NÚMEROS RACIONAIS NO ENSINO FUNDAMENTAL: SUBCONSTRUCTOS, O PAPEL DA LINGUAGEM E DOS MATERIAIS MANIPULATIVOS NEPEM/USF*- [email protected] O objetivo do presente estudo é analisar a abordagem dada aos números racionais em materiais didáticos tomando como referência as pesquisas de Behr et al. (1983) sobre o desenvolvimento do conceito de número racional: seus subconstructos, o papel da linguagem e o papel dos materiais manipulativos. Para essa análise, optamos por três coleções: Imenes et al.(2001, 2002), Pires et al. (1998, 2002) e Bigode (2000)1. Os subconstructos dos números racionais Para a presente discussão nos apoiaremos em Behr et al (1983) e Romanatto (1997; 1999), que têm como principal sustentação teórica os estudos de Kieren (1976; 1981), cujas pesquisas apontam a existência de cinco constructos para o número racional: relação de parte-todo, medida, quociente, razão e operador. Behr et al (1983) redefinem e subdividem os constructos apontados por Kieren, denominando-os subconstructos e obtendo um total de sete, a saber: 1. Medida fracionária (relação parte-todo): os autores entendem que o subconstructo parte-todo, aplicado em quantidades contínuas e discretas, constitui a base fundamental para a construção do conceito de número racional, e, geralmente, é introduzido ao aluno desde seu primeiro contato com frações. Segundo Kieren (1981, apud BEHR et al, 1983, p. 93), nele está subjacente a idéia de medida – modelos de regiões geométricas * NEPEM: Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Matemática: Jackeline Rodrigues Mendes, Adair Mendes Nacarato, Ivete Cevalhos, José Antonio Andrade Araújo, Luana Torricelli, Marco Aurélio Fonseca, Paulo César Penha, Paulo Threntin, Regina Célia Grando, Renato Tim dos Santos e Sílvia Maria Caporalle. 1 Consideramos que estas obras são representativas das atuais tendências do ensino de Matemática. Para as obras com mais de um autor, como há mudanças de parceria de um nível de ensino para outro, utilizaremos como referência o autor comum. Assim, ao nos referirmos a Imenes et al. subentende-se: Imenes, Jakubo e Lellis de 1a a 4a séries e Imenes e Lellis, de 5a a 8a séries. De maneira análoga, para Pires et al. subentende-se: Pires e Nunes de 1a a 4a séries e Pires, Curi e Pietropaolo, de 5a a 8a séries. Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 2 (noções de área) e retas numéricas (noções de unidade de medida de comprimento). Na reclassificação de Behr et al. (1983), a reta numérica se torna um subconstructo independente denominado “coordenada linear de número racional”. 2. Coordenada linear: Tal subconstructo foi identificado apenas nos estudos de Behr et al. Como os próprios autores admitem, sua interpretação é bastante próxima à noção de medida de Kieren, enfatizando a questão intervalar, a densidade e a descontinuidade; os números racionais são interpretados como pontos sobre uma reta numérica. 3. Quociente: consiste na representação de uma divisão a : b, na forma a/b, ou seja, a dividido por b, b ≠ 0. 4. Razão: esse subconstructo é considerado como sendo a relação expressa entre duas quantidades de uma mesma espécie. 5. Taxa de número racional: considerado como aquele que define uma nova quantidade como uma relação entre duas outras quantidades; a velocidade é um exemplo de taxa para esses autores. 6. Decimal do número racional: enfatiza as propriedades do número racional, na sua representação decimal, associadas ao sistema de numeração decimal. 7. Operador: está relacionado à idéia de função, como uma transformação. Trata-se da noção amplia-encolhe. Segundo os autores, esse subconstructo impõe ao número racional p/q uma interpretação algébrica, significando uma função que, quando aplicada em figuras geométricas, transforma-as em figuras semelhantes; quando aplicadas a um conjunto discreto atua como um multiplicador-divisor. Quais subconstructos são abordados pelos autores de livros didáticos e de que forma o fazem? Coleção de Imenes et al.: o subconstructo relação parte-todo (ou medida) aparece da 3ª até a 7ª série. A noção de reta numérica é apresentada pela primeira vez na 4a série num contexto de percurso (p. 94), sem relacioná-lo com a reta em si; esta reaparece na 7a série, na forma de um único exercício. Esse subconstructo é sistematizado na 8a série, no capítulo 13 (Classificação dos números), no item específico: reta numérica. Nele explora-se sua relação com os gráficos e a densidade dos números racionais e, ao mesmo tempo, amplia os campos numéricos, chegando aos irracionais e reais. O subconstructo quociente é abordado somente nas três últimas séries do ensino fundamental. Quanto ao subconstructo razão, este é trabalhado na 6a e na 8a séries; os autores