AS AMANTES EM “OS LUSÍADAS”: ALGUNS COMPORTAMENTOS FEMININOS DISCREPANTES DO PARADIGMA
CRISTÃO NO ÉPICO DE CAMÕES
ELOÍSA PORTO CORRÊA (FFP-UERJ)
RESUMO:
Os comportamentos das figuras femininas históricas do épico de Luís de Camões, “Os Lusíadas”, são tanto mais exaltados
pelo Gama, em sua narração ao Rei de Melinde, quanto mais se
aproximam do comportamento de Maria, mãe de Jesus, modelo
de perfeição feminina cristã, paradigma de comportamento da
mulher, segundo o Cristianismo.
Vênus, deusa do amor e da beleza, na narração do Poeta, é
o avesso de Maria, um antimodelo com o qual se identificam alguns comportamentos execrados nas personagens femininas humanas da obra, ainda que ela própria e as outras entidades mitológicas femininas não sejam julgadas ou execradas pelos narradores, até porque a trama dos deuses não é do conhecimento de personagens humanos, nem dos narradores Vasco e Paulo, só do
Poeta, narrador central do épico. O Poeta, quem narra os episódios mitológicos, não condena o comportamento ousado, sensual
e nem os fingimentos de Vênus e das ninfas, discrepantes do paradigma cristão, provavelmente por não fazerem parte do universo cristão e terreno, e também porque auxiliam os portugueses na
Expansão Marítima empreendida na obra.
Enquanto o Poeta não condena os comportamentos apresentados pelas figuras femininas mitológicas, Vasco da Gama na
sua função de narrador, condena os comportamentos de algumas
figuras femininas históricas ousadas e transgressoras do paradigma de Maria, como Leonor Teles e Teresa, sensuais. Desta forma,
o épico não reproduz simplesmente a ideologia cristã dominante
mas, através da mitologia greco-latina, mostra-se dialético, inovador e muito menos convencional do que se poderia esperar de
uma obra que passou pelo fulminante olhar inquisitorial.
Os comportamentos das figuras femininas históricas do épico de Luís de Camões, “Os Lusíadas”, são tanto mais exaltados
pelo Gama, em sua narração ao Rei de Melinde, quanto mais se
aproximam do comportamento de Maria, mãe de Jesus, modelo
de perfeição feminina cristã, paradigma de comportamento da
mulher, segundo o Cristianismo.
Vênus, deusa do amor e da beleza, na narração do Poeta, é
o avesso de Maria, um antimodelo com o qual se identificam alguns comportamentos execrados nas personagens femininas humanas da obra, ainda que ela própria e as outras entidades mitológicas femininas não sejam julgadas ou execradas pelos narradores, até porque a trama dos deuses não é do conhecimento de personagens humanos, nem dos narradores Vasco e Paulo, só do
Poeta, narrador central do épico. O Poeta, quem narra os episó2
dios mitológicos, não condena o comportamento ousado, sensual
e nem os fingimentos de Vênus e das ninfas, discrepantes do paradigma cristão, provavelmente por não fazerem parte do universo cristão e terreno, e também porque auxiliam os portugueses na
Expansão Marítima empreendida na obra.
Enquanto o Poeta não condena os comportamentos apresentados pelas figuras femininas mitológicas, Vasco da Gama na
sua função de narrador, condena os comportamentos de algumas
figuras femininas históricas ousadas e transgressoras do paradigma de Maria, como Leonor Teles e Teresa, sensuais. Desta forma,
o épico não reproduz simplesmente a ideologia cristã dominante
mas, através da mitologia greco-latina, mostra-se dialético, inovador e muito menos convencional do que se poderia esperar de
uma obra que passou pelo fulminante olhar inquisitorial.
Enveredar pelos caminhos da ficção é sempre uma aventura
desejável, prazerosa e apaixonante, porém de certo modo presunçosa, transitória e arriscada, como qualquer aventura crítica, ainda
mais em se tratando de mares já tão navegados, como são os do
épico de Camões, sobre o qual foram produzidos incontáveis títulos críticos, por variadíssimos caminhos investigativos, durante
séculos e gerações de leituras encantadas, atentas e minuciosas.
Por outro lado, toda essa grandiosa fortuna crítica legada por gerações e séculos de leitura a “Os Lusíadas” nunca será capaz de
esgotar por completo as possibilidades de entrada crítica nessa
obra tão encantadora, vasta, complexa e desafiadora, que se abre
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sempre a novas possibilidades de mergulho num mar fundo inquietante e convidativo de questões portuguesas problematizadas,
não apenas do tempo das caravelas, mas também de um modo de
ser português que não se encerra naquele tempo, e mesmo de
questões complexas, atemporais e universais do ser humano ou da
humanidade.
O trabalho consistirá numa análise comparativa entre algumas figuras femininas mitológicas (Vênus, Tethys e as ninfas,
incluindo a nereirda Thetis, neta de Tethys) que integram a narração diretamente feita pelo Poeta, e algumas figuras femininas
históricas (Leonor Teles e Teresa) que integram a narração feita,
entre os cantos III e V, a pedido do Rei de Melinde, pelo “valeroso Capitão” Gama, que “conta diligente”, “da terra” sua, “o clima
e a região”, “do mundo onde mora”, “da antiga geração / e o princípio do Reino tão potente, / Cos sucessos das guerras do começo”, “que são de preço” e “dos rodeios” no “Mar irado, / Vendo
os contumes bárbaros, alheios (OL, II: 109-110)”.
