Reflexões sobre os Caminhos da Saúde Pública na Sociedade Brasileira Contemporânea: pautas para um programa de pós-graduação stricto sensu Marilene de Castilho Sá Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/ Fundação Oswaldo Cruz Ciclo de Debates sobre a Pós-Graduação em Saúde Pública Junho de 2008 Notas/Sínteses elaboradas a partir dos textos: 1.Granda E. Quo Vadis Salud Publica? Ponencia presentada em el II Foro de la Sociedad Civil em Salud. Lima, 9-11 de agosto de 2004. Mimeo 2. Paim JS. Saúde Pública convencional, Nova Saúde Pública ou Saúde Coletiva? Seminário Internacional Desafios para a Saúde Pública no Século XXI: princípios e estratégias para a construção de sistemas de saúde universais e eqüitativos na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro, 1 e 2 de agosto de 2005. 3. Almeida C. Saúde Coletiva: recuperando o conceito. Conversa no DAPS. Rio de Janeiro:Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Fundação Oswaldo Cruz. 10 de fevereiro de 2006. Slides. 4. Nunes JA. Questões para a Saúde Pública do Século XXI. Texto apresentado na Oficina para a Reestruturação do Programa de PósGraduação em Saúde Pública, promovida pela CGPG e pela CPPGSP/ENSP, realizada no Hotel Glória,em maio de 2008. Rio de Janeiro, mimeo. Elementos de Contexto Mudanças no mundo aceleradas, violentas, desordenando as relações econômicas,políticas, sociais e culturais: limitações para imaginar/predizer o futuro. (1) // incerteza/fluidez/descontrole Transformações conceituais, tecnológicas, sociais, políticas, culturais ... “desordens” no interior de disciplinas aplicadas como a SP: difícil visualizar novos limites e características multidisciplinares; difícil compreender possibilidades e limites de respostas às novas demandas que se geram a partir do Estado e da sociedade – “Crise da Saúde Pública” (OPAS/década de 90). (1) Início do séc. XXI: a maioria das sociedades continuam manifestando sua incapacidade de promover e proteger a saúde: incremento da exclusão social e das iniqüidades históricas. (1) Elementos de Contexto Incremento da Violência/dos comportamentos perversos: processo de “auto-geração” da violência, inércia.“A Banalização da violência, o acostumar-se dos atores a matar e do conjunto da sociedade a ver matar” (Saul Franco, apud Granda) Crise do Estado: sua autoridade e legitimidade são questionadas e seu caráter soberano é debilitado. Estado: menos o representante da Nação e mais o intermediário entre o capital globalizado, as instituições internacionais e os poderes regionais/locais/descentralizados.(1) Diluição ou debilidade das formas organizativas tradicionais de poder. Poder instrumental do Estado da modernidade minado pela globalização econômica, pela globalização da comunicação e pela globalização do crime. (1) Globalização dos riscos:o modo como nos relacionamos com a natureza: grandes perigos de destruição dos processos vitais. (1) Elementos de Contexto Sociedade de Risco: riscos não só naturais, mas se estendem à vida social. Grandes mudanças com relação aos papéis do homem e da mulher, nas relações familiares, nos processos e relações de produção e de trabalho ... Incerteza quanto ao futuro ... desemprego/desocupação, enfraquecimento dos laços sociais, rompimento dos espaços, instituições e redes tradicionais de solidariedade ... “O risco que antes se localizava na natureza externa,hoje é produto da razão e da organização globalizada dominante.” (1) Emergência de novos movimentos sociais: buscam integrar o subjetivo com o racional, unir a cultura e a ciência pela vida; usam a informação tecnológica para a comunicação horizontal e se negam a uma idolatria da tecnologia, buscam saídas mais solidárias. Novo tipo de poder, não mais localizado nas instituições tradicionais/Estado, mas nas próprias redes de relações.