LIMITES DA COMPETÊNCIA REGULAMENTAR DO PODER EXECUTIVO.
ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E AUTONOMIA DAS ENTIDADES
DESCENTRALIZADAS
Antônio José Calhau de Resende (*)
O problema que nos depara consiste em verificar a possibilidade jurídica de
o legislador ordinário atribuir ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de
modificar, por meio de regulamento, competências de órgãos e entidades
autárquicas e fundacionais. O objeto desse estudo está intimamente relacionado
com o princípio da legalidade na gestão da coisa pública, explicitamente previsto
no “caput” do art. 37 da Constituição da República, e o alcance do poder
regulamentar do Governador do Estado.
É sabido que o ordenamento constitucional define as matérias que devem
ser objeto de lei formal e que a atuação dos órgãos e entidades administrativas
vincula-se ao império da lei e dos demais princípios retores da Administração
Pública. Além do respeito aos parâmetros do sistema normativo, os agentes
públicos devem guardar fidelidade aos princípios da moralidade, impessoalidade,
publicidade e eficiência. Em Minas Gerais, o “caput” do art. 13 da Constituição,
desde
sua
redação
original,
consagrou
expressamente
o
princípio
da
razoabilidade. Este exige bom senso, moderação e relação de adequação entre
os meios empregados e a finalidade a ser alcançada pelos administradores
públicos, no exercício de suas atividades.
É sabido, ainda, que o Estado passa por mudanças porque a sociedade
também está em processo de mutação e exige novas formas de atuação do poder
público, sobretudo para garantir a satisfação do interesse da coletividade, que o
Estado tem o dever de proteger. Nesse contexto de transformações, cogita-se
muito de fórmulas alternativas de ação que privilegiem a consensualidade nas
relações entre os órgãos e as entidades públicas, e entre estas e a sociedade
civil.
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 32, de 2001, houve uma
ampliação do poder regulamentar do Presidente da República, fato que tem
levado alguns autores a admitirem a implantação do regulamento autônomo no
Direito brasileiro. Tal inovação constitucional merece maiores esclarecimentos,
pois, não obstante a tendência incontestável de se aumentar o poder normativo
do Executivo, que se expressa basicamente mediante decretos e regulamentos, a
lei desfruta de considerável primazia sobre os demais atos normativos.
O exame da matéria requer uma explicação mais pormenorizada sobre a
organização da Administração Pública, especialmente sobre as características
principais das entidades da Administração indireta e os limites do poder
regulamentar do Executivo.
Centralização e descentralização
O Estado pode prestar serviços por intermédio dos órgãos componentes de
sua própria estrutura administrativa, ou seja, executar diretamente atividades de
interesse público, ou
transferir a execução do serviço para pessoas jurídicas
distintas.
Quando o poder público exerce diretamente os serviços que lhe são
atribuídos pelo sistema normativo, sem transferi-los a outras entidades
personificadas, está-se diante da chamada Administração direta ou centralizada.
Fenômeno inverso ocorre quando o Estado decide delegar a outros entes a
realização de determinado serviço público que se enquadra no âmbito de sua
competência originária, mas sempre sob sua fiscalização.
Com o advento do Decreto-Lei nº 200, de 1967, o qual dispõe sobre a
organização administrativa federal, a Administração Pública passou a ser dividida
em Administração direta e indireta, de modo que a primeira compreende os
serviços integrados na estrutura da Presidência da República e dos Ministérios, e
a segunda engloba as entidades dotadas de personalidade jurídica própria,
alcançando as autarquias, as fundações públicas, as sociedades de economia
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
mista e as empresas públicas, em conformidade com a prescrição do art. 4º do
citado diploma legal, com as modificações ulteriores.
Um dos parâmetros norteadores da reforma administrativa federal foi o
princípio da descentralização, que pressupõe, pelo menos, duas pessoas
jurídicas: a titular originária do serviço ou atividade - no caso, o Estado - e a
entidade por este criada para o exercício dessa atividade, sempre sob o controle
do poder público. A descentralização administrativa, portanto, implica a retirada do
serviço
do
centro
e
a
sua
transferência
para
setores
periféricos,
descongestionando a Administração. Ocorre, então, o fenômeno de deslocamento
de competências da Administração direta para a Administração indireta, por meio
de lei, visto que a instituição de entidades descentralizadas está condicionada a
procedimento legislativo prévio, por força do citado Decreto-Lei nº 200 e da
Constituição da República superveniente. É oportuno salientar que as diretrizes
consagradas pelo legislador federal no tocante à organização da Administração
Pública foram seguidas pelos Estados-membros e Municípios.
