E se os 160 milhões de técnicos de futebol virassem técnicos em
educação?
Claudio de Moura Castro
Em um ensaio curto escrito há quase dez anos, perguntava o que aconteceria com a nossa
educação se os brasileiros passassem vigiá-la como vigiavam a seleção de futebol. A
metáfora adquiriu uma popularidade que não imaginava, sendo até objeto de vídeos e um
jogo educativo premiado.
Dez anos depois, volto a fazer uma pergunta parecida. Diz-se que todos os brasileiros
são técnicos de futebol, capazes de escalar a seleção e comentar com autoridade sobre as
falhas do time. Portanto, reformulo minha pergunta decenária falando agora de técnicos
em futebol. E se os 160 milhões de técnicos de futebol virassem técnicos em educação?
Por que a mudança? Por uma razão simples mas poderosa. Não basta vigiar, é preciso
saber vigiar. O que melhora a educação é vigiar inteligentemente a educação.
Na verdade, a última década presenciou justamente um enorme crescimento do interesse
pela educação no Brasil. Houve um grande crescimento no peso das associações de pais e
mestres nas escolas, sobretudo depois que passou a ser usada como mecanismo de
repasse de fundos. Estudos de caso em Minas Gerais mostram como muitas dessas
associações tiveram grande impacto na melhoria da educação.
A experiência recente mostra claramente: os sistemas educativos que estão melhorando
são aqueles onde os pais estão vigiando cuidadosamente as escolas dos seus filhos. As
escolas refletem o tanto que são vigiadas, execradas ou glorificadas. Onde os pais vigiam,
censuram e aplaudem e ajudam, a educação melhora.
Em apenas dois anos, cresceu em mais de 35% o espaço devotado pelos jornais para
assuntos de educação. A importância disso não pode ser subestimada.
Mas cresceu sobretudo a idéia de que educação é importante. Educação está no discurso
de candidato para os cargos eletivos, do mais modesto ao mais alto. Educação está nas
conversas por todos os cantos, até no elevador. Isso é importante, é vital, mas é pouco.
O maior impacto virá quando esse ruído pró-educação se transformar em mensagens
claras e com boa pontaria. Dizer que educação é importante, e fazê-lo com mil
sinonímias, é apenas o primeiro passo. A fase seguinte é ter 160 milhões de técnicos em
educação reclamando e sugerindo coisas concretas.
Em outras palavras, precisamos transformar interesse e motivação em mensagens efetivas
para a escola e seus administradores. Mas pelas mesmas razões que perorar pela
educação é apenas o início de um processo, perorar para que os brasileiros cobrem
resultados de forma inteligente é também o primeiro passo. Há um processo educativo a
ser trilhado. É preciso ajudar nosso povo a cobrar inteligentemente. É preciso agora
transformá-los em técnicos de educação – pois de futebol já são todos.
Portanto, este ensaio se volta para algumas especulações iniciais acerca do que se pode
cobrar inteligentemente da escola – mas longe estaria a pretensão de esgotar o assunto.
Podemos pensar que há duas categorias de cobranças. Há cobranças sobre a escola ou
sobre os professores, de coisas que são fáceis de pedir e fáceis de verificar se foram
cumpridas. São essas que esperamos o brasileiro comum entender. Mas há também
cobranças mais difíceis, requerendo conhecimentos mais especializados. Sobre estas
segundas, faremos algumas menções, mas não seria aqui o lugar para aprofundar.
A. O que os brasileiros podem cobrar da escola
Não é preciso ter um Ph.D. em ciências da educação para ver muita coisa certa e muita
coisa errada na escola. Com bom senso e espírito de observação é possível entender o
funcionamento da escola e identificar seus pontos fortes e suas fraquezas.
Vejamos um conjunto de indicadores que podem ser usados por pais de alunos:
1. Qual a atmosfera da escola? Favorece o trabalho sério? Bons fluidos ou baixo
astral?
É difícil definir, mas a gente sabe quando o ambiente é bom. Os alunos sentem quando o
ar da escola está bom ou azedo. A limpeza, asseio e desvelo com o ambiente físico
revelam muito. Os pequenos detalhes são mais importantes do que parece. Tem vasinho
de planta ou tem lixo? O banheiro está limpo? Alunos e pais se sentem bem vindos?
Na verdade, a escola tem a cara do diretor. Mau agouro se o diretor é fraco, ausente,
desanimado ou sem liderança. Bons diretores dão energia na escola. Mostram aos
professores o que se espera deles, dão bons exemplos. Acima de tudo estão fisicamente
presentes. Diretor escondido no gabinete, mau sinal. Se o diretor não está, péssimo sinal.
