ASSOCIAÇÃO DE PROFESSORES PRIMÁRIOS MATO-GROSSENSES: O
DESPERTAR DE UMA CLASSE PROFISSIONAL
Regina Aparecida Versoza Simião - UFMT/IE
[...] não podemos entender a classe a menos que a vejamos como uma formação
social e cultural, surgindo de processos que só podem ser estudados quando eles
mesmos operam durante um considerável período histórico (THOMPSON, E., 1987,
p.12).
Na elaboração da minha dissertação de mestrado, “História e Memória: o processo de
profissionalização docente em Mato Grosso (1930-1960), busquei a partir das histórias de vida
de
“velhos”1
professores
primários,
compreensão
sobre
como
foi
ocorrendo
a
profissionalização da docência neste Estado.
Esta comunicação é resultado de um pequeno recorte desta pesquisa, quando se
procurou visualizar o movimento de criação da primeira Associação de Professores Primários
em Cuiabá. Conforme Nóvoa (1995), o processo de profissionalização da docência foi
ocorrendo num processo gradativo, gerado pelas relações estabelecidas entre o professor e o
Estado. Historicamente, a última etapa deste processo ocorre no momento em que os
professores se conscientizam enquanto classe profissional, materializando-se na criação das
primeiras associações de professores.
A segunda metade do século XIX é um momento importante para compreender a
ambigüidade do estatuto dos professores. Fixa-se, neste período, uma imagem intermediária
dos professores, que são vistos como indivíduos, sem um papel ou uma classe definida.
Não são burgueses, mas também não são do povo, não devem ser intelectuais, nem
têm de possuir um bom acervo de conhecimentos; não são notáveis locais, mas tem
uma influência importante nas comunidades; devem manter relações com todos os
grupos sociais, mas sem privilegiar nenhum deles; não podem ter uma vida
miserável, mas devem evitar toda a ostentação; não exercem o seu trabalho com
independência, mas é útil que usufruam de alguma autonomia; etc... (NÓVOA, 1995
b, p. 18).
1
Parte da documentação oral utilizada, oriunda de pesquisa realizada pelo grupo de História Oral, do Instituto de
Educação da UFMT, sob orientação do Prof. Dr. Nicanor Palhares Sá e Elizabeth Madureira de Siqueira, que teve
projeto aprovado pelo CNPq em 2002, intitulado “História Oral na Educação Mato-Grossense”. Utilizei no
decorrer da pesquisa de 22 depoimentos (histórias de vida) de professores aposentados, que exerceram sua
atividade profissional na região norte e sul do Estado, pois, Mato Grosso no período abarcado pela pesquisa,
ainda era uno. Para este recorte sobre a origem dos movimentos associativos, utilizei 4 depoimentos.
As escolas normais acabaram por se constituir numa conquista importante dos
profissionais da educação, que, a partir de um local comum, foram dignificados e se sentiram
prestigiados pelo que estes estabelecimentos representaram para toda a sociedade, nas
primeiras décadas do século XX.
O aumento de exigências para a entrada na escola normal, bem como o currículo mais
prolongado e específico, proporcionaram uma melhora do nível acadêmico. Estas
prerrogativas passaram a ser algumas das reivindicações iniciais nas lutas associativistas. “As
Escolas Normais estão na origem de uma verdadeira mutação sociológica do corpo docente: o
“velho” mestre-escola
é definitivamente substituído pelo “novo” professor de instrução
primária (NÓVOA, 1995 b, p.18).
Thompson (1987, p.12) alega que a luta de interesses de uma classe “é definida pelos
homens enquanto vivem suas próprias histórias e, ao final esta é sua única definição”. E, de
acordo com Nóvoa (1995 c, p.19), foi exatamente a “indefinição” do estatuto e o relativo
“isolamento social” que acabaram provocando nos professores uma solidariedade, que, de
certa forma, culminou numa identidade profissional. Foi um trabalho que foi sendo realizado
dentro das escolas normais, tendo em vista a ação das associações de professores:
Trata-se de um momento importante do processo de profissionalização, na medida
em que estas associações pressupõem a existência de um trabalho prévio de
constituição dos professores em corpo solidário e de elaboração de uma mentalidade
comum: não espanta, por isso, que as associações tenham à sua frente professores e
antigos normalistas portadores de um projeto renovado da profissão docente
(NÓVOA, 1995 b, p. 19).
