessoa capaz de fazer com que os atores sociais e o conjunto
da cidadania compreendam seus verdadeiros interesses, assim como
suas capacidades, de tal modo que sejam assumidas como próprias.
Para isto devemos saber fazer a distinção entre posicionamento e interesse. Posicionamento é a reivindicação que um ator ou
um grupo social formula para defender seus interesses. O interesse
é o que o ator social realmente busca e deseja. Frequentemente, posicionamento e interesse se confundem. O interesse poucas
vezes é claramente identificado em um conflito social. Nele, costumam entrar em contradição os posicionamentos, mais do que
os interesses. Apenas em relação aos posicionamentos a luta é
inevitável; com os interesses, o acordo é possível.
Vejamos um exemplo. Um grupo de cidadãos de um bairro popular se opõe à abertura de um centro de tratamento para dependentes
químicos. E a Prefeitura, apoiada pelas associações de familiares de
pessoas dependentes e outras associações civis, não quer desistir de
66 S.R. Covey, El 8º hábito. Barcelona: Ed. Paidós, 2005, pp. 391 a 400.
122
A
liderança do político eleito na governança
implantar o centro em um dos poucos espaços adequados existentes
na cidade. A partir daqui aparecem as acusações de que uns querem
prejudicar o bairro e de que aos outros faltam compreensão e solidariedade, e o conflito acaba tomando corpo. Na verdade, os interesses
dos dois grupos são mais complexos e diversos e poucas vezes aparecem expressos em conflitos. Os moradores do bairro estão preocupados com a possível desvalorização de sua região e das suas casas,
o que é muito compreensível dado o preço da moradia e os esforços
necessários para pagá-la. Também estarão preocupados pelo possível aumento da insegurança, devido a ser frequentemente associado,
no imaginário coletivo, o consumo de drogas com a delinquência.
Possivelmente também estarão preocupados com a sujeira, pela deterioração dos padrões de comportamento atribuída a essas pessoas
e, obviamente, pelo aumento do tráfico de drogas no bairro e que o
consumo acabe chegando a seus filhos. Por outro lado, a Prefeitura e
as associações de familiares e outras organizações sociais consideram
que é necessário que a cidade disponha deste tipo de equipamento
e canalize suas esperanças de reabilitação, e que são poucos os locais
adequados e disponíveis na cidade para tal prática.
Estes interesses podem ser compatibilizados em um projeto integral que dê segurança e contrapartida aos moradores do bairro
para que seus interesses sejam assegurados. Como, por exemplo,
através da construção de elementos simbólicos, espaços públicos,
subvenções para reabilitação de construções, medidas para melhoria do trânsito, enfim, medidas que repercutam na manutenção
ou melhoria do valor do patrimônio imobiliário dos moradores.
Além disso, podem ser tomadas medidas que assegurem a implementação de políticas que melhorem a segurança e desestimulem
o consumo de drogas e, também, de políticas que melhorem a
limpeza no bairro.
Esta tarefa de identificar, através de espaços de deliberação e
mediação, projetos que compatibilizem interesses é, sem dúvida,
uma das principais responsabilidades da liderança representativa
na governança. Esta tarefa de identificação de interesses e mediação
A
liderança do político eleito na governança
123
deve ser uma função regular do governo local, sem circunscrevê-la
ao fato de que na situação conflituosa estejam envolvidas competências legais ou recursos municipais. Ao contrário, é necessário
que este tipo de intervenção se torne referência para a criação de
espaços de intermediação sempre que as contradições entre atores
tenham impacto na configuração física ou cultural da cidade, ou
ainda na convivência entre grupos e setores da cidadania.
A tarefa de representação cidadã com base em interesses implica, obviamente, a criação de espaços de cidadania, de participação,
nos quais haja deliberação e construção de conhecimento mútuo,
confiança e compromisso de ação. Neste sentido, a participação é
um espaço necessário e que torna possível a representação. Nunca
pode ser concebido, na democracia, como substituto da representação cidadã.
Podemos sintetizar a liderança representativa no seguinte esquema:
Conhecer desafios, demandas,
expectativas, interesses...
ELEITO
Cidadania
Transmitir a potencialidade e
capacidade de ação (possibilitar
a ação da sociedade)
Para uma tarefa de representação cidadã que tenha por objetivo o envolvimento da cidadania no “fazer a cidade”, o eleito
precisa de métodos de participação que o ajudem a identificar
124
A
liderança do político eleito na governança
os interesses que se escondem por trás dos posicionamentos, e
que os próprios interessados possam reconhecê-los. Por sua vez,
precisa ter capacidade de análise e conhecimento dos conteúdos,
para poder desenhar os projetos de futuro que integrem de maneira complementar e sinérgica os distintos interesses em jogo. O
importante destas técnicas não é que o político eleito tenha um
conhecimento direto das mesmas, mas que lhe sejam proporcionadas por profissionais da gestão relacional que, sem dúvida, nos
governos relacionais terão maior relevância que os gestores de
serviços, para poder dar apoio ao trabalho de liderança, que é a
tarefa própria e insubstituível do político eleito.
Entretanto, em uma tarefa de gestão relacional, e em circunstâncias em que não há prestação de serviços públicos, é essencial
a legitimidade do político eleito, que repousa na revalorização da
política e dos políticos, no comportamento como expressão de
valores éticos e na eficácia baseada no uso de novas metodologias
e técnicas.
Uma nova visão do poder
A governança dá ao governo democrático uma nova relevância. Em um governo cuja atuação tenha por base a provisão de
recursos, a limitação destes em relação ao PIB leva necessariamente à perda de peso do governo democrático na sociedade.
Contrariamente, a perspectiva da construção do interesse geral
em cada setor, em cada projeto envolvendo os atores e buscando
o apoio da cidadania, dá sem dúvida um novo e renovado papel
ao governo e à política democrática, de muito maior alcance que
o modo gerencial, e permite superar a visão do público como um
setor diferenciado, inclusive, em oposição ao setor privado ou à
iniciativa não lucrativa.
Este novo papel muda, naturalmente, a concepção que se tem
do poder. Se por poder se entende a imposição da própria vontaA
liderança do político eleito na governança
125
de aos demais, seja através da lei e da força ou de condicionantes
produzidas pelos recursos públicos, a governança significará, sem
dúvida, uma perda de poder. Em troca, se o poder é entendido
como a capacidade de fazer valer ou realizar os próprios interesses, o poder dos atores sociais e do governo fica reforçado.67
O do governo, em especial, por sua liderança na construção do
interesse geral a partir dos interesses legítimos e pela renovada
relevância social dos políticos eleitos, que melhora e legitima o
“papel” do político na sociedade.
A liderança representativa é relacional
Vimos que a liderança representativa necessária à governança é relacional; ela busca fortalecer as densidades de interação
dos distintos atores. Não procura substituir a sociedade com a
sua liderança e torná-la dependente de suas propostas e planos
de ação.
O interesse do líder relacional será influir nas pessoas para que
estas enfrentem seus problemas. Em lugar de oferecer soluções,
levantam questões e, mais que solucionar conflitos, sua principal
missão é propor desafios coletivos.
Já foi dito que a liderança relacional constrói propostas compartilhadas a partir da identificação de interesses, e não aspira a
proporcionar programas eleitorais para agradar a um eleitorado
passivo, que elege entre produtos em um mercado no qual não
intervém como produtor. Uma oferta de produtos que não se baseie no conhecimento profundo dos interesses, necessidades e desejos da cidadania, converte a dinâmica política em crescimento
desmesurado e impossível de propostas que não “satisfazem” a
ninguém, e que em uma época de poucos recursos deslegitimam
a política eleitoral. O crescimento pelo crescimento, como assinala
67 Ver J. K. Galbraith, La Anatomia del Poder. Barcelona: Ed. Plaza y Janés, 1984, pp. 45-61.
126
A
liderança do político eleito na governança
Capra, é crescimento cancerígeno (também em termos de propostas eleitorais), que mata a própria classe política, e com ela, a
democracia.68
Uma analogia com o esporte pode servir para ilustrar. A liderança capacitadora é o jogador que arma o jogo de sua equipe
para que todos os jogadores obtenham o máximo rendimento de
si mesmos. Ao contrário, o dominador é aquele jogador que toda
a equipe joga para ele, para que seja decisivo. Por isto, a liderança
dominadora crê que os membros da sua equipe têm pouco valor e
necessita que todos se ponham a seu serviço, ainda que seja para
o fim coletivo de vencer.
Frequentemente se entendeu a liderança como aquela situação na qual uma pessoa tem a capacidade de expressar as
necessidades e sentimentos da coletividade, fazer propostas,
desenhar o futuro da coletividade e assumir todo o risco da
sua realização, fazendo com que, deste modo, a cidadania siga
confiando nela. É a figura do líder “caudilhista”. Em situações
de crise aguda, esta liderança pode ser possível, porém em absoluto é desejável, por suas conotações autoritárias, e porque
implica uma situação de desorganização social ou comunitária.
Por outra parte, em uma sociedade que avança na era das redes
e do conhecimento, este tipo de liderança é de todo inadequado, produz graves fraturas no sistema de relações sociais e
dificulta a constituição de redes. O líder representativo também
necessita expressar os desafios, emoções e sentimentos da cidade, porém o faz a partir da consulta, isto é, da construção
coletiva.
Entenda-se bem. Em outras palavras, na busca do diálogo,
da consulta, da participação, sem deixar de dispor de ideias e
de gerar emoções e sentimentos. Sua liderança consistirá em saber identificar a visão de futuro e saber convencer e comover a
68 F. Capra, La trama de la vida. Barcelona: Ed. Anagrama, 1998.
A
liderança do político eleito na governança
127
cidadania; porém, estas características próprias da liderança, ao
contrário do líder caudilhista, serão obtidas através do diálogo e
da consulta. Serão uma construção coletiva na qual teve um papel
facilitador, sem contudo perder a capacidade de representar esta
visão de futuro e gerar sentimentos e ações coletivas. Do contrário, não poderá liderar a coletividade.
A liderança representativa é capacitadora
A boa atuação de um líder representativo se mede em função
de que, uma vez finalizada a ação, houve aumento do nível de
organização e envolvimento da cidadania. Ao contrário, uma liderança dominadora avaliará sua ação em função do aumento de
sua influência e domínio entre a cidadania.
Para o líder eleito, nada do que acontece em sua cidade lhe
é estranho. Está claro que, na maioria dos casos, o que preocupa
a cidadania não será obrigatoriamente uma competência municipal, nem o município necessariamente disporá de recursos para
enfrentá-los, mas o líder atuará como interlocutor de sua cidade
frente a outras administrações, facilitará o envolvimento de atores
privados e amplos setores da cidadania interessados para organizar a resposta e obter os resultados esperados.
O líder representativo constrói consensos e forja pactos e
alianças, obtém o apoio e envolvimento cidadão ao expressar as
suas necessidades e desafios e os assume como seu representante
eleito.
A liderança política na governança pede uma cidadania ativa.
A principal finalidade de sua atuação é melhorar a capacidade de
atuação.
Fixará os objetivos políticos de tal modo que seus resultados
envolvam o conjunto da cidade. Não só se fixará nas competências legais ou na disponibilidade de recursos municipais, mas em
128
A
liderança do político eleito na governança
objetivos de desenvolvimento humano no qual todos os setores
da cidadania tenham responsabilidades.
Seu êxito consistirá em apresentar os avanços conseguidos no
município, mais do que o cumprimento de algumas propostas
eleitorais que ninguém controla.
Continuando a analogia com a área esportiva feita anteriormente, o líder representativo avaliará o êxito pela posição
que sua equipe conquistou na tabela de classificação. Já o
dominador só se fixará em seus resultados pessoais: gols, cestas, tempos conseguidos etc. Para ele, o resultado da equipe
é menos importante porque ela depende de seus resultados
pessoais.
A liderança representativa, isto é, relacional e capacitadora,
tem em conta que o cidadão atribui ao prefeito ou prefeita tudo o
que acontece na cidade. Seja positivo ou negativo, seja de competência municipal ou não, as responsabilidades por ação ou omissão são atribuídas pela cidadania ao prefeito ou prefeita. Para a
cidadania é difícil identificar o responsável por um equipamento
ou serviço público no emaranhado de competências existentes. É
mais fácil que demonstre sua satisfação em função de temáticas
gerais da cidade: mobilidade, meio ambiente, espaços públicos,
emprego, prática esportiva e oferta cultural. Isto é, aspectos importantes da vida cotidiana com grande capacidade de produzir
bem-estar; porém, esta é uma produção que envolve muitos atores, e a tarefa do governo local é justamente gerir suas interdependências para organizar coletivamente a produção do bem-estar
mencionado.
A distinção entre política e gerência
No modo gerencial de governar, próprio do governo provedor e
gestor de recursos, se confunde o papel do político e o do gerente ou,
A
liderança do político eleito na governança
129
de modo geral, do gestor. De fato, foi produzida uma subordinação
da política à gerência, valorizando-se muito mais o papel gerencial e
simplesmente de gestão do que o do político eleito com funções de
governo.
Esta subordinação da política à gerência assumiu formas diferentes. A mais lamentável é o desprestígio do político eleito e sua
desautorização por parte dos profissionais da gestão. Outra tem
sido o fato de que os gerentes ganharam relevância sobre os políticos, criando-se a figura do prefeito-gerente, ou do vereador-gestor.
Este enfoque tem sido acompanhado da tentativa de converter a
prefeitura numa empresa, em alguns casos, inclusive, como a maior
empresa do município.
O grande problema deste posicionamento, isto é, do modo
gerencial de governar, é que a prefeitura, e menos ainda os
serviços de bem-estar social, não são uma empresa, e querer
torná-los semelhantes levou em muitos casos a desconsiderar
sua responsabilidade pela aplicação da lei, própria de qualquer
administração democrática, e o papel do cidadão passou do papel de súdito, próprio do modelo burocrático, ao de cliente ou
consumidor, e não como cidadão propriamente dito. Ou seja,
como sujeito ativo de direitos, a quem o governo deve ser capaz
de representar.
Na governança democrática, o papel do político não apenas é revalorizado em relação ao gestor ou gerente. Ele também deve ser capaz de gerir os serviços com eficácia e, como
veremos, em função do seu impacto no desenvolvimento comunitário.