O paradigma de comportamento feminino adotado durante
a análise será o da mãe de Jesus, modelo de conduta feminina
para os povos ocidentais cristãos, sobretudo em Portugal, nação
européia sempre fervorosa em seu Catolicismo, principalmente
naquela época de Inquisição. A bíblica Maria certamente pautou
os comportamentos das mulheres portuguesas desde as primeiras
dinastias portuguesas, sempre cristãs, ainda mais num épico concebido durante o século XVI, submetido à aprovação inquisitorial
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e escrito para exaltar a Expansão da “Fé e do Império”, promovida pelo povo português, grande herói épico coletivo, representado
por Gama.
Segundo a socióloga portuguesa Silvana Mota Ribeiro, em
seu artigo “Ser Eva e dever ser Maria: paradigmas do feminino no
Cristianismo”, “podem ser identificados dois paradigmas do feminino que, ao longo do tempo, vêm enquadrando a percepção
social das mulheres, contribuindo para a criação dos seus modelos
de auto-representação”: Maria e Eva, a primeira mulher e a mãe
de Cristo, “mulheres centrais na tradição católica que curiosamente possuem características antagônicas”.
Estes dois paradigmas seriam, para a estudiosa, modelos de
representação que as mulheres, “secularmente, tendem a aceitar
como naturais e não como histórica e socialmente construídos”
pelos cristãos, “fixando imagens, continuamente sujeitas a processos de sedimentação, do que a mulher é (Eva, imperfeita) e do
que deveria ser (Maria, perfeita)”, ainda que os comportamentos
femininos não possam ser nunca reduzidos a meras conseqüências
de um discurso teológico.
No épico de Camões, o modelo de perfeição feminina também é Maria, mas aquela que poderia ser um antimodelo, no lugar
da “Eva, a primeira mulher”: Vênus, não é julgada nem condenada pelo Poeta e, muito menos, pelo Gama, já que nem figura na
sua narração. Desta forma, o modelo cristão de comportamento
feminino, Maria, é reforçado na fala do Gama, enquanto Vênus
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reina para além do plano terreno, fora das humanas vistas, defendendo os portugueses e não lhes legando nenhum pecado original,
ousada e curiosamente. Sem falar na Ilha dos Amores, onde ninfas e outras entidades mitológicas femininas, “que Vênus industriou para a sedução dos nautas”, são o galardão dos vitoriosos
expansionistas, levando o leitor à famosa pergunta, ressaltada
pela professora Cleonice Berardinelli, como o censor inquisitorial
“manteve isso?”.
A Bíblia, livro basilar e balizador das religiões cristãs – segundo seus escritores ou profetas, inspirado por Deus, Criador do
homem e da terra –, cita Maria, como a virgem mãe de Jesus Cristo, filho de Deus e Messias por Ele enviado. Pouco tempo antes
da data do casamento com José, um emissário de Deus, o anjo
Gabriel, teria aparecido para Maria, anunciando que, por um milagre de Deus, ela seria a mãe do Messias (“Ora, o nascimento de
Jesus Cristo foi assim: estando Maria, sua mãe, desposada com
José, sem que tivessem antes coabitado, achou-se grávida pelo
Espírito Santo”, Mateus 1:18) ao que se submeteu e conformou,
mesmo sabendo que poderia sofrer com isso:
No sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado, da parte de Deus,
para uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem
desposada com certo homem da casa de Davi, cujo nome era
José; a virgem chamava-se Maria. (...) Então, disse Maria ao
anjo: Como será isto, pois não tenho relação com homem algum? Respondeu-lhe o anjo: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por
isso, também o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus. (...) Então, disse Maria: Aqui está a serva do Se6
nhor; que se cumpra em mim conforme a tua palavra. E o anjo se ausentou dela. (Lucas 1:26-38)
Sempre disposta a sacrificar-se pelos outros, cumpriu a
vontade de Deus (“Então, disse Maria: A minha alma engrandece
ao Senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador”,
Lucas 1:46-47), acompanhou o Filho durante o Calvário, permanecendo com Ele junto da Cruz, sofrendo sempre resignadamente:
“E junto à cruz estavam a mãe de Jesus, e a irmã dela, e Maria,
mulher de Clopas, e Maria Madalena.” (João 19:25)
Submissa, abnegada e penitente, Maria viveu para Deus,
para a religião, para o filho, para os outros, não para si: “Tendo
acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Eles não têm mais
vinho. Mas Jesus lhe disse: Mulher, que tenho eu contigo? Ainda
não é chegada a minha hora. Então, ela falou aos serventes: Fazei
tudo o que ele vos disser.” (João 2:3-5).
Maria se demonstra, quase sempre, mansa, pacífica, passiva, introspectiva, meditativa, calada, ouvindo mais do que falando, pedindo sempre mais pelos outros do que por si mesma: “Maria, porém, guardava todas estas palavras, meditando-as no coração.” (Lucas 2:19).
Sua forma de resistência é, quase sempre, a oração a Deus,
para que Ele interceda e aja por ela: “Todos estes perseveravam
unânimes em oração, com as mulheres, com Maria, mãe de Jesus,
e com os irmãos dele.” (Atos 1:14).
