IvU comcma fírupo de União e Consciência Negra Ano I Março/Abril de 1987 Na0 NEOU ira dt Pastiral Verodelio 06 MAn987 OI DC DOCUMENTAÇÃO LEIA NESTA EDIÇÃO APRESENTAÇÃO Página 2 O NEGRO NA FORÇA DE TRABALHO Página 4 O MENOR NEGRO Página 5 •DEMOCRACIA RACIAL" NO BRASIL Página 6 A POSIÇÃO DAS IGREJAS NA ÁFRICA DO SUL Página 7 O MOVIMENTO NEGRO E A CONSTITUIÇÃO Página 7 13 de Maio: O que houve por frás da Lei Áurea? ^ O POVO NEGRO NA HISTÓRIA DO BRASIL Página 8 Pág. 2 CONSCIÊNCIA NEGRA Março/Abril Apresentação nossa sociedade: A mulher negra, o menor negro o negro e a constituição, o negro da sociedade dita democrática, o negro na força de trabaího,o negro diante da discriminação na África do 'Sul. Procuramos também, em breves linhas, lançar um questionamento sobre o 13 de Maio, data considerada oficialmente como marco comemorativo da libertação dos escravos. Compreendendo que a libertação de um povo, de uma raça, passa pelo conhecimento de sua história e pelas causas de sua opressão, propomos fazer um resumo da História da Escravidão no Brasil. Isso seria feito por etapas: em cada número um capítulo. Tudo isso é muito importante. E depois? Bem, épreciso esclarecer que, aqui, agora, estamos apenas dando a arrancada inicial. Para continuar este trabalho, precisaremos da contribuição de todos. Este boletim será feito com a colaboração de cada estado, de cada região, enviando notícias, artigos, desenhos, contos, poemas, fotografias. A participação de todo o grupo é que dará força, conteúdo e sustentação ao nosso boletim. Podem começar já! Vamos lembrar aqui, um pequeno trecho de uma das obras mais bonitas da cultura nacional na década de 60, retirada da peça "Arena conta: Zumbi", de autoria de Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, montada pelo Grupo "Opinião": "Se a mão livre do negro tocar na argila, o que é que vai nascer? Vai nascer pote pra gente beber. nasce gamela pra gente comer, nasce vasilha, nasce parede e nasce estatuinha, bonita de se ven7" E, se a mão livre do negro tocar na imprensa, o que é que vai Para reforçar as lutas e o trabalho de organização do Grupo União e Consciência Negra, divulgar passo a passo sua caminhada e promover o intercâmbio de idéias e notícias entre os vários ■cantos do país, estamos lançando o primeiro número do nosso boletim informativo. O nome Consciência Negra ainda não é definitivo. Pode continuar ou ser trocado, dependendo do que decidir a próxima reunião da diretoria. Este boletim propõe-se a ser um espaço aberto para denunciar todas as injustiças e discriminações praticadas contra nossa raça e ser um instrumento do nosso trabalho, no sentido de cumprir os objetivos da grupo, de acordo com o que foi estabelecido em nossos estatutos: a) Despertar a consciência crítica do negro, diante da realidade social, econômica, política e cultural da sociedade brasileira, no geral, e da raça negra em particular; b) Procurar conhecer os cultos, os hábitos e os costumes da raça negra, vivendo seus valores culturais, morais e religiosos, com o objetivo de resgatar sua memória nacional; c) Fomentar a descoberta das raízes negras e a luta pela recuperação de sua identidade racial, como valor individual e comunitário; d) Promover eventos culturais e a elaboração de material educativo, destinados à informação e formação da consciência negra e da cultura nacional; e) Desenvolver a solidariedade com as minorias oprimidas, especialmente o índio, pelo seu direito EXPEDIENTE É uma publicação de responsabilidade da Secretaria Nacional do GRUPO DE UNIÃO E CONSCIÊNCIA NEGRA. Cx. Postal, 86ó - 74.001 - Goiânia Goiás ASSINATURAS ESPECIAL (colaboração) NORMAL PARA AS BASES PARA O EXTERIOR Cz$ 80,00 Cz$ 40,00 Cz$ 20,00 Us$ 10 O pagamento de assinatura pode ser feito através de VALE POSTAL ou CHEQUE VISADO pagavel em Goiânia, em nome de GRUPO DE UNIÃO E CONSCIÊNCIA NEGRA. à identidade, enquanto povo, pelo uso e pela posse da terra e pela intocabilidade de suas reservas naturais; f) Defender as riquezas naturais do país, apoiando os movimentos ecológicos que lutam contra a privatização de