Deve-se ter a cautela devida para não confundir a descentralização com a
desconcentração. Esta consiste em uma distribuição de atribuições no interior de
uma mesma pessoa jurídica e não acarreta a criação de um novo ente. A título de
exemplificação, as Secretarias de Estado são formas de desconcentração de
serviços com base na matéria, subordinando-se ao Governador do Estado. Como
esses órgãos não possuem personalidade jurídica, a sua atuação é imputável
diretamente à pessoa jurídica de que fazem parte - no caso, o próprio Estado.
A Administração direta compreende, pois, um conjunto de órgãos sem
personalidade jurídica, ao passo que a Administração indireta abrange o complexo
de entidades dotadas de personificação, algumas de direito público, outras de
direito privado, todas dependendo de lei para serem criadas ou extintas. A
Constituição do Estado de 1989 elencou, explicitamente, as entidades da
Administração indireta no § 1º do art. 14: autarquia, de serviço ou territorial;
sociedade de economia mista; empresa pública, fundação pública; e demais
entidades de direito privado, sob controle direto ou indireto do Estado. O § 4º do
mesmo artigo, seguindo as linhas básicas da Constituição Federal, exige lei
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
específica para a criação de autarquia e fundação pública e autorização legislativa
para a instituição ou extinção de sociedade de economia mista e empresa pública.
Isso porque as entidades autárquicas e fundacionais possuem personalidade de
direito público, razão pela qual desfrutam de prerrogativas próprias de poder
público. As empresas estatais, por terem personalidade de direito privado, só
adquirem existência jurídica a partir da inscrição de seus atos constitutivos no
órgão competente, na forma da lei civil ou comercial, conforme o caso.
Características das entidades da Administração indireta
Ainda com fulcro nas linhas gerais do Decreto-Lei nº 200, não obstante
algumas imprecisões conceituais, as entidades da Administração indireta
apresentam traços comuns, tais como a necessidade de lei para serem criadas, a
personalidade jurídica, a autonomia administrativa e financeira, a existência de
patrimônio próprio, a especificação dos fins e a vinculação a órgãos da
Administração direta, para o controle de finalidade.
Segundo a doutrina dominante e a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, as fundações instituídas ou mantidas pelo Estado com personalidade
pública são consideradas espécies do gênero autarquia, de maneira que os
elementos característicos das autarquias são os mesmos das fundações públicas.
Nesse ponto, cumpre lembrar que o § 5º do art. 14 da Carta mineira determina
expressamente que “ao Estado somente é permitido instituir ou manter fundação
com a natureza de pessoa jurídica de direito público”. Enquanto prevalecer essa
dicção normativa, o Estado não poderá criar fundação de direito privado, nos
moldes da legislação civil.
Neste estudo, interessa-nos principalmente expor a noção básica das
entidades autárquicas, com fundamento no sistema normativo e na doutrina
dominante.
O legislador federal define autarquia como “o serviço autônomo, criado por
lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar
atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada”. Apesar da
omissão conceitual quanto à natureza pública dessa entidade descentralizada,
que é um defeito grave dessa definição normativa, pode-se constatar que a idéia
de auto-administração está devidamente caracterizada no conceito, quando faz
referência à gestão administrativa e financeira desse serviço autônomo.
Seguindo as diretrizes do Decreto-Lei nº 200, porém sem incorrer no mesmo
equívoco, o art. 13, I, da Lei Delegada mineira nº 5, de 1985, define autarquia
como “a entidade criada por lei, com personalidade jurídica de direito público,
patrimônio e receita próprios e capacidade de auto-administração sob controle
estatal, para executar atividades da Administração Estadual que, para melhor
funcionamento, requeiram gestão administrativa e financeira descentralizadas;”.