Porém, sem dúvida, o mais importante é a nítida separação
das funções de gerência ou gestão das funções e “papéis políticos”
que a governança proporciona. No quadro seguinte são destacadas as diferenças citadas:
130
A
liderança do político eleito na governança
GERENTES
ELEITOS NA GOVERNANÇA
1. Organizam e proporcionam recursos
2. Fazem corretamente as coisas
3. Centram-se nos processos de trabalho
4. Perguntam-se como e onde
5. Preocupam-se em fazer as coisas
6. Dão prioridade aos procedimentos,
estruturas, controle e qualidade da
gestão
7. Confiam nos procedimentos e
controles
8. Interessam-se pela produtividade
9. A participação como cliente e usuário
de serviços
1. Constroem o interesse geral
2. Fazem as coisas corretas
3. Centram-se na criação de uma visão
comum
4. Perguntam-se o quê e quando
5. Preocupam-se com o significado das
coisas para as pessoas
6. Dão prioridade aos objetivos sociais,
aos valores e “posicionam” as pessoas
numa direção
7. Confiam nas pessoas e sua capacidade
de mudança e compromisso
8. Interessam-se pela eficácia (cumprir
objetivos)
9. A participação como construção e
envolvimento da cidadania
É importante o equilíbrio entre a administração e a representação, mas a prioridade
é a liderança representativa para fortalecer a capacidade de organização e ação. A
liderança é chave em tempos de mudança.
É óbvio que estas diferenças são plenamente compatíveis.
Mais ainda, sua compatibilidade permite dar um caráter sinérgico à atuação do governo local. Neste sentido, cabe destacar
que a prestação e gestão dos recursos do profissional da gestão não só está subordinada à construção do interesse geral
como deve ser um dos suportes nos quais esta construção deve
basear-se. Porém, em caso algum pode se entender que o interesse geral consiste no desenvolvimento de uma prestação de
serviços e sua gestão eficiente.
O papel do gerente é, precisamente, preocupar-se com uma
gestão eficiente, isto é, com a produtividade; porém uma produtividade posta a serviço do cumprimento de objetivos sociais, cuja
identificação tenha sido liderada pelo representante eleito.
A
liderança do político eleito na governança
131
Em seu papel de líder capacitador, o que o preocupa, fundamentalmente, é o significado que as coisas e projetos têm
para as pessoas. Procura que elas sejam identificadas como um
direito e um dever. Quer dizer, evitará que seja vista como favor
e, muito menos, como uma ação clientelista ou, ainda, como
uma ação que provoque dependência ou subordinação. Deve
ser uma ação realizada pelo governo que corresponda à satisfação de direitos sociais, que reverta em maior compromisso
com a autonomia pessoal e coletiva dos cidadãos, e que esta
autonomia se expresse em compromisso ativo e solidário com
o conjunto da sociedade. Já a preocupação do gerente é fazer
bem as coisas, mas no marco político estratégico e com significado para a cidadania estabelecido politicamente.
Em última análise, a tarefa do governante eleito é articular
coletivamente a estratégia. Ou seja, “o quê” e o “quando”. E, ao
considerar esta estratégia, competências e recursos municipais, o
profissional da gestão ou o gerente estabelecerá o “como”, isto
é, os procedimentos e metodologias; e o “onde”, o lugar mais
adequado entre os possíveis.
A liderança estabelecida através da direção
política e moral
Gramsci, filósofo humanista e político, fundador do partido comunista italiano, se distanciou muito da política leninista de sua
época. Entendia a tarefa do partido comunista como a construção
de um grande bloco social e popular que abarcaria a maioria da
sociedade. A aglutinação desta maioria social se daria através da
hegemonia política. Ou seja, pela capacidade de direção cultural e
moral de um grupo social – no seu caso, o partido comunista –, que
atuaria como um intelectual coletivo e estruturaria o bloco social.
Hoje estamos em outro momento histórico, embora a proposta de Gramsci de aglutinar um grande conjunto social, através da
132
A
liderança do político eleito na governança
direção cultural e moral, deva ser levada em conta.69 É importante entender, contudo, que não se trata mais de gerar um grande
bloco contra alguém ou classe social, mas de construir o interesse
geral a partir dos interesses legítimos dos diferentes setores sociais.
É claro que, em não poucas ocasiões, setores sociais minoritários
ficam à margem deste acordo, mas esta minoria não se transforma em inimigo a ser abatido. Tampouco aqui afirmamos que se
trata de construir o socialismo ou o comunismo, mas de avançar
em condições dadas na direção do desenvolvimento humano. Nem
mesmo se trata de priorizar um “ismo”, seja liberalismo, socialismo
ou nacionalismo, mas de enfatizar e priorizar os valores e atitudes
democráticas de fortalecimento dos direitos humanos e as atitudes
de respeito, tolerância, abertura e criatividade. O mais importante
é que hoje a democracia não pode ser entendida simplesmente
como um meio, mas como meio e fim. Por último, já não se vê
o partido como o grande organizador desse amplo acordo social,
mas sim os líderes eleitos no exercício das funções de governo, a
pessoa eleita como representante pela maioria dos cidadãos, seja
para governar o conjunto da população que vive em um território,
seja para assumir a responsabilidade de uma política setorial, como
é o caso da política de bem-estar social. Entretanto, para isto, é
imprescindível que o governante eleito não realize sua tarefa tendo
em conta apenas seus eleitores, mas todo o conjunto de habitantes
do território ou cidade, ainda que possa partir dos interesses (não
dos posicionamentos) de seus eleitores aos quais, sem dúvida, deve
corresponder à confiança nele depositada.
Estamos, pois, em sintonia com Gramsci no sentido de que,
na governança democrática, a construção coletiva do desenvolvimento humano deve ser realizada através de valores, atitudes e
responsabilidade. A estratégia compartilhada e os projetos base69 Ver N. Bobbio, “Gramsci y la Concepción de la Sociedad Civil” em Gramsci y las Ciencias
Sociales. Mexico: Ed. Pasado y Presente, 1997, pp. 65-94.
A
liderança do político eleito na governança
133
ados em um compromisso coletivo de ação estão fundamentados
no conhecimento e guiados por valores.
A direção política se refere, na governança democrática, ao governo da pólis, isto é, ao conjunto da cidade. No estabelecimento de
alguns objetivos para a sociedade e no desenvolvimento de políticas
ou projetos para alcançá-los coletivamente. Assim como no estabelecimento de metodologias precisas para distinguir entre interesses
e posicionamentos, e do conhecimento dos conteúdos das políticas
para poder desenhar os cenários de futuro e os projetos que permitam articular os interesses e compromissos de ação. Para isso, o político eleito necessita ampliar e fortalecer sua capacidade estratégica e
relacional. Não bastam a ele suas qualidades pessoais; ele necessita
de apoio e assistência técnica especializada em gestão de serviços,
procedimentos legais e administrativos. Necessita de assessoramento
específico em gestão relacional. Este tipo de assessoria, dado que se
desenvolve em um ambiente em mudança permanente, e de grande
complexidade e diversidade, precisa de serviços contratados externamente (ainda que coordenados internamente), de think tanks, isto
é, de serviços de alta inovação política e social, que possam dar ao
dirigente apoio à sua tarefa de construir o interesse geral através da
confiança, do acordo, da colaboração e do compromisso.
O representante político é o principal
agente de mudança
A necessidade de profissionais externos e internos para fortalecer a capacidade da liderança relacional do representante político,
através do suporte e assistência técnica, faz lembrar, no âmbito do
bem-estar social, a ideologia do trabalhador social como agente
de mudança, que teve força nos anos 70 e até o princípio dos 80
na Catalunha.
É certo que o papel do trabalhador social, como os educadores, psicólogos e sociólogos, contribui para o desenvolvimento
134
A
liderança do político eleito na governança
comunitário ao fortalecer a capacidade de uma comunidade. De
fato, como já observado anteriormente, uma das tarefas prioritárias para a governança democrática é o fortalecimento da organização dos grupos e comunidades vulneráveis, para que participem
de pleno direito na construção do interesse geral em seu território.
Daí decorre a importância do trabalho social comunitário como
prioridade crescente na perspectiva do futuro imediato.
Porém, como no caso do gestor ou gerente, a tarefa se inscreve no marco das políticas de construção coletiva do bem-estar, que
deve, sem dúvida, ter como protagonista o político, o representante
da pólis ou cidade.
Podemos dizer, com toda clareza, que o agente principal de
mudança, já que não existe um agente único na democracia consolidada, é o político eleito. É desejável que ele seja o principal
líder da capacidade de organização e ação de um território. Qualquer enfoque que coloque em um profissional o papel de agente
de mudança em uma democracia só pode ser entendido como
uma relíquia do pensamento tecnocrático e autoritário.
A nova tarefa: tornar visível o apoio social
às políticas
Um dos temas mais preocupantes do trabalho político é, sem dúvida, a oposição de setores da cidadania à tomada de decisões de caráter transcendente sobre assuntos de interesse coletivo. Maquiavel,
em O príncipe, já alertava o mandatário sobre este aspecto, na introdução de reformas e novas leis: “Aquele que queira introduzi-las (as
novas leis ou reformas), terá como inimigos todos os que se beneficiavam das antigas. E aqueles que as novas leis favoreçam serão apenas apáticos defensores das mesmas.”70 As razões da tibieza, segundo
Maquiavel, são o medo em relação aos adversários que tinham uma
70 N. Maquiavel, El Príncipe. Barcelona: Ed. Veron, 1974, p. 24.
A
liderança do político eleito na governança
135
situação de privilégio anterior, e o fato de que a confiança na inovação, nos novos projetos, só se adquire realmente ao ser comprovado
que funciona. No século XXI, em uma democracia consolidada, a
segunda explicação é, sem dúvida, a mais relevante.
O certo é que, ante novas políticas e projetos, o que se visualiza por parte do cidadão (através dos meios de comunicação
interessados, alguns, em ressaltar as más notícias, ou por ocupação de espaços públicos por meio de manifestações e outros atos)
são os setores que se opõem, os que estão em desacordo com a
implementação dos projetos. Os que estão de acordo, na melhor
hipótese, desaparecem no meio da maioria silenciosa.
Por outro lado, em muitas propostas de participação, estas
aparecem como “a plenária dos não eleitos”, isto é, o lugar de
expressão das demandas e das queixas daqueles que não têm representação eleitoral, que têm pouca influência nas decisões políticas. Este espaço, sem dúvida de grande interesse do ponto de
vista democrático, não pode ser considerado o espaço de participação do conjunto da cidadania, porque simplesmente não é.
No mesmo sentido, muitas vezes a participação cidadã é apenas o
espaço em que se manifestam os setores descontentes.
A construção do interesse geral em cada política setorial, em
cada projeto, significa que é preciso entender os espaços de participação e de deliberação cidadã de maneira ampla e muito flexível,
tal como vamos expor nos capítulos seguintes. De modo que, efetivamente, sejam visíveis os acordos sociais, que se visualizem de maneira clara os setores que deles se beneficiam e, muito especialmente, aqueles setores vulneráveis cuja situação possa ser melhorada.
A liderança do representante eleito em espaços de ampla deliberação e colaboração é, sem dúvida, uma das tarefas básicas em
um governo que se defina como relacional.
136
A
liderança do político eleito na governança
6. Fundamentos para liderar
a coesão social a partir do
governo local
Ideias Principais
1. A coesão social é um conceito amplo que precede o desenvolvimento e não é somente sua consequência.
2. A coesão social equivale à capacidade de um território de fazer
frente a seus próprios desafios.
3. É preciso uma liderança política assentada em novos pilares de
gestão para promover a coesão social das cidades.
4. Liderar a coesão social é antecipar-se e canalizar os conflitos
entre os cidadãos.
5. A liderança relacional precisa de apoio técnico renovado.
Já mencionamos que a coesão social não pode ser entendida
apenas como um resultado do desenvolvimento de um território.
Pelo contrário, é preciso partir de alguns níveis necessários de coesão para que se alcance um desenvolvimento endógeno sustentado e sustentável. Neste sentido, ela deve ser entendida como
capacidade de organização e ação de um território para enfrentar
seus próprios desafios econômicos, sociais, político-democráticos
e de sustentabilidade. Quer dizer, de uma maneira muito semelhante a como se tem entendido historicamente o trabalho de
desenvolvimento comunitário por parte dos trabalhadores da área
social.
Uma cidade ou município, em geral, estará mais integrado
socialmente, ou disporá de maior capacidade de organização e
ação sempre que:
• Disponha de uma grande e ampla visão compartilhada
do território, assim como das bases e eixos sobre os quais
deve se assentar uma estratégia que envolva a grande
maioria dos atores sociais e cidadãos.
• Exista um profundo e amplo sentimento de identidade
com a cidade por parte de todas as distintas comunidades e setores que a compõem, e que se distinguem por
sua procedência geográfica, cultural ou social.
• Seja desenvolvido um processo de maior valorização das
diferenças entre as pessoas, frente a sua procedência geográfica e cultural.
• Sejam desenvolvidas relações diversas e intensas entre
as pessoas nos distintos âmbitos sociais: trabalho, escola,
lazer, bairro etc.
• Exista um processo mais intenso e extenso de redução
das desigualdades sociais e geração de novas e maiores
oportunidades vitais para o desenvolvimento de projetos
de autonomia individual ou grupal ao alcance da cida138
Fundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
dania, independentemente de sua procedência, origem
e ambiente cultural.
• Nesta perspectiva, e tendo em conta que no território se
produzem processos complexos de coesão-desintegração
social, o governo local que tenha como objetivo o desenvolvimento de um território socialmente mais integrado
deverá exercer seu trabalho em uma dimensão dupla.
Por um lado, uma tarefa de dar impulso aos fatores que
geram coesão, e, por outro, um trabalho de prevenção
e canalização de situações conflituosas, que sempre são
geradas em uma cidade ou município.
Os 7 pilares para a liderança política
Um político eleito com a vocação de liderar a construção de
uma cidade mais inclusiva deve elaborar uma política que se fundamente nos seguintes pilares ou bases.
1. Criar uma visão social do município e seu futuro. Trata-se de
dirigir, como representante do seu município, a elaboração e o desenvolvimento de uma estratégia compartilhada entre todos os atores e setores da cidadania. O mais
importante desta estratégia é a visão ou modelo de futuro do município. É básico para a coesão social que esteja claramente refletida a dimensão social do modelo de
cidade, uma vez que em muitas cidades existe somente
um modelo urbanístico e ou econômico. Uma visão que,
além de ser entendida e aceita pela grande maioria dos
cidadãos, gere adesão e compromisso cidadão para levá-la a cabo. Para isto é imprescindível uma elaboração
participativa, que todos os setores sociais e cidadãos se
sintam parte da mesma e, deste modo, possam orienFundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
139
tar sua atuação na mesma direção.71 O fundamental é
o compromisso cidadão com a cidade, isto é, com os
demais cidadãos.
