E o leitor, como é que fica? “Pensa que é fácil ser Leitor? Nunca conversam com a gente, nunca deixam a gente falar. Os escritores e os roteiristas nos seduzem, nos aprisionam numa história e, quando já não temos como sair, partem para outra e “espérame corazón”. Funciona como as plantas carnívoras: a presa se aproxima distraída e zás, a armadilha se fecha. Nós, Leitores, somos as presas, só servimos para alimentar clichês e pesquisas de opinião. Ah, como eu sonho reverter isto! Fui diagnosticado como tendo um tipo particular de romantismo, mas o que sabem os psicólogos, os psiquiatras, os homeopatas? O meu mal não está nos manuais antigos, tem que ver com a chamada sociedade da informação”. O trecho acima está num dos capítulos do livro “A ordem secreta dos ornitorrincos”, obra lançada recentemente pela escritora Maria Alzira Brum Lemos pela Amauta Brasileira. Ideal para uma reflexão nesta manhã de segunda-feira. Afinal, qual o papel do leitor diante de uma obra? Somos tão autômatos em nossos gestos que quase não questionamos nada. Lemos, ficamos presos a uma obra (ou desprezamo-la) e pronto. Como a escritora diz em outro trecho do livro, leitor é coisa rara e a indústria prefere que ele continue aprisionado nesta condição, sem questionar nada. “Imagine se todo mundo resolvesse escrever, seria o fim do negócio deles, não é?”, complementa. Pois é. Imaginem um mundo sem leitores, só com escritores. Numa época de facilidades provocadas pelo advento de blogues e sites virtuais, está se tornando mais fácil ser escritor do que leitor. Todo mundo pode criar um blogue e se autodenominar escritor. E as dificuldades para se selecionar o que ler são muito maiores, em função da multiplicidade de escolhas e da irregularidade no nível de texto que encontramos na grande rede ou mesmo nas livrarias (afinal, publicar livro também se tornou bem mais fácil do que era antes). Lembro agora de uma amiga que costumava sair com escritores aqui da nossa província. Quando estávamos em algum evento e aparecia alguém de fora, as apresentações eram naturalmente literárias: “este aqui é o poeta tal”, “este ali é o escritor fulano de tal” e “este é o contista sicrano”. Quando chegava a vez de apresentar esta minha amiga o interlocutor geralmente perguntava: “e você, escreve o que?”. Ela respondia: “eu sou leitora apenas. Afinal, alguém tem que ler o que vocês produzem”. Mas, embora escreva também, ainda prefiro ler a escrever. Apesar das dificuldades de escolhas em função da multiplicidade que falei acima, não existe nada mais prazeroso do que ler uma obra que mexe com a gente. É o caso do livro de Maria Alzira Brum Lemos, um romance inovador na linguagem e na estrutura. Uma obra que mais insinua que afirma, mas dissimula do que evidencia, num ir e vir de enredo que mexe com a cabeça do leitor. Como diz Nelson de Oliveira, na obra, os contrários se interpenetram e, no final, “a afirmação vence, pois toda negação nega a negação”. No livro, Jeannie é um Gênio dá passagem para os devaneios e a busca pela sobrevivência no caos do mundo moderno de Maria. Ou seria Dora? Como saber direito, numa obra cheia de armadilhas para pegar o leitor desprevenido. Mas nem a presença de Gasparzinho assusta o leitor a ponto de ele querer interromper a leitura antes do final. Elementos do cotidiano das grandes cidades, insinuações eróticas e bastidores do mundo literários são entrecortados num romance cheio de recomeços, oferecendo ao próprio leitor a oportunidade de decidir qual a mais coerente ou louca versão apresentada. É uma obra que respeita a capacidade de pensar do leitor, apesar da queixa cheia de ironias de um destes leitores, em carta a redação da editora. Maria Alzira é escritora que surgiu na década de 90 e vem construindo seu caminho no cenário literário, já tendo lançado outros livros e participado de diversas antologias. Vale a pena tentar compreender sua ordem secreta e assumir-se como seu leitor. (Publicado no blogue Zumbi escutando blues em novembro de 2008)