Veja-se que a definição formulada pelo legislador estadual contém os atributos
mais importantes das entidades autárquicas, entre os quais se destacam a
criação por lei, a personalidade de direito público e a capacidade de autoadministração.
O saudoso mestre Hely Lopes Meirelles ensina que “autarquias são entes
administrativos autônomos, criados por lei específica, com personalidade jurídica
de Direito Público interno, patrimônio próprio e atribuições estatais específicas”
(“Direito Administrativo Brasileiro”, 23ª ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 297).
Em outra passagem de sua obra clássica, o citado jurista afirma:
“A doutrina moderna é concorde no assinalar as características das
entidades autárquicas, ou seja, a sua criação por lei específica com personalidade
de Direito Público, patrimônio próprio, capacidade de auto-administração sob
controle estatal e desempenho de atribuições públicas típicas. Sem a conjunção
desses elementos não há autarquia. Pode haver ente paraestatal, com maior ou
menor delegação do Estado, para a realização de obras, atividades ou serviços de
interesse coletivo. Não, porém, autarquia” (op. cit. p. 298).
A publicista Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por sua vez, define autarquia
como “pessoa jurídica de direito público, criada por lei, com capacidade de autoadministração, para o desempenho de serviço público descentralizado, mediante
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
controle administrativo exercido nos limites da lei” (“Direito Administrativo”, 17ª
ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 368-369).
Portanto, a idéia de auto-administração, que diz respeito à autonomia
administrativa e financeira do ente para a execução de suas atividades, é
inseparável do conceito de autarquia. Essa capacidade de gerir os interesses que
lhe foram confiados nos termos da lei instituidora significa que a entidade age por
direito próprio, embora seja uma criatura do Estado, e goza de uma série de
privilégios semelhantes ao do ente político criador. A título de ilustração,
mencionem-se o poder de editar atos administrativos e de celebrar contratos
administrativos, sob as normas do Direito Público; o exercício do poder de polícia,
quando previsto em lei; e os prazos processuais mais dilatados para contestar e
recorrer, entre outras prerrogativas inerentes às pessoas dessa natureza. Os atos
praticados pela entidade não são imputáveis ao Estado, pois ela possui
personalidade jurídica própria e assume direitos e obrigações. Sendo entidade
autônoma, a capacidade de que desfruta para atingir sua finalidade legal
pressupõe a utilização dos meios necessários para tanto. É exatamente em razão
desse poder de auto-administração que a autarquia não mantém relação de
hierarquia ou subordinação com o Estado. Sujeita-se apenas ao controle de
finalidade, também conhecido como tutela administrativa, mediante o qual o
Estado somente poderá interferir na atuação da entidade nas hipóteses previstas
em lei. É, na verdade, um controle que se restringe a verificar se o objetivo
institucional da autarquia está sendo alcançado, se a sua atuação encontra-se em
sintonia com as diretrizes políticas do Governo e se os serviços públicos estão
sendo realizados de forma eficiente.
Seria estranho admitir que esse tipo de entidade goze de autonomia
administrativa para perseguir determinado fim público, mas não disponha dos
meios ou instrumentos indispensáveis ao alcance de tal desiderato. Segundo
tradicional regra de hermenêutica jurídica, “quem pode o mais pode o menos”,
salvo situações excepcionais que justifiquem tratamento distinto. É, portanto,
inconcebível atribuir a outro órgão ou entidade da Administração Pública a
realização de atividades que se enquadram no campo da autonomia de cada
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
autarquia. Assim, a realização de licitações, a celebração de contratos e o
procedimento
de
ingresso
de
servidores
(concurso
público)
constituem
manifestação inequívoca do poder de auto-administração das entidades
autárquicas. Conseqüentemente, não teria fundamento jurídico transferir tal
prerrogativa a outros órgãos ou entes administrativos, sob pena de se eliminar o
que existe de mais importante na concepção das autarquias, ou seja, a autonomia
que lhes é inerente no exercício de suas atividades. O problema se agrava
quando a modificação de suas atribuições ocorre por meio de regulamento do
Executivo, o qual é ato normativo secundário, sem caráter inovador e
hierarquicamente subordinado à lei.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Segurança nº
21.579-DF, impetrado por servidor autárquico que fora demitido por decreto
presidencial, após a instauração do processo disciplinar pelo Ministério
controlador,
decidiu
pela
anulação
do
procedimento
administrativo
e,
conseqüentemente, do ato demissório. O fundamento dessa decisão reside na
competência da própria entidade autárquica para a realização do processo
disciplinar do servidor, que é expressão de sua autonomia administrativa em face
da União. O referido Tribunal foi taxativo ao determinar a “incompetência do
Ministério a que vinculada a autarquia para conduzir o procedimento disciplinar,
frente a autonomia que ostenta a autarquia, por sê-lo, para tanto”. Esse
julgamento foi publicado no “Diário da Justiça” de 30/4/93, e atuou como relator o
Ministro Francisco Rezek.
