Protocolo Adicional: lógica e impacto Marcos Marzo – Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de materiais Nucleares (ABACC) Em 1993, a AIEA adotou um programa extenso de fortalecimento das salvaguardas que se tornou conhecido como Programa 93+2. As principais medidas desse Programa referiam-se, basicamente, a um volume maior de informações, à aplicação de novas tecnologias e a um acesso físico mais amplo. No âmbito internacional ocorreu uma discussão intensa sobre a autoridade legal da AIEA para aplicar novas medidas de salvaguardas com base nos Acordos de Salvaguardas vigentes. O Programa 93+2 foi então dividido em duas partes. A primeira parte do Programa 93+2 incluiu as medidas que podiam ser implantadas imediatamente com base na autoridade legal já existente (Acordos de Salvaguardas), entre as quais as mais relevantes são: a aquisição de informações adicionais sobre instalações que contêm ou contiveram materiais nucleares; a aplicação de amostragem ambiental em pontos estratégicos de instalações nucleares; a intensificação do uso de inspeções não anunciadas; o uso de técnicas mais avançadas, como a monitoração remota; e a maior cooperação entre a AIEA e os sistemas nacionais e regionais de contabilidade e controle de materiais nucleares. As duas primeiras medidas citadas foram gradativamente implantadas pela AIEA, inclusive no Brasil e na Argentina, enquanto que as outras foram objeto de estudo mas, até o momento, não foram sistematicamente aplicadas. A segunda parte do Programa 93+2 compreendeu as medidas que exigiam autoridade legal complementar, como, por exemplo, acesso de inspetores a qualquer local do país. A discussão dessa parte do Programa evoluiu para a negociação num Comitê da Junta de Governadores da AIEA ¾ denominado Comitê 24 ¾ que contou com a participação da Argentina e do Brasil e culminou com a aprovação, em 1997, do Modelo de Protocolo Adicional a Acordos de Salvaguardas, que é chamado simplesmente de Protocolo Adicional. O surgimento do Protocolo Adicional alterou radicalmente a filosofia das salvaguardas internacionais. Até então, as salvaguardas (que deste ponto em diante, serão chamadas de 'tradicionais') tinham por objetivo detectar o desvio de materiais nucleares em instalações nucleares declarados pelo Estado. Todas as atividades estavam baseadas na verificação da correção das informações prestadas pelo operador da instalação e, em última instância, pelo Estado por meio de sua autoridade nacional. Com a instauração do Protocolo Adicional, as salvaguardas internacionais pretendem também assegurar a ausência de materiais ou atividades não-declaradas. A conclusão das salvaguardas não é mais obtida individualmente, por instalação, mas para o país como um todo. A nova situação requereu, portanto, uma ação básica que é a definição das condições apropriadas para se concluir sobre a ausência de materiais e instalações nucleares não-declaradas. Deve-se considerar que essa tarefa é muito difícil. Como se fazer para atestar que o país não possui atividades não declaradas? Não se trata mais de constatar um evento, mas sim de atestar a ausência de indícios do evento. As Medidas do Protocolo Adicional As medidas do Protocolo Adicional foram adotadas com o objetivo de assegurar que a declaração apresentada pelo país sobre materiais e instalações nucleares é correta e completa. Em outras palavras, essas medidas devem permitir à AIEA concluir sobre a ausência de materiais e atividades nucleares nãodeclarados em um país. Elas fornecem a base para um leque de atividades da AIEA quanto aos materiais nucleares, ao ciclo de combustível nuclear, à pesquisa e desenvolvimento do ciclo do combustível e outras atividades relevantes. A lógica do Protocolo consiste em que, se um Estado decidir realizar uma atividade nuclear clandestina, ele provavelmente tentará concretizá-la em uma instalação nuclear declarada ou em suas proximidades, dada a infra-estrutura já disponível. As medidas de verificação do Protocolo Adicional concentram-se, portanto, especialmente nessa área geográfica. Se o país decidir realizar a atividade clandestina longe de um site, isso exigirá obras civis e movimento de pessoal e de equipamentos, que aumentarão os custos do empreendimento e o tornará mais difícil de esconder. Nesse caso, um instrumento importante que a AIEA dispõe para descobrir a atividade não declarada é a análise de informações. A