suas reservas nacionais; g) Combater todo tipo de discriminação existente, ou que venha a existir na sociedade brasileira, em decorrência da raça, sexo, idade ou crença religiosa e contribuir a favor da igualdade racial, política e econômica do povo brasileiro. Nesta primeira edição, apresentamos alguns comentários sobre a situação geral da raça em Março/Abril CONSCIÊNCIA NEGRA Pág. 3 13 de Maio: O que houve por trás da Lei Áurea? u €SSA íe^t Sé' Há quase um século, as crianças brasileiras vêm aprendendo na Escola, a cultuar a princesa Isabel, como a "Redentora", porque assinou a Lei Áurea.que terminava com o regime de escravidão no Brasil, a 13 de maio de 1888. Mas, será que as coisas ocorreram realmente dessa forma? Foi o senso de justiça qe motivou o governo imperial e abolir a escravidão? A História não aconteceu bem assim do jeito que sempre quiseram nos fazer acreditar. As mudanças econômicas que ocorriam na Europa e os interesses financeiros da Inglaterra tiveram muito a ver com essa Lei. A Revolução Industrial estava começando na Europa, trazendo o avanço do capitalismo. A Inglaterra tinha muitas colônias na Ásia e na África, e precisava dos braços africanos para a sua produção. Se os países da América libertassem os escravos, produziriam menos e teriam que vender mais caro sua mercadoria, do que a que era produzida pelos escravos nas colônias da África e da Ásia. Então, para proteger a Indústria inglesa, era necessário libertar os negros em toda a América. Por isso, o governo inglês decretou a Lei Bill-Aberdeen.proibindo o tráfico de escravos, sob pena de aprisionar os navios suspeitos de trazer africanos para trabalhar na América. Para incrementar o desenvolvimento do capitalismo industrial, fazia-se necessário o fim dos grandes monopólios, isto é, terminar com as grandes plantações de um só produto, que atrapalhavam o novo processo de acumulação de capital, agora baseado na produção. Para isso a escravidão já não era mais importante e precisava acabar. Essa situação influenciou a classe dominante no Brasil, que já não conseguia mais comprar os homens negros que precisava e tinha que pagar muito caro pelos poucos que encontrava nos portos. Até aqui vimos que o fim da escravidão era interesse das classes dominantes da Europa, e consequentemente do Brasil. Ao lado disso, para pressionar o governo imperial, somou-se a Campanha Abolicionista, liderada por intelectuais brasileiros que sonhavam para o Brasil, as mudanças políticas e econômicas que aconteciam no velho continente. É verdade que, entre os intelectuais que lutavam pela libertação dos escravos, alguns entendiam que ela devia ser realizada com participação dos negros, e nesse sentido, até ajudavam nas fugas de escravos para os quilombos. Também, é preciso a gente entender que os escravos brasileiros não ficavam apenas se lamentando, esperando que um decreto da princesa os libertasse. Desde os primeiros momentos, eles resistiam, se organizavam e lutavam pela sua libertação, chegando a construir vários quilombos em diversos lugares do Brasil. De outro lado, a Lei Áurea não trouxe uma verdadeira liberdade para os negros. Numa sociedade acostumada a explorar o trabalho escravo e a considerar os negros como inferiores, não se criou nenhuma condição para que essa liberdade significasse também o direito de sobrevivência digna para os negros. Por isso. os negros que vão tomando consciência de suas lutas, de seu valor, comemoram como seu, o dia 20 de Novembro, dia da morte de Zumbi e Dia Nacional da Consciência Negra. A IMAGEM DA MULHER NEGRA NOS LIVROS DE ESCOLA Se em nossa sociedade, a mulher é discriminada, pior ainda se for negra. E se as pessoas negras são discriminadas, mais ainda se forem mulheres. Os livros adotados nas escolas do Brasil reforçam todos os tipos de discriminação — social, racial — de forma que as crianças crescem aprendendo que cada um tem o seu lugar marcado, fixo e eterno na sociedade. E qual será o papel reservado para a mulher negra e pobre? Em geral, será o de doméstica. Se tiver sorte e conseguir espaço no mercado de trabalho, receberá