I a sentença VINICIUS CASTRO o nosso verbo sempre teve ligação e eu pedia a deus pra não quebrar nossa oração tudo nosso sempre teve alguma explicação... aposto que o aposto agora é só contradição. parecia até um mandamento tão normal... você sempre ser meu complemento nominal parecia até o meu pilar fundamental: eu era sempre no plural. quem escreveu nossa sentença assim? com dois sujeitos, predicado, enfim... nosso passado tão perfeito, ai de mim, hoje chegou ao fim. foram tantas regras e eu buscando a exceção feito um objeto indireto em tuas mãos falta concordância, falta comunicação aposto que o aposto agora é mera distração. pelas entrelinhas, meus pronomes são iguais, sempre possessivos, relativos e banais foram tantas vírgulas, hiatos... menos mal: agora é só ponto final. quem escreveu nossa sentença assim? com dois sujeitos, predicado, enfim... nosso passado tão perfeito, ai de mim, hoje chegou ao fim. amor reflexivo sempre vai além: indicativo de que sigo bem desconstruindo o que a paixão ergueu amor, o vocativo hoje é ninguém não tão altivo, mas eu sigo bem desconstruindo o que a paixão ergueu ontem só nós, hoje só eu. II blues da solidão VINICIUS CASTRO eu quero a força do equilibrista do sinal eu quero o dedo e o pincel dos pintores da central e a esperança de todo ator sem camarim eu quero o medo e o segredo de todos botequins eu quero a ambição sem fim desses artistas sem futuro quero tudo só pra mim eu quero a alma de um cantor de bar vazio que insiste em cantar* eu quero a sina desses poetas de esquina quero os versos e os quartetos dos sonetos da menina e os desenhos, caricaturas de verdade quero o dom do desenhista lá do centro da cidade eu quero a solidão sem fim desses artistas sem futuro quero tudo só pra mim eu quero a alma de um cantor de bar vazio que insiste em cantar* * citação de ‘Cantor de bar’ (Jion Boechat) III cara metade VINICIUS CASTRO a minha cara lavada retorcida, estendida ao sol no varal ri da sua cara fechada que tá de mal com a vida em pleno carnaval a minha cara quebrada varrida pra debaixo de um tapete qualquer ri da sua cara amassada de quem não acordou, mas já está de pé. a sua cara por cima e a minha cara no chão: você, minha cara, é metade da minha solidão você quer passear de caravela e eu vou entrar pro caratê você vai me comprar um caramelo e eu vou me apaixonar de cara por você com seu sapato de camurça eu digo o que não quero dizer mas e se te servir a carapuça me diz o que que eu posso fazer? a sua cara por cima e a minha cara no chão: você, minha cara, é metade da minha solidão você é bola na caçapa com essa sua cara de pau eu dou a minha cara à tapa e você não reclame no final a sua cara por cima e a minha cara no chão: você, minha cara, é metade da minha solidão. IV carcaça DANILO MARIANO / VINICIUS CASTRO pela mulher que te perdoa todo dia pelo patrão que te explora a força bruta e pela vida que te engole em goles rasos: quem aqui será contrário à razão que deus criou? é pela força que se esvai em doses curtas é pela raiva que te queima o peito magro por tudo aquilo que te prende à lama quente: quem aqui será clemente à razão que deus criou? é pela língua, pela pele e pelo pêlo. é pelo couro arrancado sem ter dó é pela brasa que te marca a carcaça quem aqui não acha graça da razão que deus criou? pela gravata, pelo teu itinerário pela ganância, pela lógica cristã pela bravata e o bom senso do carrasco por pelo menos uma lágrima de amor é pelo solo que se racha ao toque d’água e te lapida em caule seco: alma em pó pelas questões de natureza bestial quem aqui acha leal essa razão que deus criou? pela chantagem, pelo teu estelionato pelo inato subornando tua visão por tudo aquilo que de fato é real quem aqui acha normal essa razão que deus criou? em nome da guerra, da honra e de tudo que convém: em nome do pai, do filho e do espírito de alguém V dos