Ano 2 | Nº 10 | Mai 2014
ISSN 2316-8102
ENTREVISTA COM CAROLEE SCHNEEMANN*
por Linda Montano
Carolee Schneemann representada na ilustração da artista Veridiana Scarpelli para a décima edição
da eRevista Performatus
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LINDA MONTANO: Como você se sentia a respeito do sexo quando era
criança?
CAROLEE SCHNEEMANN: Desenhar e me masturbar foram as
primeiras experiências sagradas de que me lembro. Ambas as atividades
começaram quando eu tinha uns quatro anos. Sensações fantásticas produzidas no
meu corpo e imagens que eu fazia no papel se embaraçavam com linguagem,
religião, tudo que fui ensinada. Como resultado, eu achava que o genital era onde
Deus vivia. Ele assumiu a forma de uma espécie de Papai Noel e me habitou. O
Papai Noel era a versão boa de Jesus, porque uma coisa horrível tinha acontecido
com Jesus, e eu não queria incorporar aquilo. Ter o Papai Noel no meu corpo me
dava uma noção de fulgência, presentes, mistério e renovação – descer a chaminé,
entrar em casa, subir a chaminé. O cristianismo e o Natal eram duas cartas que
lideravam o bando, e eu sentia que, ao escolher o Papai Noel no lugar de Jesus, eu
fiz a escolha prazerosa e, portanto, fui capaz de me desviar da outra possibilidade,
que era mais confusa, mais dolorosa.
LINDA MONTANO: Seus pais eram liberais na questão de lhe dar
liberdade sexual ou corporal?
CAROLEE SCHNEEMANN: Eles não eram de proibir. Eu me lembro
de que o prazer sexual deles um com o outro tomava conta de tudo, e eu era parte
disso. Nós todos ficávamos na cama no domingo de manhã. Eles me ensinavam a
ler revistas em quadrinhos. Mais do que qualquer outra proibição, eu me lembro
da intimidade, sensualidade e deleite profundos. Eu construí minha própria vida
de fantasias eróticas com diversos amantes animais e humanos invisíveis
habitando meus lençóis, minha cama, influenciando objetos comuns.
Quando eu tinha cinco ou seis anos, estava brincando de beijar e de cabracega no campo com o vizinho católico do outro lado da rua, que ficou com medo
quando eu o agarrei. Ter sido criada no interior foi muito importante. Os animais
eram criatura sexuais, e eu identificava essa parte da minha natureza com eles. A
nudez também era clara e direta. Nós ceifávamos feno na adolescência. À tarde,
depois de trabalhar, tirávamos a roupa para nadarmos nus no rio.
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LINDA MONTANO: Os seus pais e o seu ambiente davam apoio para a
sua naturalidade. Havia outros tipos de apoio?
CAROLEE SCHNEEMANN: Havia. O meu pai, como médico rural,
cuidava do corpo – o corpo vivo, o corpo morto. As pessoas chegavam em casa
com membros ensanguentados nos braços, e nós tínhamos sido treinados para
fazer com que se sentassem, colocávamos uma toalha em volta do que estivesse
sangrando e então saíamos correndo para chamá-lo. Eu também espiava pelo
buraco da fechadura do consultório dele, porque ficava ao lado da nossa casa. Às
vezes eu via o pé de uma mulher aparecendo na ponta da mesa de exame e ficava
lá agachada, escutando, enquanto ele dizia coisas estranhas. Por exemplo, ele
perguntou a uma mulher em que época ela tinha menstruado, e ela perguntou para
ele: “O que é isso?”, e eu ouvi ele dizer: “Sangrar”. Eu tinha [o livro de anatomia]
Grey’s Anatomy para olhar, e ele me deu uma noção peculiar, um vocabulário
visual interno/externo.
LINDA MONTANO: Esse tipo de relacionamento com a naturalidade e o
corpo continuou? Você dirigiu essas experiências à arte a certa altura?