definem a razão como uma divisão entre dois números (p. 152). Na 8a série é trabalhado como a medida da chance ou a probabilidade de ocorrência de um certo Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 3 resultado (p. 95). O subconstructo número decimal é introduzido na 4a série relacionado ao sistema monetário e às unidades de medida. Apesar da representação fracionária já ter sido introduzida na 3a série, a representação decimal é explorada, num primeiro momento, sem qualquer vínculo com frações. Somente após a retomada de frações, é que esta representação é associada à fração decimal. Vale destacar, também, que a porcentagem recebe uma maior ênfase na sua representação decimal. Na 5a e 6a séries os autores mantém essa concepção, fazendo retomadas desse subsconstructo. Os demais subconstructos não são abordados na coleção. Identificamos apenas um exercício na 6a série (p.72) que traz implicitamente a noção de operador, mas este é transformado na relação parte-todo para a sua resolução. Coleção de Pires et al.: O subconstructo relação parte-todo (medida) é abordado da 3a série até a 6a. A reta numérica é apresentada na 3a série (capítulo 14), em um exercício em que o aluno precisa descobrir a metade entre dois números naturais. Na 4a série, é abordada no capítulo 10 (Oito ou oitenta: mais decimais), no qual são exploradas noções de densidade; é retomado na 7a série (módulo 1), na discussão sobre os campos numéricos. Nesse momento, discute-se também a densidade dos racionais. Na 8a série há retomada em forma de exercícios. O subconstructo quociente é abordado na 3a série, em situações de divisão de folhas e de chocolates entre crianças; na 4a série há a relação entre a divisão e a fração; na 5a série, na seção “É preciso saber” (módulo 13, p. 137), há um texto sistematizando os subconstructos relação parte-todo e quociente. Vale destacar que esta obra é a única que contém um texto explicativo ao aluno sobre os diferentes significados e representações da fração. O subconstructo razão é abordado apenas na 5a e 7a séries. Na 5a, este é explorado em situações-problema sobre proporcionalidade (módulo 14). Somente no Manual do Professor há orientações de que esses contextos envolvem o conceito de razão. Tal conceito havia sido definido no módulo 13, no próprio manual: uma interpretação diferente das anteriores é aquela em que o número racional é usado como um índice comparativo entre duas quantidades, ou seja, quando é interpretado como razão (p. 39). Vale destacar que os autores incluem nesse subconstructo: índice comparativo, probabilidade e escala. Na 7a série tal subconstructo reaparece no trabalho com escala (módulo 20), em que esta é definida como uma razão. A representação decimal é introduzida na 3a série, sob a denominação ‘números com vírgula’ e explorada por meio da calculadora. Ainda nessa série, num momento posterior, a representação decimal é relacionada com a fração decimal. Na 4a série o assunto é retomado ainda com a denominação ‘números com vírgula’ (capítulo Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 4 7) e no Manual do Professor há uma explicação sobre o número decimal como um subconstructo próprio dos números racionais. Na 5a série essa ênfase permanece, mas há uma ampliação, relacionando a representação decimal com a divisão entre dois números inteiros. Assim, os decimais ora são tratados como um subconstructo próprio, ora como frações no subconstructo quociente. Na 6a série, módulo 4, a ênfase se centra no decimal como um subconstructo, com a manutenção das regras do Sistema de Numeração Decimal. Quanto ao subconstructo operador, este é definido no volume da 3a série (p. 39), juntamente com a informação de que o mesmo não será trabalhado nesse ciclo. Na 4a série essa definição é retomada: quando a fração desempenha um papel de transformação, algo que atua sobre uma situação e a modifica (p.30). Novamente há a informação de que essa interpretação para número racional será trabalhada nos ciclos posteriores – o que não ocorre de 5a a 8a série. Coleção de Bigode: O subconstructo relação parte-todo é explorado apenas no volume da quinta série. A reta numérica aparece na 5a série (capítulo 11, item As frações e a reta numérica). No entanto é apresentado apenas o intervalo de zero a 1. O assunto é retomado na 6a série (p. 68-69), quando na exploração do subconstructo quociente há contextos de reta numérica, tanto de números racionais na representação decimal quanto na fracionária. Na 8a série, na sistematização dos conjuntos numéricos (capítulo 1), retoma-se a reta numérica com a discussão da densidade do conjunto dos racionais (item: Sempre cabe mais um). O subconstructo quociente é abordado em duas