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A ação de Maria é, quase sempre, forma de penitência para
si e de levar consolação e alento ao outro, cumprindo, em ambos
os casos, a vontade de Deus (e do Filho), que é a sua vontade:
“seja feita a Vossa Vontade”.
A mãe de Jesus é a mulher ideal porque abdica de sua porção humana e carnal, porque divina e idealizada na Bíblia, representando sofrimento contido, pobreza, abnegação, caridade, dedicação ao próximo, passividade, submissão à figura masculina
(Deus, marido, filho...), fervor religioso, conformação, assexualidade, afetividade...
Maria é exatamente o que se espera da mulher lusíada, que
abra mão de sua porção carnal em prol da espiritualidade, da maternidade, da família. Ela deve retirar-se da ação e da vida, existindo apenas para servir a Deus e ao próximo: pai, marido, filhos... Por isso deve ser casta, religiosa, submissa, penitente, caridosa, abnegada, transcendente. Da mulher espera-se, pois, que
abdique das características que fazem dela humana: sexo, orgulho, vaidade, ambição, indignação...
Em “Os Lusíadas”, as mulheres que mais se aproximaram
do comportamento da mãe de Jesus são as mais louvadas: cristãs
fervorosas, abnegadas, penitentes, boas esposas, boas filhas e
mães dedicadas. Conseqüentemente, as mulheres do Restelo, Leonor Sepúlveda e D. Felipa são as mais exaltadas, seguidas da
Formosíssima Maria.
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As esposas históricas (humanas) que foram maculadas pela
infidelidade conjugal ou pela concupiscência, por isso já se distanciam mais do padrão cristão da Maria, tornando-se assim as
mais execradas. Entre aquelas que foram amantes, destaca-se Inês
de Castro que, por sua fidelidade ao príncipe, seu “puro amor”,
sua delicadeza, sua preocupação maternal com os filhos, seu sofrimento, expiação e “morte crua”, acaba defendida no épico e
escapa à execração.
Entretanto, Teresa (que é vista de maneira mais positiva em
“Mensagem”, de Fernando Pessoa, no século XX) e, ainda mais,
Leonor são severamente condenadas em “Os Lusíadas”, pelo
narrador Vasco da Gama, por causa de seus comportamentos discrepantes ao padrão cristão. Ambas colocaram a coroa e a soberania portuguesa em risco, por causa da sede de poder e de bens,
sem falar no fato de não ter a primeira abdicado em favor do filho
(motivo de ter sido chamada “Ó Progne crua, ó mágica Medéia”
no épico) e o fato de a segunda, Leonor Teles (comparada a Cleópatra e a “um vulto de Medusa”), ter abandonado o marido para
viver com o Rei Fernando, contrariando a vontade do povo e burlando as leis católicas (“pecado / De tirar Lianor a seu marido”),
fato que rendeu a ela o ódio popular.
As personagens femininas serão mais ou menos exaltadas
também em função do serviço prestado à Pátria Portuguesa, ao
Rei, à Igreja Católica, entre outros fatores:
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Vênus
maior distanciamento
do padrão cristão
Tethys
Ninfas (e Thetis)
Leonor
Teresa
Inês
Maria
Felipa
Leonor Sepúlveda
Mulheres do Restelo
Virgem Maria
Amantes
Esposas
maior aproximação
do padrão cristão
Por ora, as figuras femininas que mais se distanciam do padrão cristão, ou seja, as mitológicas e as humanas execradas darão
matéria a este trabalho, ficando as figuras exaltadas pelo Gama e
os comportamentos que mais se aproximam do modelo feminino
cristão para outra oportunidade.
Amantes sobrenaturais.
Ao contrário do que prega a religião católica para o comportamento feminino, Vênus vive intensa e impulsivamente, de
nada se privando. Serve-se fartamente da carnalidade e da humanidade, apesar de ser uma deusa. Não se reprime sexualmente,
tendo vários amantes e filhos fora do casamento, é passional,
impulsiva, explosiva, ambiciosa, vaidosa, etc.
Mas Marte, que da Deusa sustentava
Entre todos as partes em porfia,
Ou porque o amor antigo o obrigava,
Ou porque a gente forte o merecia,
De antre os Deuses em pé se levantava:
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Merencório no gesto parecia;
O forte escudo, ao colo pendurado,
Deitando pera trás, medonho e irado;
(OL: I,36)
Insubmissa, caprichosa, mimada, dissimulada e manipuladora, chega a usar sua sensualidade a serviço de seus “interesses
políticos” ou como arma para convencer o pai a acatar seus caprichos.
E, por mais namorar o soberano
Padre, de quem foi sempre amada e cara,
Se lh'apresenta assi como ao Troiano,
Na selva Ideia, já se apresentara.
(...)
Cum delgado cendal as partes cobre
De quem vergonha é natural reparo;
Porém nem tudo esconde nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, pera que o desejo acenda e dobre,
Lhe põe diante aquele objecto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.
E mostrando no angélico sembrante
Co riso üa tristeza misturada,
Como dama que foi do incauto amante
Em brincos amorosos mal tratada,
Que se aqueixa e se ri num mesmo instante
E se torna entre alegre, magoada,
Destarte a Deusa a quem nenhüa iguala,
Mais mimosa que triste ao Padre fala:
(...)
“Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes,
Que pois eu fui.” E nisto, de mimosa,
O rosto banha em lágrimas ardentes,
Como co orvalho fica a fresca rosa.
(...)
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As lágrimas lhe alimpa e, acendido,
Na face a beija e abraça o colo puro;
De modo que dali, se só se achara,
Outro novo Cupido se gerara
(OL: II 35-42)
É a “mestra experta”, professora nas artes do sexo, da paixão e da luxúria. Constitui-se, portanto, num modelo de concupiscência”: a amante ideal.
Nesta frescura tal desembarcavam
Já das naus os segundos Argonautas,
Onde pela floresta se deixavam
Andar as belas Deusas, como incautas.
Algüas, doces cítaras tocavam;
Algüas, harpas e sonoras frautas;
Outras, cos arcos de ouro, se fingiam
Seguir os animais, que não seguiam.
Assi lho aconselhara a mestra experta:
Que andassem pelos campos espalhadas;
Que, vista dos barões a presa incerta,
Se fizessem primeiro desejadas.
Algüas, que na forma descoberta
Do belo corpo estavam confiadas,
Posta a artificiosa fermosura,
Nuas lavar se deixam na água pura.
(OL: IX, 64-65)
Mostra-se negligente na criação e na educação dos filhos,
já que deixa Cupido vagar nu, cometendo travessuras com seu
arco e ainda explora-o e envolve-o em seus “atos pouco canônicos”.
Ali quer que as aquáticas donzelas
Esperem os fortíssimos barões
(Todas as que têm título de belas,
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Glória dos olhos, dor dos corações)
Com danças e coreias, porque nelas
Influirá secretas afeições,
Pera com mais vontade trabalharem
De contentar a quem se afeiçoarem.
Tal manha buscou já pera que aquele
Que de Anquises pariu, bem recebido
Fosse no campo que a bovina pele
Tomou de espaço, por sutil partido.
Seu filho vai buscar, porque só nele
Tem todo seu poder, fero Cupido,
Que, assi como naquela empresa antiga
A ajudou já, nestoutra a ajude e siga.
(OL: IX, 22-23)
Vênus usa qualquer um que puder em suas tramas, como
faz com as ninfas:
“- Estas obras de Baco são, por certo
(Disse), mas não será que avante leve
Tão danada tenção, que descoberto
Me será sempre o mal a que se atreve.”
Isto dizendo, dece ao mar aberto,
No caminho gastando espaço breve,
Enquanto manda as Ninfas amorosas
Grinaldas nas cabeças pôr de rosas.
Grinaldas manda pôr de várias cores
Sobre cabelos louros a porfia.
Quem não dirá que nacem roxas flores
Sobre ouro natural, que Amor enfia?
Abrandar determina, por amores,
Dos ventos a nojosa companhia,
Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas,
Que mais fermosas vinham que as estrelas.
(...)
Desta maneira as outras amansavam
Subitamente os outros amadores;
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E logo à linda Vénus se entregavam,
Amansadas as iras e os furores.
Ela lhe prometeu, vendo que amavam,
Sempiterno favor em seus amores,
Nas belas mãos tomando-lhe homenagem
De lhe serem leais esta viagem.
(OL: VI: 86-91)
Ama demais aos portugueses, no épico, e não mede conseqüências para proteger seus amores da vez, é intensa, mas é
egoísta, avaliando tudo pelo lado da vantagem. Até a afeição aos
portugueses que pode parecer, a primeira vista, uma demonstração sincera de afetividade, revela-se como um jogo de interesses.
Na verdade, Vênus defende-os visionando possibilidades futuras
de aumento na sua idolatria e na difusão do culto de sua imagem
entre os humanos através das terras conquistadas pelos lusitanos.
Sustentava contra ele Vénus bela,
Afeiçoada à gente Lusitana
Por quantas qualidades via nela
Da antiga, tão amada, sua Romana;
Nos fortes corações, na grande estrela
Que mostraram na terra Tingitana,
E na língua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a Latina
Estas causas moviam Citereia
E mais, porque das Parcas claro entende
Que há-de ser celebrada a clara Deia
Onde a gente belígera se estende.
Assi que, um, pela infâmia que arreceia,
E o outro, pelas honras que pretende,
Debatem, e na perfia permanecem;
A qualquer seus amigos favorecem.
(OL: I, 33-34)
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Assim, Vênus mostra-se o contraponto da Virgem Maria. O
avesso dos padrões cristãos de mãe, de esposa, de filha e de mulher. A Deusa mostra-se como uma espécie de conjunto dos vícios femininos e humanos.
A Tethys, avó das ninfas, é a amante do Gama na ilha dos
amores e aquela que lhe descortina o conhecimento sobre a Máquina do Mundo e o futuro dos portugueses. Assim, aproxima-se
mais de Vênus do que as ninfas, tanto por tratar-se de uma esposa
(de Oceano) infiel; quanto por ser uma deusa (em algumas interpretações a própria Vênus materializada), logo mais poderosa e
sábia do que as outras entidades mitológicas.