CAROLEE SCHNEEMANN: Eu sabia que era capaz de localizar a
naturalidade ao fazer imagens e ao amar. Quando eu era jovem, era chamada de
panteísta maluca por amigos mais velhos. Eu não sabia que negócio era esse
(torcia para que fosse uma pantera mulher), mas fui informada de que um
panteísta é um adorador da natureza. Eu tinha lugares de ritual elaborados para ir
a certas horas do dia ou da noite. Havia árvores especiais com as quais eu
precisava estar em contato, e eu me escondia em um poço que a minha mãe tinha
enchido de flores. Eu fazia isso ao anoitecer, porque achava a transição do dia
para a noite incerta e dolorosa. Eu ficava tonta escutando os passarinhos, sentindo
os aromas da noite. Era isso que eu precisava fazer.
LINDA MONTANO: Você nunca perdeu esse jeito de explorar, e seu
trabalho atesta isso.
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CAROLEE SCHNEEMANN: Quando a negatividade sexual e a
violência sexual e a despersonalização que as mulheres experimentam na nossa
cultura se intrometeram, eu tentei julgar, separar, não internalizar. Suponho que o
fato de não internalizar proibições me deu um tipo de noção messiânica de que eu
iria ter que confrontar ou me opor a fragmentações de negação erótica.
LINDA MONTANO: Quando foi que você começou a usar temas sexuais
no seu trabalho? Que forma eles tomaram?
CAROLEE SCHNEEMANN: Existem várias ramificações. Um tema
surgiu quando eu tinha quatro ou cinco anos, e eu fazia dramas visuais com
pílulas sob prescrição médica. As pílulas eram grossas, então eu fiz uma
sequência de desenhos, não apenas um em uma página. Precisava de quinze
páginas para uma imagem surgir. Esses desenhos primitivos eram cheios de
implicações sexuais.
LINDA MONTANO: Você estava fazendo filmes?
CAROLEE SCHNEEMANN: Estava, eram a respeito de fazer dramas
visuais (antes mesmo de eu ter assistido a um filme). Eram todos acontecimentos
eróticos projetados e esquisitos entre figurações masculinas e femininas. O
segundo tema se tornou claro na faculdade. Eu posei para o meu namorado porque
não tínhamos modelos nus na Bard. Ele fazia estudos sobre mim, mas não incluía
a minha cabeça, então eu ficava pensando que faria o mesmo com ele, só que iria
incluir a cabeça e, na verdade, trabalhar a partir da cabeça até os pés. Havia um
grande incômodo em relação aos genitais dele aparecerem no retrato. Então fiz
um autorretrato e me sentei de perna aberta, incluindo meu corpo inteiro e meus
genitais expostos. O quadro era de um vermelho brilhante e denso. Recebi relatos
indiretos de que isso era impróprio. A mulher era a preocupação constante da
imaginação masculina, mas quando eu a quis examinar por completo em mim
mesma e retratar as partes verdadeiras, fui acusada de romper limites estéticos
essenciais. Eu me lembro de sentir que teria de ficar de olho naquilo – que eu era
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propriamente tanto uma idealização quanto um centro de tabu intenso. Eu não
queria sentir esse tabu projetado em mim. Mais tarde fui temporariamente expulsa
da Bard por “baixeza moral”, porque tinham visto meu namorado e eu fazendo
algo obsceno embaixo de uma árvore.
LINDA MONTANO: O seu trabalho foi uma continuação e uma maneira
de manter essa liberdade que você sempre teve?