um salário menor que o dos homens e dos brancos. Se a taxa de desemprego entre as mulheres brancas é de 16%, sobe a 2Q7c entre as mulheres negras. As mulheres negras que conseguem estudar, são prejudicadas no mercado de trabalho e um dos principais motivos disso, é a imagem que dela passam os livros escolares. Quando aparecem personagens negras nesses livros, raramente têm nomes, são tratadas por apelidos. A mulher adulta aparece sempre como a empregada doméstica e umas são sempre iguais às outras, em quase to- dos os livros. Iguais no físico, na personalidade, na profissão: em geral, nos livros escolares, a mulher negra não tem história, não tem família, não tem opinião própria, não tem vontade. Diz Fúlvia Rosemberg, no livro "Discriminações étnico-raciais na literatura infanto-juvenil brasileira": a mulher negra adulta aparece em 30% dos textos, como doméstica, 57% como gorda e 53% usando avental, com lábios grandes, seios avantajados, lenços na cabeça... Mas, não é apenas como empregada, gorda, ignorante e serviçal que a mulher negra aparece nos livros para crianças e adolescentes. Aparece também, em vários deles, como mulher má, praticante de bruxaria, intrigante, desleixada e, às vezes, como prostituta (neste caso, a prostituição sendo encarada, não como um problema social, mas como um pecado, um vício pessoal). Daí, é preciso que as mulheres negras, as mães, professoras, e todos que são sinceramente interessados na questão, se movimentem e façam uma campanha para mudar essa e outras deturpações nos livros escolares. CONSCIÊNCIA NEGRA Pág. 4 Março/Abril O negro na força de trabalho O caderno do CEAS, n0 104. de agosto/85 apresenta um longo artigo sobre a participação do negro na força de trabalho no Brasil, de autoria de Luiza Barros. Achamos importante, para melhor conhecimento de nossa realidade, extrair alguns dados desse artigo, como alguns exemplares concretos que mostram a discriminação racial que existe nesta sociedade, que se ufana de não ser racista: Fracassando as tentativas de escravidão do índio, passouse a trazer o negro para o trabalho pesado nas lavouras. A dominação e exploração total do negro foram justificadas pelas diferenças raciais. Na segunda metade do século XIX, o desenvolvimento do capitalismo dispensava o trabalho escravo do negro, e passou a requerer a vinda de trabalhadores europeus para a expansão da lavoura de café e mão-de-obra nas indústrias que iam surgindo. Um decreto de 1890 dizia: "é inteiramente livre, nos portos da República, a entrada de indivíduos válidos, aptos para o trabalho, excetuando os indígenas da Ásia ou da África, que somente com autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos." A preocupação de evitar a entrada de não brancos no país, persistiu até mais tarde. Um decreto de Getúlio Vargas, de 1945, regulava a imigração de acordo com "a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes de sua ascendência européia". Isso, trocado em miúdos, quer dizer: o governo brasileiro queria que só viessem brancos para o Brasil, a fim de "embranquecer" a população. A conseqüência disso para os negros, foi que tiveram suas chances diminuídas no mercado de trabalho; dava-se preferência aos brancos, porque os negros já eram marcados, desde o tempo da escravidão, como "ignorantes", "preguiçosos", etc. Os negros que deixavam o campo passavam a formar o exército de desempregados ou sub-empregados; a mulher negra, quando conseguia trabalho, era como doméstica. A "modernização" do capitalismo, pouco ou nada mudou essa situação. As práticas racistas continuam a desqualificar os negros na força de trabalbo, a empurrá-lo para as posições inferiores, para as que têm menos chances de promoção e que são mais desvalorizadas. Vejamos alguns depoimentos de trabalhadores negros baianos que sofreram na carne essa discriminação no trabalho: 1. Uma professora primária, 21 anos, estudante de pedagogia, com experiência em alfabetização. No Io semestre de 1985, apresentou-se para estágio numa escola para crianças, num bairro de classe média em Salvador. Depois de algumas