Sendo os entes autárquicos criados por lei, sua finalidade institucional não
pode ser modificada por ato de seus dirigentes, mas, tão-somente, por ato do
legislador, que poderá extingui-los ou transformá-los, segundo aspectos de
conveniência política. É o que analisaremos no próximo item.
Criação, transformação e extinção de órgãos e entidades
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
É interessante observar que alguns órgãos da Administração direta foram
erigidos em serviço autônomo descentralizado, especialmente sob a modalidade
de autarquia. No âmbito federal, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica
- CADE -, criado pela Lei nº 4.127, de 1962, era um órgão colegiado integrante da
estrutura administrativa do Ministério da Justiça. Com a edição da Lei nº 8.884, de
1994, o referido órgão foi transformado em autarquia, passando a integrar a
Administração indireta do Executivo, vinculado ao Ministério da Justiça, para fins
de controle de finalidade, preservando-se sua denominação e competência
originais.
Em Minas Gerais, na década de 90, pelo menos dois órgãos da
Administração direta foram transformados em entidades autárquicas vinculadas à
antiga Secretaria de Estado da Casa Civil e Comunicação Social, a saber, o
Departamento Estadual de Telecomunicações - DETEL-MG - e a Imprensa Oficial
do Estado, respectivamente, por meio das Leis nºs 10.827, de 1992, e 11.050, de
1993.
Fenômeno inverso também pode ocorrer, ou seja, o Estado, se entender
conveniente, tem a prerrogativa de extinguir determinada autarquia - fórmula de
descentralização administrativa - e assumir diretamente a execução do serviço.
Trata-se de uma questão relacionada com as opções discricionárias do poder
público. Se o serviço ou a atividade é exercida de forma desconcentrada, por
meio dos órgãos que integram a estrutura administrativa do Estado, existe
normalmente a relação de subordinação, que é inerente ao fenômeno da
desconcentração. Isso propicia um controle amplo e irrestrito do Estado sobre a
atuação de seus órgãos. Vale dizer, a autoridade superior poderá interferir
amplamente na condução das atividades dos agentes e órgãos subalternos,
dispondo do poder de revogar os atos inconvenientes e de anular os atos ilegais,
o que é uma decorrência natural do princípio da hierarquia.
Situação diferente ocorre quando o Estado opta pelo serviço descentralizado
e, para assumir a sua execução, cria determinada autarquia, nos termos da lei
instituidora. O ente autônomo criado, por ter personalidade pública distinta da
pessoa jurídico-política Estado, a este não se subordina, mas mantém uma
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
relação de mera vinculação com determinado órgão da Administração direta,
conforme a natureza da matéria a que esteja afeto, o que propiciará o controle
finalístico da autarquia. Como já foi mencionado alhures, esse controle é limitado
ao que a lei estabelece, pois a autonomia da entidade autárquica deve ser
respeitada.
Vê-se, pois, que o Estado dispõe de discricionariedade política quanto à
forma de execução do serviço. Poderá optar pelo serviço centralizado ou
descentralizado, de modo a melhor atender às conveniências administrativas e
aos interesses da coletividade. Todavia, se se pretende manter as instituições
autárquicas,
as
prerrogativas
intrínsecas
a
tais
entidades
devem
ser
rigorosamente observadas, sob pena de se deturpar a noção de autarquia, que
supõe capacidade de auto-administração. Ademais, ressalte-se que, na qualidade
de pessoa de direito público, esse tipo de entidade dispõe da titularidade do
serviço público que exerce, o que não ocorre com as pessoas de direito privado,
que recebem delegação do Estado apenas para a execução da atividade. Isso
porque as pessoas de direito privado não podem ser titulares de interesses
públicos.