séries: na 6a (p.67) há a afirmação de que em muitas situações as frações são usadas para indicar uma divisão. No entanto, não identificamos situações em que a divisão seja associada a fração, mas apenas ao número decimal. O autor opta por explorar esse subconstructo na representação decimal utilizando a calculadora; o mesmo reaparece na 8a série (Unidade 1, capítulo 1) quando o autor formaliza os diferentes conjuntos numéricos. O subconstructo razão aparece em um único exercício (p. 197), na 5a série, mas, sem nenhuma discussão. Na 6a série, a razão é trabalhada no capítulo relativo a proporcionalidade e é definida como o quociente entre dois números inteiros. Vale destacar que, nessa mesma página, há a informação de que a razão é uma relação expressa por a , onde a e b são números racionais e b é diferente de zero. Vê-se assim b que numa mesma página o subconstructo quociente ora envolve números inteiros, ora números racionais. Não identificamos na coleção a exploração do número decimal como um subconstructo dos racionais. Este aparece sempre relacionado à fração. Quanto ao Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 5 subconstructo operador, este é definido apenas no Manual do Professor da 6a série (p.27). No entanto, em momento algum ele é discutido com o aluno. A análise dessas coleções revela a intensidade com que o subconstructo relação parte-todo é abordado no Ensino Fundamental, sendo que o trabalho ocorre simultaneamente com quantidades discretas e contínuas; mas, o ponto de partida é sempre com grandezas contínuas. No entanto, Behr et al (1983), apoiando-se nas pesquisas de Hiebert e Tonnessem (1978), afirmam que as crianças têm melhor desempenho em atividades envolvendo quantidades discretas. A repartição de um todo discreto é mais fácil que o contínuo ao se iniciar a abordagem do subconstructo partetodo. Isso porque, as tarefas discretas podem ser resolvidas sem o tratamento do conjunto como um todo e sem antecipar a solução final (p. 94-95), enquanto as tarefas com quantidades contínuas requerem um esquema antecipatório bem desenvolvido, não podendo muitas vezes ser resolvidas com uma simples partição. Tal análise revelou ainda que o subsconstructo coordenadas lineares não é tão intensamente trabalhado quanto o da relação parte-todo. Ele aparece, esporadicamente, em forma de exercícios, ao longo das séries, ocorrendo uma discussão mais formalizada na 7a ou 8a série, momento em que os diferentes autores discutem também a noção de densidade do conjunto dos racionais. Acreditamos que um trabalho exploratório e mais intuitivo com a reta numérica deveria estar mais presente em todas as séries do Ensino Fundamental. Segundo pesquisas realizadas por Novillis-Larson (1980, apud BEHR et al, 1983), o modelo representacional da reta numérica contém atributos não presentes em outros modelos, principalmente, quando a reta apresenta mais de um intervalo. Nesse caso, os resultados dessas pesquisas apontam que os alunos têm dificuldades na percepção da unidade de referência, considerando, na maioria dos casos estudados, a reta inteira como unidade. Constatamos a não existência de um consenso entre os autores de livros didáticos da definição de razão e os mesmos não partilham da definição de Behr et al, anunciada anteriormente. Em nenhuma coleção há a ressalva de que a relação deve ser estabelecida entre grandezas de mesma espécie. Ocorre que Behr et al discutem o subconstructo taxa de número racional, como sendo aquela que define uma nova quantidade como uma relação entre duas outras quantidades (p. 99). Nos livros didáticos analisados a taxa aparece como razão. Segundo Romanatto (1997, p. 70): O que distingue taxa de razões é que as taxas podem ser adicionadas, subtraídas enquanto as razões não o são. Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 6 Entendemos que, pelo fato de utilizarmos sistemas de medidas e sistema monetário em bases decimais, o subconstructo decimal do número racional deveria ser amplamente trabalhado no Ensino Fundamental, até mesmo precedendo o estudo dos números racionais na sua representação fracionária. Nesse sentido, nas coleções analisadas, as de Imenes et al. e a de Pires et al. parecem partilhar dessa concepção. Chamou-nos a atenção o fato de Pires et al. apresentarem o número racional como probabilidade, afirmando: situações como a possibilidade de acontecer um determinado resultado em um jogo também podem ser representadas por uma fração (p.138, 5a série). No Manual do Professor informam que na interpretação do número racional como razão há três tipos de situações: aquelas em que o número racional é usado como um índice comparativo entre duas quantidades, aquelas que envolvem probabilidade