semanas, trabalhando sem remuneração, viu que a coordenadora e as colegas estavam satisfeitas com o seu trabalho, mas não foi con- Para a mulher negra, essa sitratada. Explicaram-lhe que a tuação é duas vezes pior. Mesmo decisão não era da escola mas nos trabalhos considerados "feuma imposição dos pais dos alumininos", como o de professora nos. Ela não fazia o "tipo" que primária, a mulher negra está em os agradasse. Foi substituída desvantagem: "servente negra por uma professora loura, de pode, mas professora, não!" olhos azuis, sem experiência. A Isso mostra como é necessáescola, entretanto, empregava rio a luta para se fazer, na Consvárias negras como serventes tituinte, leis que combatam a dis(Jornal da Bahia, setembro,!985) criminação racial. Mas só isso 2. Um cozinheiro formado não basta. É preciso um grande pelo SENAC, ouviu a seguinte esforço dos negros e dos que são declaração, quando buscava trasensíveis a essa questão, no senbalho no Café do Shopping-Center Itaigara, em Salvador: — "In- tido de mudar a mentalidade; de felizmente, eu vou lhe ser since- fazer cdm que as pessoas em gero: preto aqui, só pode trabalhar ral, abram mais a cabeça e superem preconceitos impostos hisescondido". toricamente pela classe domiFatos como esses se repe- nante. Isso diz respeito tanto tem, quase todos os dias, em to- aos não negros, como aos pródo o território e mostram como prios negros que assimilam a a condição racial prevalece sobre distorcida visão racial dos dominadores europeus. quaisquer outras condições. Pág. 5 CONSCIÊNCIA NEGRA Março/Abril O menor ne O tema lançado pela CNBB para a Campanha da Fraternidade/87 é sobre o menor, principalmente o menor marginalizado: ' Quem acolhe o menor, a mim acolhe". Muitas revistas, jornais e boletins, em todo o país, vêm publicando estudos e artigos diversos sobre a realidade do menor em nossa sociedade. Em tudo o que se tem escrito e falado sobre o menor abandonado, podemos ver que a causa principal de sua situação é a desigualdade de classe. E o menor negro? Como é que fica a situação do menor de cor negra ou mestiça, nesta sociedade que procura negar sempre que é o resultado da mistura de várias raças? A respeito disso, apresentamos aqui, um resumo adaptado do artigo do padre Benedito de Jesus Laurindo, publicado na Revista Pastoral de março/87abril de 1987. A sociedade brasileira sempre se esforçou para vender a falsa imagem de "democracia racial" neste país. Na verdade, é impossível negar que existe a discriminação racial nos fatos, nas situações concretas. O elemento negro é discriminado desde o começo^ da nossa história. Foi trazido da África para ser escravo no Brasil-Colônia e marginalizado nas transformações sociais e econômicas que ocorreram após a abolição da escravatura. Rejeitado socialmente, até como mão-de-obra, muitas vezes só encontrava condições de sobrevivência na marginalidade; obrigado a morar nas favelas em condições sub-humanas. Os poucos que escapam da favela, são explorados como peões ou bóias-frias nas áreas rurais ou habitam os cortiços das grandes cidades. Poucos são os elementos negros que conseguem vida digna, e poucas as crianças negras que escapam das instituições. Sendo em sua grande maioria, tilhos de alcoólatras, prostitutas, ladrões, o menor negro segue só, abandonado, primeiro pelafamília, depois nas instituições onde são obrigados a ficar e, finalmente dentro da comunidade. As instituições onde são colocados, são verdadeiros depósitos, onde se amontoam um grande número de crianças que têm atendidas apenas as suas necessidades de alimentação, roupa e local para dormir. Dentro das instituições, a criança negra sofrerá bem de perto a discriminação racial. Quando se procuram crianças para adotar, os meninos negros são rejeitados, às vezes por famílias negras, que preferem adotar crianças brancas. E, se alguma família branca se interessa por crianças negras, será para transformá-las em mão-de-obra barata. Esses meninos são quase sempre hostilizados por seus colegas, por causa de sua pele, do nariz, e dos cabelos. Em geral, nem sequer