üa delas, maior, a quem se humilha
Todo o coro das Ninfas e obedece,
Que dizem ser de Celo e Vesta Filha,
O que no gesto belo se parece,
Enchendo a terra e o mar de maravilha,
O capitão ilustre, que o merece,
Recebe ali com pompa honesta e régia,
Mostrando-se senhora grande e egrégia.
(OL: IX, 85)
Observa-se, entretanto, que seu comportamento é menos
extravagante e egoísta do que o da passional filha de Júpiter. Tethys demonstra-se mais serena, companheira e menos dissimulada
do que Vênus, talvez porque a situação não desperte nela outros
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interesses. O fato é que o relacionamento do casal baseia-se em
certo companheirismo e amizade.
Que, despois de lhe ter dito quem era,
Cum alto exórdio, de alta graça ornado,
Dando-lhe a entender que ali viera
Por alta influição do imóbil fado,
Pera lhe descobrir da unida esfera
Da terra imensa e mar não navegado
Os segredos, por alta profecia,
O que esta sua nação só merecia,
Tomando-o pela mão, o leva e guia
Pera o cume dum monte alto e divino,
No qual üa rica fábrica se erguia,
De cristal toda e de ouro puro e fino.
A maior parte aqui passam do dia,
Em doces jogos e em prazer contino.
Ela nos paços logra seus amores,
As outras pelas sombras, entre as flores.
Assi a fermosa e a forte companhia
O dia quási todo estão passando
Nüa alma, doce, incógnita alegria,
Os trabalhos tão longos compensando.
Porque dos feitos grandes, da ousadia
Forte e famosa, o mundo está guardando
O prémio lá no fim, bem merecido,
Com fama grande e nome alto e subido.
(OL: IX, 86-8)
Ela não se presta apenas a saciar a fome sexual do Gama,
também a de conhecimento e a de afeto são satisfeitas pela amante. Entretanto, essa afeição não é profunda, não é um amor verdadeiro, mas uma parceria, uma amizade, um companheirismo,
aliados à paixão carnal.
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Assim, Tethys demonstra-se uma amante com todos os fervores que apetecem um relacionamento sexual, mas apresenta
alguns traços de envolvimento sentimental com o parceiro, que a
afastam um pouquinho da Vênus egoísta, fútil e volúvel.
As ninfas são ainda aprendizes nas artimanhas do amor e
do sexo. Entretanto, como a avó Tethys, obedecem aos desígnios
da deusa da beleza e do sexo.
E pera isso queria que, feridas
As filhas de Nereu no ponto fundo,
D'amor dos Lusitanos incendidas
Que vêm de descobrir o novo mundo,
Todas nüa ilha juntas e subidas,
(Ilha que nas entranhas do profundo
Oceano terei aparelhada,
De dões de Flora e Zéfiro adornada);
Ali, com mil refrescos e manjares,
Com vinhos odoríferos e rosas,
Em cristalinos paços singulares,
Fermosos leitos, e elas mais fermosas;
Enfim, com mil deleites não vulgares,
Os esperem as Ninfas amorosas,
D'amor feridas, pera lhe entregarem
Quanto delas os olhos cobiçarem.
(OL: IX, 40-41)
São insubmissas ao homem e ativas, diferentemente do padrão marial, já que são as verdadeiras caçadoras no ritual amoroso, as verdadeiras sedutoras, apesar de deixarem o homem se
julgar o dono das iniciativas.
Assi lho aconselhara a mestra experta:
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Que andassem pelos campos espalhadas;
Que, vista dos barões a presa incerta,
Se fizessem primeiro desejadas.
Algüas, que na forma descoberta
Do belo corpo estavam confiadas,
Posta a artificiosa fermosura,
Nuas lavar se deixam na água pura.
(...)
Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,
Mas, mais industriosas que ligeiras,
Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,
Se deixam ir dos galgos alcançando
De üa os cabelos de ouro o vento leva,
Correndo, e da outra as fraldas delicadas;
Acende-se o desejo, que se ceva
Nas alvas carnes, súbito mostradas.
üa de indústria cai, e já releva,
Com mostras mais macias que indinadas,
Que sobre ela, empecendo, também caia
Quem a seguiu pela arenosa praia.
Outros, por outra parte, vão topar
Com as Deusas despidas, que se lavam;
Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam;
üas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando;
Outra, como acudindo mais depressa
À vergonha da Deusa caçadora,
Esconde o corpo n'água; outra se apressa
Por tomar os vestidos que tem fora.
Tal dos mancebos há que se arremessa,
Vestido assi e calçado (que, co a mora
De se despir, há medo que inda tarde)
A matar na água o fogo que nele arde.
Qual cão de caçador, sagaz e ardido,
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Usado a tomar na água a ave ferida,
Vendo [ò] rosto o férreo cano erguido
Pera a garcenha ou pata conhecida,
Antes que soe o estouro, mal sofrido Salta
n'água e da presa não duvida,
Nadando vai e latindo: assi o mancebo
Remete à que não era irmã de Febo.
(OL: IX, 65-74)
São fingidas, porque simulam pudores e desinteresses que
não sentem, incandescendo mais o jogo sexual. Entretanto, não
são tão manhosas quanto à mestra Vênus, pois elas não estão apenas usando os homens para obterem vantagens, realmente apaixonaram-se, devido às flechadas que sofreram do Cupido. Estão,
neste momento, desfrutando de sua sexualidade sem segundas
intenções a não ser o próprio deleite. Assim, elas são capazes de
manifestar sentimentos sinceros, diferentemente da egoísta Vênus, e assemelhando-se à avó neste ponto, só que sem o saber
vasto que esta tem para oferecer ao parceiro.