2. Atrair e envolver todos os setores da cidadania. A elaboração de uma estratégia compartilhada que seja inclusiva, isto é, que não exclua a presença das necessidades
e desafios de nenhum grupo social, exige o desenvolvimento de ações positivas para conseguir que os grupos
mais desfavorecidos socialmente estejam claramente representados na política de coesão social. É preciso estar
sempre vigilante para que a participação não se restrinja
aos setores mais organizados e com maior capacidade
propositiva. Se isto ocorrer, existe o perigo de fortalecer
a segregação social entre o grupo social mais amplo e os
excluídos.
3. Gerar capital social. Trata-se de integrar as diferentes pessoas e grupos sociais no desenvolvimento de projetos
comuns ou em redes. Para isto deve desenvolver-se toda
uma programação para que os setores da cidadania possam reconhecer seus interesses comuns ou complementares e se desfaçam as falsas percepções que uns têm
sobre os outros. Promover as suas interações para que
obtenham maior confiança mútua e possam chegar a
compromissos de ações conjuntas ou complementares.
4. Mediar conflitos entre atores e setores da cidadania. O governo local deve atuar com enfoque e técnicas de negociação relacional de conflitos, cuja finalidade seja fortalecer
as relações entre as entidades que negociam, nos temas
em que tenha sua competência envolvida. Também deve
71 Recomenda-se a elaboração de um plano estratégico, cuja finalidade seja alcançar uma
cidade inclusiva. Ver a este respeito os trabalhos do Marco Estratégico de Barcelona, promovido pela associação público-privada ABAS (Asociación Barcelona para la Acción Social).
www.abas.org
140
Fundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
ser facilitador e mediador de conflitos entre atores e entidades cidadãs. A coesão social de um território depende
de sua capacidade de enfrentar e resolver positivamente
conflitos. Um município que progride não é aquele onde
inexistam conflitos, mas aquele que os confronta buscando novos cenários, novas situações em que os diferentes
interesses possam se complementar. Por isto, é importante dispor de espaços de intermediação facilitadores do
encontro de interesses legítimos entre os grupos, setores e
entidades da cidadania.
5. Conseguir vitórias rápidas e visualizar a realização de projetos. É importante, para promover a coesão, que a cidadania experimente uma realização visível de projetos
tangíveis para o bem-estar da comunidade. A partir de
uma perspectiva de mobilização e participação nos assuntos coletivos, o mais importante não é tanto o projeto tangível que afeta um número reduzido de cidadãos,
mas os efeitos intangíveis na consciência cidadã do saber
fazer e gerenciar com eficácia e honradez. Por isto, a
realização de projetos deve enquadrar-se em um projeto
de geração de cultura cívica e empreendedora da cidadania. Dar intencionalidade educativa a tudo o que se
faça, para que a comunidade compreenda, confie e se
envolva.
6. O desenvolvimento de uma comunicação efetiva baseada
nos valores do humanismo ou do republicanismo cívico. A
comunicação deve basear-se na realidade dos projetos e
de suas circunstâncias. A comunicação efetiva não tenta
substituir a realidade, mas tomá-la como base para as
mensagens e os significados que se deseja transmitir a
partir de uma situação objetiva. A comunicação tem que
se apoiar em uma informação clara, transparente, documentada e na qual se possa acreditar.
Fundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
141
7. Envolver o conjunto do governo local na temática da coesão
social. Este pilar não é o último por ordem de importância. Muito pelo contrário, pois, se a coesão social não
for um objetivo assumido por toda a administração, são
criados obstáculos dificilmente superados para liderar os
processos de coesão social por parte dos governos locais.
Por seu papel importante, dedicamos a ele uma seção
específica.
O envolvimento do governo local
A coesão social, ou mesmo a realização de objetivos sociais
em um município, não é tarefa exclusiva de um departamento
ou secretaria. Assim, por exemplo, para garantir as necessidades
básicas de uma população ou reduzir a pobreza em um território
– embora a responsabilidade para alcançar este objetivo costume
ser da secretaria de assistência social, por ter mais competências
e recursos específicos – devem ser envolvidas as áreas de saúde,
obras públicas (saneamento básico, espaços públicos, iluminação
etc.), transporte, moradia, educação e esporte (que se converteu
em necessidade básica de saúde), uma vez que as tais necessidades são mais amplas que o acesso a equipamentos e prestação dos
serviços sociais.
O fundamental para integrar socialmente um município é que
a atuação do conjunto do governo se oriente por objetivos sociais. Que a atuação de todas as áreas ou departamentos tenha
por referência os mesmos objetivos de coesão social, redução das
desigualdades e desequilíbrios territoriais.
É muito importante que o responsável pela assistência social,
que vai liderar as ações para a integração social, tenha muito claro
o que deve demandar das outras áreas do governo para que o conjunto do município avance no sentido de alcançar o maior grau de
coesão possível.
142
Fundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
A este respeito, o primeiro fórum de responsáveis pela área de
bem-estar social da Província de Barcelona72 dedicou um grupo
de trabalho destinado à identificação dos critérios sociais para a
produção de espaço público, que é um dos temas de maior envolvimento na geração de capital social, e na prevenção de conflitos
sociais.73 As principais constatações foram:
• A configuração do espaço público ou, inclusive, a carência do mesmo, foi considerada como uma das expressões mais claras do que é a sociedade: “... é a sociedade
inscrita na terra” (Lefebvre). Porém, o espaço público, enquanto construção coletiva de uma cidade dirigida por
uma prefeitura democrática, também é a expressão do
que se quer ser, uma antecipação da sociedade do futuro
e, por sua vez, um instrumento de transformação da cidade
ou do município atual na perspectiva do município que se
deseja no futuro.
• Na visão democrática da nova sociedade-rede, ou também denominada sociedade do conhecimento, o espaço
público é considerado fundamentalmente como gerador de
capital social. Na avaliação do impacto de um espaço público, tem que ser levado em conta, sobretudo, a intensidade e qualidade das relações sociais que favorece.
Um espaço público desenhado a partir de uma clara definição
de objetivos sociais a serem alcançados pela cidadania pode ter os
seguintes impactos positivos:
• Dar centralidade e, em consequência, iniciar a recuperação
de periferias, sempre que se recuperem espaços margi72 No original, “I Forum de Regidors i Regidoras de Benestar Social”, organizado pela Diputación de Barcelona. Os “Regidors” e “Regidoras”, também denominados Concejales e
Concejalas (vereadores e vereadoras), são pessoas eleitas em eleições locais e, na Espanha,
têm responsabilidades executivas na equipe de Governo. (Nota do tradutor)
73 O grupo foi presidido por Josep Mª Lahosa. Diretor de Serviços de Prevenção da Prefeitura
de Barcelona, e Concejal (vereador) de Bem-estar Social da Prefeitura de Villanova.
Fundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
143
nais, segregados e inacessíveis, de encontro, onde possam emergir atividades econômicas, sejam casas comerciais ou escritórios. Tem como consequência incrementar
o preço do solo nos arredores, fato que significa um crescimento da renda da vizinhança.
• Gerar identidade. Por converter os espaços em lugares.
Isto é, espaços significativos para a cidadania. Espaços
dignos, bonitos, com valor simbólico, que permitam que
as pessoas se sintam como sendo do lugar, do bairro. O
sentimento de “pertencer” é chave para a autoestima e
a geração de envolvimento e responsabilização dos moradores em relação ao bairro e a eles mesmos; e inicia e
fortalece o processo de progresso do conjunto do bairro.
• Gerar capital social. Constituir um espaço de encontro e
convivência gera conhecimento mútuo, identifica e difunde, através das relações de vizinhança, os desafios do
bairro e permite a colaboração entre vizinhos.
• Constituir um equipamento aberto para a prática de esportes e atividades de lazer para todo mundo, mas muito
especialmente para a vizinhança com menos possibilidades de renda e com moradias mais deterioradas, que são
os que mais usam o espaço público.
• Fortalecer a cultura popular e de bairro, para a realização
de festas populares e atividades culturais e solidárias de
rua.
• Promover a integração cultural da diversidade de origens –
geográficas, línguas e idades – como consequência dos
impactos anteriormente apontados.
A partir destas considerações, foram estabelecidos critérios que o
responsável pela área de bem-estar social deve demandar da equipe
de governo, para conseguir maior coesão social nos projetos de espaço público:
144
Fundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
• Acessibilidade para todas as pessoas em todos os espaços,
cumprir os critérios da LISMI (idosos, crianças, pessoas
com mobilidade reduzida...)74
• Multifuncionalidade. Dispor de espaços para crianças, jovens e idosos, assim como para diferentes usos – esportivo, lazer, comercial etc. – é básico para conseguir ser um
lugar de encontro e convivência entre as gerações.
• Participação dos moradores e dos profissionais de assistência
social para que se identifiquem com clareza os diferentes
desafios e expectativas dos diversos segmentos da população no desenho e realização do projeto.
• Que melhore a imagem do bairro ou do município, pela sua
beleza (não quer dizer que seja mais caro) e por sua utilidade.
• Simbolismo. Que haja elementos que recuperem a memória do bairro ou do município. Assim como símbolos
que favoreçam a identificação do bairro e a autoestima
dos moradores. “Monumentalizar as periferias.”
• Prevenção. O espaço aberto permite identificar situações
de risco que possibilitam um tratamento social. É importante tratar os temas com sentido de antecipação para
a melhora da convivência. Por exemplo, o tratamento
de grupos de jovens “desajustados”, o aparecimento de
“bêbados” etc.
• Segurança. Conseguir espaços públicos seguros não significa cercá-los nem privatizar o seu uso. Têm que ser
levadas em conta a iluminação e a visibilidade em todos
os lugares, para que gerem ambientes seguros. É preciso
assegurar que os moradores possam facilmente chamar
a polícia caso necessário.
74 Trata-se de uma lei espanhola que garante os direitos das pessoas com necessidades especiais. A sigla significa Ley de Integración Social del Minusválido. (Nota do tradutor)
Fundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
145
• Integração. Conseguir que as pessoas de origens diversas
participem no uso do espaço público.
De modo semelhante, estes critérios devem ser aplicados ao
conjunto dos departamentos municipais e, assim, contando com
os mesmos recursos, mas orientados por critérios sociais, sejam
alcançados avanços importantes na coesão social dos municípios.
Antecipar-se e canalizar situações de
conflito
Foi dito acima que, para liderar a coesão social, era preciso desenvolver um trabalho em duas dimensões. Uma, desenvolver os
pilares sobre os quais repousa a coesão, e outra, prevenir e canalizar
as situações conflituosas entre diferentes grupos sociais ou setores
da cidadania.
Os processos de coesão social podem ser obstaculizados ao
aparecerem conflitos que, se forem indevidamente canalizados,
levam à segregação mútua entre setores comunitários.
A exclusão social é definida por dois componentes: uma situação social diferenciada em função de uma ou mais variáveis (procedência geográfica, cultural ou social, valores e crenças, opções e
atitudes sexuais, gênero, nível de renda etc.) em relação ao grupo
social mais amplo (definido em função das variáveis sociais consideradas), e uma reação de rejeição ou segregação do grupo social
mais amplo com respeito ao minoritário em todos ou alguns dos
níveis ou âmbitos de uma sociedade (econômicos, sociais, territoriais ou políticos).
A diferença social, a desigualdade ou mesmo o desvio em
relação a atitudes e condutas predominantes e suportadas pelos
costumes ou normas geram exclusão social se não for criada uma
reação social segregacionista ou excludente. Determinadas situações sociais condicionam, sem dúvida, o aparecimento da reação
de exclusão: elevados níveis de desemprego, a insegurança cida146
Fundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
dã, situações de miséria econômica e de habitação, a ocupação
exclusivista do espaço público etc. Porém, a reação excludente
tem seus mecanismos próprios de geração: desconhecimento do
outro, incompreensão de atitudes e reações, medo do diferente,75
cultura não pluralista76 etc. Em geral, a reação social excludente é
antecedida pela sistematização de preconceitos sociais ou etiquetas que um grupo social elabora em relação aos “outros”.
Uma ou um político que lidere processos de coesão ou inclusão social deverá atuar, com apoio do governo municipal, de
modo a antecipar situações para reduzir as desigualdades sociais
e os desequilíbrios territoriais entre os bairros, mas também, e
sobretudo, na prevenção e redução dos obstáculos intangíveis à
coesão social e dos mecanismos que geram a exclusão social.
Pela importância deste segundo aspecto, assim como pela sua
novidade e por esta tarefa inscrever-se plenamente na gestão relacional, são identificadas a seguir as tarefas a serem empreendidas
pelo político com responsabilidades de governo para prevenir e
canalizar os conflitos enfrentados por grupos e setores do município.
• Uma das principais tarefas é, sem dúvida, facilitar a
informação clara, documentada e confiável sobre os
diferentes grupos sociais que, por procedência geográfica e cultural, se localizam no território. Em especial,
proporcionar informação sobre as principais contribuições positivas que o grupo em questão (e em perigo de
sofrer reação excludente) faz à sociedade e ao municí75 Neste sentido, recomenda-se o livro de Z. Baugman, Confianza y Temor en la Ciudad. Barcelona: Ed. Arcadia, 2006.
76 É comum os meios de comunicação difundirem a opinião de políticos e profissionais europeus demandando que os imigrantes de terceiros países aceitem os valores e atitudes das
sociedades receptoras, do mesmo modo que os europeus deveriam assumi-las no caso de
emigrarem para seus países de origem, esquecendo que as sociedades europeias se definem
como pluralistas.
Fundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
147
pio em particular, e difundi-las de maneira massiva e
permanente.
• Dispor de espaços de encontro entre os principais agentes responsáveis por processos de socialização: igrejas,
universidades, escolas, associações de moradores e de
imigrantes, sindicatos de trabalhadores e empresários,
que realcem os valores e características comuns que podem favorecer a interação e relação estável entre setores da comunidade. Fazendo declarações conjuntas na
celebração das diferentes festividades, perante eventos
locais e externos que podem inibir a segregação mútua,
e mediando conflitos locais.
• Assegurar que todos os moradores e moradoras participem das políticas cidadãs e municipais sobre o território,
para que acumulem o conhecimento de todo o município e articulem as respostas às necessidades e desafios de
todos os setores da cidadania.
• Promover e fortalecer redes associativas que integrem
pessoas de diferentes procedências geográficas, culturais
e sociais, com a prefeitura atuando como liderança comunitária.
• Dispor de amplos, flexíveis e fortes vínculos entre a prefeitura e as entidades do terceiro setor em todos os bairros do município.
• Fazer, sempre que possível, pactos para a inclusão social com todas as forças sociais e políticas democráticas
do município e, em especial, nos temas relativos à imigração.
Estes mecanismos preventivos funcionam com grande eficácia
nos casos de aparecimento de conflitos entre grupos de vizinhos.