são tratados pelo nome; mas sim por apelidos que servem para diminuílos, como: "Muçum ', "Negrão", "Tição", etc. Muitas vezes, o menor negro é discriminado até pelos profissionais encarregados de cuidar deles. atingir um grau social superior, se permite que o negro se torne jogador de futebol, mulata, cantor ou compositor. Quando alguns membros da comunidade negra consegue "subir na vida", tratam com indiferença e até desprezo, os de sua raça, dificultando cada vez mais, a situação do menor negro. Hoje, um pai de família negra não se sente seguro diante da violência policial, pois sabe que, a qualquer momento seu filho poderá ser confundido com um trombadinha, ser espancado na FEBEM, pelo simples fato de ser negro. De outro lado, o homem negro vem contribuindo para aumentar o abandono da criança negra, uma vez que essas crianças são, em grande parte, filhos de pais desconhecidos. As mulheres acabam assumindo todas as responsabilidades. E ainda pouca a contribuição do movimento negro para a integração do menor nesta sociedade. CANTO NEGRO PARA ANGOLA Vem do mar um canto negro, um canto de negro mar. Pelos navios negreiros pelos lançados ao mar. Pelo fogo dos quilombos, berimbaus silenciados, vem do mar um canto negro um canto de negro mar. Tambores da noite, acordai na terra turva ossos roídos de sal e séculos! Látego dos engenhos! gosto morno de açúcar mascavo! ventre revolto de minas! Abrandai a pele das campinas! assisti vencidos à marcha dos escravos redividos! ossos esquecidos sob o mar, cessai o andar erradio pelos abismos, retornai à terra negra, de branca noite liberta. Sinos cegos de sal, aruanda renasceu! visto que essas pessoas sairam desta mesma sociedade racista. E quando crescer, o menor negro terá que enfrentar a discriminação no mercado de trabalho, encontrando barreiras por causa de sua raça. A comunidade costuma ver no menor negro, quase sempre, um trombadinha, um ladrão. Por isso, procura expulsá-lo de seu meio, forçando o seu retorno ao lugar de origem, à favela. O que resta então, a esse menor, a não ser cumprir o papel determinado por essa sociedade racista? E à criança negra não assistida por instituições, cabe a solidão de viver numa sociedade traçada em branco, onde todos os seus valores são pecados. Os meios de comunica- ções reforçam a imagem do negro como sub-humano, servil e submisso. Na escola, ele sofre humilhações; a verdadeira história da escravidão não é ensinada: não se fala dos quilombos, dos mocambos, das revoltas e rebeliões; nada é dito sobre a batalha travada pelo negro contra o regime escravo. A História do Brasil não mostra que o trabalho do homem negro sustentou o período colonial e forneceu o capital necessário para erguer a sociedade que temos hoje. Ser negro nesta sociedade significa ser identificado com o mau, o sujo, o-duvidoso. Significa ter um lugar inferior na sociedade — tornar-se um bom trabalhador braçal ou uma boa doméstica. No máximo, para sangue de Zumbi em minhas veias, olhos negros de zumbi nos seus olhos peregrinos: Angola, menina negra, vestida num vento vermelho de rebeldia! cantarei um canto negro, um canto negro de mar até que a marcha dos ossos convocados domine meu canto Torna ao mar um canto negro, um canto negro de mar. (Pedro Tierra) Pág. 6 CONSCIÊNCIA NEGRA 11 Março/Abril Democracia racial" no Brasil Padre Gílio foi transferido para Passo de Sobrado, onde predomina a colonização alemã e é reduzida a presença de negros. BRANCA NÃO QUER NEGROS NA CALÇADA A professora Eneida Maria V?