Saliente-se, mais uma vez, que a criação de autarquia por lei específica é
uma exigência do art. 37, XIX, da Constituição da República. Comando análogo
consta no art. 14, § 4º, I, da Carta mineira, que também exige lei específica para a
sua extinção. Ora, se a existência jurídica de tal entidade resulta diretamente da
lei, que lhe atribui autonomia administrativa e financeira, eventual restrição dessa
autonomia somente poderia ocorrer mediante lei específica incidente sobre cada
entidade autárquica, com fundamento no princípio do paralelismo das formas. A
capacidade de auto-administração consagrada em lei não pode ser atenuada por
ato administrativo. Ainda que essa limitação de autonomia seja obra do legislador,
tal restrição deve estar amparada pelo princípio da razoabilidade, que requer bom
senso, moderação e coerência, visto que autarquia sem poder de gestão ou com
capacidade de ação reduzida simplesmente anula a descentralização. Se o
legislador retirasse parcela considerável da autonomia dos entes autárquicos, que
são os mais tradicionais da Administração indireta, e a transferisse para outro
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
órgão ou entidade administrativa, as autarquias seriam transformadas em figuras
meramente decorativas. Assim, a personalidade de direito público, que lhes é
peculiar, converter-se-ia em expressão vazia de conteúdo e o fenômeno da
descentralização de serviços deveria ser totalmente repensado.
No que diz respeito à possibilidade de regulamento ou decreto do Executivo
modificar competências definidas em lei, o assunto merece exame específico a
respeito do alcance e dos limites do poder regulamentar no direito brasileiro, ainda
que de forma sucinta, o que faremos no próximo tópico.
O poder regulamentar do Executivo
No Brasil, cabe tradicionalmente aos Chefes do Poder Executivo a atribuição
constitucional de expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis,
conforme estabelece o art. 84, IV, da Constituição da República. No âmbito
estadual, a competência do Governador do Estado para a regulamentação das
leis está prevista no art. 90, VII, da Carta mineira.
Decretos e regulamentos são atos administrativos de caráter normativo
expedidos pelo Executivo para a adequada aplicação das leis. Nem todas as
normas aprovadas pelo Legislativo são auto-executórias, razão pela qual torna-se
necessária a edição de regulamentos que pormenorizem a lei e estabeleçam as
providências administrativas visando à sua aplicação uniforme. Por se tratar de
atos hierarquicamente inferiores à lei, os regulamentos jamais podem ampliar ou
restringir o conteúdo e o alcance das disposições legislativas, sob pena de
afrontar a ordem constitucional vigente. Assim, direitos e obrigações constantes
na lei não podem ser suprimidos mediante regulamento, de maneira que a
validade deste está condicionada à observância dos parâmetros consagrados no
ato legislativo superior. Apenas a lei inova originariamente a ordem jurídica, razão
pela qual é fonte primária do Direito, ao passo que o regulamento, por não ter a
característica da novidade, é fonte secundária.
Além disso, a lei é expressão do poder político do Estado, enquanto o
regulamento é manifestação de poder administrativo, ou seja, é um poder
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
instrumental assegurado constitucionalmente a algumas autoridades para
proporcionar a aplicação uniforme da lei. Como ato político por excelência, a lei é
editada no exercício de acentuada liberdade política, o que não ocorre com a
edição de regulamento, pois este deve guardar submissão integral à lei. O
exercício do poder regulamentar supõe, portanto, a existência de lei administrativa
anterior. As competências definidas em lei formal, que passa pelo crivo do Poder
Legislativo e posterior sanção do Chefe do Executivo, não podem ser modificadas
por regulamento do Governador do Estado. Se se admitir o contrário, lei e
regulamento estariam no mesmo plano hierárquico, o que não é verdade, em face
do ordenamento constitucional vigente. Em razão do princípio da legalidade,
previsto principalmente no art. 5º, II, e no art. 37, “caput”, da Constituição Federal,
existe uma nítida primazia da lei sobre o regulamento. O papel deste no direito
brasileiro está claramente delineado no mencionado inciso IV do art. 84 da Lei
Maior, ou seja, explicitar a lei para a sua fiel aplicação. É o chamado regulamento
executivo, que determina comandos complementares da lei para a sua correta e
adequada execução. Tais preceitos constitucionais evidenciam a total submissão
do regulamento aos comandos do legislador, sendo insustentável admitir que atos
administrativos normativos do Executivo possam contradizer a lei ou extrapolar
seu conteúdo.