Nóvoa (1995 c, p.19), argumenta que a escolha do modelo associativo mais adequado
aos professores foi objeto de longas controvérsias, mas as práticas associativas pautaram-se,
quase sempre, por três eixos reivindicativos: melhoria do estatuto, controle da profissão e
definição de uma carreira. O prestígio dos professores, no início do século XX, é indissociável
da ação levada a cabo pelas suas associações, que acrescentam à unidade extrínseca do corpo
docente, imposta pelo Estado, uma unidade intrínseca, construída com base em interesses
comuns e na consolidação de um espírito de corpo, que acaba por se constituir numa classe
profissional:
A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns,
sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens
cujos interesses diferem dos seus. A experiência de classe é determinada, pelas
relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente.
A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos
culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais
(THOMPSON, E. 1987, p.11).
No início do século XX, agitavam-se os trabalhadores de todo o mundo com as idéias e
os ideais socialistas, na luta por melhores salários e condições de trabalho. Na Europa,
fundaram-se os sindicatos e celebraram-se congressos internacionais, que levaram à
constituição de partidos políticos proletários. No Brasil, esse movimento se concentrou em
São Paulo, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, onde se fundaram sindicatos dos
trabalhadores têxteis, da indústria de couros, dos gráficos e de outras categorias, lideradas
pelos anarquistas, gradativamente iniciados nos processos coletivos de identidade profissional.
[...] o processo de construção de identidade coletiva se dá através de pequenas lutas,
que se forjam nos locais de trabalho e de moradia e se convertem em movimentos
mais amplos e abrangentes: [...] É na teia da constituição dessas lutas que se forjam
as condições para a tomada de consciência do que significa ser trabalhador. [...] Essa
aprendizagem que se dá no cotidiano e nos momentos de embates envolve
ensinamentos adquiridos através da vivência, mas também está perpassada por um
conjunto de práticas e experiências educativas mais sistemáticas, realizadas em
espaços de troca, reflexão e teorização (MANFREDI, 1996, p. 23).
Em Mato Grosso, esta agitação passou a ser percebida a partir do ano de 1938, quando,
no Jornal Gazeta Oficial, vêem-se publicadas convocações para formação de sindicatos das
mais diversas categorias profissionais.
A primeira comissão, criada para sindicalização de professores em Mato Grosso, foi
formada por um grupo de professores secundários da rede pública, formada por Francisco
Alexandre Ferreira Mendes, Aline do Nascimento Tocantins, Franklin Cassiano da Silva,
Helena Deschamps Rodrigues, Antonio Cesário Neto, Amélia de Arruda Alves e Jercy Jacob.
Chegaram a publicar um convite a todos os professores primários e secundários, públicos e
particulares, para uma reunião com a finalidade de sindicalização dos profissionais do
magistério (JORNAL GAZETA OFFICIAL, 1938, p. 6).
Contudo, nenhum movimento posterior comprovou uma organização associativa
oriunda desta convocação. Observa-se, porém, que a iniciativa sindicalista parte da esfera
federal por meio do Ministério do Trabalho, que se responsabilizou por organizar as diversas
categorias profissionais.
Assim sendo, o registro profissional dos professores e auxiliares da administração
escolar, a partir daquele momento, passou a ser pautado pelo Decreto-Federal nº 2.028, de 22
de fevereiro de 1940, sendo exigido o registro na Delegacia Regional do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, nos respectivos Estados brasileiros. Para tal, deveriam ser
apresentados os seguintes documentos: a) certificado de habilitação para o exercício do
magistério, expedido pelo Ministério da Educação e Saúde, ou pela competente autoridade
estadual ou municipal; b) carteira de identidade; c) folha corrida; d) atestado, firmado por
pessoa idônea, de que não estava respondendo a processo, nem havia sofrido condenação por
crime de natureza infamante; e) atestado de que não sofria nenhuma doença contagiosa,
passado por autoridade sanitária competente (BRASIL, Legislação Federal, Diário Oficial.