pés à cabeça VINICIUS CASTRO se o braço da poltrona nunca abraça eu acho que a palavra perde graça se a boca do fogão não sente fome então por que o mesmo nome? se a mão do violão não pega nada eu acho que a palavra tá errada se o fósforo tem algo na cabeça alguém me diz o que ele pensa! será que pé de planta tem chulé? será igual ao da planta do pé? e se for pra plantar bananeira... não porá os pés no chão! se o alho tem um dente e não mastiga eu acho que a palavra não se aplica se o livro tem orelha e não escuta mas que palavra mais maluca! se o milho tem cabelo e não penteia eu acho que a palavra é meio feia se a perna tem batata e não frita mas que palavra esquisita! será que pé de planta tem chulé? será igual ao da planta do pé? e se for pra plantar bananeira... não porá os pés no chão! se a gente não alcança, não importa mas se cresce e enxerga não suporta e no fim a fantasia vai embora: o olho mágico da porta só vê o lado de fora... VI marcas DANILO MARIANO / VINICIUS CASTRO as janelas deixaram escapar os odores de uma noite sem dormir e o tapete parece ocultar as cinzas do cigarro de alguém se as paredes conseguiram abafar os gemidos de dois corpos já reféns maquiagem e pó pra disfarçar as marcas que não convêm marcas que vão e vêm o ventilador no teto a rodar espalha a fumaça e o abajur que insiste em brilhar ilumina quem passa só o espelho parece anunciar e o lençol já não cheira a ninguém maquiagem e pó pra disfarçar as marcas que não convêm marcas que vão e vêm o silêncio se esvai pelo corredor e as garrafas transbordam no chão um drinque a mais de licor e um filme qualquer na televisão de repente parece girar a cabeça e o quarto também maquiagem é só pra disfarçar as marcas que não convêm marcas que vão e vêm VII segundas intenções VINICIUS CASTRO eu te prometo as estrelas e todas as constelações eu te prometo os planetas e os cometas mas nas devidas proporções eu te prometo o mar e rios aos borbotões eu te prometo cachoeiras ao luar mas nas devidas proporções eu sei que pode parecer bem melhor nas ilusões só te ofereço uma rosa do buquê... mas com a melhor das intenções! eu te prometo continentes e ilhas para os casarões eu te prometo toda terra, simplesmente, mas nas devidas proporções eu te prometo o ar o hélio pros teus balões eu te prometo aviões pra decolar mas nas devidas proporções eu sei que pode parecer bem melhor nas ilusões só te ofereço uma rosa do buquê... mas com a melhor das intenções! VIII achados e perdidos VINICIUS CASTRO nem proibido, nem autorizado nem aturdido, nem acostumado nem esquecido, nem lembrado nem aplaudido, nem vaiado nem tranqüilo, nem desesperado nem bandido, nem delegado nem odiado, nem amado nem certo, nem errado o que resta de você quando acorda sem direção? perdido no convés... mas achado no porão! nem peso pena, nem peso pesado nem gago, nem articulado nem saibro, nem gramado nem seco, nem molhado nem livre, nem acorrentado nem demitido, nem aposentado nem vendido, nem comprado nem de pé e nem deitado o que resta de você quando acorda sem direção? perdido no convés... mas achado no porão! nem aquecido e nem congelado nem batimentos pra provar que existe nem desenvolto, nem atrapalhado nem nada demais pra fazer! o que resta de você quando acorda sem direção? perdido no convés... mas achado no porão! IX roque das antigas VINICIUS CASTRO adão, toma cuidado com a tua costela que é tudo que ela quer de você aquiles, vá calçar um bom sapato depressa que o teu calcanhar não pode aparecer sansão, eu vou te dar um conselho esconde o cabelo ao anoitecer sansão, eu disse: fica esperto! com um olho aberto ao adormecer midas, de que serve esse grande tesouro se tudo que é ouro não dá pra comer? ícaro, esquece essa coisa de asa que santos dumont ainda tá pra nascer ulisses, vê se tapa essa orelha que essa sereia insiste em cantar ulisses, vê se acerta esse mapa