e aquelas que envolvem escalas (p. 39). Behr et al (1983) não discutem a probabilidade como um subconstructo do número racional, nem a incluem em outro subconstructo. Identificamos o uso da probabilidade como número racional em Nesher (1985, apud ROMANATTO, 1997, p. 71) que distingue os conceitos: 1) a fração como relação parte-todo; 2) número racional. Nessa segunda conceituação, o número racional pode ser interpretado como: resultado da divisão entre dois números inteiros, razão, operador e probabilidade. Pelo fato de não termos acessado os trabalhos de Nesher, nos apoiaremos apenas nos estudos de Romanatto (1999, p. 44), que afirma: A relação parte/todo em uma probabilidade deve ser entendida como uma comparação entre chances favoráveis ou necessárias e as chances possíveis. Outro aspecto a ser destacado nas coleções analisadas diz respeito à desarticulação, quase geral, entre os diferentes subconstructos. As únicas articulações identificadas são entre o subconstructo decimal e o quociente. O papel da linguagem: aspectos formais na apresentação do conceito de racional Nessa parte da análise pretendemos enfocar os aspectos formais da apresentação do conceito de número racional presentes nas coleções analisadas. Para isso procuramos identificar como os autores conduzem o uso da linguagem no decorrer das séries com o objetivo de abordar o conceito de racional na busca de aproximações com a linguagem formal da matemática, chegando à definição formal de racional. Primeiramente, para abordar essa questão é necessário apontar a perspectiva que estamos usando para os termos fração, fração ordinária e racional. De acordo com Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 7 Niven (1984, p.31) fração é um termo usado para “designar qualquer expressão algébrica com um numerador e um denominador”. Nesse sentido a fração representa uma noção mais ampla que pode englobar o número racional cuja definição conduz a idéia de fração ordinária, isto é, a expressão a/d (com a e d inteiros) a que se consegue chegar para representar o número racional. A coleção Imenes et al., no volume da 3ª série, apresenta as frações ilustrandoas por figuras via atividades exploratórias que tratam da relação entre grandezas. Nessa etapa, os autores não apresentam aos alunos a representação escrita da forma fracionária para somente fazê-lo no final das atividades afirmando:“você acabou de conhecer as frações 1/2; 1/6 e 5/6.” Um ponto de interesse referente à condução que os autores procuram dar à linguagem é uso da expressão “fica combinado”, que entendemos substituir o formal “Define-se”. Podemos identificar de maneira implícita uma introdução da estrutura axiomática da linguagem formal. No volume da 4ª série, são retomadas as frações representadas por figuras via atividades que pedem para que o estudante complete com a escrita ou nome das frações pintadas para, a seguir, iniciar a nomeação das frações com denominador maior que dez. Os autores apresentam a adição fazendo uso das representações fracionárias com denominador igual e de frações equivalentes sem a preocupação com um tratamento mais formal. No volume destinado à 5ª série, os autores retomam o que foi tratado acerca das frações anteriormente, conduzindo a uma abordagem mais formal através da apresentação dos termos denominador e numerador de uma representação fracionária, lançando ao aluno algumas questões para que haja uma reflexão acerca destes termos. Ainda não é apresentada nesta série nenhuma definição formal de número racional. No volume destinado à 6ª série, os autores sugerem uma relação entre representação decimal de um número e representação fracionária, sem a uma preocupação direta com formalizações, permanecendo na 7ª série a operar com as frações sem apresentar definições. Nessa fase os autores iniciam um certo delineamento apontando as frações, sem mencionar o termo racional, como números que expressam medidas ou o resultado da divisão de dois números inteiros. Os autores propõem de forma intuitiva a noção de número racional ao mencionar que as frações são um tipo diferente de número, apontando que o número inteiro pode ser um tipo especial de fração, sem fazer menção à organização dos números em conjuntos. Uma formalização só é apresentada no volume da 8ª série, em que os autores passam a apresentar os números organizando-os em conjuntos (N, Z, Q e Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 8 R). Quando abordam os números racionais, os autores fazem menção ao sentido de frações como uma expressão algébrica, apresentando o número π = C/D. Os autores trabalham primeiramente de forma intuitiva sem haver preocupação direta com a apresentação formal de definições, as quais foram