No entanto, é difícil saber quando fingem e quando são sinceras, são capazes de fingir com facilidade, como a professora
Vênus, por vezes usando sua sensualidade por interesse, sobretudo para ajudar a mestra:
Abrandar determina, por amores,
Dos ventos a nojosa companhia,
Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas,
Que mais fermosas vinham que as estrelas.
Assi foi; porque, tanto que chegaram
À vista delas, logo lhe falecem
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As forças com que dantes pelejaram,
E já como rendidos lhe obedecem;
Os pés e mãos parece que lhe ataram
Os cabelos que os raios escurecem.
(...)
Desta maneira as outras amansavam
Subitamente os outros amadores;
E logo à linda Vénus se entregavam,
Amansadas as iras e os furores.
Ela lhe prometeu, vendo que amavam,
Sempiterno favor em seus amores,
Nas belas mãos tomando-lhe homenagem
De lhe serem leais esta viagem.
(OL: VI: 87-91)
Assim, se por um lado, como a Tethys, não se resumem a
saciar apenas o apetite sexual dos portugueses, mas demonstram
também alguma afeição pelos parceiros, distanciando-se de Vênus
neste ponto. Por outro lado, aproximam-se da mestra, pela capacidade de lançar mão da sexualidade com outros objetivos. Logo,
em matéria de distanciamento do padrão cristão, elas só ficam
abaixo da Vênus, o próprio antimodelo, e da Tethys, mais experiente, mais altiva e mais poderosa do que as jovens ninfas.
A Thetis, esposa de Peleu, uma das nereidas netas da Tethys, fica abaixo das anteriores por que, apesar de apresentar beleza e sensualidade capazes de enlouquecer de paixão o Adamastor, ela é fria, dura e insensível como um penedo, não apresentando o fervor sensual das anteriores nem a capacidade de fingir por
interesse.
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Amores da alta esposa de Peleu
Me fizeram tomar tamanha empresa;
Todas as Deusas desprezei do Céu,
Só por amar das águas a Princesa.
Um dia a vi, co as filhas de Nereu,
Sair nua na praia e logo presa
A vontade senti de tal maneira
Que inda não sinto cousa que mais queira.
Como fosse impossíbil alcançá-la,
Pola grandeza feia de meu gesto,
Determinei por armas de tomá-la
E a Dóris este caso manifesto.
De medo a Deusa então por mi lhe fala;
Mas ela, cum fermoso riso honesto,
Respondeu: - “Qual será o amor bastante
De Ninfa, que sustente o dum Gigante?
Contudo, por livrarmos o Oceano
De tanta guerra, eu buscarei maneira
Com que, com minha honra, escuse o dano.”
(OL: V, 52-4)
Além disso, não lhe agradou o fato de manter um romance
extraconjugal com o Adamastor, demonstrando uma preocupação
com a “honra” que as outras entidades mitológicas sequer cogitaram.
A sinceridade é outro afastamento que esta ninfa apresenta
em relação ao paradigma da amante. Enquanto Vênus e as outras
ninfas usam voluntária e maquiavelicamente sua sensualidade
para obter vantagens, esta usou-a por falta de opção e ainda fez
questão de deixar a contrariedade bem visível.
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Já néscio, já da guerra desistindo,
üa noite, de Dóris prometida,
Me aparece de longe o gesto lindo
Da branca Tétis, única, despida.
Como doudo corri de longe, abrindo
Os braços pera aquela que era vida
Deste corpo, e começo os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.
Oh que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei cum duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando cum penedo fronte a fronte,
Qu'eu polo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo
E, junto dum penedo, outro penedo!
Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?
Daqui me parto, irado e quási insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro mundo, onde não visse
Quem de meu pranto e de meu mal se risse.
(OL: V, 55-58) (grifos nossos)
A indiferença de Thetis em relação ao Adamastor pode se
dar em função da violência sofrida. O fato de o gigante impô-la o
relacionamento, ameaçando-a de usar a força bruta para obtê-la,
não deixa outra saída para a ninfa, senão entregar-se sem vontade.
A incorrespondência amorosa é outro fator que pode ter desencadeado a indiferença na ninfa.
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Tethis, portanto, quanto à afetividade distancia-se de todas
as figuras femininas anteriores, já que representa o desamor e a
ausência de paixão. Ela demonstrou-se contrária à sua avó (e às
outras ninfas), pois esta manifestara tanto a paixão (sexual) quanto o amor (afeto). E, apesar de aproximar-se de Vênus pela incapacidade de amar, distingue-se desta pela ausência de fervor sexual e de paixão.
As deusas e ninfas não apresentam nenhuma ou quase nenhuma aproximação com o paradigma cristão, até porque pertencem à cultura greco-latina, muito anterior ao Cristianismo. Por
isso e pelo serviço que estas figuras prestam aos portugueses e à
Expansão, as suas características antimariais não são combatidas
ou sequer condenadas, já que salvam os portugueses, recompensam-nos e ainda promovem-nos à condição de semi-deuses, por
se acasalarem com eles.
