27/09/2014
O paulistano que sempre diz não
Por que os moradores de São Paulo protestam contra
ciclovias, metrô e museus, elementos positivos em
qualquer outra cidade?
María Martín São Paulo 27 SEP 2014 - 22:30 BRT
Ciclistas se manifestam a favor de uma ciclovia em São Paulo. / FOLHAPRESS
Acontece em São Paulo um fenômeno intrigante. De tempos em tempos um abaixoassinado acaba tendo tanta ou mais repercussão que uma iniciativa da Avaaz.org contra
a mudança climática. Essas petições, geralmente assinadas por moradores
endinheirados, viajados e com diplomas universitários, não pedem mais segurança nas
ruas, nem salários dignos para seus empregados, nem a interrupção do trânsito nos fins
de semana para poder passear, nem mesmo o fechamento de enormes shoppings que
asfixiam a vida do bairro. O que querem é acabar com aquilo que moradores de
qualquer cidade do mundo gostariam: estações de metrô, ciclovias, ônibus mais rápidos
e, agora, um museu.
Dizem que essas coisas atraem gente não tão viajada e com menos dinheiro, gente
diferente, vendedores ambulantes e ônibus com crianças. Ou quase pior: afastam de suas
vias, restaurantes e butiques o cidadão exclusivo, como advertia anos atrás aquela
cabeleireira de Moema angustiada ao ver sua rua pintada de vermelho: “Onde vou
colocar a minhas clientes milionárias que vêm com seus carros importados?! Acha que
vão vir de bicicleta?!”.
Os moradores dos bairros ricos sentem-se inconformados, desprotegidos e protestam
estacionando seus carros no ‘tapete’ vermelho destinado às bicicletas, desabafam no
facebook contra os farofeiros e mobilizam-se em busca de assinaturas. O que acontece
com o paulistano?
“Esse é um sintoma da elite. Essas regiões – Moema, Higienópolis, Jardim Europa –
sempre foram protegidas pela polícia. O fato de uma nova classe média, agora com
algum dinheiro, tomar a cidade, para eles significa insegurança”, diz Altair Moreira, do
Instituto Polis, uma ONG que defende cidades sustentáveis e mais democráticas. “É um
fenômeno novo e importante no Brasil, a população da periferia e de outros bairros não
tão privilegiados está assumindo a cidade como um todo, enquanto gera esse incômodo
na elite, que não está acostumada a compartilhar seu espaço”.
Contra essa elite foi organizado no sábado um “churrasco de gente diferenciada”. Quase
uma centena de pessoas plantou-se na rua da idosa que liderou a coleta de assinaturas
contra o suposto caos que o Museu da Imagem e do Som (MIS) gera aos ilustres
moradores do Jardim Europa, um bairro com casas que têm mais estrutura e
funcionários que muitos condomínios. Os diferenciados comeram farofa, gritaram
contra o preconceito e tocaram música. Mas os ricos promotores da iniciativa estavam
passando o fim de semana fora, de modo que só ouviram a gritaria os agentes de
segurança encarregados de cuidar do patrimônio na ausência dos patrões.
“O Brasil ainda não desenvolveu essa noção de espaço público. Perdura a característica
de considerar que o espaço público é um espaço privado. As ciclovias, o MIS, o metrô
em Higienópolis deixam claro que existe uma parte da elite da sociedade que não quer
ver o espaço público se transformar em algo de todos, afirma Emerson Ricardo Girardi,
professor de sociologia da FAAP.
Sirva de consolo que não se trata de algo exclusivo do Brasil, nem de São Paulo:
moradores com raiva das ciclovias existem até em Nova York. É o que ficou
demonstrado em 2011 quando os protestos de um grupo de moradores chegaram ao New
York Times. A matéria foi intitulada: “Desenvolvimento verde? Sim, mas não no meu
quintal”. Eram progressistas e ecologistas, mas queriam acabar com uma ciclovia, que
continua lá.
"A cidade organizou-se de uma forma individualista e privatista, tendo em mente a
predominância dada ao automóvel. Uma parte da sociedade acostumou-se durante muito
tempo a privilégios que não lhe correspondiam. É um problema para eles porque os
iguala socialmente. Nessa questão, acho que a ideia de distinção é central, até agora se
distinguiam por viver em um espaço determinado, privilegiado, que começa a ser usado
por todos. Essa elite que se queixa tem uma grande dificuldade em lidar com o diferente
e o espaço público”, diz Alexandre Barbosa Pereira, antropólogo e professor da
Unifesp.
Enquanto os ânimos do churrasco murchavam e algum morador atendia os jornalistas
pelo interfone de sua mansão, o jornaleiro negro do bairro respondia espontâneo demais
a uma pergunta impertinente: Os moradores daqui são legais?
- Não, claro que não. No máximo dizem "oi" e "tchau" ou mandam o motorista buscar o
jornal.
Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/28/sociedad/1411867816_999496.html
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