É muito importante que os eleitos tenham uma atitude aberta em
relação ao conflito e uma consciência clara tanto frente aos riscos
como às oportunidades. Esta é a melhor forma de prever e gerir
148
Fundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
os conflitos, incrementando a consciência das interdependências
dos grupos. Líderes políticos sem capacidade para identificar tanto as interdependências internas como as externas à Prefeitura e
ao município são um freio para as sociedades complexas e abertas
em que vivemos.
Em qualquer caso, o líder político relacional nunca buscará o
domínio dos valores e comportamentos de um grupo social sobre
outros, tampouco o isolamento ou a segregação cultural dos grupos sociais. Ao contrário, buscará o máximo apoio e colaboração
para o predomínio dos valores que favoreçam a maior interação
possível baseada na comunicação aberta e no conhecimento e
compreensão mútuos, assim como no estabelecimento de relações estáveis entre os distintos grupos sociais no território.
O apoio necessário à liderança relacional
A liderança política relacional necessária para articular a coesão social é muito diferente da que se precisa para gerir os recursos
e serviços municipais. É conveniente que o político representativo
possa dispor, ao nível interno ou mediante a contratação externa,
dos seguintes tipos de apoio:
• Conhecimento especializado nas técnicas que assinalamos anteriormente de gestão relacional: planejamento
estratégico, participação, gestão de redes, negociação
relacional etc.
• Um mapa de atores sociais do seu território, que lhe
proporcione uma informação sobre o conjunto de atores
públicos, voluntários, organizações sociais sem fins lucrativos, associações de moradores e comunitárias, assim
como seus principais projetos relacionados com os temas
da inclusão e coesão social. Assim como dispor de fortes
vínculos com este conjunto e dos mecanismos para enlaçar atividades e projetos.
Fundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
149
• Manutenção de um sistema de informação sobre as
variáveis que podem incidir na quebra da convivência
entre setores comunitários: evolução do desemprego,
dos índices de delinquência e vítimas, déficit de serviços
básicos e moradias, programação de serviços e equipamentos que possam ser objeto de rejeição por grupos de
moradores.
• Um registro atualizado para saber quem chega ao território e as zonas ou bairros em que se assentam.
• Poder utilizar com rapidez e flexibilidade diferentes
meios de comunicação: boletins, imprensa, rádio e televisão local, assim como capacidade para pôr anúncios,
editar folhetos etc.
Não se entende que seja necessário dispor de todos e cada
um desses instrumentos para liderar politicamente a coesão social
em um território; cabe assinalar, unicamente, que eles são convenientes para construir uma política de coesão social mais eficaz.
Por outro lado, quanto menor for a população e a complexidade
do território, menos sofisticação será preciso nos mecanismos de
apoio técnico.
150
Fundamentos
para liderar a coesão social a partir do governo local
7. Perfil político para a
liderança representativa
na governança: Valores,
habilidades e atributos
Ideias Principais
1. Os valores próprios das sociedades abertas e do republicanismo
ou humanismo cívico sustentam a liderança representativa.
2. Habilidades ou aptidões específicas do perfil político são necessárias para a prática da governança.
3. Principais atributos
vernança.
do político para a prática política na go-
Entenderemos por perfil político a soma integral de habilidades ou aptidões, atributos e valores mais importantes para que
uma pessoa, ou um coletivo político eleito possa exercer de maneira mais adequada a liderança representativa em um governo
relacional.
Os valores que sustentam a liderança
representativa
Os valores próprios da liderança representativa na governança
são aqueles da discussão relacional, dos valores e das atitudes que
favorecem, segundo Popper, o desenvolvimento científico.77 Estes
são a liberdade em todas as suas facetas e, muito especialmente, a liberdade de informação, a circulação e debate de ideias,
a tolerância e o respeito ao outro, a suas opiniões e crenças, a
humildade frente a suas próprias ideias, ou seja, os valores das
sociedades abertas.
A governança democrática precisa dispor de técnicas para
poder desenvolver-se. Porém, necessita mais ainda de valores e
virtudes, ou de atitudes dos políticos para dar impulsão à sua potencialidade. Neste sentido, Ortega y Gasset mostrou como o sentido e a própria causa da técnica se encontra fora dela, a saber:
no emprego que o homem dá a suas energias latentes e liberadas
pela técnica; e observou para a sua época que as crises nos desejos, ideias e valores são a razão pela qual toda potencialidade da
técnica não tenha servido para nada.78
Hoje há também uma crise de valores, como nas primeiras décadas do século passado. Em especial, ressalta um questionamento
generalizado dos políticos e dos valores éticos que devem presidir
77 K. Popper, La sociedad abierta y sus enemigos. Barcelona: Ed. Paidós, 2006.
78 Ver J. Ortega i Gasset, Meditación sobre la técnica y otros ensayos. Madri: Revista de Occidente,
Alianza Ed., 2002, pp. 53-55.
152
Perfil
político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
a atuação da denominada classe política democrática. Mas este lamento generalizado de quebra moral e perda de valores não pode
ser atribuído a casos concretos de corrupção política; como observou D. Innerarity, essas crises de valores acompanharam sempre o
processo de modernização social e política.79 Hoje, como já dito,
estamos ante uma necessidade de mudança nas formas de governar dado o esgotamento do modelo de governar baseado na prestação e gestão de recursos, assim como em uma forma de fazer
política própria de sociedades bem delimitadas territorialmente e
integradas politicamente no marco do Estado-nação.
As metodologias e técnicas da gestão relacional se inspiram e
só podem desenvolver-se em um contexto de valores e virtudes
próprios das sociedades abertas. De outro modo, é muito difícil
identificar estratégias compartilhadas, estabelecer a negociação
relacional, ou desenvolver o enfoque abrangente em ciências sociais etc.
A governança requer duas condições para ser considerada
como um novo enfoque em ciências sociais, e como um modo
apropriado de governar na sociedade-rede: que a verdade ou a
falsidade de suas teses principais, das bases detalhadas e explicativas, seja demonstrável pela lógica e que suas explicações se
adaptem aos fatos e sejam, portanto, suscetíveis de prova. Porém,
o fato de que este novo enfoque de governar seja considerado objetivo ou racional-científico não significa que esteja livre de valores, como lembra Hempel.80 Pelo contrário, como já observamos,
existem valores e condições sociais e econômicas que permitem
um maior/menor desenvolvimento desta teoria, tanto em nível
conceitual quanto prático.
79 D. Innerarity, El Nuevo Espacio Público. Madri: Ed. Espas Calpe, 2006, p. 188.
80 “A adequada solução para um problema não só exige o conhecimento dos meios técnicos,
mas também de padrões para avaliar os meios alternativos à nossa disposição; e este segundo requisito coloca problemas reais.” Em La explicación científica. Barcelona: Paidós Ed.,
2005, p. 118.
Perfil
político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
153
Neste sentido, deve entender-se que as políticas estão condicionadas pelo ambiente econômico, social, tecnológico e institucional em que se inscrevem. Porém, condicionadas não quer dizer
determinadas, posto que as decisões políticas são também fruto
da liberdade e responsabilidade de quem decide.81
A governança democrática, como seu nome indica, necessita das regras e procedimentos democráticos e se consolidará à
medida que os valores e atitudes próprias da sociedade aberta
e democrática sejam interiorizados pela sociedade e seus líderes
políticos sejam sua expressão prática, e não apenas pelo respeito
às regras do jogo democrático. A organização atual da sociedaderede, baseada nas interdependências, requer um marco democrático de responsabilidades que não pode ser assegurado de maneira centralizada nem hierárquica pelos governos; precisa, sim, de
uma responsabilidade com cooperação entre os atores e setores
da cidadania, definida e organizada de forma plural.82
A argumentação anterior também nos serve para destacar que
a governança democrática é uma forma de governar própria de determinadas ideologias políticas ou partidos políticos. Com efeito, a
partir da aceitação das regras do jogo democrático, qualquer opção
política pode desenvolver as metodologias da gestão relacional ou
das interdependências, uma vez que estas são objetivas. As opções
políticas, portanto, não se distinguem pelo uso das técnicas de gestão nem pelo modo de governar adotado, mas pelos valores que
perseguem com o modo de governar, e que se expressam pelos
eleitos e representantes políticos.
No paradigma do governo como gestor do gasto público, a
distinção não se devia ao tipo de gestão, mas, sobretudo, à finalidade do gasto; se era prioritariamente militar ou social, e se
81 Ver J. Prats, “Ética del oficio político”, em Instituciones y desarrollo. Nº 14-15 Nov. 2003,
pp. 205 a 209.
82 D. Innerarity, op.cit., p.199.
154
Perfil
político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
a decisão do gasto correspondia a maior ou menor proximidade
com o cidadão. Na governança, a distinção se fará em função
da prioridade acerca das finalidades do progresso humano, seja
o desenvolvimento econômico, a equidade ou a coesão social,
a sustentabilidade ou o desenvolvimento da ética democrática
ou republicana. Todos eles são valores compatíveis e interdependentes, mas também sujeitos à ordem de prioridade, em
especial se consideramos conjunturas concretas nas quais é preciso optar pelo que tem um valor predominante. Dito com toda
clareza, a construção coletiva e consciente do progresso humano nos territórios será feita em função de alguns valores ou em
função das pessoas e grupos políticos que tenham sido eleitos
democraticamente.
Habilidades ou aptidões do perfil político
para a prática da governança
As habilidades para a liderança em governança não devem ser
entendidas tanto como habilidades pessoais, fruto de uma personalidade ou formação, mas como habilidades e aptidões coletivas. Isto é, aptidões construídas pelo eleito e equipe ou equipes
técnicas que o assessoram na sua atividade política na prefeitura.
As principais habilidades ou aptidões para exercer este tipo de
liderança são:
• Visão de futuro para o território
• Iniciativa para a gestão da mudança: definição de objetivos
• Desenho de processos e organizações: capacidade de
adaptação
• Comunicação e motivação: convencer e comover
• Construção de alianças: domínio das interdependências
Perfil
político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
155
A visão de futuro ou a capacidade de imaginar cenários é fundamental para alcançar uma articulação de interesses. É comum que
a confrontação entre atores se produza com base em uma situação
ou projeto dado. Buscar o maior acordo possível e necessário significa muito frequentemente articular os interesses e desafios em
cenários futuros a serem construídos coletivamente, ou imaginar
projetos factíveis em que todos possam ganhar de maneira correspondente ao esforço ou investimento.
A gestão das expectativas cidadãs é uma habilidade muito importante. Gerar expectativas que não se realizam provoca frustração.
Sua consequência é a desmobilização da cidadania e a geração de
desconfiança política. Tão importante como a não realização efetiva das expectativas é a percepção de que estas não se cumprem;
os resultados são os mesmos. Esta segunda modalidade é mais
frequente na realização dos projetos estruturantes na cidade, uma
vez que a sua realização não é imediata. Um projeto complexo
percorre necessariamente diferentes etapas (formulação, estudo
prévio, desenho do projeto executivo, orçamento, início de execução) que se estendem por um tempo que pode ser excessivo e
pode ter seus avanços não percebidos. É preciso não gerar expectativas irrealizáveis, mas também dispor de uma política de comunicação adequada para que os avanços sejam percebidos.
Existe uma fórmula que, se bem que não seja exata, é preciso
ter sempre em conta como referência: satisfação é “igual” ou semelhante à percepção das realizações menos as expectativas que
a cidadania tenha criado. Ou seja, quanto maiores as expectativas
em relação à percepção, menor será a satisfação ou maior será a
frustração.
De todos os modos, para que uma cidade possa avançar, necessita de expectativas razoáveis e críveis, pois do contrário não
se avança. Vale lembrar o caso extremo do lema que apareceu
pintado nas ruas de Buenos Aires quando se desvalorizou sua moeda: “Queremos promessas, não mais realidades.” À realização de
156
Perfil
político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
expectativas, cabe responder imediatamente com outras novas.
Para gerir expectativas é aconselhável ter em conta, além da que
acabamos de mencionar, o caso das corridas de cachorros galgos:
quando a lebre se encontra muito longe, o galgo não corre, não
avança, mas se a lebre fica mais perto, o galgo a agarra e também
não corre; é preciso situá-la a uma distância adequada para que o
galgo acredite “razoavelmente” que a agarrará, mas não consegue
alcançá-la e continua correndo. A lebre é a expectativa e o galgo
a cidade, e o que importa é que a cidade sempre corra, sempre
avance.
Iniciativa para a gestão da mudança: gerir as expectativas significa tomar a iniciativa para começar e dar continuidade às mudanças. É evidente que não basta apenas vislumbrar, mas iniciar
os processos de mudança para que, a partir da situação atual, se
atinja a situação ou cenário futuro considerado possível e desejável. Para isto é preciso dotar-se de uma estratégia e colocá-la
em prática. As forças de transformação devem ser identificadas, e
definidos os objetivos compartilhados de maneira clara e factível,
assim como deve ser iniciada, de maneira exemplar e com visibilidade, a gestão da mudança.
O desenho de processos para a participação cidadã e a realização
de acordos é uma aptidão necessária para gerir a mudança corretamente. A participação deve assegurar o conhecimento permanente dos desafios e necessidades dos diferentes setores para conseguir apoio da cidadania, se a estratégia e os projetos adotados
assumirem os desafios e necessidades identificados. Os processos
de mudança não seguem trajetórias fixas; os próprios avanços introduzem mudanças na situação de partida, o que significa que
a estratégia ou projeto identificado aparece com maior clareza e
riqueza de matizes que, sem dúvida, exige a reprogramação não
só dos conteúdos estratégicos, mas também dos espaços organizacionais em que se canaliza a cooperação pública e privada e a
participação.
Perfil
político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
157
A comunicação e motivação cidadã83 para conseguir deslanchar
com maior plenitude a capacidade de ação da coletividade. Comunicar objetivos percebidos pela população como respostas a suas
demandas, que por sua vez são factíveis e necessários, sem dúvida
convence. Porém, a razão não basta para a ação. É preciso também
canalizar os sentimentos em uma mesma direção. Por isto, a possibilidade de comover é inseparável da de convencer. Uma sem a
outra não consegue envolver a cidadania em seu conjunto.
A construção de alianças é condição necessária para a governança. A identificação das interdependências dos atores é condição
necessária, porém o que é realmente crítico é passar desse reconhecimento à construção de alianças, isto é, à geração de compromissos de ação. A esta condução que vai da identificação de interdependências ao compromisso chamamos de gestão relacional.
Ela deve partir do reconhecimento mútuo pelos atores de suas
interdependências, promover ou fortalecer a confiança recíproca
para poder chegar a compromissos sólidos de ação.
Principais atributos para a prática da
governança
Embora as aptidões possam ser, e é aconselhável que sejam,
construções compartilhadas entre as pessoas eleitas e suas equipes,
os atributos são fundamentalmente pessoais de quem se elegeu.