íZ, da cidade de Rio Grande, nu ?.ic Grande do Sul, deu queixa à Polícia, de sua vizinha, Cleuza Rodrigues, por "ofensas discriminatórias". Em meados de fevereiro, Cleusa impediu os dois filhos da professora de passagem pela calçada defronte à sua casa. Segundo a professora Eneida, as provocações da vizinha eram constantes, mas chegaram ao máximo, em meados de fevereiro, quando diante dos outros moradores, Cleusa Rodrigues falou, aos gritos, que "odiava negros e não permitiria mais que passassem pela sua calçada". O inquérito está sendo feito na 1' Delegacia de Polícia de Rio Grande, onde a professora Eneida entrou com a denúncia. Na verdade, é muito raro que as pessoas discriminadas racialmente se queixem à Justiça. A maioria desconhece que, embora fraca, há uma lei que proíbe e pune atitudes de discriminação racial. POLÍCIA PRENDE E ESPANCA JOVEM NEGRO Para quem insiste em acreditar que não existe racismo no Brasil, mostramos algumas notícias publicadas pelos jornais deste ano, entre os meses de janeiro e fevereiro. São pequenas amostras da discriminação racial, entre outras que nem chegam a ser divulgadas: CLUBE TIRA GAROTO NEGRO DA PISCINA Na véspera do Carnaval, na cidade de Salvador, na Bahia, o menino Marcelo Santana, de 7 anos, foi expulso da piscina do Clube dos Médicos, no bairro da Boca do Rio, por ser negro. A denúncia foi feita pela publicitária Angela Mancini, que havia levado o garoto ao clube, juntamente com seu filho, de 6 anos. Ela contou que um médico, dizendo-se diretor do clube e que não se identificou, expulsou Marcelo, alegando que ele poderia contaminar as outras crianças, por não ter "princípios de higiene", sendo um "menino de rua" (o menino tomava conta dos carros estacionados em frente ao clube). A publicitária discutiu com o diretor, dizendo que se Marcelo era um menino de rua, seu filho também era, pois costumavam andar juntos, mas o médico não quis saber. A diferença é que o filho da publicitária é branco, loirinho e, certamente por isso, não foi incomodado. PADRE NEGRO TRANSFERIDO NO SUL No início do ano, o padre Gí- lio Felício, da Paróquia de Rió Pardo, Diocese de Santa Cruz do Suí, foi transferido daquele local, por causa das pressões da comunidade branca. Padre Gílio é um dos 10 pa'res negros, dos 7 mil existentes no estado e o único entre os 75 padres da Diocese. Em dezembro, ele celebrou uma missa com elementos da cultura negra (instrumento típicos, danças e cantos ritmados) na localidade de Arrolo das Pedras.Aliás, neste local, existem duas capelas: a Imaculada Conceição,freqüentada pelos brancos e a capela Bela Crnz,frequentada pelos negros. Cada uma delas tem diretorias e comemorações diferentes, apesar de estarem separadas por apenas 20 metros. No dia 2 de fevereiro, o acadêmico de direito e artista de teatro, Ivancésar Leal de Souza, procurou a portaria do Clube Recreativo Araguaia, em Gurupi, Goiás, onde se realizava um baile de Carnaval, para se eocontrar com um amigo que estava lá dentro e lhe entregar um talonário de cheque. Ao ser barrado na porta, disse ao porteiro que não queria entrar no clube, mas apenas falar com o amigo. Nesta hora, já eram 4:30 da marhã e a entrada do clube estava liberada. Sem ter sido chamada, a polícia interveio de forma agressiva, e espancando-o, levou-o para a Delegacia, onde continuou com o mesmo tratamento. O motivo do impedimento de entrar no clube e da atitude da polícia, foi o fato de Ivancésar ser negro. Março/Abril A política racista, violenta e criminosa do governo da África do Sul, liderada por Peter Botha, vem sendo mantida, apesar da revolta de quase todos os povos do mundo. Porém, é verdade que vem crescendo e se fortalecendo a oposição de muitas Igrejas e de organizações políticas e populares a esse regime racista. A respeito disso, a revista Tempo e Presença,publicou um artigo de Francis MacDonagh, em sua edição de janeiro/fevereiro deste ano. Mostramos aqui alguns tópicos principais deste artigo: — A história das instituições cristãs, controladas por brancos, não é nada gloriosa. Legitimaram a exploração baseada no racismo, tantaram abrandar os efeitos do sistema com obras de caridade, mas não desafiaram a ideologia do racismo e da desigualdade econômica. — Somente nos anos 50, que a oposição das Igrejas se tornou forte, porque o Estado invadiu sua área de ação. As Igrejas católicas e anglicanas opuseram-se à Lei de Educação Bantu.de 1953, que separava e inferiorizava as crianças negras. Os anglicanos fecharam suas escolas e os católicos se retiraram da educação do Estado, mantendo suas escolas sem a ajuda do governo. MASSACRE DE SHARPEVILLE A matança de 69 africanos em Sharpeville, em 