apenas abordadas na 8a série, o que mostra ser um caminho interessante para a condução de uma linguagem mais próxima do aluno em direção à linguagem formal. Parece que o momento adequado para o início do tratamento de questões mais formais seja a 8a série. Entretanto, algumas questões surgiram: Como o aluno poderia interpretar a representação para π, uma vez que não fora diferenciada a Fração Ordinária da Representação Fracionária? Será que ele entenderia que a notação para π não seria uma fração ordinária, ou pensaria existir um paradoxo? Tais questões nos levam a refletir que o tratamento formal do número racional na 8a. possa ser considerado o início de um processo de reflexão formal sobre o conceito, o que demandaria uma continuidade no ciclo posterior. Daí entendemos que o tratamento das frações não fosse algo considerado como esgotado no Ensino Fundamental. Na coleção de Pires et al. identificamos que no volume da 5ª série, os autores introduzem os termos ´fração` e ´fracionar` como se esses fizessem parte do conhecimento léxico do aluno, usando uma terminologia acerca de conjuntos naturais e racionais. Já nesta série existe uma tentativa de formalização apontando que os números racionais são assim denominados porque exprimem a razão(ou quociente) entre dois números naturais. Entendemos que o modo como os autores abordam a questão sugere que sua intenção tenha sido atrelar a representação fracionária à noção de medida, entretanto, não vemos a necessidade de se apresentar o quociente entre dois números naturais como a denominação de números racionais, o que sabemos não ser verdadeiro. Parece haver uma necessidade em já apresentar uma definição, como sugere a estrutura axiomática da Matemática. No volume destinado a 6ª série não há definições, apenas trata dos números negativos. No volume da 7ª série, identificamos que não há menção à fração ordinária ou a outros tipos de frações enquanto expressões algébricas. Além disso, não é retomada a definição dada na 5ª série que considerava o racional apenas como o quociente entre números naturais. No material da 8ª não há menção à diferenciação das definições dadas na 5ª e 7ª séries para racional, e nem sobre as frações ordinárias. Pensamos que nesta fase seria o momento de se pontuar e dar as considerações necessárias a respeito das frações e a relação como os Números Racionais. Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 9 Na coleção de Bigode (2001), no volume da 6ª série, o autor aponta que utilizará a noção do latim de ratio como distribuição, afirmando que o resultado da divisão é chamado de número racional (p.68). Embora haja uma tentativa de definição de forma intuitiva, tal definição nos permitiria entender que π / √3, também poderia ser, neste caso, entendido como tal. Percebe-se uma tentativa do autor em logo dar uma definição para racional, embora trabalhe intuitivamente com o conceito. Apesar da abordagem intuitiva, o autor parece estar preso a uma necessidade de definição, isto é, preso ao formalismo. Parece haver uma preocupação em já apresentar uma definição para número racional nesta série no campo numérico (inteiros) abordado. Talvez fosse interessante que o autor, mais adiante, retomasse essa questão, a qual permitiria ao aluno ampliar o conceito de representação fracionária. Entretanto, não identificamos essa possibilidade até o final da coleção. O autor não retoma a questão da distinção entre frações ordinárias e frações algébricas, uma ampliação que imaginamos ser necessária. No volume destinado à 8ª série, o autor faz uso das noções dadas pela Teoria dos Conjuntos e aborda os Racionais a partir da questão de medida. Na página 25 o autor define e enuncia simbolicamente : Q={a/b/ a,b∈ Z e b ≠ 0}. Nessa coleção observamos que, apesar do desenvolvimento de um processo intuitivo para o conceito de racional, do ponto de vista da condução da linguagem, a necessidade de apresentação de definições aponta uma tendência à formalização, isto é, já no início do processo essa preocupação aparece presente. Tal questão nos faz refletir sobre o momento e de que forma introduzir a linguagem formal simbólica. Behr et al. (1983) apontam como questão quais conexões significativas existem entre os processos intuitivos (no caso do uso de materiais manipulativos) e o simbolismo matemático. Continuando, os autores ressaltam a importância do aluno expor oralmente sentenças matemáticas. Daí, entendemos a importância de se trabalhar com a oralidade do aluno com objetivo de conduzir a uma formalização. O papel dos materiais manipulativos no desenvolvimento dos subconstructos dos Números Racionais A utilização de materiais de manipulação para o desenvolvimento dos subconstructos dos