Sobre este tipo de regulamento, ensina o saudoso jurista Geraldo Ataliba:
“Consiste o chamado poder regulamentar na faculdade que ao Presidente
da República - ou Chefe do Executivo, em geral, Governador e Prefeito - a
Constituição confere para dispor sobre medidas necessárias ao fiel cumprimento
da vontade legal, dando providências que estabeleçam condições para tanto. Sua
função é facilitar a execução da lei, especificá-la de modo praticável e, sobretudo,
acomodar o aparelho administrativo, para bem observá-la” (Decreto regulamentar
no sistema brasileiro. RDA, Rio de Janeiro, v. 97, jul./set. 1969, p. 21-33).
Celso Antônio Bandeira de Melo, ao abordar o tema à luz do ordenamento
constitucional, ensina:
“É que os dispositivos constitucionais caracterizadores do princípio da
legalidade no Brasil impõem ao regulamento o caráter que se lhe assinalou, qual
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
seja, o de ato estritamente subordinado, isto é, meramente subalterno e, ademais,
dependente de lei. Logo, entre nós, só podem existir regulamentos conhecidos no
Direito alienígena como ‘regulamentos executivos’. Daí que, em nosso sistema, de
direito, a função do regulamento é muito modesta” (“Curso de Direito
Administrativo”. 16ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 311).
Com base nos ensinamentos dos eminentes doutrinadores, é fácil extrair a
idéia da acessoriedade do regulamento em relação à lei, o que torna patente a
dependência e subordinação daquele perante o ato legislativo propriamente dito.
São muitas as relações entre a lei e o regulamento, porém o Executivo deve estar
atento às diretrizes da Lei Maior ao editar atos regulamentares necessários à
execução das leis. Não se admite qualquer espécie de contradição entre lei e
regulamento, sob pena de nulidade deste. Pelo contrário, a relação entre ambos
deve ser de estrita adequação e compatibilidade, o que exclui a possibilidade de
decreto regulamentar modificar, ampliar ou restringir atribuições fixadas pelo
legislador.
Alguns países, como a França, consagram na Constituição a figura do
regulamento autônomo, a par do regulamento executivo. O campo de atribuições
do primeiro é de natureza residual ou remanescente, pois as matérias não
reservadas ao Parlamento podem ser disciplinadas em regulamento autônomo.
Este pode inovar originariamente a ordem jurídica, diferentemente do regulamento
executivo, que supõe a existência de lei anterior. Assim, o art. 34 da vigente
Constituição Francesa de 1958 enumera as matérias que só podem ser reguladas
em lei formal, ao passo que o art. 37 atribui ao Executivo o poder de baixar
regulamentos para tratar de assuntos não inseridos explicitamente no domínio do
legislador. Ora, esse tipo de regulamento não pressupõe lei anterior, pois seu
objetivo não é complementar disposições legislativas preexistentes, mas
disciplinar de forma autônoma assuntos que se encartam em sua competência
residual.
Ainda com fulcro no ordenamento constitucional francês, são matérias que
se enquadram no domínio da lei a nacionalidade, o estado e capacidade das
pessoas; a criação de crimes e a cominação das penas; as garantias
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
fundamentais asseguradas aos funcionários civis e militares do Estado; a
nacionalização
de
empresas;
e
a
criação
de
novas
categorias
de
estabelecimentos públicos, que são entidades análogas às autarquias do direito
brasileiro, entre outras especificadas no texto.
Existe, no Brasil, tendência a ampliar o poder regulamentar do Executivo, o
que se verificou com a promulgação da Emenda à Constituição nº 32, de 2001,
que alterou a redação do inciso VI do art. 84 da Lei Fundamental, entre outras
disposições. Nos termos da redação atual do preceptivo, compete privativamente
ao Presidente da República dispor, mediante decreto, sobre a organização e o
funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de
despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Ademais, compete-lhe
extinguir funções ou cargos públicos, quando vagos.