(1) Elementos Históricos e Teóricos/Paradigmáticos Séc. XX: Características da Saúde Pública convencional (“Enfermologia Pública”, segundo Granda): 1. Pressuposto teórico-filosófico da morte como ponto de partida para explicar a saúde; 2. Método positivista para explicar o risco de adoecer na população e o estrutural-funcionalismo para compreender a realidade social; 3. O reconhecimento do poder do Estado como força privilegiada para assegurar a prevenção da doença. Este tripé de sustentação da SP convencional constitui-se em uma métafora poderosa, que se contrapôs a outros movimentos como o da medicina social e as propostas preventivistas. A partir do êxito da medicina clínica do início do século XX sobre a doença individual, quando o médico é o mágico que explica e ao mesmo tempo cura a doença, a SP convencional se apóia na metáfora do Estado que explica o risco e o previne. (1) Elementos Históricos e Teórico/Paradigmáticos Nesta metáfora/paradigma, o sanitarista é um interventor técniconormativo, que deve eficientizar, nas instituições/serviços de saúde e junto à população, o poder do Estado e executar a verdade da ideologia científico-tecnológica. Saúde Pública = disciplina científica moderna/uma forma de ordem do mundo; a doença da população = objeto da ciência, passível de intervenção, de “modelagem”, de “produção”.(1) Elementos Históricos e Teóricos/Paradigmáticos Nas últimas décadas do séc. XX, o embate teórico, paradigmático, político e ideológico no interior do campo da Saúde Pública pode ser bem ilustrado na síntese apresentada por Almeida (3) sobre a gênese e desenvolvimento dos conceitos de Saúde Coletiva e Nova Saúde Pública. Conceitos contemporâneos (anos 70/80), mas formulados em contextos históricos específicos (Brasil;México): têm em comum serem produtos de especialistas que buscaram atuar na reorientação das políticas de saúde de seus países. Saúde Coletiva: conceito formulado para institucionalizar um campo de conhecimento específico e uma nova vertente analítica: Negação da prática médica hegemônica; Oposição à SP tradicional (à perspectiva médica/biológica); Propunha a “transformação social” a partir de um sujeito dotado de “consciência social”, conquistada a partir de sua “consciência sanitária” Elementos Históricos e Teórico/Paradigmáticos Saúde Coletiva: Produção centrada no social como determinante das condições de saúde; Método histórico-estrutural por oposição às abordagens funcionalistas e fenomenológicas; Sanitarista como sujeito político das transformações pretendidas; Conceito de Público não mais como estatal, oposto ao privado, mas como espaço de expressão, enfrentamento e negociação de demandas individuais ou coletivas; Saúde coletiva como um saber militante; Eixo conceitual transdisciplinar/situa-se na confluência de várias áreas de conhecimento/diferentes objetos. Elementos Históricos e Teórico/Paradigmáticos Nova Saúde Pública: conceito formulado para institucionalizar uma nova especialização no campo médico, referida à “saúde das populações”, com o objetivo de conhecer suas necessidades e estabelecer equilíbrio entre necessidades e recursos; produzir novos indicadores e práticas gerenciais dirigidas a fortalecer a capacidade de gestão dos Sistemas de Saúde; O “novo” se referia à dimensão populacional da doença, por oposição ao indivíduo e à biomedicina; Saúde Pública como ciência, em oposição à sua prática pública; deixa de ser instância que responde aos problemas parra ser “inteligência” do modelo técnico-assistencial; Proposta de renovação da sociedade dirigida ao mercado; Eixo conceitual: Economia. Elementos Históricos e Teórico/Paradigmáticos Embora os atores responsáveis pela formulação de cada um dos conceitos tenham reagido ao status quo, situam-se em pólos opostos do espectro ideológico. Os dois conceitos implicaram distintas propostas de Reforma. Segundo Paim (2), na atual “Crise da Saúde Pública” destacam-se, entre os elementos discursivos, a idéia de que o desenvolvimento da saúde supõe a exclusão da doença e que a ciência e a técnica dispõem de um potencial inesgotável para superar a enfermidade; e entre os elementos extra-discursivos, as restrições econômicas para atuação do Estado diante do custo crescente da atenção à saúde, o peso ideológico da onda neoliberal