1940, p. 8).
Observou-se que as esferas estaduais e municipais, provavelmente, não procederam
convenientemente na expedição dos certificados de habilitação de seus quadros docentes, pois,
no final do mesmo ano, a Delegacia Regional do Ministério do Trabalho de Mato Grosso,
centralizando essa medida, expediu o seguinte edital:
Pelo presente edital, torno público para conhecimento dos interessados, que, segundo
decisão do Exmo. Sr. Presidente da República em exposição do Sr. Ministro do
Trabalho, publicada no Diário Oficial de 18 de novembro último, só podem ser
registrados nesta Delegacia Regional os professores que possuam certificados de
habilitação fornecidos pelo Ministério da Educação e Saúde. Cuiabá, 16 de dezembro
de 1940. Ass.: Dulce. A. Souza (MINISTÉRIO DO TRABALHO, INDÚSTRIA E
COMÉRCIO. Diário Oficial, 1940, p. 5).
Durante o primeiro governo Vargas (1930/1945), a forte centralização das políticas
públicas, o controle das relações entre patrões e empregados através de uma sindicalização
monitorada pelo Ministério do Trabalho, reduziram o serviço público a uma relação
paternalista; assim sendo, as entidades de servidores públicos nascidas nessa época, não se
constituíram em sindicatos, mas, sim, em associações. A lei federal de organização sindical só
iria vigorar a partir de 1988; portanto, este momento do processo de organização da categoria
profissional dos professores sofreu constante influência assistencialista, típica do período.
Em São Paulo, o (CPP) Centro do Professorado Paulista, e, em Minas Gerais, a
(APPMG) Associação dos Professores Primários de Minas Gerais foram entidades precursoras
na produção de “um discurso que reiterava a necessidade da união dos professores em torno de
uma associação, que, como porta-voz da categoria, expressasse suas aspirações e defendesse
seus direitos” (CATANI et.al.,1997, p. 85).
Convém analisar que, paralelamente ao processo de profissionalização da docência,
foi ocorrendo o processo de proletarização do magistério primário, pois, apesar de ter sido
uma profissão que nasceu com o paradigma da desqualificação, essa característica acentuou-se
nesse período, se, considerar-se que,
Até os anos cinqüenta a maioria dos professores e professoras era constituída de
pessoas que não subsistiam com seu salário. Ou eram homens da zona rural que,
além das aulas, se dedicavam e usufruíam seu trabalho agropecuário; ou eram moças
e senhoras que contavam com as rendas do pai ou do esposo. Ora, a partir da intensa
urbanização que veio concomitantemente com a industrialização depois de 1930, as
matrículas explodiram e o magistério começou a ser ocupado crescentemente por
homens e mulheres que dependiam do salário para sobreviver. Ou seja: mesmo que o
valor real do salário não baixasse (o que também passou a acontecer aceleradamente
com a inflação), a necessidade dele para a sobrevivência dos professores passou de
exceção para regra. Esta é a causa da dinâmica associativista ter-se aprofundado e
expandido neste período, levando o magistério para suas primeiras e efetivas lutas
sindicais (MONLEVADE, 2001, p. 58).
A urbanização e a industrialização concorreram para a divisão do trabalho na escola
e também acabou criando condições para um trabalho de cooperação entre os docentes,
levando-os à unidade, em busca de interesses comuns.
A conseqüência principal da proletarização dos trabalhadores da educação é a criação
das condições de luta unificada. Em primeiro lugar, permite que todas as categorias
profissionais lutem por melhores condições salariais e de trabalho. Em segundo,
permite sua unificação com a totalidade da classe e, finalmente, permite reforçar os
quadros das organizações especificamente políticas da classe (PALHARES SÁ,
1986, p. 28).
Assim sendo, foram-se multiplicando pelos Estados brasileiros as associações
estaduais de professores primários, surgindo as primeiras iniciativas de organização nacional.