Os principais atributos, ou seja, atitudes permanentes ou instauradas da liderança que facilitam o desenvolvimento das aptidões necessárias à governança são:84
83 Para o desenvolvimento desta capacidade, recomenda-se o livro de T. Puig, La Comunicación Municipal Cómplice con los Ciudadanos. Barcelona: Ed. Paidós, 2003.
84 Os atributos foram especialmente selecionados pelo autor. Para um amplo leque dos atributos da liderança recomenda-se J. Boyett, Lo mejor de los gurus. Barcelona: Ed. Gestión.
2001. Também S.R Covey, El 8º Hábito. Barcelona: Ed. Paidós, 2005.
158
Perfil
político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
• Saber escutar: para poder conhecer a fundo as necessidades e interesses, mas também as contradições, dos
quais surgem os posicionamentos ou reivindicações dos
atores e setores da cidadania; é básica para poder entender as sensibilidades.
• Empatia: a habilidade para entender os problemas, desafios, emoções e sentimentos, sabendo colocar-se no
lugar do outro.
• Imaginação: atributo necessário para gerar visões de futuro do território e projetos compartilhados novos ou reformulados que gozem de importante apoio social.
• Inovação: a atitude de fazer coisas novas ou as mesmas
coisas de maneira diferente facilita o início de uma nova
gestão pública.
• Habilidade no trato: gerar confiança significa um tratamento respeitoso e compreensivo com os outros, e saber
incorporar todas as sensibilidades aos compromissos de
ação.
• Curiosidade para conhecer todos os pontos de vista:
entendê-los a partir dos contextos e situações em que
são produzidos é, sem dúvida, uma condição importante para a sua modificação a partir da compreensão
dos envolvidos e conseguir, assim, sua compatibilização.
• Aprender de maneira continuada: é uma atitude essencial para dispor dos conhecimentos necessários para
construir novos cenários ou projetos que incorporem
a grande maioria dos interesses e pontos de vista dos
atores e setores da cidadania envolvidos.
Encontramos, também, atributos pessoais necessários a toda
e qualquer liderança, tais como integridade, serenidade, responsabilidade, proatividade, sentido de humor, preocupação com os
Perfil
político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
159
demais etc. Sem dúvida, ajudam a liderança representativa como
qualquer outra atividade na vida em que se aspire a ser feliz,
porém não são específicos para a liderança própria da governança democrática. Entretanto, é preciso levar em conta que, muito
frequentemente, confundem-se, com pouco rigor profissional, os
livros sobre liderança com receitas de autoajuda.
160
Perfil
político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
8. Os Governos Locais:
Protagonistas na era da
governança
Ideias Principais
1. Os
governos locais têm maior êxito na gestão de serviços às
pessoas e na gestão das relações entre os setores da cidadania.
2. A prefeitura, como organizadora coletiva, é o govermo protagonista na sociedade-rede.
3. Os municípios não autossuficientes.
4. A crescente importância dos governos intermunicipais.
A gestão relacional ou de redes própria da governança posiciona os governos locais em uma situação ímpar para ser o governo protagonista desta nova arte de governar. Dito de outro
modo, o local pode ser o nível de governo característico e chave
do modo relacional de governar. Porém, dispor de oportunidades
não significa que elas sejam aproveitadas. A identificação deste
novo papel e as condições para o seu aproveitamento são tratadas
neste capítulo.
As condições de êxito do nível local
Há muitas décadas que são conhecidos na Europa os fatores
de êxito de um governo local, ainda que os outros níveis de governo insistam em não reconhecê-los.
Em 1986, em plena emergência do modo gerencial de governar, Margaret. Tatcher encomendou um estudo sobre a eficácia dos governos locais na Inglaterra para a gestão dos serviços
de assistência social. O objetivo da ilustre governante era poder
demonstrar que a fragmentação municipal era um inconveniente
a superar, e que uma maior eficácia na gestão justificaria a centralização de tais serviços. Com estes propósitos, encarregou um
reconhecido gestor de centros comerciais, Sir Roy Griffiths, para
fazer o informe.
O informe Griffiths, ao contrário do que se supunha, recomendou o reforço dos governos locais. Considerou-se, no informe,
que eles eram o nível mais adequado para gerir as políticas de
assistência social. As razões que expôs não podiam ser mais emblemáticas:
• Os governos locais, por estarem mais próximos do ambiente onde vivem as pessoas, são os que melhor podem
identificar suas necessidades. Note-se que não é uma
proximidade física, mas das relações entre as pessoas e
comunidades com seu entorno social e territorial.
162
Os
governos locais protagonistas na era da governaça
• Também podem desenvolver uma ação mais integral,
coordenando diferentes tipos de serviços para satisfazer
as demandas sociais.
• A partir do nível local, pode-se organizar o voluntariado
e provocar uma resposta social mais ampla às necessidades sociais.
• A partir dos governos locais é mais fácil coordenar a assistência social financiada com recursos públicos e privados.
As vantagens comparativas dos governos locais nos serviços
assistenciais são facilmente estendidas ao conjunto dos serviços
voltados para o bem-estar social. Todas as vantagens observadas
têm um denominador comum: a proximidade. Porém, como já
apontado, não se trata de uma proximidade física – a menor distância da cidadania, que a torna mais acessível –, mas da proximidade que permite um maior conhecimento das relações entre
as pessoas e as comunidades, e com o seu ambiente social e territorial.
A prefeitura como organizador coletivo
A sociedade do conhecimento ou sociedade-rede torna irrelevante a proximidade física dos governos locais, uma vez que as
tecnologias da informação tornam acessíveis qualquer administração a partir de qualquer lugar do mundo. Em troca, reforça até o
mais alto grau a proximidade relacional, porque o fundamental
é a organização e gestão de redes de atores. As tecnologias da
informação incidem na produção de valor, se existe uma organização em rede que permita maximizar suas possibilidades. Neste
sentido, entender a prefeitura como o principal organizador coletivo das redes sociais é o que possibilita seu papel de governo
protagonista na sociedade-rede.
Os
governos locais protagonistas na era da governaça
163
O informe Griffiths é um exemplo de que, já no modo gerencial, a prefeitura poderia ter tido um papel mais importante na
administração do Estado. Para isso, necessitava da transferência
de competências e recursos de outros níveis da administração. Somente com maiores competências e recursos as prefeituras poderiam ampliar a importância do seu papel no modelo de governo
provedor e gestor de recursos. Por isso, na Espanha, e na Catalunha em particular, a ação conjunta dos municípios tem consistido
em alcançar uma segunda descentralização, até hoje não conseguida, de competências e recursos. Sem, de modo algum, negar a
importância da descentralização de competências e recursos para
os governos locais promoverem o desenvolvimento humano, na
sociedade-rede o papel central das prefeituras é determinado por
sua atuação como organizador coletivo, pelo seu impacto na melhoria da capacidade de organização e ação de todos os atores e
pessoas em um território.
O papel das prefeituras consiste precisamente em ir além de
suas competências, sejam elas quais forem, para assumir os desafios
das suas cidades. Nada que aconteça, ou os seus cidadãos necessitem, é alheio a uma prefeitura que tenha adotado a governança
como modo de governar. Sua tarefa não consiste em tentar achar
solução para os recursos que não tem, nem qualquer administração
terá, mas em desenvolver uma ampla ação multidimensional que
implique recursos, geração de uma cultura de ação, organização
comunitária, colaboração interinstitucional e público-privada para
dar uma resposta coletiva, no sentido de que envolve toda a sociedade para a solução dos seus desafios.
Em última análise, as competências e os recursos nas mãos dos
governos locais não são importantes em si mesmos, mas enquanto
instrumento para aumentar a capacidade das prefeituras convocarem os atores sociais e os cidadãos para organizarem os processos
de responsabilização cidadã e parceria público-privada.
164
Os
governos locais protagonistas na era da governaça
O Poder Local: riqueza dos países e regiões
Hoje, depois dos estudos de Jacobs, Sassen, Castells e de tantos
outros, inclusive dos informes do Banco Mundial, parece já estar
estabelecido que as cidades são a riqueza das nações e que a era infoglobal se assenta em um sistema mundial de cidades. Os fluxos de
informação, bens e pessoas que se tornaram mais interdependentes
são produzidos, organizados e distribuídos nas cidades e regiões
metropolitanas.
O que hoje deve ser fixado é que o desenvolvimento dos territórios depende fundamentalmente dos governos locais – municipais e intermunicipais. Seu papel de organizador coletivo das
redes e interações sociais no território é, como já observado, sua
dimensão mais singular e influente no desenvolvimento econômico, social e humano.
A modernização da Espanha é, sem dúvida, a modernização das
suas cidades, e o mesmo poderíamos dizer da modernização da Catalunha.85 Os governos locais na Espanha são os principais responsáveis
pela inovação urbana. É certo que a porcentagem dos recursos públicos nas mãos das prefeituras não chega a 13% do gasto público total,
e é o mesmo desde o início da democracia, após o fim do franquismo. O desempenho das prefeituras na Espanha na transformação das
cidades foi dado pelo seu papel relacional. De fato, os cidadãos foram
aos governos locais com suas reivindicações e demandas, e estes, ao
não disporem das competências e recursos, não puderam responder
diretamente às mesmas. A falta de resposta poderia ter levado à sua
deslegitimação, porém boa parte deles respondeu pondo em marcha
o planejamento estratégico da cidade em conjunto com os principais
atores econômicos, sociais e institucionais. Também foram feitos planos setoriais para promover o bem-estar social, educação, esporte e
85 G. Clark em La gobernanza territorial: un nuevo arte de gobernar. Sevilha: Junta de Andalucía,
2007.
Os
governos locais protagonistas na era da governaça
165
saúde etc., as agendas 21, assim como foram desenvolvidas múltiplas
experiências de participação e envolvimento da cidadania, processos
de cooperação público-privada que, sem conceituá-los deste modo,
serviram para dar início à governança.
Esta tarefa inovadora de protagonizar e articular a construção coletiva da cidade deve ser o principal objetivo dos governos locais,
que desse modo passarão a ser o nível de governo fundamental na
sociedade-rede.
Os municípios autoinssuficientes
Os municípios, como consequência da interdependência de
fluxos de todos os territórios, aumentam o seu nível de autonomia. Não dependem de um único município, seja este capital de
estado ou centro de uma área metropolitana. A multiplicação das
influências territoriais incrementa a autonomia dos municípios,
que podem reestruturar suas relações com diferentes territórios.
Isto, sem dúvida, explica o desenvolvimento de planos estratégicos em municípios de reduzido tamanho populacional.
Porém, ao definir sua estratégia, ainda que não a definam
bem, eles se dão conta de que necessitam da colaboração de outros municípios e regiões para melhorar a qualidade de vida de
sua população. As redes não terminam no município e se estruturam em territórios mais amplos, em função do tema tratado:
bem-estar social, turismo, cultura, segurança etc. Ou seja, o encaminhamento de uma resposta aos desafios sociais requer a colaboração intermunicipal. O município é, na grande maioria dos
temas, insuficiente para dar sozinho uma resposta adequada.
Ele deve ser considerado a unidade básica de um sistema de
redes – regional, macrorregional ou internacional – de cidades que
interagem em uma temática concreta. Gerir a qualidade de vida
da população de um município também é a gestão das relações
externas intermunicipais.
166
Os
governos locais protagonistas na era da governaça
A crescente importância dos governos
intermunicipais
Neste contexto das redes municipais, adquirem grande importância os níveis de administração que têm a responsabilidade pela
promoção e suporte à intermunicipalidade.
No conjunto do Estado espanhol existe uma grande fragmentação municipal e um importante “minifundismo” municipal. Os
Conselhos Provinciais (Diputación), na qualidade de administrações
locais, têm desempenhado historicamente o papel de governo supramunicipal. Os municípios pequenos delegaram aos Conselhos
competências, provisão e gestão de recursos que, pelo seu tamanho, não poderiam assumir. Desse modo, os Conselhos assumiram
competências e serviços que gerenciam para âmbitos superiores a
cada município, atuando como governos supramunicipais.
Os Conselhos Provinciais assumiram ao longo da sua história o
financiamento e a gestão de serviços e equipamentos que na atualidade, na Espanha, são competência dos Estados (Comunidades
Autónomas ou Departamentos). Este fato, juntamente com as políticas de investimento e subvenções dos Conselhos aos municípios,
fez com que muitos estados queiram acabar com os Conselhos por
considerá-los concorrentes. A este motivo se soma ainda o fato
de que o território provincial representa uma divisão territorial
adotada pelo Estado Nacional, e não corresponde à divisão que
alguns estados consideram adequadas a eles. Não é finalidade
deste trabalho entrar neste debate, afirmar a necessidade de um
governo supramunicipal, seja lá que nome tenha. Porém, o que
uma sociedade em rede precisa e, em particular, a governança
territorial também, é sobretudo de um governo intermunicipal.
O governo supramunicipal é necessário para fornecer os equipamentos e serviços de competência exclusivamente municipal e
que um segmento de prefeituras não pode proporcionar a seus
municípios. O governo supramunicipal não é, portanto, uma noOs
governos locais protagonistas na era da governaça
167
vidade. É, simplesmente, uma maneira de dar continuidade à função de prestação e gestão de serviços das prefeituras.
Diferentemente, um governo intermunicipal constitui uma
novidade e é uma dimensão com vocação para prosperar na sociedade-rede. As dimensões da atuação intermunicipal são fundamentalmente as seguintes:
• Estabelecer um marco de referência comum sobre desafios e objetivos a serem desenvolvidos no território, para
que facilite a colaboração entre municípios.
• Produzir espaços de intermediação para articular a cooperação entre prefeituras.
• Fortalecer as aptidões estratégicas, relacionais e organizativas dos governos locais para o desenvolvimento da
governança, tanto no interior de cada território como
nas relações externas com outros atores e níveis de governo.
• Apoiar a liderança institucional das prefeituras e, em especial, de seus prefeitos e prefeitas, para fortalecer sua
capacidade de representação e suas habilidades para
construir o interesse geral em seu território, a partir dos
interesses legítimos dos atores e setores cidadãos.
Os Conselhos, como governos supramunicipais, estabeleceram
relações de hierarquia com as prefeituras. Se bem que sua tarefa consista em apoiá-las no desenvolvimento de suas competências, ao disporem de recursos escassos e terem que priorizar as
ajudas, se estas não são feitas através de instrumentos objetivos,
acabam por gerar relações de domínio e subordinação. Em troca,
a dimensão intermunicipal exige horizontalidade, atuação lado a
lado com as prefeituras, uma vez que se trata de gerar redes de
municípios.