números racionais é apontada por Behr et al (1983, p.121) como um importante recurso para a simulação de situações de resolução de problemas do mundo Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 10 real. Estes se apresentariam como um intermediário entre as situações-problema e o mundo das idéias abstratas e os símbolos escritos. Os materiais manipulativos (ou “ajuda manipulativa”, como definem os autores) merecem destaque para facilitar na aquisição e uso de conceitos de número racional, quando ressaltam a compreensão das crianças ao passar de situações concretas para situações abstratas. Apontam ainda as análises psicológicas indicando que a manipulação é uma componente principal no desenvolvimento de sistemas representacionais e que a habilidade em fazer traduções entre os vários sistemas de representação tornam as idéias mais significativas para as crianças. Segundo Behr et al (1983), tais materiais oferecem um mecanismo capaz de libertar o processo de pensamento das crianças visto que a compreensão de uma situação particular em uma seqüência de atividades com os mesmos pode contribuir para uma contínua reconstrução das condições do problema e pode permitir uma dinâmica de interação entre a resolução e as condições do problema. Enfatizaram que na pesquisa realizada a meta era identificar atividades manipulativas que usassem materiais concretos cujas estruturas se ajustassem à estrutura de um particular subconstructo de número racional que estava sendo ensinado (p.103) Post (1981) se refere a essa relação de simulação entre o material manipulativo e o conceito matemático como isomórfica, em que seria possível trabalhar no sistema mais simples, ou mais adequado (material manipulativo), e transferir todas as conclusões ao sistema menos acessível, simbólico (conceito matemático abstrato). Isso só é possível se a estrutura de ambos sistemas se mantiverem. Na verdade, os materiais de manipulação podem ser vistos como estruturas isomórficas, representando as noções matemáticas mais abstratas que se deseja que as crianças aprendam. A manutenção da estrutura é a base para a seleção do material a ser utilizado. O importante é garantir, na seleção do material, um conhecimento quanto às limitações e possibilidades de cada tipo de material. De maneira geral, as três coleções analisadas pouco contemplam a perspectiva de uso de material de manipulação no desenvolvimento dos subconstructos de números racionais, visto serem coleções mais recentes, da década de 90, e as pesquisas tanto psicológicas quanto metodológicas que defendem o uso de materiais de manipulação e jogos no desenvolvimento de conceitos, receberam maior destaque nas décadas de 70 e 80. Acreditamos que os autores das coleções pesquisadas não desconhecem os estudos existentes sobre os materiais manipulativos, uma vez que os mesmos trazem no manual do professor recomendações para que sejam usados pelos professores: jogos, quebra- Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 11 cabeças, dobraduras, calculadoras, computadores e tecnologias afins. Entretanto, poucas orientações são fornecidas quanto a esse uso. Das três coleções analisadas, destacamos a coleção do Bigode como sendo a que apresenta um maior uso de materiais de manipulação, seguido da coleção do Imenes et al e, por último da coleção de Pires et al., que faz pouca referência a tal utilização, principalmente nos volumes de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental. Considerando os aspectos apontados pela pesquisa de Behr et al (1983) e Post (1981), selecionamos alguns critérios de análise das coleções de livros didáticos desta pesquisa. 1° critério: Será que os materiais manipulativos sugeridos nos livros didáticos mantêm uma certa relação de isomorfismo com os subconstructos dos números racionais? Acreditamos que nas três coleções de livros a forma de abordagem proposta para o trabalho com o material manipulativo respeita essa relação de isomorfismo. Por exemplo, na coleção do Bigode é proposto no volume da 5ª série o trabalho com o subconstructo parte-todo e medida, a partir do quebra-cabeça tangran. A proposta de atividades a serem desenvolvidas prevê o desenvolvimento de composições e decomposições das figuras do quebra-cabeça. A relação de isomorfismo é então definida, onde ao compor e decompor as peças do tangran as relações parte-todo e medidas (área) são estabelecidas. O próprio manual do professor ressalta a importância do desenvolvimento de atividades de composição e decomposição com tangrans e pentaminós como preparação para as idéias relacionadas a frações. Além disso, o autor transcende os limites impostos pelo material do tangran, quando sugere: “Não é possível formar o