Na década de cinqüenta realizaram-se três Congressos com a participação crescente
de entidades e de delegados dos Estados e Territórios. Finalmente, em 1960 foi
fundada a CPPB – Confederação de Professores Primários do Brasil, com sede no
Rio de Janeiro. Sem dúvida, os professores e professoras primárias das redes
estaduais constituíam a categoria mais numerosa entre os educadores públicos no
país. Eram quase trezentos mil àquela época (MONLEVADE, 2001, p.38).
No dia 20 de dezembro 1961, sob nº 4.024, surge a primeira Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, que é aprovada poucos meses após a renúncia do presidente
Jânio Quadros. O projeto original acabou sendo totalmente mutilado. De toda maneira, a nova
lei representou um avanço, pois, pela primeira vez, o sistema escolar foi conceitualmente
unificado (MARCÍLIO, 2001, p. 09).
Conforme as novas diretrizes, o ensino primário manteve sua estrutura, que era de quatro
ou cinco séries, a partir dos sete anos de idade; o secundário ficou dividido em dois ciclos: 1º.
ciclo ginasial, com quatro séries e o 2º. Ciclo, ou colegial, com três séries e várias opções
curriculares.
Conforme Monlevade (2001, p. 42), apesar da nova estrutura nacional de educação,
deparava-se o país com o fenômeno inflacionário que, no ano de 1964, atingira o patamar de
80%. De certa forma, foi um fator que motivou as primeiras greves de educadores no Brasil,
acontecidas em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Essas mobilizações tiveram seu ápice em outubro de 1963, quando o magistério
público de São Paulo, durante a gestão de Adhemar de Barros, realizou a primeira
greve da história da categoria. Deflagrada num momento de intensa agitação
política – cerca de seis meses antes do Golpe Militar de 1964 -, a paralisação
durou uma semana e obteve o atendimento das reivindicações dos professores
(CATANI, et.al., 1997, p. 89).
Frentes de trabalho para capacitação dos professores, para atuarem como supervisores
do ensino, estavam sendo implementadas em todo o país. Este intercâmbio propiciou um
entrosamento maior entre os professores primários, oportunizando a troca de experiências e
estimulando a organização das associações nos Estados que ainda não se haviam predisposto a
isso.
A criação da primeira Associação Mato-grossense de Professores Primários está
incluída nessa última categoria, pois, conforme nos foi relatado pela professora Inalda2, foi
após o término do curso de supervisão de ensino, realizado em Belo Horizonte, com a
participação de 56 professoras de diversos municípios mato-grossenses, começou a despertar o
interesse associativista. O contato com professores de outros Estados, a troca de experiências,
contribuíram para alargar os horizontes, começando pelo aprimoramento profissional.
A Secretaria da Educação estava convocando pessoas, que quisessem fazer o curso
de supervisão do ensino primário em Belo Horizonte. Eu me inscrevi, fui para Belo
Horizonte no segundo semestre de 1963 e o curso terminou no 2º. Semestre de 1964.
[...] O curso era um convênio do Ministério da Educação com as Secretarias de
Estado.[...] Foi realizado no Instituto de Educação. Nossos professores tinham sido
2
Todas as informações obtidas sobre a primeira Associação Mato-grossense de Professores Primários basearamse nas informações prestadas pela profª. Inalda Franco de Almeida Lytton, que, durante muitos anos, esteve à
frente da associação, sendo ela mesma sua idealizadora. Afinal, nenhum outro documento foi localizado junto ao
SINTEP, atual sindicato dos professores.Tudo indica que os mesmos tenham sido destruídos quando da mudança
de endereço.
treinados nos Estados Unidos, e o curso foi muito bom. [...] Me ajudou muito,
porque, quando retornei à Cuiabá, prestei vestibular e passei (LYTTON,
depoimento..., 2003).
Ao retornarem, essas supervisoras foram nomeadas para as várias regiões do Estado
de Mato Grosso. Em Cuiabá, foram nomeadas 14 supervisoras, que eram responsáveis pelo
acompanhamento e monitoramento dos professores nos seus estabelecimentos de ensino.