1960, motivou a mudança de atitudes das Igrejas. Nesse ano, 8 Igrejas sulafricanas afirmaram o direito dos negros de participar do governo do país. Formou-se nesta época o Instituto Cristão, que iniciou uma política de apoio às Igrejas multi-raciais e um diálogo com as Igrejas independentes negras. Nos anos 70, encorajou o movimento de consciência negra a colaborar com a iniciante Teologia Negra nos Estados Unidos, reivindicando o acesso dos negros ao poder. Foi fechado pelo regime racista em 1977. NEGROS CONQUISTAM ESPAÇOS NAS IGREJAS — Em 1963, pela primeira vez, a Igreja Metodista elegeu um presidente negro.— A Igreja Anglicana sagrou CONSCIÊNCIA NEGRA Pág. 7 como arcebispo da cidade do Ca- ção de figuras como a do Arcebo, Desmond Tutu, que pertencia bispo Desmond Tutu, do revêao Conselho Sul-Africano das rendo Boesak, e do padre MkIgrejas, elemento importante na luta contra o racismo. AS IGREJAS ENTRAM FIRMES NA LUTA — Em 1977, os bispos católicos comprometeram-se com a causa do povo, por meio de uma "Declaração de intenção". Desde então, a maioria das Igrejas apoia o movimento popular contra o racismo. — Em agosto de 1986, os bispos católicos da África do Sul, conclamavam o governo da África do Sul a reconhecer as reivindicações dos negros, como um movimento justo de reivindicação, a soltar os presos políticos e negociar com as verdadeiras lideranças do povo. Muitos cristãos têm papéis importantes nas organizações de oposição. NEGROS ASSUMEM A LIDERANÇA — Atualmente, tanto nas Igrejas como na política, são os negros que definem os rumos da luta. A organização mais importante é o Instituto de Teologia Contextual, dirigido pelo reverendo Frank Chikane. Esse Instituto coordenou a redação do "Documento Kairós", que apresenta a primeira expressão verdadeira de fé dos cristãos negros. Ele chegou a chocar os bispos anglicanos e católicos, por rejeitar o conceito de "reconciliação" e justificar a luta dos militantes negros. — Com a publicação do "Documento Kairós", e com a atua- hastshwa, os cristãos negros tomaram a liderança moral das Igrejas. O movimento negro e a constituição Nas eleições para a Constituinte, no ano passado, poucos eram os candidatos negros com uma consciência amadurecida de sua raça. Alguns deles são usados pelos partidos e não colocam a questão racial como bandeira de luta. A discriminação racial é considerada uma contravenção penal pela Lei 1390/51, conhecida como Lei Afonso Arinos, com penalidades leves para o infrator que pode, inclusive, ser liberado sob fiança. Uma das lutas do movimento negro é, justamente, a substituição desta lei, por uma outra que considere a discriminação racial como crime sem fiança, com penas de prisão para os que a praticarem. Algumas das principais reivindicações dos militantes ne- gros é no campo da educação. Nesse sentido, lutamos pela proposta de que o ensino público (e mesmo o particular) adote no seu programa, a história da cultura afro-brasileira. É preciso rever a maneira como a história dos negros no Brasil é contada nas escolas. Propomos ainda: a criação de leis que punam os meios de comunicação ou pessoas por divulgar idéias racistas; proibição da sub-empreitada da mão-deobr%, por parte das empresas governamentais, pois este é um modo disfarçado de explorar a mão-de-obra negra e da pop"'ação pobre em geral. E que o lia 20 de novembro, dia de Zumbi seja transformado em feriado nacional. Pág. 8 Março/Abril CONSCIÊNCIA NEGRA O povo negro na História do Brasil Para assumir nossa identidade de negros, nossas raízes africanas, e nossa história de afro-brasileiros, é que existe o Grupo União e Consciência Negra. Precisamos reescrever a História deste país que, tendo sido freqüentemente escrita por brancos das classes altas, esconde a verdadeira contribuição do povo negro. Os fatos históricos, em toda a América Latina, são contados a partir das experiências e com a visão do conquistador. Dessa forma, as crianças brasileiras e latino-americanas em geral, crescem com estranhas idéias na cabeça, acreditando que seus antepassados negros, índios ou brancos da