e o recurso a outras formas de legitimação da ordem social vigente. Pautas para um Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública Para Granda (1), devemos estudar a possibilidade de construir uma Saúde Pública fundamentada numa metáfora que reconheça os seguintes pressupostos: 1. Pressuposto filosófico-teórico da saúde e da vida, sem descuidar da prevenção da doença; 2. Métodos que integrem diversas metáforas e proponham variadas hermenêuticas (incluída a científica positivista) capazes de dar conta da ação social e das estruturas; 3. Políticas sociais que integrem diversos atores e poderes, além do poder do Estado; 4. Diferentemente da SP do Séc. XX, que necessitava de sanitaristas interventores técnico-normativos, necessitamos principalmente de capacidade de interpretar e mediar as ações vitais humanas diversas ... Organizar ação mediadora entre a ciência, a economia e a política. Pautas para um Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública Para Arriscado Nunes (4), é necessário avançar: na construção de uma Saúde Pública que se conforme, de fato como uma verdadeira “ecologia de saberes e práticas” (Sousa Santos, B.): um novo espaço de saberes sobre a saúde que não se construa apenas contra a biomedicina, mas também com ela; num maior envolvimento ativo e debate com correntes nas ciências da vida (incluindo genética, a biologia do desenvolvimento, da evolvução ou a ecologia) que estão lidando com a necessidade de reconceitualizar a biologia (e a saúde e a doença) tendo em conta os diferentes níveis de organização do “vivo”e a complexidade dos processos imbricados na produção dos fenômenos da vida; Num maior envolvimento explícito com os problemas da complexidade e com os estudos que têm procurado dar consistência teórica, empírica e operacionalidade a este conceito; Pautas para um Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública Do ponto de vista do perfil da formação em SP, Arriscado Nunes (4), sugere que os objetivos de formação e estratégias pedagógicas privilegiem as características do perfil “solidário” em SP em contraposição ao “técnicogestionário” (considerados perfis-ideais típicos), destacando-se: Competência para a mobilização de configurações de conhecimentos adequadas a situações caracterizadas pela complexidade ou para a construção de novos conhecimentos; Competência para a ação em promoção de saúde e sua avaliação a partir de indicadores ou critérios não restritos a medidas específicas ou programas, mas que considerem as conseqüências globais das intervenções em saúde; Competência para a solidariedade pragmática: intervenções de curto prazo em situações exigentes de respostas rápidas e urgentes, articuladas a ações para reforçar a capacidade pública de resposta a esse tipo de situações (epidemias, situações de vulnerabilidade e violência estrutural etc); Competência para a pesquisa-ação e para ações participativas (facilitação da emergência de novos coletivos). Pautas para um Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública Paim(2) destaca algumas perspectivas a serem consideradas na construção de uma SP alternativa e que podem complementar a proposta de pauta aqui esboçada para o desenho de um programa de pós-graduação em SP apoiado na metáfora sugerida por Granda ou na concepção de uma “Ecologia de Saberes e Práticas” (Sousa Santos apud Arriscado Nunes): Abertura a paradigmas ético-estéticos que apreendam formas não hegemônicas de produzir e conceber saúde/doença/cuidado; Produção de espaços e experiências acadêmicos e não acadêmicos (serviços comunitários) de exercício de transdisciplinaridade e de invenção tecnológica (articulação entre reflexão e prática concreta; abordagens que tensionem e transcendam dicotomias do tipo individual/coletivo, afetivo/racional,qualitativo/quantitativo ... Construção de espaços de emergência de sujeitos políticos e de desejo, comprometidos com as transformações no campo da Saúde Coletiva, com a produção de reflexão crítica e de práticas nas diversas esferas da vida social e acadêmica.