triângulo grande com o quadrado, mas é possível medir o triângulo grande com o quadrado” (p.188). Parte de uma impossibilidade no tangran para gerar a necessidade da fração (obstáculo criado pelo material, no caso da medida). “Os inteiros que conhecemos dão conta de representar quantas vezes o quadrado do tangran cabe no triângulo grande, mas não são suficientes para representar quantas vezes o quadrado cabe no triângulo pequeno” (p.189) Na coleção de Pires et al., no volume da 5ª série é proposto o trabalho com as frações na forma decimal através da manipulação da calculadora básica. Também notamos a relação de isomorfismo na medida em que as operações com decimais a serem realizadas na calculadora exigem o estabelecimento da transformação fracionária/número decimal. Desta forma, desenvolve-se o subconstructo decimal do número racional. Similarmente nas outras duas coleções, as atividades com os números decimais são desencadeadas a partir da manipulação da calculadora básica. Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 12 Na coleção de Imenes et al., no volume destinado a 6ª série, propõe-se o trabalho com possibilidades e estatística a partir da manipulação de jogos com dados. Desta forma, estabelece-se uma relação de isomorfismo entre o jogo de dados, cuja estrutura subjacente é o cálculo de probabilidades e chances e o subconstructo razão de um número racional, medida desta chance. Similarmente, Pires et al., no volume da 3ª série e Bigode, no volume da 7ª série, propõem o trabalho com probabilidades a partir do lançamento de dados e moedas. As atividades com dobraduras (dobrar ao meio, 1/3, ¼, etc) também são bastante exploradas nas três coleções de livros sempre no desenvolvimento do subconstructo parte-todo e medida (equivalência de área) de um número racional. 2° critério: Os volumes de 1ª a 6ª séries contemplam mais o uso de material manipulativo, visto que a Psicologia (Post;1981,p.6) aponta a necessidade desta valorização neste nível escolar? Notamos que nas três coleções de livros, nos volumes de 3ª a 6ª séries, existe uma prioridade no trabalho com os materiais manipulativos e representações por meio de desenhos, representação icônica2. Na coleção do Bigode, são explorados vários tipos de materiais manipulativos (dobraduras, jogos, recortes, lançamento de dados de diferentes formas e moedas) até o volume da 7ª série. Ressaltamos que em toda a sua coleção (volumes de 5ª a 8ª séries), o autor procura sempre explorar o material a partir de seus limites e possibilidades de uso, propiciando desafios para o desenvolvimento dos diversos subconstructos do número racional. Na coleção de Pires et al. existe uma prioridade nos volumes de 3ª e 4ª série das representações icônicas e propostas de uso de material de manipulação (dobraduras, dados, tangran, cuisenaire, quadriculados e mosaicos). Nos volumes de 5ª a 8ª séries praticamente não existe o uso de material de manipulação, exceto nos volumes de 5ª e 6ª séries que se propõe o uso da calculadora básica e alguns exercícios que sugerem a manipulação de folhas, palitos e dobraduras. Entretanto, ressalta-se que no manual do professor a autora sugere que se utilizem novas tecnologias, jogos e materiais manipulativos que não estejam somente nos livros (p.11). É fato para se pensar: onde o professor irá buscar referências destes materiais senão nos poucos livros didáticos que ainda exploram este tipo de material? Finalmente, na coleção de Imenes et al. notamos uma prioridade no uso de materiais manipulativos e representações icônicas nos livros de 3ª a 6ª séries. Explora bastante o uso de 2 Representação icônica, segundo Bruner, corresponde ao uso de meios visuais de representação: filmes, desenhos, etc. (Post,1981,p.11) Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 13 calculadoras, jogos, dobraduras e recortes. Ressalta-se que nesta coleção de livros, todo o material sugerido (jogos, recortes, etc.) encontra-se disponível para os alunos, como um encarte no final de cada volume, facilitando o trabalho do professor. Além disso, no manual do professor existe uma ampla bibliografia sugerindo periódicos e publicações diversas que auxiliem o professor no desenvolvimento do trabalho com os materiais de manipulação propostos. 