Ora, essa alteração constitucional não introduziu, efetivamente, o poder
regulamentar autônomo no Brasil, a exemplo do que ocorreu com a Constituição
Francesa de 1958. A citada emenda constitucional deve ser interpretada com
cautela, de modo a não jogar por terra o princípio da legalidade, que é da
essência do Estado de Direito. Houve, sem dúvida, ampliação do poder
regulamentar do Executivo, mas não a ponto de o Presidente da República ou o
Governador do Estado poder modificar, mediante decreto, competências
estabelecidas pelo legislador. Repita-se, uma vez mais, que atribuições definidas
em lei não podem ser alteradas pelo Executivo, no exercício da função
administrativa. Ao expedir decreto dispondo sobre a organização e o
funcionamento da Administração Pública, em hipótese alguma o titular dessa
competência poderá prescrever disposições incompatíveis com as leis aprovadas
pelo Legislativo. É da essência do Estado de Direito a supremacia da lei em face
do decreto ou do regulamento.
Conclusão
Pelo que foi exposto ao longo deste estudo técnico, entendemos que os
atributos tradicionais das entidades da Administração indireta, principalmente das
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
autarquias e fundações públicas, não podem ser ignorados. A autonomia
financeira e administrativa de tais entes, que se refere à capacidade de autoadministração no exercício de suas atividades, deve ser respeitada pelo Estado.
Essa autonomia consagrada na lei pode ser ampliada ou restringida pelo
legislador, com fundamento no princípio do paralelismo das formas, mas não por
meio de regulamento. A eventual limitação do poder de ação das autarquias, que
só pode resultar de ação legislativa, deve ser feita de maneira criteriosa e com
boa dose de razoabilidade, de modo a não comprometer a execução dos serviços
que lhes são inerentes nem subverter a natureza jurídica dessas pessoas
públicas. Manter as entidades da Administração indireta sem autonomia ou com
capacidade
de
ação
reduzida
a
quase
nada
simplesmente
anula
a
descentralização, visto que a noção de autarquia implica amplos poderes de
gestão, embora com total submissão ao império da lei e do Direito.
Todavia, é oportuno ressaltar que as inovações introduzidas no ordenamento
jurídico vigente, ancoradas no festejado princípio da eficiência, têm dado ênfase à
chamada administração consensual, em substituição à clássica administração
burocrática. Aquela pressupõe acordo das partes interessadas para o alcance de
metas, enquanto esta escuda-se na via impositiva, unilateral e formalista. No
âmbito estadual, o fundamento de tal fórmula de atuação reside nos §§ 10 e 11 do
art. 14 da Carta Mineira, introduzidos pela Emenda à Constituição nº 49, de 2001,
os quais tratam da ampliação da autonomia gerencial, orçamentária e financeira
dos órgãos e das entidades descentralizadas, mediante instrumento próprio, na
forma da lei. O assunto em questão está devidamente disciplinado na Lei nº
14.694, de 2003, que prevê o instituto denominado Acordo de Resultados como
instrumento hábil à ampliação dessa autonomia.
A par desse problema relativo ao tratamento das entidades autárquicas, há
outro, referente à interpretação da mencionada Emenda Constitucional nº 32. Esta
não introduziu o regulamento autônomo no Direito brasileiro, nos moldes do que
ocorreu no sistema constitucional francês. Ela apenas ampliou o poder de ação do
Chefe do Executivo para o funcionamento da Administração Pública. Decretos e
regulamentos continuam sendo atos normativos subalternos e hierarquicamente
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
inferiores à lei. Conseqüentemente, jamais poderão modificar competências
estabelecidas antecipadamente pelo legislador. A Constituição da República não
dá margem a tal interpretação, pois ainda prevalece, no Estado Democrático de
Direito, a supremacia da lei sobre o regulamento.
(*) Consultor da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais e Mestre em
Direito Administrativo.
Todos os direitos reservados. Autorizada a reprodução desde que citada a fonte.
Download

Limites da Competência Regulamentar do Poder Executivo