2. Quais as missões da escola? São claras para todos?
A escola tem claramente alguns objetivos pairando acima dos outros e que todos
conhecem e perseguem? Está escrito em algum lugar o que se propõe a escola fazer? Em
boas instituições, todos sabem a que vieram e são claros no que tentam fazer. Perguntem
a um professor qual é o objetivo da escola. Se não sabe nenhum, ou se os menciona em
demasia, mau sinal. Nas boas escolas todos sabem qual a direção e todos empurram na
mesma direção. Algumas, com programas de qualidade total, os professores e
funcionários têm um cartão plastificado com os objetivos e nas paredes estão cartazes
com visíveis E os objetivos são concretos, nada de vago como a “formação do homem
integral”. É alguma coisa do tipo: eliminar a evasão, reduzir de tanto por cento a
repetência, aumentar o rendimento nas provas, realizar tantas horas de trabalho
comunitário etc. E nas boas escolas não se perde tempo botando a culpa nos outros. O
esforço é para fazer e não para atribuir a culpa pelo que não foi feito.
3. Os alunos lêem além do estritamente necessário para a lição? Há bibliotecas? Há
livros que incendeiam a imaginação dos alunos? Os alunos escrevem bastante, qualquer
que seja a disciplina?
Ler e escrever são os assuntos mais centrais da escola. Se falhar neles, é difícil salvar o
resto. Ao contrário dos critérios anteriores que são subjetivos e difíceis para os pais
avaliar sem ir à escola, esse é concreto e tangível. Quantas páginas o filho tem que ler por
semana? Quantas páginas têm que escrever? Há correção dos trabalhos escritos? Quanto
tempo passa lendo e escrevendo em casa?
4. Quantas horas efetivas de aula diária? Quantos dias por ano de aulas (contados no
lápis e não anunciado nos planos de estudo)?
Sabemos que aprendizado é em grande parte explicado pela formula A=
f(trazeiro/cadeira/hora), ou seja quanto mais horas sentado estudando, mais se aprende.
Podemos discutir as últimas modas da pedagogia. Podemos nos engalfinhar em
discussões sobre construtivismo ou outra teoria da moda. Mas sem sentar o rabo na
cadeira por longas horas, nada vai acontecer. Os países possuidores dos melhores
sistemas de ensino e dotados de exércitos de pedagogos e psicólogos cognitivos não
dispensam essa fórmula. Discute-se a teoria pedagógica, mas os alunos estão cravados na
cadeira por longas horas.
5. Quantas horas por semana os alunos gastam fazendo o dever para casa?
Este tempo se inclue na fórmula anterior, aumentando o aprendizado. Menos de duas
horas por dia é pouco, menos de uma é inaceitável. Mau sinal se a TV ocupa mais tempo
do que os deveres. Este é um critério fácil de ser verificado pelos pais sem que tenham de
sair de casa.
6. Quanto tempo os alunos passam ouvindo o professor falar ou ditar (método frontal) e
quanto tempo passam discutindo, respondendo perguntas, pesquisando, escrevendo, ou
trabalhando em grupo?
Quanto mais tempo ouvindo passivamente a aula, menos se aprende. Aprender não é ficar
ouvindo o que diz o professor ou copiando a lição escrita no quadro negro. Aprender
requer muitas outras atividades muito mais ativas e dinâmicas e com mais forte
participação dos alunos. Quanto tempo os alunos são ouvidos durante a aula? Educação
requer ouvir, falar, ler, discutir, escrever, trocar idéias. Se todas estas atividades não são
praticadas, o ensino está aleijado, está faltando o outro lado. Portanto, não se pode
esperar grandes resultados. Ernesto Schiefelbein costuma dizer que para saber se o ensino
é bom, basta visitar a sala de aula. Se os alunos só ouvem o que diz o professor, não há
esperanças de que o ensino preste.
7. Há atividades práticas para ilustrar e aplicar as teorias?
Hoje sabemos que o aprendizado é enormemente facilitado quando traduzido para o
mundo vivido pelo aluno. Diz-se que o ensino é contextualizado. A dedução de fórmulas
é menos importante do que a sua indução, isto é, observar o mundo e redescobrir as
teorias. Não importa que se chegue à prática deste princípio pela via contrutivista ou por
qualquer outro caminho. O princípio geral é que aprender consiste em conectar o que não
se sabe ao que se sabe. Pouco se aprende na pura abstração, ou pelo menos, poucos
conseguem aprender desta forma.