3° critério: Existe uma preocupação nos livros didáticos com a variabilidade de materiais a fim de estimular a generalização conceitual e a busca de regularidades (POST,1981, p. 8)? Desta forma, pretende-se evitar o “objeto protótipo” a fim de que o aluno não pense que só é possível desenvolver o conceito em um único objeto. Também para esse critério, observamos que nas três coleções de livros, os autores procuram estabelecer essa variabilidade, através da exploração de diferentes materiais nos vários exercícios propostos e introdução de novos conteúdos. Por exemplo, Pires et al.exploram o subconstructo de número racional parte-todo e medida a partir da exploração do tangran, do cuisenaire, da fita métrica e das dobraduras, na mesma perspectiva e em diferentes atividades. Da mesma forma, Bigode explora o tangran de diferentes formas e em momentos variados (conceitualização do subconstructo partetodo e medida, operações com frações, etc.). Finalmente, Imenes et al. exploram os subconstructos dos números racionais, variando os materiais propostos nos diferentes exercícios e problemas. Portanto, considerando a análise processada nas três coleções identificamos uma reduzida abordagem de uso de materiais de manipulação no desenvolvimento dos subconstructos de números racionais, embora tal abordagem seja vinculada a uma perspectiva adequada de desenvolvimento das atividades, coerente com a proposta pedagógica de cada autor e vinculada a uma perspectiva de resolução de problemas. É fato para se considerar que as pesquisas que contemplam o uso de materiais de manipulação e jogos no ensino da Matemática necessitam ser ampliadas, visto que, segundo Behr et al. (1983,p.108) “Embora seja freqüentemente recomendado que as crianças aprenderiam as idéias matemáticas com o auxílio do material concreto manipulativo, muito pouco se sabe sobre como o auxílio do manipulativo influencia no pensamento matemático da criança ou no desenvolvimento conceitual.” Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 14 Questões para se pensar sobre a abordagem dos racionais O presente estudo suscitou muitas dúvidas e inquietações, que merecem novas pesquisas. Uma delas diz respeito à amplitude conceitual do número racional. Nesse sentido, Romanatto (1997, p.101) propõe que o número racional seja visto como uma teia de relações e que o trabalho pedagógico ocorra em situações contextualizadas – condições para que o aluno possa compreender tal amplitude e distinguir os diferentes significados com que esse tipo de número possa se manifestar. A verdadeira significação do conceito de número racional passa, pois, por um trabalho pedagógico que contemple os diferentes contextos nos quais tal conceito se faça presente. A forma fragmentada com que esse conceito vem sendo apresentado ao aluno, bem como a pouca ênfase na utilização de materiais manipulativos dificilmente contribuirão para a sua compreensão. Outra questão diz respeito ao momento em que todos os subconstructos devam ser apresentados ao aluno. O trabalho deve ser gradativo? Ou sempre que possível, sejam apresentados dois ou mais subconstructos para que o aluno possa ir diferenciando um contexto de outro? É possível dar conta de explorar os sete subconstructos até a 8a série, ou este é um tema que poderia ser trabalhado no Ensino Médio? Quais deles deveriam ser privilegiados no Ensino Fundamental? Essas questões apontam para o fato de que o trabalho com números racionais, começando com os aspectos intuitivos até os formais, não se esgota no ciclo do Ensino Fundamental, não podendo ser considerado, nas séries posteriores, como um objetivo já atingido. Palavras-chaves: Número racional – Linguagem – Materiais Manipulativos. Referências Bibliográficas BEHR, Merlyn J. LESH, Richard, POST, Thomas R. & SILVER, Edward A. RationalNumber Concepts. in LESH, Richard & LANDAU, Marsha (ed.). Acquisition of Mathematics Concepts and Processes. New York:Academic Press.1983. BIGODE, Antonio José Lopes. Matemática hoje é feita assim. São Paulo: FTD, 2000. IMENES, Luis Marcio, JAKUBO, José Jakubovic, LELLIS, Marcelo. Novo Tempo: Matemática. São Paulo: Scipione, 2001. IMENES, Luis Marcio, LELLIS, Marcelo. Matemática para todos. São Paulo: Scipione, 2002. NIVEN, Ivan. Números: Racionais e Irracionais. Trad. Renate Watanabe. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Matemática, 1984. PIRES, Célia Carolino, NUNES, Maria. Matemática no planeta azul. São Paulo: FTD. 1998. Anais do VIII ENEM - Comunicação Científica GT 2 - Educação Matemática nas séries finais do Ensino Fundamental 15 PIRES, Célia Carolino, CURY, Edda, PIETROPAOLO, Ruy. Educação Matemática. São Paulo: Atual, 2002. POST, Thomas R. O Papel dos Materiais de Manipulação no aprendizado de conceitos matemáticos. In: LINDQUIST,Mary Montgomery Selected Issues in Mathematics Education. Tradução: Elenisa T. Curti e Maria do Carmo Mendonça, 1981. ROMANATTO, Mauro C. Número Racional: relações necessárias a sua compreensão. Tese (doutorado), Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, 1997, 158p. ________ . Número Racional: uma teia de relações. Zetetiké. CEMPEM – FE/UNICAMP. v. 7, nº 12, p. 37-49 – Jul./Dez. 1999.