Entretanto, por qualquer que seja o motivo, o fato de o Poeta em sua narração não condenar, não punir, nem combater nenhuma dessas transgressões ao paradigma feminino cristão praticado pelas entidades mitológicas é ousado, inquietante, inovador
e dialético, se comparado à postura assumida pelo Gama em sua
narração dos episódios históricos portugueses, condenando veementemente atos transgressores ao paradigma feminino cristão ou
contrários aos interesses da pátria e do reino praticados por Teresa
e Leonor Teles.
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As mulheres “de carne e osso” do épico, que apresentam
comportamentos similares aos da Vênus, sofrerão toda a sorte de
críticas e condenações. O narrador Vasco da Gama manifestará
para com elas toda a impiedade que o Poeta economizara para
com as deusas e ninfas greco-latinas, não perdoando os seus afastamentos do padrão marial. Por outro lado, fará questão de ressaltar características – quando estas existirem – que as religuem de
alguma forma ao paradigma cristão de comportamento feminino.
De todas as mulheres retratadas em “Os Lusíadas”, Leonor
Teles é a mais desqualificada pelo Gama e pelo povo português,
segundo a obra. Ela é colocada como o vício que estragou um rei,
enfraqueceu uma geração e pôs em perigo toda uma nação:
Do justo e duro Pedro nasce o brando
(Vede da natureza o desconcerto!),
Remisso e sem cuidado algum, Fernando,
Que todo o Reino pôs em muito aperto;
Que, vindo o Castelhano devastando
Às terras sem defesa, esteve perto
De destruir-se o Reino totalmente;
Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.
Ou foi castigo claro do pecado
De tirar Lianor a seu marido
E casar-se com ela, de enlevado
Num falso parecer mal entendido,
Ou foi que o coração, sujeito e dado
Ao vício vil, de quem se viu rendido,
Mole se fez e fraco; e bem parece
Que um baxo amor os fortes enfraquece.
Do pecado tiveram sempre a pena
Muitos, que Deus o quis e permitiu:
Os que foram roubar a bela Helena,
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E com Ápio também Tarquino o viu.
Pois por quem David Santo se condena?
Ou quem o Tribo ilustre destruiu
De Benjamim? Bem claro no-lo ensina
Por Sarra Faraó, Siquém por Dina.
(OL: III, 138-140)
Nota-se que ela é execrada por sua permissividade sexual,
por sua postura dominadora e insubmissa, por sua dissimulação e
ardileza, por seu apego aos bens materiais, pela traição aos sagrados votos do matrimônio, entre tantos outros pecados duramente
enumerados pelo Gama:
E pois, se os peitos fortes enfraquece
Um inconcesso amor desatinado,
Bem no filho de Almena se parece
Quando em Ônfale andava transformado.
De Marco António a fama se escurece
Com ser tanto a Cleópatra afeiçoado.
Tu também, Peno próspero, o sentiste
Despois que üa moça vil na Apúlia viste.
Mas quem pode livrar-se, porventura,
Dos laços que Amor arma brandamente
Entre as rosas e a neve humana pura,
O ouro e o alabastro transparente?
Quem, de üa peregrina fermosura,
De um vulto de Medusa propriamente,
Que o coração converte, que tem preso,
Em pedra, não, mas em desejo aceso?
(OL: III, 141-2)
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Leonor chega a ser comparada à Medusa, que tornava pedra quem quer que a olhasse, para se ter idéia do quão execrado
foi seu comportamento.
Assim, Gama julga como culpada esta mulher que transgrediu todos os itens do paradigma feminino cristão de comportamento. Não apresentando nenhum contra-argumento sequer,
nenhum mísero, porém, na total desqualificação a que resumiu
Leonor, sequer a maternidade ou uma expiação amenizam sua
culpa. Pelo contrário, a absolvição de Fernando faz com que recaia sobre os ombros de Leonor a culpa pelos atos dos dois.
Quem viu um olhar seguro, um gesto brando,
üa suave e angélica excelência,
Que em si está sempre as almas transformando,
Que tivesse contra ela resistência?
Desculpado por certo está Fernando,
Pera quem tem de amor experiência;
Mas antes, tendo livre a fantasia,
Por muito mais culpado o julgaria.
(OL: III, 143)
Teresa só não é tão execrada quanto Leonor porque tem,
pelo menos, a maternidade, a boa criação que dera ao príncipe e a
expiação ao fim da vida (imposta pelo próprio filho) para suavizar
as suas culpas.
Mas o velho rumor - não sei se errado,
Que em tanta antiguidade não há certeza Conta que a mãe, tomando todo o estado,
Do segundo himeneu não se despreza.
O filho órfão deixava deserdado,
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Dizendo que nas terras a grandeza
Do senhorio todo só sua era,
Porque, pera casar, seu pai lhas dera.
Mas o Príncipe Afonso (que destarte
Se chamava, do avô tomando o nome),
Vendo-se em suas terras não ter parte,
Que a mãe com seu marido as manda e come,
Fervendo-lhe no peito o duro Marte,
Imagina consigo como as tome:
Revolvidas as causas no conceito,
Ao propósito firme segue o efeito.
De Guimarães o campo se tingia
Co sangue próprio da intestina guerra,
Onde a mãe, que tão pouco o parecia,
A seu filho negava o amor e a terra.