classe pobre, pouco ou nada fizeram neste continente. Quando se fala da atuação na história, dessas camadas oprimidas, é de forma distorcida: uma revolta legítima de escravos é omitida ou transformada em fato negativo; a resistência dos índios é transformada em "preguiça de trabalhar" e bestialidade; a luta geral dos trabalhadores por melhorias de vida é, nos livros de história, considerada como rebelião subversiva, badernas. Um exemplo típico disso é a maneira como a história oficial trata o fato da abolição da escravatura no Brasil, como se fosse um ato de extrema bondade da monarquia, personalizada na princesa Isabel. Não se mostra as implicações deste fato com uma longa luta de libertação travada pelos escravos e com as necessidades de mudança quees1 tavam surgindo no capitalismo nacional e internacional. Enfim, tudo se faz para esconder ou distorcer as verdadeiras causas dos acontecimentos históricos e ó papel do povo neles, principalmente dos negros e dos índios. Ultimamente, essa questão tem preocupado a várias pessoas e grupos comprometidos com a causa popular e com as minorias. Nesse sentido, vêm surgindo algund livros e ostras publicações com o objetivo de aprofundar mais a participação dos oprimidos em nossa história. Algumas delas tratam, de maneira mais específica, do povo negro, desde a sua vida forçada da África, sua resistência em vários tempos e lugares. A partir de agora, mostraremos em capítulos, alguns fatos importantes da caminhada do povo negro na História do Brasil. Começaremos por sua vinda, logo após o descobrimento e prosseguiremos, nos próximos números, dando maior peso aos movimentos de organização e luta dos negros, principalmente na formsção dos quilombos. 1. CONQUISTA DE NOVAS TERRAS Para entender a escravidão e o tráfico de negros africanos, é preciso lembrar o que estava acontecendo na Europa nos séculos XV e XVI (entre 1401 e 1599), quando estava saindo da Idade Média e entrando na Idade Moderna. Foi quando começaram as viagens pelo mar, em busca de novos mercados para o comércio, e os países que mais se destacaram foram Portugal e Espanha. Nessas viagens, os europeus dominavam os povos dos lugares desconhecidos onde chegavam, formavam colônias e chamavam-nas de "novas terras". Mas, para os povos que já habitavam as terras invadidas pelos europeus, "novos" eram os que chegavam. Por isso, quando se diz que os portugueses descobriram o Brasil, é muito relativo. Para os índios,'o Brasil já estava descoberto há muito tempo. COLÔNIAS E METRÓPOLES Os países europeus que tinham colônias eram chamados de metrópoles. O crescimento econômico das metrópoles dependia das colônias. Essas riquezas era só para a classe dominante das metrópoles, porque os pobres continuavam sendo explorados pelos ricos. A metróplole tinha todos os direitos de monopólio em relação às colônias. Isso quer dizer os seguinte: só a metrópole podia comprar ou vender mercadorias para as colônias. No caso brasileiro, só Portugal podia comercializar com o Brasil. No início, os portugueses foram levando do Brasil, além de outras coisas, o pau-brasil, e o açúcar e mais tarde, o ouro e a prata. A produção de cana-de-açúcar enriquecia os comerciantes e os reis portugueses de várias maneiras: 1. Os mercadores portugueses compravam a cana a preços baixos, e revendiam a altos preços na metrópole; 2. Compravam na Europa, produtos que revendiam na colônia por um preço alto. Eram produtos de consumo para os senhores de engenho; 3.Monopólio do tráfico negreiro, isto é: só os portugueses traziam escravos da África para vender no Brasil. Dos lucros do tráfico negreiro, uma parte ia para os comerciantes, outra para a Coroa portuguesa e outra ia para os padres da Ordem Jesuíta. O tráfico e a escravidão foram fundamentais para esse sistema funcionar bem. Inicialmente, só Portugal traficava escravos. Mais tarde, todas as metrópoles queriam participar também, porque dava muito dinheiro. Os ingleses e holandeses foram para a África compra escravos. Na próxima edição de Consciência Negra veremos como foi o começo da escravidão no Brasil.