CAROLEE SCHNEEMANN: Não, não exatamente. Em meados da
década de 1960, quando dei início ao meu filme Fuses [Pavios] e à performance
Meat Joy [Alegria da Carne], eu estava pensando em erotizar minha cultura de
culpa. Vi uma tarefa cultural combinada a um dilema. Meu trabalho dependia da
minha sexualidade, de sua satisfação, integridade. Eu não era capaz de trabalhar
sem uma relação sexual coerente que alimentasse a minha imaginação, as minhas
energias. A minha mente compreende o conhecimento do corpo. Uma
sensibilidade erótica inevitavelmente vai experimentar mensagens conflitantes na
cultura masculinizada que é basicamente divisionista, negativa para o sexo – que
tradicionalmente controla a expressão feminina, nosso domínio imaginativo,
nossa vontade criativa, nosso desejo.
LINDA MONTANO: Você teve algum modelo nesse trabalho?
CAROLEE SCHNEEMANN: No início da década de 1960, os meus
relacionamentos pessoais, meus amantes e amigos me davam apoio, assim como
os textos de Wilhelm Reich e Simone de Beauvoir. Pesquisar os quadros e textos
“perdidos” de artistas mulheres era muito importante, e eu também fazia pesquisa
em livros obscuros em holandês, alemão, francês, apenas para descobrir mulheres
não reconhecidas como precedentes.
LINDA MONTANO: Você foi pioneira em uma época em que não havia
muito apoio para o que você fazia.
CAROLEE SCHNEEMANN: Era uma posição solitária, golpe a golpe.
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Eu tinha de resistir, analisar e reposicionar atitudes sexuais/culturais.
LINDA MONTANO: Você pessoalmente sofria com a culpa?
CAROLEE
SCHNEEMANN: Posso
me
sentir
culpada
de
acontecimentos sexuais demais, que se acumulam próximos uns dos outros, mas é
pior para mim julgar ou negar sentimentos ou experiência sexual. Na verdade, só
me arrependi das vezes em que senti que queria ficar com alguém e havia algo
incerto do ponto de vista social ou interpessoal a respeito da situação e eu disse
“não”.
LINDA MONTANO: Você sentiu culpa reversa?
CAROLEE SCHNEEMANN: Há níveis de reversão aqui.
LINDA MONTANO: Você já pensou em escrever um manual para quem
sente culpa em relação ao sexo?
CAROLEE SCHNEEMANN: Escrevi um em 1970 para quem tinha
curiosidade em relação ao sexo: The Sexual Parameters Survey [A Pesquisa dos
Parâmetros Sexuais]. É em forma de tabela, combinando todos os aspectos do
fazer amor. Eu fiquei sozinha depois de estar em uma relação igualitária e cheia
de amor por mais de dez anos. Comecei a encontrar áreas de negatividade sexual
em relações que eu achava que seriam espontâneas, completas, passionais, até
temporárias. Às vezes, o meu corpo parecia ser um campo de batalha de projeções
de tabus e contradições. Postulei uma gama de análises, os parâmetros sexuais, de
acordo com os quais três amigas contribuíram com seus dados pessoais. Foi
exposto como uma tabela de um metro e meio de comprimento em uma galeria de
Londres e foi impresso no meu livro Parts of a Body House [Partes de uma CasaCorpo, 1971].
LINDA MONTANO: O seu trabalho tem sido de celebração e didático.
Tem sido assim para os outros e, nesse sentido, como ajudou a você?
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CAROLEE SCHNEEMANN: Fez com que eu me concentrasse em
estruturas formais. O meu trabalha apresenta dificuldades específicas porque sua
fonte e suas formas examinam o erotismo, mas também podem ser usadas contra
ele. O conteúdo pode ser usado para transformar em trivial a complexidade
formal. Públicos e críticos recentes estão se dando um pouco melhor. Parece que a
análise feminista aprofundou percepções para o processo do trabalho.
*Originalmente publicada na revista Flue/Franklin Furnace (Nova York, 1982), p. 6-8.
Reimpressa em Linda Montano, Performance Artists Talking in the Eighties. Ⓒ 2000 The
Regents of the University of California Press.
Tradução de Ana Ban
Revisão de Marcio Honorio de Godoy
© 2014 eRevista Performatus e o autor
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