Inalda (2003) relatou que a primeira supervisora-chefe nomeada no Estado, para a região
norte, foi a Profª. Nazita Prado Santiago, ficando lotada em Cuiabá, juntamente com Amil
Terezinha, que foi nomeada para região sul, ficando lotada em Campo Grande.
Como já havia sido criado o Centro de Treinamento e Aperfeiçoamento contínuo de
Professores Primários, foi neste local que essas supervisoras tinham a incumbência de
capacitar as professoras leigas e reciclar as antigas normalistas dentro das modernas práticas
pedagógicas. Conforme Inalda (2003), junto com aquelas que fizeram curso de supervisão,
algumas professoras optaram por fazer cursos de especialização em linguagem, estudos sociais
e matemática, tornando-se, assim, especialistas nessas áreas de formação. O ensino primário
mato-grossense passou, assim, por um completo processo de renovação, pois as supervisoras
objetivavam capacitar os professores dentro das mais modernas técnicas.
A idéia de criação da associação de professores também surgiu nesse período, após o
retorno do curso de supervisão de ensino, quando, num bate-papo entre as professoras Inalda e
Yêda Bezerra, aventou-se sobre a impressão positiva que ambas tiveram da Associação dos
Professores Primários de Minas Gerais, e acharam por bem que Mato Grosso também devesse
ter uma associação. Assim sendo, confabularam: Vamos criar uma associação de professores
primários aqui em Mato Grosso? Animaram-se com a idéia e decidiram:
Vamos chamar uma professora que seja bem vista e benquista de todos e que seja
diretora de escola, para angariar mais gente. Convidamos Dª. Ruth Costa Marques
para assumir a presidência e a Dª. Leonor Saliés, que era diretora da Escola Modelo.
[...] Então, nós colocamos na chapa os diretores, para comporem a comissão
provisória, que foi eleita por aclamação (LYTTON, depoimento..., 2003).
Assim sendo, em 29 de junho de 1965, a partir da iniciativa dessas duas professoras
primárias, foi fundada, em Cuiabá, a (AMPP) Associação Mato-grossense de Professores
Primários. Composta, inicialmente, por uma comissão provisória, tendo a Profª. Ruth Costa
Marques, como presidente, visando a buscar o consenso e a adesão da maioria dos professores,
tanto é que a mesma foi eleita por aclamação.
A primeira diretoria eleita por meio de voto foi composta pelas professoras: Yêda
Bezerra – Presidente; Leonor de Almeida Saliés - Vice-Presidente e Inalda Franco de Almeida
Lytton – Secretária.
Recém-empossada presidente da Associação Mato-grossense, Yêda Bezerra participou
do VII Congresso Nacional de Professores Primários, acontecido em Curitiba-PR, no ano de
1966. Cheia de entusiasmo, convidou os congressistas para que o próximo encontro ocorresse
em Cuiabá, o que foi aprovado. Sobre isso, comenta Monlevade.
A AMPP foi, não só prestigiada, como recebeu um grande impulso institucional:
Cuiabá
sediou o VIII Congresso Nacional da Confederação dos Professores Primários do
Brasil, quando professores e intelectuais de todo o país lotaram, em sua abertura, o
auditório do Liceu Cuiabano, num evento que tirou Mato Grosso de seu isolamento
cultural (2001, p. 62).
Quando Yêda Bezerra retornou do Congresso de Curitiba, sentiu o peso da
responsabilidade que havia assumido, pois, até aquele momento, Cuiabá não havia sediado
nenhum congresso desse porte, pela falta de estrutura própria da época.
Nas primeiras reuniões realizadas para deliberação da organização do congresso,
quando alguém discordava das suas idéias, ameaçava ela deixar a presidência. Até que, num
determinado momento, sua vice, Leonor Saliés, cansada de suas ameaças, assumiu
definitivamente a presidência, não só da Associação, como também do VIII Congresso
Nacional de Professores Primários, que acabou acontecendo em julho de 1967. Ela mesma
relata, com muito orgulho e entusiasmo, o transcorrer do evento, levando-se em consideração
que se trata de um depoimento de uma pessoa com 94 anos de idade.