8. Civismo se aprende vendo a escola funcionar e não ouvindo as pregações do professor
Importa relativamente pouco o que se aprende nos cursos do tipo “moral e cívica”. O que
interessa é se a escola no seu cotidiano pratica justiça, responsabilidade pessoal,
tolerância, liberdade de expressão e generosidade. Não se aprende ouvindo sermões ou
pregações, mas sim vivendo no mundo concreto dos comportamentos e dilemas morais e
explorando esses aspectos. Há muitas atividades que podem desenvolver os valores. Mas
todas elas são concretas ou, pelo menos, contextualizadas. A grande literatura tem
ensinamentos morais. As atividades voluntárias podem ser usadas para criar espaços de
discussão e reflexão. Quase todas os momentos da escola podem ser ensejo para tirar
lições importantes.
9. A escola dialoga séria e criativamente com os pais?
Os pais têm que ser sócios da escola na empreitada de educar o aluno. Escola e pais têm
que trabalhar como um time. Não se trata de botar a culpa ou desculpar mas em aprender
a trabalhar juntos com o mesmo objetivo. Sem isso, as energias são desperdiçadas ou as
oportunidades são perdidas.
B. A cobrança do professor
Computadores? Televisão? CD-ROMs? Internet? Tudo isso pode ser útil (ou inútil,
conforme o uso). Mas a essência do aprendizado tem a ver com o professor, aquele que
administra, estimula, enriquece e dá vida a uma série de processos que levam o aluno a
aprender. Bernardo Toro me ajuda a responder: que professor gostaria de ter para meus
filhos?
O processo escolar requer que se desenvolvam simultaneamente dois traços
contraditórios: disciplina pessoal e curiosidade. Parte do que se aprende na escola é
disciplina de trabalho, isto é, o hábito de fazer o que precisa ser feito, apesar de que falta
vontade, sobra desconforto e atraem outras coisas mais interessantes. Mas ao forçar estes
hábitos pessoais, a escola pode matar a curiosidade espontânea do aluno, seu instinto de
explorar o mundo que o cerca, de fazer perguntas só porque não sabe a resposta. Se isso
acontecer, perde-se algo valiosíssimo. Mas curiosidade sem disciplina não leva a parte
alguma. Ao professor, a mágica de desenvolver o aluno nas duas direções: disciplina
pessoal e curiosidade.
Como se dá esta mágica? O bom professor:
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Tem um conceito positivo de si próprio e de seu trabalho. Ele faz o que gosta, gosta
do que faz e se sente realizado porque é professor.
Busca as possibilidades de fazer boas coisas diante da adversidade, ao invés de
buscar as excelentes razões para desculpar-se de não havê-las feito. Não se contamina
pelo pessimismo dos outros. Ao invés, cria uma ilha de otimismo em torno de si.
Sabe mostrar ao aluno a beleza e o poder das idéias. Isso foi dito por Whitehead e
não dá para dizer melhor.
Tem sempre expectativas positivas acerca dos seus alunos. Já foi demonstrado, os
alunos fracassam quando o professor acha que vão fracassar. Portanto, não os culpem
pelo fracasso, pois só atrapalha.
Nunca ridiculariza seus alunos. Alivia o mau humor, mas às custas de maltratar a
auto-estima do aluno, péssima idéia.
Consegue que seus alunos participem ativamente na aula. Educação não se despeja
goela abaixo do aluno. Aprender é um processo ativo, onde o aluno trabalha
(intelectualmente) tanto quanto o professor.
Dialoga com seus colegas e pede conselhos quando tem problemas com seus alunos.
Ser professor é aprender constantemente, com os alunos e com os colegas que já
viveram situações semelhantes.
Entendeu que a indisciplina começa quando o aluno para de aprender. “Cabeça
vazia, oficina do diabo”.
Não vê os pais como adversários temíveis mas como aliados e parceiros
O bom professor consegue que todos aprendam o que tem que aprender, que cada um
aprenda quando está pronto para tal e que sejam felizes no aprender.
Mas se os objetivos são esses, a maneira de atingi-los varia tanto quanto a personalidade
humana é variada. Somente temo o professor “bonzinho” que tudo deixa, tudo entende e
tudo perdoa.
Perfil impossível? O desafio é aproximar-se dele. Imperfeitos somos todos (quando penso
nas minhas fúrias diante de alunos malandros ou burros, modero minhas expectativas
para com os outros mestres).
10. Se a escola do seu filho fica aquém destes princípios e se não é possível mudar
seu filho de escola, mude a escola! Deu certo onde foi tentado seriamente. Reclame,
faça barulho, organize os outros pais. Mas não se esqueça de ajudar, não é só
reclamar. Os professores precisam a apreciação e apoio dos pais, tanto ou mais do
que cobrança.
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