AIEA tem direito de usar informações fornecidas por terceiras partes - inclusive de serviços de inteligência - e imagens de satélite. O Protocolo Adicional estipula que, em caso de uma denúncia bem fundamentada, a AIEA poderá ter acesso ao local suspeito. O Estado obriga-se, por meio do Artigo 2 do Protocolo Adicional, a fornecer uma declaração abrangente sobre materiais e atividades relacionadas com a área nuclear, cujos principais pontos são: Deverá ser descrito com certo detalhe o site da instalação nuclear, que compreende a área circunvizinha à instalação nuclear, incluindo todos os edifícios ali existentes. A definição do site é, em primeira instância, uma prerrogativa do país. No entanto, a AIEA deverá avaliar a informação prestada, e, em caso de alguma dúvida, poderá solicitar explicações sobre o site. Deverão ser informadas as atividades de pesquisa e desenvolvimento relacionadas com o ciclo do combustível nuclear não envolvendo materiais nucleares; Deverão ser prestadas informações sobre a manufatura de equipamentos usados para separação isotópica - inclusive de centrífugas - ou reprocessamento; Deverá ser informada a localização e capacidade de produção de minas de urânio e plantas de concentração de urânio e tório. Deverão ser informados os locais e as quantidades de materiais nucleares em uso não-nuclear, materiais nucleares antes do ponto de início de salvaguardas e sobre aqueles isentos de salvaguardas. É interessante notar que esse item envolve, por exemplo, diversos equipamentos de radioterapia de hospitais, cuja blindagem seja de urânio empobrecido. Deverá ser fornecida uma descrição dos planos de desenvolvimento do ciclo do combustível nuclear para um período de dez anos; Finalmente, o país deverá informar a produção, exportação e importação de equipamentos especificados e materiais não nucleares (p.ex., grafite, água pesada, etc.) essenciais para a operação de instalações nucleares; Todas essas informações deverão ser periodicamente atualizadas. Os principais elementos que a AIEA dispõe para obter um nível razoável de segurança sobre a ausência de materiais e atividades nucleares não-declarados são: A análise de informações disponíveis sobre o país, que advêm das declarações do próprio Estado, de fonte abertas e de terceiras partes; Os acessos complementares a outros locais da instalação, adicionais àqueles aos quais os inspetores têm acesso nas salvaguardas tradicionais; Os acessos complementares a outros locais do site; e Os acessos complementares a outros locais do país, quando necessário para resolver alguma questão ou inconsistência. Durante os acessos complementares nos sites, os inspetores da AIEA poderão observar os locais, coletar amostras ambientais, utilizar medidores de radiação, aplicar selos e outras medidas acordadas por meio de Arranjos Subsidiários. Além dessas ações, em locais contendo minas de urânio, material nuclear antes do ponto de início ou material nuclear isento, os inspetores poderão ainda examinar registros sobre quantidade e origem do material. É importante frisar que a AIEA não deve verificar as informações relacionadas com o Artigo 2 de modo mecânico ou sistemático. A intenção aqui, dado o caráter qualitativo da informação, não é verificar cada elemento da declaração do Artigo 2, mas sim assegurar a ausência de materiais e atividades nucleares não declarados nos sites e outros locais com materiais nucleares e resolver questões e inconsistências em qualquer local. A conclusão sobre a ausência de atividades e materiais nucleares não-declarados em um país deriva da determinação de que: o programa nuclear declarado é consistente com o planejado; as atividades nucleares e os tipos de material nuclear em locais declarados são consistentes com aqueles declarados; os inventários e fluxos de materiais nucleares, a produção e as importações e exportações correspondem à utilização prevista no programa nuclear declarado; a manufatura e importação de equipamentos especificados e materiais não nucleares são compatíveis com o programa nuclear declarado; a situação de instalações fechadas ou descomissionadas e de Outros Lugares (LOFs) está em conformidade com a declaração do país. as atividades de pesquisa e desenvolvimento relacionadas com o ciclo do combustível estão de acordo com os planos declarados sobre futuros desenvolvimentos do programa nuclear; e os esclarecimentos fornecidos pelo Estado