Fui nomeada como Presidente do Congresso, que foi representado por professores de
todos os Estados, que vinham até mim [...] Tudo era sob a minha direção, não sei
como, eu nunca tinha visto um congresso, nunca tinha visto tanta gente junta. Foram
três dias de festa, almoço, jantar, lanche, ceia. Brincadeiras, muita coisa boa,
bonita.[...] Houve palestras que aconteceram no Colégio Estadual. Dr. Lenine Póvoas
fez o discurso de abertura. Olha foi uma maravilha! Queria que você visse! Parecia
um sonho, nunca houve uma festa tão empolgante e aconchegante como esta. A
animação do povo de fora, e olha que cada um veio por sua própria conta. Houve um
testemunho, depois, de uma professora que disse: “Congresso foi o de Cuiabá”. Isso
me deu orgulho, pois fui a dirigente do congresso, meu nome que saiu lá (SALIÉS,
depoimento..., 2003).
Inalda (2003) esclareceu, que o êxito desse congresso se deveu ao apoio incondicional
da Secretaria da Educação, o que gerou alguns desconfortos ideológicos por parte de alguns
delegados nacionais, que discordavam desse tipo de apoio. Contudo, na época, não haveria
outra forma de sediar o congresso, se assim não o fosse. Sobre a atuação da Associação Matogrossense de Professores Primários, Monlevade esclarece:
Não admira que a ação da AMPP se tenha pautado por atitudes "bem comportadas",
de afirmação da categoria, de reivindicação, talvez, mas longe de qualquer pretensão
de mobilizar os professores para greves ou manifestações que ofendessem as
autoridades. Afinal, eram elas que podiam "conceder" aumentos salariais, abrir
concursos, aprovar planos de carreira. Tinham que ser respeitadas e, até mesmo,
"incensadas", como forma de sensibilizá-las para a valorização da classe do
magistério, àquela altura já atingida pela onda geral de desvalorização (2001, p. 62).
A insegurança era uma constante na vida dos profissionais da educação. Mesmo
sabendo de seus direitos, eles não ousavam reclamá-los, resignando-se às decisões que lhe
eram impostas; por isso que as primeiras associações refletem atitudes de um profissional
ainda acuado, pequeno, dominado.
Os professores daquelas longínquas décadas de 30, 40, 50 participavam pouco ou
nada de política. Os movimentos de 30, 32 passaram por nós sem deixar marcas em
nossa lembrança. Também a vida do professor era feita de insegurança: financeira,
política e emocional. Entrava-se no magistério através da influência de algum
pistolão; mais tarde, se mudava o governo, quem era contra lia no jornal sua
exoneração. Todo mundo era interino – não se falava em concurso de efetivação,
tampouco em aumento. Não se tinha direito à previdência social; só em 1951 é que
foi criado o IPMAT. Apesar disso, ninguém fazia greve, ninguém se revoltava
(MACHADO, depoimento..., 1990, p. 66).
Joana Evangelina, no seu depoimento, relatou que a indiferença dos governantes para
com os docentes acabou gerando um movimento solidário, que resultou na consciência de
classe identificada pela ruptura da acomodação.
As discussões políticas eram proibidas nas escolas; todo mundo mantinha a boca
fechada, com medo de perder o ganha-pão. Vivíamos oprimidos, com pavor de
perder o emprego. O governo nos trazia debaixo do medo e sempre nos tratou com
muita indiferença. Lembro-me de uma colega, a Lídia Machado, que ficou
tuberculosa e morreu em Campos do Jordão. Quem sustentou a estada dela lá no
sanatório fomos nós, as colegas, que juntamos nosso pouco dinheirinho, para pagar
suas despesas. Os governantes só se mostraram sensíveis aos problemas da classe,
antes de assumir. Em meus cinqüenta e um anos de trabalho, nunca vi um governo
que pensasse no professor, a não ser na hora de pedir voto. Nunca nenhum trabalhou
por nós. O que temos é graças à Associação de Professores, um grupo corajoso que
se uniu, para defender os problemas da classe (MARTINS, depoimento..., 1990, p.