168
Os
governos locais protagonistas na era da governaça
9. A governança do
Bem-Estar Social
Ideias Principais
1. O Bem-Estar Social: vanguarda da governança.
2. É
necessário reestruturar a gestão dos serviços públicos de
bem-estar social na governança.
3. A gestão de redes e a participação cidadã. Eixos estruturantes
do governo relacional.
4. A
participação como envolvimento da cidadania no
dade”.
5. O apoio social às estratégias e políticas.
“fazer ci-
O Bem-Estar Social: vanguarda da
governança
A governança, como assinalamos anteriormente, é a arte de
governar ou modo de governar específico do governo relacional.
Este, por sua vez, é o que emerge com a sociedade-rede, também
denominada sociedade do conhecimento. Hoje a governança se
encontra em uma etapa ascendente, deslocando o caduco modo
gerencial de governar que, além disso, comportou – e, sobretudo,
sua permanência ainda comporta – grandes déficits nas duas grandes dimensões da democracia: a qualidade da representação do
eleito e a participação e colaboração cidadã na gestão da cidade.
O bem-estar social é um setor que está tendo um papel de
vanguarda no desenvolvimento da governança local na Catalunha. Esta afirmação se sustenta na constatação empírica. A cidade
de Barcelona conta com um plano estratégico setorial, o Plano
Integral de Serviços Sociais, primeiro plano que evoluiu no sentido de dar início aos processos de governança democrática. A associação público-privada criada para impulsionar seus projetos foi
definida em 2005, de maneira totalmente pioneira nas políticas
de bem-estar da Catalunha e Espanha, ao passar a definir-se como
associação promotora de governança no âmbito do bem-estar na
cidade. O fórum dos gestores, do qual falaremos mais à frente,
é uma experiência singular e inovadora no âmbito europeu, já
que reúne as pessoas eleitas com responsabilidades de governo
na área do bem-estar social com o objetivo de fortalecer projetos,
conteúdos, técnicas e boas práticas na nova arte de governar.86
O fato de que as políticas de bem-estar social na Província de
Barcelona se encontrem em uma situação avançada para assumir
o desenvolvimento da governança democrática deve-se, entre outras, às seguintes razões principais:
86 Vide nota anterior sobre o fórum. (Nota do tradutor)
170
Governança:
uma nova arte de governar
• O impacto do enfoque do desenvolvimento social comunitário, que teve um importante desenvolvimento nos anos
70 e princípios dos anos 80. Ainda que, posteriormente,
este enfoque tenha ficado subordinado à necessária ordenação e gestão de um importante fluxo de recursos e
serviços que chegaram, a perspectiva do trabalho social
comunitário não se perdeu, apesar de não ter sido favorecida. A governança democrática não tem semelhança
com o trabalho comunitário. A governança é um modo
de governar e o trabalho comunitário é uma dimensão
do trabalho social. Deve-se ter em conta, por exemplo,
que os enfoques teóricos do trabalho comunitário não
contemplam o papel do governo e do político eleito de
uma maneira explícita. Mas, claro, têm em comum a finalidade de que a própria sociedade, em um caso, e
a comunidade, em outro, assuma a realização de seus
próprios desafios.
• É um dos âmbitos do governo local em que se constata
com a maior crueza a impossibilidade de que o crescimento dos recursos públicos satisfaça as crescentes necessidades
sociais. Nasce daí sua disposição para inovar em políticas
públicas.
• A gestão próxima ao usuário e seu entorno social e territorial
permitiu o desenvolvimento do trabalho social como um trabalho relacional, destinado a estabelecer os vínculos entre
os grupos sociais vulneráveis com a comunidade territorial, e os usuários com seu entorno relacional, familiar
e de trabalho. Estas atividades foram denominadas trabalho social comunitário e social sistêmico, respectivamente.
• A tradição de colaboração entre governos locais e ONGs foi
muito maior na Província do que no conjunto da Catalunha e Espanha, o que permitiu a rápida compreensão
Governança:
uma nova arte de governar
171
da necessidade de coordenar atores para gerir projetos
sociais complexos. Por outro lado, permitiu que as organizações sem fins lucrativos fossem contratadas pela
administração para gerir os serviços financiados com
fundos públicos. Em muitos lugares do Estado espanhol
a abertura de processos de terceirização dos serviços significou, desde o começo, a entrada de grandes empresas
comerciais procedentes de setores sem experiência na
área de prestação de serviços sociais.
• Os serviços de bem-estar social, em especial a assistência
social, opuseram maior resistência à cultura empresarial,
própria da última etapa do governo provedor. O trabalho relacionado com as temáticas de alta necessidade
social, pobreza e exclusão, próprias de muitos setores
do bem-estar social, levou à recusa da apropriação lucrativa dos recursos que poderiam ser revertidos a estes
âmbitos de atuação. Esta resistência às empresas de fins
lucrativos e a existência de um importante tecido social
facilitaram a transição rápida do modelo burocrático ao
modelo de governança com pouca influência do modo
gerencial, que provoca uma rejeição na maioria dos
profissionais do setor.
• Uma tradição bem assentada na assistência social é a diferenciação entre demanda e necessidade na atenção à população usuária. Esta distinção que aparecia como conflito no modo gerencial, que entendia a qualidade como
satisfação aos pedidos dos clientes ou usuários, constitui
um bom enfoque para um dos pilares do desenvolvimento da governança, uma vez que esta, como já apontado, distingue entre o que é interesse ou necessidade e
o que é posicionamento ou demanda.
172
Governança:
uma nova arte de governar
A reestruturação da gestão dos serviços
públicos do bem-estar social
A governança, como modo de governar próprio do governo relacional, incorpora, naturalmente, a função de prestação
e gestão de serviços públicos no município. Esta função deve
desenvolver-se, sem dúvida, através dos critérios de eficácia e
eficiência. Entretanto, a gestão de serviços e, em especial, a sua
eficácia e eficiência são reconfiguradas na governança relativamente ao modo gerencial de governar.
O modo gerencial tem como preocupação a improdutividade
dos serviços financiados com fundos públicos geridos burocraticamente, e busca na imitação das empresas privadas os métodos
e instrumentos para melhorar a produtividade e, deste modo,
alcançar um maior número de usuários ou clientes dos serviços
públicos. A eficácia, que se define em realização dos objetivos
(ser eficaz é cumprir objetivos), no modo gerencial de governar
era e é entendida como a cobertura dos serviços, financiados
com fundos públicos, sobre a população potencialmente ou manifestamente demandante. Eficiência, que se define pela relação
entre eficácia e custos, consiste, no modo gerencial, em aumentar a cobertura com o mínimo custo possível.
A aplicação do modo gerencial na área do bem-estar social,
em comparação com outros setores das políticas públicas, era e
é delicada porque o incremento da cobertura não necessariamente significa a satisfação das necessidades dos usuários, que é
o verdadeiro objetivo das políticas sociais. Assim, por exemplo,
ainda que exista uma relação direta entre pessoas vacinadas e
a prevenção de uma enfermidade, o aumento do número da
cobertura dos serviços à infância não significa, que tenha sido
reduzido o risco de exclusão ou sua dependência psíquica ou
sua vulnerabilidade social. Isto depende de como se trabalha no
serviço e, logicamente, de haverem sido definidos com clareza
Governança:
uma nova arte de governar
173
os objetivos do mesmo e feita a sua avaliação com sistemas de
indicadores adequados.
Um dos principais problemas das políticas sociais é que se
passou de um sistema de gestão burocrático, baseado em procedimentos administrativos e com funcionários públicos, à terceirização através de licitações, em que a produtividade é o critério
dominante. A uma crítica injusta à gestão por procedimentos
burocrático-administrativos (que ainda que não sirvam para gerir serviços, mantêm a função da garantia de direitos e de racionalidade legal) se juntou a exaltação de tudo que procede do
mundo dos negócios.
Na governança, ainda que admitindo que o aumento de cobertura se relacione diretamente com a satisfação da necessidade
do usuário, como no caso de alguns serviços em domicílio dedicados a pessoas com grandes dependências permanentes, o critério
de eficácia não é o mesmo do modo gerencial. Não é simplesmente o incremento da cobertura, mas o impacto do serviço na
capacidade de organização e ação do conjunto da cidadania para
satisfazer ou dar respostas às necessidades e desafios sociais. Isto
é, o que a governança exige como critério de eficácia ou, o que é
o mesmo, como cumprimento de objetivos próprios do seu modo
de governar, é que a prestação e gestão de serviços financiados
com fundos públicos tenham uma dimensão comunitária. Que
contribuam para melhorar a capacidade de resposta do conjunto
da sociedade. Na governança é preciso exigir da gestão dos serviços a complementaridade com outros serviços do município, para
formar redes de atuação público-privadas sob a responsabilidade
pública, assim como o envolvimento comunitário de famílias e
usuários em ações de melhoria do capital social, ou, em termos
mais tradicionais, de desenvolvimento comunitário.
O esquema que diferencia o modo de governar gestor ou gerencial da governança aplicado à área do bem-estar social é o
seguinte:
174
Governança:
uma nova arte de governar
Esquema gestor
Esquema gorvenança
Desenvolvimento
social
Desenvolvimento
social
Infraestruturas
e serviços
Participação
desenvolvimento
comunitário
Políticas Bem-estar Social
Infraestruturas
e serviços
Capacidade de
organização
Políticas Bem-estar Social
Damos-nos conta de que a prestação de serviços públicos deve
impactar o desenvolvimento comunitário, e, por isto, o envolvimento social é um critério essencial para abordar a eficácia dos
serviços na perspectiva da governança.
A eficiência se relaciona diretamente, na governança, com o
custo dos serviços que não são eficazes. Quer dizer, que incidem
diretamente tanto na satisfação das necessidades dos usuários
como no desenvolvimento da capacidade da comunidade no território em que se situam.
Em qualquer política pública em um governo relacional, a governança – e, naturalmente, a área de bem-estar social – responderia ao seguinte esquema:
Governança:
uma nova arte de governar
175
Governança Territorial: nova
arte de governar
(1)
Âmbito legalburocrático
(2)
Gestão relacional
ou estratégia
Capacidade de organização do
território
Progresso econômico
e social
(3)
Provisão e
gestão de
recusros
(1)
(1) A posição da função de âmbito legal gerida pela burocracia profissional e a provisão
da gestão e recursos gerida por profissionais
não burocráticos são suporte de gestão estratégica. A linha pontilhada (2) significa que a
gestão relacional e de recursos têm que responder à legalidade e normas democráticas.
A seta (3) significa que os recursos próprios
devem articular-se nos objetivos da gestão
estratégica.
Assim, temos um âmbito de legalidade para garantir os direitos de todos os cidadãos, dirigido por funcionários, isto é, por
trabalhadores especialmente protegidos das mudanças políticas e
institucionais para garantir ao máximo a neutralidade e adequação à lei dos procedimentos de contratação, participação e colaboração interinstitucional e público-privada. É de se supor que a
participação e colaboração serão as áreas de maior desenvolvimento normativo na governança.
Uma prestação e gestão de serviços que não impactará somente na melhoria dos índices de cobertura, mas especialmente
na capacidade do desenvolvimento comunitário.
O âmbito relacional, que assume na governança o papel estrutural de todas as funções de governo, é o que terá maior nível de
176
Governança:
uma nova arte de governar
desenvolvimento, uma vez que consiga apoiar-se em um conjunto
de metodologias e técnicas específicas que constituem a gestão
relacional.
No âmbito da função de prestação e gestão de serviços, a
passagem do modo gerencial para a governança deve significar a
promoção das seguintes mudanças mais importantes:
• De perspectiva: será contemplado, por parte do governo, o conjunto da oferta de serviços de bem-estar social
no território.
• De concepção da qualidade: será priorizada a qualidade
das redes – a intensidade e qualidade das interações entre serviços para assegurar uma ação integral.
• De contratação de serviços: importância da gestão comunitária.
A visão do conjunto da oferta de serviços
do território
Ao centrar-se em objetivos para o conjunto da população do
território e, a partir daí, gerir as interdependências de todos os
atores que atuam em uma situação social, o governo local, na
governança, não apenas se fixará na oferta de serviços específicos,
mas no conjunto da oferta de serviços no município e sua área de
influência. E, no mínimo, tentará articular os atuais e futuros prestadores para que, em conjunto, possibilitem que sejam alcançados
os objetivos de cobertura para toda a população do município.
É próprio do modo gerencial de governar atender apenas
o percentual da população que será coberto pelos recursos públicos oriundos do município, sejam estes próprios ou obtidos
por transferência de outros níveis da administração. Assim, por
exemplo, um planejamento municipal pode indicar um objetivo
de cobertura para os serviços de assistência em domicílio finanGovernança:
uma nova arte de governar
177
ciados pelo município que alcance 4% da população alvo e, na
verdade, só atingir os 2%. A partir dessa defasagem definirá,
com data precisa e possível – digamos, quatro anos –, o incremento de recursos próprios e das transferências de outras administrações para conseguir o aumento da cobertura.
Esta forma de atuar dos governos locais, tão centrada na atividade setorial e no impacto populacional que pode obter, desconsidera o nível de cobertura necessário para o conjunto da
população que depende do município, esquecendo que foram
escolhidos como representantes por todos os cidadãos para cuidar
da satisfação de todos, e não só daqueles aos quais pode chegar
através de sua ação setorial.
Um governo relacional se fixará nos níveis de cobertura a serem alcançados no conjunto do município e buscará articular e
coordenar com todos os atores as medidas necessárias para tal.
É preciso um planejamento compartilhado e também uma gestão das interdependências dos atores para atingi-los. Assim, no
mesmo município do exemplo anterior, detecta-se que o nível de
cobertura necessário é de 6%, a oferta financiada é logicamente a
mesma, 2%, mas na nova perspectiva identifica-se que outros 2%
são cobertos pela iniciativa social e privada, e, além disso, 75% da
população dependente está sob o cuidado de familiares. No novo
modo de governar, o que procede é constituir um grande acordo
estratégico entre a prefeitura, a iniciativa social e empresarial e
os demais níveis de governo para desenvolver ações coordenadas
destinadas a alcançar os 6% de cobertura necessários.
A aplicação da “Lei de Promoção da Autonomia Pessoal e Atenção a Pessoas em Situação de Dependência”, denominada coloquialmente “Lei da Dependência”, está significando um aumento
da oferta de serviços nos municípios. Dada a procedência distinta
dos fundos públicos, a terceirização da gestão dos serviços e o incremento da variedade dos mesmos, torna-se necessário assegurar
a coordenação e a complementaridade da oferta de serviços. Não
178
Governança:
uma nova arte de governar
fazê-lo (a capacidade de conseguir maior bem-estar pelo aumento
da oferta) diminuirá em função da muito provável fragmentação
da oferta. A tarefa de liderar a constituição de um marco referencial para a colaboração e complementaridade dos serviços no
município é um novo tipo de ação que corresponde à prefeitura,
para o que necessitará de nova capacidade de organização.