Co ele posta em campo já se via;
E não vê a soberba o muito que erra
Contra Deus, contra o maternal amor;
Mas nela o sensual era maior.
Ó Progne crua, ó mágica Medeia!
Se em vossos próprios filhos vos vingais
Da maldade dos pais, da culpa alheia,
Olhai que inda Teresa peca mais!
Incontinência má, cobiça feia,
São as causas deste erro principais:
Cila, por üa mata o velho pai;
Esta, por ambas, contra o filho vai.
Mas já o Príncipe claro o vencimento
Do padrasto e da inica mãe levava;
Já lhe obedece a terra, num momento,
Que primeiro contra ele pelejava;
Porém, vencido de ira o entendimento,
A mãe em ferros ásperos atava;
Mas de Deus foi vingada em tempo breve.
Tanta veneração aos pais se deve!
(OL: III, 29-33)
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A rainha é comparada a Medeia, feiticeira capaz de matar
os próprios filhos por vingança ao marido, por tramar contra o
príncipe, seu filho, para tomar o poder.
O Gama também a taxa de sensual, permissiva e gananciosa, por ter se casado novamente após a viuvez, encontrando no
novo marido um aliado na luta pelo trono. Fatos estes que põem
em risco a independência do então Condado Portucalense.
Assim, Teresa aproxima-se de Vênus por inúmeros fatores,
como sua insubmissão à figura masculina (do filho), sua ganância
e desejo de poder, sua sensualidade e permissividade, entre outros. Mas expia parte de sua culpa através do castigo impingido
pelo filho e da obediência ao padrão durante a juventude, em que
foi submissa ao marido, boa mãe (pois criou um homem educado,
corajoso e forte).
Observa-se que tanto Teresa quanto Leonor, as duas mulheres mais execradas da obra, são relacionadas a dois dos traumas
fundadores da nação portuguesa. Teresa foi pivô da batalha de
São Mamede, em que Afonso Henriques lutou contra a Espanha,
que queria reanexar o condado ao seu território, fundando Portugal, como nação independente. A outra motivou a batalha de Aljubarrota, na qual D. João saiu vitorioso fundando a dinastia de
Avis. Em ambas também a ameaça feminina desvirtuada sai derrotada.
Na narração que Vasco da Gama faz ao Rei de Melinde,
n’Os Lusíadas, observa-se por um lado a condenação aos
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comportamentos (e às figuras femininas) que transgridem e se
portamentos (e às figuras femininas) que transgridem e se afastam
do modelo exemplar da Virgem Maria bíblica, mãe de Jesus. Com
isso, desvaloriza-se e deslouva-se mais aquelas que mais se afastam do ideal feminino cristão, ao demonstrarem postura insubmissa (à religião, ao marido, ao filho, ao Rei, ao destino...), ofensiva, inconformada, sensual, presas aos bens materiais e ao deleite
carnal, indispostas ao sacrifício, à caridade e ao penar no plano
terreno; indispostas à dedicação exclusiva à família e à religião;
vigorosas, ativas e dispostas a lutar pela sua independência, autonomia e objetivos individuais a qualquer custo.
Aliás, Vasco condena essa postura feminina também porque ela se mostra bastante inconveniente aos ideais (não apenas
cristãos, mas também) expansionistas, para que a evasão masculina para as conquistas ultramarinas ocorresse com mais concentração e força, pela confiança em que as esposas permaneceriam
fiéis, abnegadas, defensoras dos interesses masculinos (e do Rei,
da propriedade, da família...).
A presença de figuras femininas mais ou menos transgressoras no épico, mais ou menos distantes do padrão cristão aponta
para o fato de que as fôrmas e modelos sócio-culturais e/ou religiosos não agem da mesma maneira nem com a mesma intensidade sobre todas as personagens. A presença dessas figuras ousadas
revela também que a transformação (a inovação e/ou algum progresso) sempre se processa, perturbando ainda que lentamente a
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ordem estabelecida ou mantida através de paradigmas e instituições.
O fato de Vasco da Gama em sua narração, louvar as figuras que se aproximam do paradigma cristão e deslouvar os comportamentos que dele se distanciam, também não significa que a
obra simplesmente reproduza a ideologia dominante. Aliás, pelo
contrário, na narração do Poeta, diferentemente do que ocorre na
narração do Gama, figuras femininas com comportamentos muito
mais ousados do que quaisquer das figuras femininas históricas,
como a Vênus e as ninfas, transgridem o padrão cristão e não são
diretamente condenadas (ou punidas) por isso, até porque não
fazem parte do universo cristão. Assim, o épico genial de Camões
se mostra sempre bastante dialético, inovador e muito menos
convencional do que se poderia esperar de uma obra que passou
pelo fulminante olhar inquisitorial.
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MOTA-RIBEIRO, Silvana. Ser Eva e dever ser Maria: paradigmas do feminino no Cristianismo. Anais do IV Congresso Português de Sociologia, Universidade de Coimbra, 17-19 de Abril,
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SANTILLI, Maria Aparecida. Entre Linhas Desvendando Textos
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SARAIVA, Antônio José. Luís de Camões. Estudo e Antologia.
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SAR,AIVA, Antônio José; LOPES, Oscar. História da Literatura
Portuguesa. 15. ed., Porto: Porto Editora, 1989. 1263 p.
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