AQUELA QUE CHEGOU DEPOIS (trecho do romance) Carla Dias Ajeito-me na cama, sentando-me defronte a ele, que desfaz o sorriso e me encara de volta, curioso. Floriano quer saber de mim, mas para quê depois do nosso começo tão confuso? Meu dia não está sendo dos melhores, Sr. Floriano, e ele, fazendo cara de quem não merece esse sacrifício, somente Floriano, minha cara. E aceito o desafio... Ou me sacrificar em seu benefício. Conto-lhe como me sinto, e de quão profundo é esse meu desnorteamento, que já pesquisara meu dentro exaustivamente para tentar alcançar a compreensão de tal desalento. Nada? Sinceramente preocupado com a minha falta de capacidade de identificar o que me aflige. Nada, respondo-lhe, tão desolada quanto ele. Levanta-se e sai do quarto, abandonando-me ao silêncio no recinto, e à algazarra das inquietações interiores. Entretanto, volta em seguida, o violoncelo como companhia. Senta-se na cadeira, a janela de fundo. Apruma-se, assumindo a intimidade com o instrumento, mostrando que entre eles há sintonia como raramente há entre as pessoas. Ordena-me, resoluto feito educador austero, que me deite, feche os olhos, permitase levar. Para mim, nada nesse dia tem feito sentido ou me permito contradizê-lo. Sendo assim, acato à ordem e me deito, puxando o lençol até cobrir o nariz. Os olhos eu mantenho focalizados nesse homem que decidiu, sem a minha permissão, colocar seu plano em prática. Ele começa a tocar, a música invadindo o meu dentro. Então, compreendo que o plano dele, desde o início, era me aquietar a alma. Certa vez, ainda menina, meus pais me levaram a um concerto de orquestra sinfônica, que aconteceu na única praça da cidade. Meus olhos lamberam a imagem diante de mim, tantas pessoas empunhando instrumentos tão diferentes das violas caipiras dos avôs das minhas amigas. As roupas tão alinhadas, a forma imponente como eles se colocavam, no intuito de fazer aqueles objetos dizerem música. Tudo remetia a um encantamento misturado com a espera por algo tão diferente que sugeria - a uma infante capacidade minha de identificar grandes mudanças - que eu seria outra pessoa, depois daquele dia. Assim que o maestro levantou a batuta, meu corpo ficou estático, pois eu acreditava que se o movesse poderia quebrar a euforia em mil pedaços de sofreguidão. Segurei o fôlego, esperei até que os instrumentos começassem a seguir, ao toque de seus guias, o mestre, o maestro, a quem entreguei olhares descabidos de desejo de lhe agarrar as pernas em abraços, como costumava fazer com meu pai, quando ele tinha de sair para o trabalho, mas eu o queria por perto, então lhe atravancava os passos. Aprendi um novo tipo de afeto naquele dia. Aprendi que as quatro estações não eram apenas as do ano, mas também as de Vivaldi, e que cada um naquele grupo de pessoas dependia do outro para costurar a música, para dar vida a ela, ainda que, vez ou outra, um se passasse por solista. A solidão ali era ilusória, ainda que ruminada individualmente. Lembro-me de quando meu olhar ofereceu-se ao violoncelista, no começo completamente inocente e necessitado de mapear as figuras dos músicos e seus instrumentos. Era um sujeito muito alto, suas pernas alinhavam-se ao violoncelo como se fossem engoli-lo. Os cabelos dele, finos e amarelos, esvoaçavam a cada movimento infringido ao arco. Aquele foi o mais belo quadro vivo que já contemplei em minha vida. Eu não adormeci, não aquietei o espírito, mas assim que o silêncio se apropriou do quarto, eu me dei conta de que nem estava deitada. Em pé, no meio do cômodo, no qual sou transeunte de horas de trabalho espalhadas pelo dia, vejo quando Floriano, arfante e infante, sorriso saciado nos lábios, repousa o arco sobre a perna e me encara. E se ele esperava aplausos, não pude mais do que desapontá-lo. Aquele concerto particular, a dádiva de ser única espectadora de um momento de inspiração de um artista, de consumir a sua música como se ela passeasse no meu dentro, conseguiu algo raro em mim, mas que se fazia necessário. Descontrolei-me, chorei e me descabelei diante de Floriano, que sem saber o que fazer para me acalmar, disse que ligaria para Anamá se eu não me calasse, usando a tática de pais estressados, após esgotarem todas as técnicas afetuosas para compelir os filhos a pararem de chorar. Quando lhes resta somente ameaçar a cria para garantir um minuto silêncio. E que assim possam retomar o controle. Envolve-me em um abraço desconcertado, sem saber se faz certo ou errado. Eu me rendo, aceito o colo, soluço e choramingo, vou me acalmando. Mas o que diabo aconteceu com você, menina? Ele se rende a uma preocupação justa com uma estranha. Não sabia que minha música era assim tão ruim, e o gracejo me faz sorrir meio torto, com uma graça meio sem graça. Eu e Floriano passamos um longo tempo sentados na cama, um ao lado do outro, ele segurando a minha mão, mas desviando o olhar de mim, para que eu entendesse que a proximidade que me oferecia era emprestada, que eu não poderei exigir doses futuras. Quando eu me esvaziei da angústia não identificada, e respirei fundo, como se buscasse no canto mais obscuro da minha alma a leveza sobrevivente, ele me encarou, beijou minha mão e me deixou a sós comigo.