Um objetivo se destaca de maneira especial na governança: a
oferta de serviços públicos deve contribuir para o fortalecimento
da sociedade civil e, em particular, de sua capacidade para assumir maiores responsabilidades sociais. As políticas de oferta de
serviços públicos devem contribuir para a melhora da qualidade
de vida da população com necessidades e também dos familiares
e vizinhos que assumam tarefas de solidariedade social.
Trata-se de evitar que o compromisso social da sociedade civil
seja debilitado por uma configuração inadequada de políticas de
bem-estar social. Um exemplo de má política se produziu em alguns municípios da Província de Barcelona, ao contratarem externamente, sem analisar as redes sociais do território, e com fundos
públicos, a figura dos profissionais de atividades recreativas para
a infância nos bairros (monitores), cujo efeito foi o contrário do
que se pretendia: destruíram a atividade profissional, e também a
voluntária, que se desenvolvia nas paróquias e entidades de moradores. O conjunto da oferta para a infância diminuiu. Em troca,
a introdução dos serviços municipais que dão suporte às famílias
acolhedoras, denominadas “respir”,87 está favorecendo a incorporação de pessoas acolhedoras e a qualidade de sua atenção, ao
disporem de diversas atividades para as pessoas assistidas. Deste
modo, familiares e voluntários acolhedores podem combinar suas
atividades cotidianas com a solidariedade familiar e de vizinhos.
87 Centros de descanso de curta permanência para idosos ou pessoas com problemas físicos
ou psíquicos, para dar um tempo para "respirar" aos familiares que se encarregam do seu
cuidado, para permitir-lhes tirar férias, alguns dias de descanso ou mesmo um dia para
cuidar de algum assunto pessoal. (Nota do tradutor)
Governança:
uma nova arte de governar
179
A qualidade das redes: as marcas de
garantia
O novo modo de governar implica integralidade na concepção
das necessidades das pessoas e, portanto, precisa da articulação
do conjunto de serviços para que representem uma oferta de qualidade. Em outras palavras, que o conjunto de serviços públicos e
de iniciativa das organizações sociais possa cobrir todas as necessidades das pessoas, no caso em que elas sejam de natureza pública
– objetivo das políticas sociais.
Uma pessoa com necessidade de assistência em um momento
determinado pode precisar de ajuda domiciliar e teleassistência.
Em outro momento, pode precisar do seu ingresso em um centro
de descanso, ou em uma residência assistida e, outra vez, de uma
assistência domiciliar etc. A atenção integral, portanto, precisa de
uma coordenação de serviços baseada na qualidade. Dado que a
oferta de serviços para propiciar a atenção integral em um município se acha fragmentada em uma pluralidade de instituições,
torna-se necessário o estabelecimento de uma marca que englobe
o seu conjunto.
Na Espanha, as autoridades portuárias são exemplos do bom
funcionamento de uma marca. Os portos precisam, para sua competitividade, assegurar objetivos, como garantir, por exemplo,
que um carregamento de calçados chegue a seu destino no prazo
de sete dias. Para conseguir isto, um porto precisa coordenar a
ação de diferentes operadores e atores, tanto na cidade de origem como no destino: consignatários, transportadores, agentes
aduaneiros, empresas de contêineres, estivadores, rebocadores,
operadores ferroviários, entre outros.
Para alcançar tal coordenação, organiza-se uma marca de qualidade. A marca tem um conselho de direção formado pela autoridade portuária, o Estado e a prefeitura da cidade. Os operadores
também integram a marca, desde que cumpram uma série de
180
Governança:
uma nova arte de governar
condições e compromissos operacionais. Por sua vez, os clientes
que contratam os serviços da marca têm a garantia do cumprimento dos mesmos. Em caso de descumprimento por parte de
algum operador, a marca impõe as sanções previamente estabelecidas e, se reiterada a falha, cabe a sua expulsão.
Para a articulação de serviços, a qualidade é insuficiente – o
procedimento das normas ISO e a metodologia EFQM se centram
na qualidade no interior de cada serviço. As marcas de qualidade
podem exigir de cada operador tais normas, mas elas garantem a
qualidade de cada serviço e, também, a sua coordenação.
Em uma oferta de serviços de bem-estar social, cada vez mais
ampla e fragmentada, é preciso uma ação dos governos locais
apoiados pelos demais níveis de poder para promover e dirigir
uma marca de qualidade em um território.
Uma marca de qualidade em serviços de bem-estar social deverá, no mínimo, dispor dos seguintes elementos:
• Um serviço de recepção de novos sócios que solicitem
ingressar na marca de qualidade.
• Exigências mínimas de funcionamento interno para cada
um dos serviços distintos incluídos na marca.
• Uma identificação dos compromissos de coordenação
entre cada tipo de serviço.
• Um serviço de queixas e reclamações próprio da marca
de qualidade para usuários, familiares e vizinhos.
• Uma normativa de bonificações e sanções, inclusive expulsão, para os serviços que não cumpram as regras.
• Uma política de comunicação e divulgação da marca de
qualidade para a cidadania e entidades sociais.
As marcas de qualidade são, sem dúvida, um claro instrumento de gestão relacional, de governança. Através deste instrumento,
o governo local assume um papel de maior relevância social como
Governança:
uma nova arte de governar
181
fiador da qualidade e da atenção integral do que desempenhava
como simples prestador ou gestor de determinados serviços.
Na governança, a responsabilidade pública não somente consiste em responder pela qualidade dos serviços financiados com
recursos públicos, mas, e fundamentalmente, em responsabilizarse pela resposta coletiva aos desafios e necessidades sociais da população, e garantir a qualidade da atenção integral dos usuários
dos serviços.
As marcas de qualidade começam a ter uma clara expansão
quando são aplicadas no âmbito turístico, assistência sanitária,
nas instalações esportivas, no transporte coletivo intermodal de
passageiros etc., e, em breve, seguramente, serão aplicadas nos
serviços de bem-estar social na Província de Barcelona.
É preciso que se vá preparando para o futuro das marcas de
qualidade na área do bem-estar social, assim como também para
organizar a oferta de serviços com critérios de governança, isto é,
para que tenham um impacto positivo na capacidade de organização e resposta comunitária. Deve-se iniciar de modo imediato a
revisão dos critérios de adjudicação nas licitações públicas para a
contratação externa dos serviços de bem-estar social.
A contratação externa para a gestão de
serviços com base no desenvolvimento
comunitário
A experiência da gestão burocrática de serviços, cuja crítica e
superação deu origem ao modo gerencial, é suficiente para pensar
que a gestão pública dos serviços de assistência social não seja
direta, através de profissionais da administração, mas por terceirizados contratados externamente. Por outro lado, a complexidade
de situações e necessidades sociais requer uma ampla gama de
profissionais e uma grande capacidade de adaptação e, portanto,
de flexibilidade, que fazem com que uma organização burocrática
182
Governança:
uma nova arte de governar
– no sentido de que sua finalidade é zelar pela legalidade, tem
natureza necessariamente normativa e é protegida para garantir
direitos – não possa assumir a gestão destes serviços.
A governança exige contratação externa dos serviços financiados com recursos públicos em igual ou maior proporção do que
no modo gerencial, mas será preciso suprimir e introduzir critérios
de prioridade nos processos de contratação externa. Em especial,
os seguintes:
• Um critério essencial para a terceirização, que já podia
ter sido estabelecido no modo gerencial, é o de definição dos objetivos de impacto na população usuária.
A identificação destes objetivos permite a medição posterior de resultados nos serviços sociais, e levam a não
pressupor que um incremento de produtividade seja
suficiente para aferir a eficácia no cumprimento de objetivos de fortalecimento da autonomia pessoal ou de
inserção social. É muito importante recordar que se eficiência é um cociente em que o numerador é a eficácia
e o denominador é o custo, no caso em que a eficácia
tenda a zero, por mais produtivos e de baixo custo que
sejam os serviços, a eficiência será zero. Este resultado
é com bastante frequência esquecido por aqueles que
se consideram entusiastas da produtividade em serviços
sociais, uma vez que, se não há resultados, de nada serve a produtividade ou o baixo custo das atividades ou
serviços ineficientes.
• Parece óbvio que, na contratação externa de serviços
sociais, o fundamental seja a existência de cláusulas perfeitamente mensuráveis através de indicadores, tanto
para identificar as características das entidades a serem
contratadas e garantir sua responsabilidade social como
para regular e controlar a qualidade da atenção na atividade dos serviços e medir os resultados. Ao contrário do
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uma nova arte de governar
183
que é hoje prática habitual, a variável custo na contratação de serviços na área de assistência social só deveria
pontuar na adjudicação no caso de um hipotético empate na pontuação dos critérios de qualidade na atenção e
nos resultados sociais propostos a serem alcançados.
• Só pela pequena capacidade de inovação pode-se entender que na gestão dos serviços públicos, ainda hoje,
persistam critérios econômicos próprios do industrialismo, que, entre outros, considera em sua contabilidade
as pessoas como gasto e os equipamentos e máquinas
como ativo.
• À parte deste critério de racionalidade própria de qualquer tipo de gestão dos recursos públicos, a gestão relacional – ou de interdependências própria da governança
– exige uma série de outros critérios para que a prestação dos serviços repercuta positivamente na geração de
tecido social, ou no seu fortalecimento, e na adaptação
à diversidade social própria do território. Só desse modo
conseguirá os resultados essenciais e a articulação necessária com as políticas de desenvolvimento comunitário e
as políticas públicas do território.
• A coordenação com os serviços sociais e pessoais do território para estabelecer uma cobertura na rede que permita uma resposta integral aos desafios sociais através
da complementaridade dos serviços.
• A dimensão comunitária da gestão do serviço, de tal
modo que facilite a máxima inserção dos usuários e familiares em associações e movimentos de interesse social. São muito destacados na Província de Barcelona os
serviços geridos por associações dedicadas à assistência
a pessoas com dependência física e psíquica, assim como
os dedicados à prevenção e assistência aos dependentes
químicos, em que se canaliza a participação de pessoas
184
Governança:
uma nova arte de governar
usuárias e familiares para as tarefas de voluntariado para
a prevenção de riscos e à ajuda mútua.
• A contribuição ao desenvolvimento da cultura cívica no
território e, deste modo, contribuir para a geração de
capital social.
Dado que “o traje não faz o monge”, não se pode concluir
que as entidades sem fins lucrativos sejam as depositárias da contratação externa dos serviços em um governo relacional. Porém,
parece razoável que não sejam empresas ou entidades sem finalidades nem práticas sociais, nem muito menos as que procedem
de setores como construção civil, construção de estradas, canais e
portos ou com especialidade na coleta e tratamento de resíduos
sólidos, para citar alguns exemplos reais, as que consigam maior
pontuação nos processos licitatórios de serviços sociais públicos.
Esta é, no mínimo, uma prova da confusão de critérios a que se
pode chegar na gestão pública. E, sem dúvida, constitui uma prova da permanência do modo gerencial baseado na denominada
escola da “Nova Gestão Pública”, que optou pela imitação das
empresas privadas, em vez de inovar na gestão pública, que é do
que realmente se trata.
A gestão de redes e a participação cidadã
A gestão relacional – ou seja, das relações sociais que constroem a sociedade propriamente dita, já que esta é uma configuração espaço-temporal de relações sociais que se localizam em um
território – é o instrumento fundamental da governança democrática, como observamos anteriormente.
A gestão relacional tem duas dimensões fundamentais: a gestão de redes ou das interdependências88 propriamente ditas e a
88 Ver M. Castells, La Galaxia Internet. Barcelona: Ed. Plaza y Janes, 2001, pp.15 a 29.
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participação cidadã, à qual podemos agregar uma terceira, que é
o apoio social às estratégias e políticas públicas.
Por redes entendemos uma série de nós interconectados. Os
nós não são em temas sociais homogêneos, pois têm uma importância desigual ou assimétrica. Uma situação social tem a configuração de rede se esta depende da interação de um conjunto de
atores e seu desenvolvimento ou evolução depende da dinâmica
que estabeleçam de maneira consciente ou inconsciente entre si.
Neste sentido, ainda que não se tenha atuado em consequência
disso, toda questão social é uma questão de redes ou de interdependências de atores.
As redes sociais têm um sentido mais forte que as interações
sociais. Tudo interage com tudo, mas a rede se distingue porque
existe uma clara interdependência de um número reduzido de
atores para enfrentar um desafio ou uma situação social.
De maneira semelhante, um projeto em rede significa que a
realização do mesmo depende da ação de diferentes atores que
contribuem com recursos econômicos ou humanos para a realização do mesmo, e sem eles a realização não seria possível.
As redes, portanto, implicam horizontalidade para poder identificar os interesses e desafios dos distintos atores, articular estes
interesses de maneira complementar em estratégias, projetos, e
compromisso de ação para realizá-los.
O exercício da liderança na gestão de redes por parte do governo local significa a possibilidade de criar e programar redes em
função de distintos objetivos sociais compartilhados, e, por outra
parte, a capacidade e habilidade para conectar distintas redes de
atores de tal modo que compartilhem objetivos e possam dispor
de um maior volume de recursos para os seus objetivos.
Na opinião de Castells, a importância de um nó em uma rede
depende de sua capacidade de contribuir para os objetivos da
186
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rede.89 Em nosso caso, em uma rede de atores, a liderança política é alcançada pela capacidade de representação dos distintos
interesses e pelo desenvolvimento das habilidades para realizá-los
através de políticas e projetos.
Na perspectiva da governança, enfrentar um desafio ou um
projeto significa a necessidade de convocar todos os atores, mas
não todos os setores ou organizações que têm a ver, quer dizer,
que serão direta ou indiretamente beneficiados ou prejudicados
pelo mencionado desafio ou projeto. As redes, como observado,
agrupam atores interdependentes – organizações e pessoas que
têm tanto a capacidade para desenvolver o projeto como para impedir que este atinja seu objetivo. Falamos de interdependências
de rede ou, inclusive, de cooperação público-privada e institucional só nestes casos.
A colaboração que a partir do governo local deve ser estabelecida considera, no mínimo, os seguintes âmbitos:
• As relações intergovernamentais: tanto com governos de
distintos níveis territoriais como multilaterais com governos do mesmo nível, sejam intermunicipais ou interregionais.
• As relações com grandes instituições: universidades, centros de pesquisa e desenvolvimento, câmaras de comércio, fundações culturais e educativas de prestígio, igrejas
etc.