resolvem qualquer questão ou inconsistência relativa às informações prestadas e àquelas disponíveis pela AIEA, incluindo informações sobre atividades desenvolvidas no passado. Impacto da Aplicação do Protocolo Adicional As novas medidas do Protocolo Adicional exigem que o Estado garanta o acesso de inspetores internacionais a qualquer local de um site e a qualquer local do país para resolver alguma questão que advém de uma denúncia bem fundamentada. Além disso o Estado também tem que ser o último responsável por informações que nem sempre são de sua responsabilidade. Pode-se citar como exemplo, informações sobre pesquisas científicas que não estão diretamente envolvidas com o programa nuclear. Outro exemplo é a informação sobre um determinado processo em uma indústria privada ou a permissão de acesso de inspetores internacionais a uma indústria privada que não manuseia material nuclear e que detém know-how de determinada tecnologia. Atualmente não há dispositivo legal que obrigue o proprietário a permitir o acesso de inspetores internacionais para realizar atividades de verificação em sua indústria. Deste modo, como ocorreu em praticamente todos os países em que o Protocolo Adicional já está em vigor, a sua implementação na Argentina e no Brasil deveria ser precedida de uma mudança de legislação vigente. Por outro lado, com a mudança da legislação, e investidas da autoridade legal para atuar no marco do Protocolo Adicional, as autoridades nucleares dos dois países vão ter que coletar, analisar e centralizar informações sobre materiais, equipamentos e processos de diversos setores estatais e privados. A coleta e gerenciamento dessa informação não é trivial, especialmente em países das dimensões de Argentina e Brasil. Essa ação exigirá um aperfeiçoamento dos serviços de salvaguardas atualmente existentes, com formação de novos quadros e aperfeiçoamento da infra-estrutura disponível. Além disso, um grande esforço deve ser feito para informar e preparar o pessoal que vai estar envolvido nas atividades do Protocolo Adicional. Em instalações nucleares, isso talvez não seja um grande problema, pois, de certo modo, já há um conhecimento das atividades de controle. No entanto, em outros locais dentro e fora do site, os quais serão passíveis de verificação, essa tarefa será muito complexa e demandará tempo e recursos. A experiência de países onde o Protocolo Adicional já vigora mostra que, em muito casos, é importante que haja um responsável legal para tratar da aplicação do Protocolo em cada um desses locais, e, em certos casos, até mesmo um representante da autoridade nacional seja designado para tanto. Outro grande esforço deverá ser empregado na definição dos sites. Esta ação provavelmente deverá envolver especialistas de diversos setores e instituições sob a coordenação da autoridade nacional. Esta definição deverá levar em conta os critérios prescritos no Protocolo Adicional e a melhor prática que otimize o gerenciamento da informação. Outro ponto importante é a identificação de locais que deverão ser objeto de acesso gerenciado. Isso advém do fato de que o Protocolo Adicional contempla acessos gerenciados, ou seja feito sob certas condições, em locais em que o país considera que deve proteger informações sensíveis. As condições em que esses acessos são realizados - os procedimentos de acesso - deverão ser preparadas e acordadas caso a caso. É importante observar que o impacto do Protocolo Adicional já ocorre antes mesmo de sua entrada em vigor, e o país deve se preparar adequadamente, a fim de evitar questões e problemas técnicos ou políticos mais tarde, quando da implementação do Protocolo Adicional. Para finalizar, é importante novamente relembrar que a conclusão sobre a ausência de materiais e atividades não declarados somente pode ser inferida da ausência de qualquer evidência ao contrário. A ausência de evidência não prova, no entanto, e nunca poderá provar com certeza absoluta que não há materiais ou atividades nucleares não declarados. Assim, o resultado da aplicação do Protocolo Adicional baseia-se em avaliação essencialmente qualitativa, ou seja não quantificável, e portanto passível de julgamento subjetivo. Em conseqüência, para muitos analistas, o Protocolo Adicional é uma condição necessária mas não suficiente para um país ser considerado transparente em suas atividades nucleares e cumpridor de suas obrigações perante o TNP.