147).
Ouvindo “velhos” professores mato-grossenses, foi possível compreender as
vicissitudes próprias da profissão nos meados de 1930 a 1960, período decisivo na
organização da profissão, tendo em vista o ingresso nas Escolas Normais “Pedro Celestino” e
“Joaquim Murtinho”, que, na época, acabaram por se constituir nas instituições formadoras do
quadro de profissionais do magistério no Estado.
Os estudos contemporâneos sobre o processo de profissionalização da docência têm
buscado compreensão sobre a temática, tendo por enfoque principal a pessoa do professor
tanto nas condições objetivas como subjetivas no exercício da profissão. Por isso, durante todo
o estudo, procurou-se compreender essas condições de acordo com o depoimento dos próprios
sujeitos que vivenciaram o processo, demonstrando que as primeiras atitudes de
conscientização profissional foram ocorrendo num período onde a instabilidade profissional
era constante, devido aos desmandos políticos, que desencadearam uma crise de identidade
profissional.
“Para professora ou professor de escola qualquer um serve”. Lembro de tempos tão
próximos em que a mudança de prefeito ou governador podia significar a mudança
do quadro do magistério. Os apadrinhados e apadrinhadas ocupavam as salas de aula,
as diretorias e cargos de confiança. “Que diferença faz?”, se pensava, “para ensinar
as primeiras letras qualquer um serve” (ARROYO, 2000, 189). Grifo do autor
Em todo o Brasil, durante o Estado Novo, o autoritarismo imperava, tanto nas escolas
como na família. A disciplina impunha padrões de comportamento, sendo o castigo físico
utilizado e normalmente autorizado. O Estado, visando ao bem estar social da família e à
formação do cidadão, definia uma política de severidade, que era absorvida pelos professores,
quando da sua prática pedagógica. O ensino era visto como missão, não como uma profissão.
Totalmente despolitizados, os professores eram submetidos a salários miseráveis, acuados e
impassíveis, eram demitidos sem qualquer justificativa, ou, então, igualmente, assistiam à
demissão de colegas. O medo congelava qualquer iniciativa, porque os ideais do trabalho
assumido representavam amor, doação e resignação; qualquer atitude contrária, como
questionamentos, mobilizações, greves, não eram consideradas atitudes dignas, restando ao
professor, como única recompensa, a realização pessoal e o reconhecimento público do seu
nobre mister.
As condições materiais de trabalho deixavam a desejar pela precariedade das
instalações escolares, pela constante falta de material didático, pelos salários baixos e
atrasados; e, mesmo assim, o ensino continuava avançando. Este paradoxo parece confirmar o
pressuposto de que é impossível dissociar a profissão docente da pessoa do profissional,
porque tudo indica que as atitudes pessoais, como dedicação constante, além da sala de aula e
a adaptação diária de condições físicas desfavoráveis no desempenho da função, é que
mantiveram o ensino caminhando. Verificou-se que os problemas apresentados no dia-a-dia
não são menores; ao contrário, representam a história de uma maioria, demonstrando que
cotidiano e história não são noções contraditórias, mas que norteiam a possibilidade de
localizar as rupturas e continuidades.
Quando se visualiza o processo de profissionalização da docência, constata-se quão
distantes eram os ideais do projeto educacional e as realidades cotidianas de organização do
quadro docente, demonstrando que o grande entrave na profissão possa ser exatamente esta
dicotomia.
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_____. Vidas de Professores. 2 ed. Porto/Portugal: Porto Editora Ltda, 1995 (c).
SALIÉS, L. A. Leonor de Almeida Saliés: depoimento (out. 2003). Entrevistadora: R. A. V.
Simião. Cuiabá: 2003. 1 fita cassete (60 min) 3 ¾ pps, estéreo. Entrevista concedida ao
Projeto de História Oral, “História Oral na Educação Mato-Grossense” IE/UFMT
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária. Trad. Denise Bottman. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987.
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