• As relações com o setor econômico privado: setores econômicos produtivos e financeiros, empresas de capital de
risco, confederações e associações empresariais etc.
• As relações com agentes sociais e profissionais: sindicatos, associações profissionais, associações de moradores,
movimentos sociais importantes etc.
89 M. Castells, La Sociedad Red: una visión global. Madri: Ed. Alianza, 2006, p. 27.
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187
A gestão relacional não é apenas gestão de redes, pois incorpora também a dimensão participativa. Do contrário, ela seria
uma gestão excludente, uma vez que as organizações ou setores
com pequeno poder de ação ou reação não seriam levadas em
conta. O que nos assegura de que estamos falando de governança
democrática, de uma construção do interesse geral, é a dimensão
participativa, o fato de contar com todos os setores envolvidos e
interessados. A distinção entre gestão de redes, participação cidadã e apoio social a políticas ou projetos é muito importante devido a suas consequências práticas. Uma indiferenciação dificulta a
operacionalização da governança.
A participação como envolvimento da
cidadania na construção da cidade
Em um sentido amplo, a gestão de redes e a política de apoio
social podem ser entendidas como participação cidadã. Mas aqui,
justamente para dar maior capacidade operacional à governança e
seu principal instrumento, a gestão relacional, será preciso mais.
Entende-se por participação cidadã o processo de envolvimento do conjunto de setores da sociedade através de entidades
e organizações sociais, que não são propriamente atores em um
âmbito concreto. O objetivo principal é conhecer seus interesses,
desafios e necessidades para poder diferenciá-los dos seus posicionamentos.
A participação cidadã implica necessariamente a criação de
espaços de cidadania para a deliberação. Estes espaços devem ser,
por sua vez, flexíveis e bem organizados, com metodologias rigorosas e bem orientadas para o objetivo de identificar, sistematizar
e dar prioridade aos interesses e necessidades sociais.
A participação da cidadania tem um impacto básico na capacidade de organização e ação que a gestão relacional persegue
188
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– a articulação de uma ampla rede social e o fortalecimento do
capital social.
Por capital social se entende o conjunto de redes que as pessoas podem formar para resolver problemas comuns. São redes
de compromisso cívico como entidades esportivas, associações de
moradores e culturais etc. Quanto mais densas são estas redes,
maiores as possibilidades de que os cidadãos cooperem para gerar oportunidades comuns de bem-estar.90 Construir capital social
requer conhecimento do “outro”, a geração e preservação da confiança e compromisso de atuar conjunta e coordenadamente.
A participação cidadã é entendida como um conjunto de processos que têm por finalidade o envolvimento da cidadania no
desenvolvimento da cidade, isto é, que cidadãos se sintam parte
da cidade. Participação não é, na governança, um simples processo para canalizar demandas, sugestões ou recomendações à
administração municipal. Trata-se de que as pessoas reconheçam
sua importância no passado, presente e futuro da cidade e se responsabilizem pelo andamento da mesma. Participação é compromisso e colaboração cidadã.
No modo gerencial de governar, também encontramos processos de participação, mas neste caso se dirigem à administração
como clientes e usuários, para que esta melhore a prestação e
gestão de recursos e serviços. Assim, encontramos processos participativos para fazer recomendações e sugestões em:
• Análise das situações sociais.
• Programas para a gestão pública.
• Serviços que se adaptem às necessidades dos usuários.
• Realização de serviços públicos.
• Avaliação de resultados.
90 Ver D. Putnam, Making Democracy Work: Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton
University Press, 1993. p. 125.
Governança:
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189
Na governança, estes processos são uma dimensão subordinada. O importante é criar espaços, como fizeram muitos planos
estratégicos, em que o cidadão descortina o conjunto do território
e não apenas a oferta municipal ou pública, e se coloca em uma
situação de corresponsabilidade.
Para finalizar esta seção, é importante observar que muito
frequentemente ocorrem erros na concepção dos processos participativos, que levam à inoperância dos mesmos e debilitam a importante contribuição da participação cidadã à democracia local e
como dimensão que não só completa mas qualifica a democracia,
que é fundamentalmente representação. Entre os principais erros,
encontramos:
• Confunde-se participação com elaboração de estratégias
ou de projetos. A elaboração de estratégias e projetos é
uma tarefa complexa e precisa, de rigor técnico e conceitual, pelo que não se pode deixar esta tarefa aos processos participativos. Tal como já observado, os processos
participativos devem identificar desafios e interesses, e
estes são o principal insumo para a elaboração de estratégias. O contrário significaria obter estratégias e projetos sem legitimação nem apoio social, e o processo de
elaboração não teria impacto na melhoria da capacidade de organização.
• Atribui-se erroneamente à participação cidadã a aprovação das estratégias e projetos. De fato, a participação
irá referendar e dar consentimento majoritário à estratégia e, sobretudo, aos projetos. Mas a aprovação dos
mesmos depende dos atores que têm capacidade para
levá-los a termo. A aprovação participativa de projetos
sem o compromisso prévio dos atores relevantes para a
sua execução não traz a garantia de que estes serão concretizados, com o que se produz uma importante frustração de expectativas nas pessoas e uma desconfiança
190
Governança:
uma nova arte de governar
nos processos participativos. Desconfiança que surge de
serem propostas aos participantes deliberações que não
lhes dizem respeito. Dos processos participativos podem,
sim, sair critérios de atuação que orientem a ação política e a gestão de redes.
• Juntamente com o ponto anterior, verificamos que os
processos participativos se colocam como o lugar adequado para a tomada de decisões que correspondem à
atuação dos eleitos e, de fato, reivindicam substituir os
órgãos de representação política. Este é um erro de graves consequências democráticas, uma vez que qualquer
processo participativo é setorial-corporativo. A convocação para os processos participativos se subordina a temas predefinidos e os participantes, quando muito, representam suas organizações, e não são escolhidos pelo
conjunto da cidadania. Considerar estes processos como
substitutos das instituições surgidas de votações gerais é,
sem dúvida, uma atitude antidemocrática e só explicável
em situações em que os processos eleitorais tenham sido
corrompidos.
• Não se distingue com clareza duas dimensões da participação. A participação cidadã na elaboração de políticas municipais financiadas com recursos públicos da
participação cidadã no “fazer cidade”, em fazer parte
de organizações sociais, desportivas, culturais, de moradores etc., de adotar comportamentos cívicos e, naturalmente, da participação eleitoral. Ambas são importantes e se condicionam mutuamente, mas os métodos
para o seu desenvolvimento são distintos e, sem dúvida, a segunda dimensão é determinante.
A participação cidadã na elaboração e monitoramentos das
políticas, em condições de normalidade democrática, qualifica
a democracia. Por isto, sua finalidade deve ser concebida de tal
Governança:
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191
modo que favoreça a participação eleitoral e o interesse pelo monitoramento da política. Um dos principais indicadores dos processos de participação cidadã (embora não dependa apenas da
participação) deveria ser o aumento da participação eleitoral, o
interesse pela política e o prestígio da figura do representante político.
O apoio social às estratégias e políticas
O apoio social frequentemente engloba a participação, mas
tem finalidades próprias. Aqui não se trata de identificar os interesses dos distintos setores da sociedade, mas de buscar o apoio
social às estratégias e projetos. Dito de outro modo, trata-se de
promover e dar visibilidade ao apoio da cidadania.
Uma das regras principais da eficácia do marketing de cidades
é que não se pode dar visibilidade ao que não se tem, isto é, o
marketing urbano deve assentar-se nas qualidades que efetivamente existem no território. Da mesma maneira, os métodos para
conseguir o apoio estão destinados ao fracasso se as estratégias ou
projetos não correspondem aos interesses e necessidades expressadas ou sentidas pela população.
Sem a existência prévia da participação cidadã, no sentido anteriormente dito, dificilmente se conseguirá um amplo
apoio social. Muito embora sejam necessárias medidas que
vão muito além dos processos participativos para se alcançar
um amplo apoio social.
Ainda que existam eventos que combinam com êxito um amplo processo de participação com a visualização do apoio social,
como no caso das conferências de exploração estratégica, ambos
os processos devem ser pensados de maneira diferenciada.91
91 Trata-se de uma metodologia criada pela equipe da “Estrategias de Calidad Urbana”; ver
www.equ.es
192
Governança:
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Conseguir um amplo apoio social é básico para uma estratégia
de futuro, porque proporciona a coesão da base social que pode
sustentar as mudanças sociais envolvidas.
A visibilidade do apoio social constitui, por sua vez, uma “demonstração de força” para os promotores das estratégias, políticas
e projetos e, ao mesmo tempo, serve para dar a eles a coesão
necessária para empreender as ações.
Para conseguir um apoio social é necessária, sem dúvida,
uma política de comunicação e difusão da estratégia ou dos projetos estruturantes. Embora este não seja um livro de técnicas
sobre políticas de comunicação urbana, é preciso dizer que a
comunicação para a sociedade com o objetivo de conseguir um
forte apoio deve enquadrar-se em uma cultura que promova o
envolvimento da cidadania, e não a simples aceitação. Para isto,
a comunicação deve ter duas dimensões: comover e convencer.
O convencimento virá dos conteúdos estratégicos e da facilidade
com que possam ser explicados. Para comover é preciso comunicar valores, muito especialmente os seguintes:
• O sentimento de enraizamento e de identidade com a
cidade, que deve ser fortalecido como instrumento para
gerar responsabilidade social e predispor para ações voluntárias e solidárias para com os outros.
• A autoestima cidadã para enfrentar os desafios do futuro
com esforço, porém com confiança.
• O sonho realista em relação ao futuro, se as ações individuais são inseridas na tarefa coletiva; trata-se de valorizar a contribuição cidadã no trabalho coletivo.
• A união entre tradição e modernidade na cidade, para
articular todos os setores da cidadania em uma mesma
perspectiva de futuro, que será aquela que olhe o passado com os olhos de futuro.
A gestão de rede de atores, combinada com um amplo
processo de participação cidadã e de apoio social, inseridos
Governança:
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193
todos os três em um marco estratégico, articula a coesão social prévia e necessária para que se produza o desenvolvimento humano na cidade.
A organização municipal necessária para a
governança democrática
Em uma organização municipal cujo foco principal seja a prestação de serviços e a gestão de recursos, o principal apoio para o
político com responsabilidades de governo é um gerente ou uma
gerente de serviços com especialidade em gestão. É comum que
esta pessoa de apoio seja especializada em administração de empresas – é o que já mencionamos como o modo gerencial.
Na governança democrática, em que a gestão municipal sofre
uma importante transformação, também os organogramas passam a ser modificados. O principal apoio ao prefeito serão as pessoas especializadas em gestão relacional. Isto porque se trata de
direcionar a gestão dos recursos e serviços no sentido de apoiar
a melhoria da capacidade de organização e ação da cidade ou
município.
Nas prefeituras que optam pela governança, se produz uma
mudança no peso específico dos profissionais e departamentos. As
mudanças de organograma dependem do tamanho e complexidade das prefeituras e áreas municipais. Porém, com a exceção do
topo da estrutura executiva, que é assumido por uma pessoa com
enfoque e capacidade nas técnicas de gestão relacional, nestes governos locais já se observam tendências para a organização municipal da governança como:
• O surgimento dos departamentos de participação e cooperação cidadã que dependem diretamente do prefeito
ou secretário responsável por uma área de atuação. Logicamente a participação não é entendida apenas como
participação na elaboração e monitoramento das polí194
Governança:
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ticas municipais, mas como participação na cidade, nos
processos de melhoria da coesão social.
• Uma concentração em um só departamento subordinado ao líder político de profissionais com responsabilidade na definição e promoção de estratégias, participação
e comunicação cidadã, assim como dos programas ou
projetos interdepartamentais.
• Uma importância maior para as políticas transversais e,
sobretudo, para a gestão das interdependências de departamentos para alcançar objetivos sociais.
Em geral, os departamentos e áreas são definidos por prestações de serviços: esportes, ensino, serviços sanitários e serviços
sociais. O que ocorre é que alguns não se definem pelo tipo de
benefícios e serviços que prestam, mas por objetivos de impacto
na população, e se denominam, por exemplo, saúde em vez de
serviço sanitário, educação em vez de ensino, ou inclusão social
em vez de serviços sociais etc., que são objetivos compartilhados
por outros sistemas de serviços e benefícios.
A gestão relacional vai além da transversalidade. A transversalidade das políticas, como por exemplo a promoção da igualdade de gênero, tem como finalidade que os departamentos, áreas
etc., isto é, as estruturas verticais, compartilhem a consecução de
um objetivo comum sem que seja objetivo de nenhuma delas em
particular. A transversalidade exclui a gestão operacional, os órgãos transversais não participam de projetos operacionais, apenas
monitoram o impacto produzido na sua finalidade. Todavia os objetivos sociais de impacto, como “dar cobertura às necessidades
básicas” ou “reduzir as desigualdades em capital educacional ou
cultural”, exigem a articulação de diferentes sistemas de benefícios: serviços sociais, serviços sanitários, ensino, moradia etc., mas
neste caso se necessita de uma gestão de tipo operativo interdepartamental e interinstitucional; por esta razão, fala-se de gestão
das interdependências.
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Estas tendências irão se configurando de maneira progressiva
na maioria dos governos locais e nos departamentos de bem-estar
social ou serviços sociais, em especial, dada a falência do modo
gerencial como consequência da mudança das condições econômicas e sociais que o fizeram surgir.
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Governança:
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Referências selecionadas
Abaixo são indicadas as referências bibliográficas e páginas
eletrônicas mais diretamente relacionadas à temática do livro e
possivelmente úteis ao leitor que queira se aprofundar na mesma.
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é uma parceria público-privada dedicada à promoção da goverReferências
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nança na área do bem-estar social na cidade de Barcelona. É interessante pelos seus documentos e projetos que promovem esta
nova forma de governar.
www.aeryc.org AERYC (América-Europa de Regiones y Ciudades),
é um movimento internacional que tem como finalidade o desenvolvimento da governança territorial. A página eletrônica contém,
entre outros temas de interesse, os livros com as principais conferências e apresentações de suas conferências anuais, assim como
boas práticas em governança. São de especial interesse, por sua
singularidade, os temas de gestão regional através dos sistemas de
cidades e as conclusões de suas conferências anuais.
www.diba.es/servsocials É interessante para o conhecimento dos
programas de apoio das políticas de bem-estar social às iniciativas
locais na Província de Barcelona.
www.iigov.org É a página do Instituto Internacional de Governabilidade da Catalunha. Suas publicações eletrônicas têm grande
interesse e, em especial, a revista do instituto especializada na
temática da governança. Sua revista eletrônica Instituciones y Desarrollo também merece atenção.
200
Referências
selecionadas
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GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA: CONSTRUÇÃO