pra voltar pra casa e pra descansar você que já andou pelo céu e pelo inferno me diz como era antes de saber dessas verdades do eterno você que já andou pelo inferno e pelo céu dante, me diz como era antes de botar essas verdades no papel nero, vê se para com essa tua mania senão algum dia alguém vai se queimar narciso, dá um tempo, vê se larga esse espelho e é esse o conselho que eu posso te dar édipo, não faça besteira! que dessa maneira não vai enxergar édipo, não digo mais nada que essa furada é familiar X pecado original VINICIUS CASTRO a gente tenta esquecer que não tem nada de especial se as mesmas páginas em branco de sempre agora são mais bonitas a gente tenta esquecer que não tem nada demais se as mesmas promessas batidas de sempre agora são muito mais já não dá pra continuar e parece que você nem percebeu faz de conta que não pode pagar e quem paga os seus pecados sou eu o nosso livro não é best-seller o nosso filme não é de hollywood a nossa história é tão normal e o seu pecado... o seu pecado não é nada original a gente tenta esquecer que sempre faz tudo tão igual nas mesmas histórias nas mesmas apostas que agora são reais a gente tenta esquecer que nada mudou eu nunca fui o paul e você nem é tão linda assim então deixa... nem todo mundo tem sorte no amor então deixa... nem todo mundo tem a manha do jogo XI bala perdida VINICIUS CASTRO a vida quase sempre me deu porrada foi tapa na cara, pernada e até pescoção achei a solução: ninguém me cala por isso que agora, amigo, comigo é na bala! é a bala de menta, é a bala de coco não tem nada igual tem a bala de leite, tem de tamarindo, café e até mingau encontrada nas lojas do ramo tá pra lá de 2 e tal mas aqui na mão do camelô vai pagar um real! a vida inteira eu tive quase nada faltava relógio, carteira, pulseira e cordão faltou televisão e pai na sala por isso que agora, amigo, comigo é na bala desculpe incomodar o silêncio de vocês mas hão de concordar que vale a pena dessa vez senhoras e senhores, eu garanto a qualidade! é só olhar no verso e conferir a validade! XII casa ao revés VINICIUS CASTRO é ela que acorda cedo e vai trabalhar para assegurar o alimento do seu lar é ela que volta à noite e vem reclamar querendo o jantar e um bom banho pra relaxar mas quem faz a barba aqui sou eu! (mas quem manda é ela!) quem faz a barba aqui sou eu! mas quem faz a barba aqui sou eu, mulher de deus! quem faz a barba aqui sou eu! é ela que faz segredo e não quer contar para assegurar o seu direito de pensar é ela que sai à noite e vai festejar seu próprio luar com os amigos na beira do mar mas quem faz a barba aqui sou eu! (mas quem manda é ela!) quem faz a barba aqui sou eu! mas quem faz a barba aqui sou eu, mulher de deus! quem faz a barba aqui sou eu! ela sente prazer sozinha ela se diverte sozinha ela pensa em seguir sozinha e até mata barata sozinha mas quem faz a barba aqui sou eu! (mas quem manda é ela!) quem faz a barba aqui sou eu! mas quem faz a barba aqui sou eu, mulher de deus! quem faz a barba aqui sou eu! XIII sangramento VINICIUS CASTRO vai, devolve meu formato que hoje o meu sapato já não cabe em mim vai, me alforria o peito que hoje a cruz no leito rasga o meu cetim vai, renova o guarda-roupa que hoje a carne é pouca pra tanto algodão vá, mas saiba, sobretudo, que hoje o sobretudo arrasta pelo chão vai, me autoriza (alcooliza) o riso que hoje eu só preciso de mais circo e pão deixa eu me esquecer da história me concede a glória de outra encarnação vai, que esse meu corpo roto agora é só um porto de injúria e dor submerge nossa nau perdida pra que eu nem consiga relembrar da cor vem, reforma minha alma remodela a calma com pedra-sabão vem, me reconstrói a cara em pedras de carrara me remenda a construção vem, vê se suporta o fardo que hoje o mesmo dardo crava um peito ateu vem e me estanca a tempo que esse sangramento ainda é sintoma teu