PNV 329 As mulheres e o patriarcado nas comunidades paulinas Sandra Regina Pereira São Leopoldo/RS 2015 © Centro de Estudos Bíblicos Rua João Batista de Freitas, 558 B. Scharlau – Caixa Postal 1051 93121-970 – São Leopoldo/RS Fone: (51) 3568-2560 Fax: (51) 3568-1113 [email protected] www.cebi.org.br Série: A Palavra na Vida – Nº 329 – 2015 Título: As mulheres e o patriarcado nas comunidades paulinas Autora: Sandra Regina Pereira Capa: Artur Nunes Editoração: Rafael Tarcísio Forneck ISBN: 978-85-7733-241-0 Sandra Regina Pereira é leiga de tradição católico romana. Graduada filósofa, tem especialização em Bíblia. Trabalha em escola pública na cidade de Maringá, PR. Sumário Introdução...........................................................................................5 1. As mulheres antes do Cristianismo...............................................6 1.1 O matriarcado............................................................................6 1.2 A subordinação das mulheres....................................................8 1.3 O mundo grego.........................................................................10 1.4 O mundo romano......................................................................17 2. As mulheres no mundo cristão e nas comunidades paulinas......23 2.1 O mundo cristão e as mulheres das comunidades paulinas......23 2.2 O espaço feminino em 1Coríntios.............................................32 2.3 O casamento (1Cor 7)...............................................................34 2.4 O véu (1Cor 11)........................................................................36 2.5 A submissão (1Cor 14,34-35)...................................................38 Conclusão.............................................................................................41 Referências...........................................................................................43 PNV 329 3 Introdução O presente texto tem a pretensão de investigar as mulheres que foram colaboradoras nas comunidades paulinas, mais precisamente as mulheres do capítulo 16 da carta aos Romanos, e, ainda, analisar os textos que tratam de assuntos relacionados ao universo feminino, como em 1Coríntios 7; 11,5 e 14,33-35. O caminho a ser percorrido no desenvolvimento do trabalho é, primeiramente procurar entender a história das mulheres, partindo da antiguidade, quando existia o matriarcado e a organização da tribo ou da comunidade era realizada por elas. Depois, passaremos pelo espaço do homem e da mulher no mundo grego e no mundo romano, para que possamos compreender o contexto social, econômico e religioso onde estavam inseridas e, também, entender como e por que certas ações e atitudes influenciaram as comunidades paulinas. Por último, no capítulo II, trataremos dos textos destacados acima, procurando descobrir quem são as mulheres mencionadas por Paulo e qual foi o seu papel na formação da igreja primitiva, assim como procuraremos destacar alguns assuntos polêmicos com relação à orbe feminina, como o casamento, o uso do véu e a submissão das mulheres aos seus maridos. PNV 329 5 As mulheres antes do Cristianismo 1.1 O matriarcado Na Idade da Pedra, a organização social se dava através do clã matriarcal. As mulheres coletavam de 65 até 80 por cento do alimento da comunidade. Foram elas que descobriram várias plantas comestíveis e medicinais, inventaram recipientes feitos de casca de árvores e peles de animais, dominaram o fogo e domesticaram animais1. O mais incompreensível para os homens era o fato das mulheres produzirem crianças de seu próprio corpo, sem saber de sua participação na reprodução. As mulheres da Idade da Pedra eram vistas como a própria incorporação viva da força da deusa. Estima-se que a adoração à Grande Deusa se deu por 25.000 anos e que, neste período, a mulher era considerada criadora da vida. A mulher, sendo considerada a encarnação da deusa na terra, exercia o elo entre a comunidade e a divindade. Era a sacerdotisa xamânica2. Através dos ritos sagrados e das danças que conduziam ao estado de transe, as sacerdotisas canalizavam a força criadora da deusa para o seu mundo material. Também eram controladoras de sua própria sexualidade, sabiam 1 ROBERTS, 1998, p. 20. 2 A partir do momento em que as mulheres eram consideradas a encarnação terrena da deusa, era natural que algumas devessem proporcionar o elo vital entre a comunidade e sua divindade, e isto elas fizeram como sacerdotisas xamânicas. ROBERTS, 1998, p. 21. 6 PNV 329 regular sua fertilidade seguindo a periodicidade menstrual. O sexo era sagrado e era controlado pelas sacerdotisas que lideravam os rituais de sexo grupal nos quais toda a comunidade participava. Por volta de 3000 a.C., homens nômades pertencentes a tribos de guerreiros começaram a invadir os territórios matriarcais, até subjugarem os povos da deusa, sujeitando-as ao poder patriarcal. Novas formas de união surgiram para controlar a sexualidade da mulher e determinar a paternidade das crianças. Deuses homens foram introduzidos para competir com a supremacia da deusa. O governo era de homens e esses criavam leis para restringir o poder da mulher. Foi neste ponto da história, por volta do segundo milênio a.C., que nasce a instituição da prostituição sagrada3. A história da prostituição nasce com as sacerdotisas do templo, que eram mulheres sagradas e prostitutas. A Grande Deusa, a princípio era conhecida como Inanna e mais tarde como Ishtar, adorada desde o início da história até mais menos 3.000 a.C. O templo detinha o poder religioso, político e econômico na Mesopotâmia4. As sacerdotisas conseguiram por muito tempo manter o seu poder de igualdade com o sacerdote homem. As entu, como eram chamadas, vivam no interior do templo e cuidavam do seu funcionamento5. Realizavam o ritual do casamento sagrado de reis e sacerdotes e expressavam a harmonia entre homens e mulheres. Porém, aos poucos, o ritual ficou esquecido. O matrimônio sagrado passou a ser um ritual de fertilidade; e as mulheres, a serem vistas como procriadoras e como objeto sexual. Havia também as naditu, outro grupo de mulheres bem nascidas, que conseguiam alguns privilégios exercendo funções no templo. Elas eram proibidas de casar e 3 ROBERTS, 1998, p. 22. 4 ROBERTS, 1998, p. 23 5 ROBERTS, 1998, p. 24. PNV 329 7 ter filhos, e tinham um grande poder econômico, pois se envolviam no comércio em pé de igualdade com os homens6. Com o patriarcalismo nasce a divisão das mulheres, sejam elas esposas ou prostitutas. Na medida em que o marido era dono da esposa e dos filhos, fica maior a lacuna entre esposas e prostitutas, ao mesmo tempo em que as leis para a prostituta e seu trabalho tornam-se cada vez mais repressivas. Em 1100 a.C., os assírios criaram códigos paras os trajes das prostitutas, que deveriam usar jaquetas de couro especiais para chamar atenção e não usar véu, pois este era o símbolo de submissão das esposas aos maridos7. Embora com toda a repressão, as prostitutas conseguiam manter sua autonomia sexual e econômica e resistir à domesticação oferecida pelo homem. Essa supremacia do homem perpassa também os mundos gregos e romanos, e por isso dedicaremos o próximo capítulo para compreendermos a exclusão quase que total da deusa destes mundos, e o papel exercido pelas mulheres. 1.2 A subordinação das mulheres Na mitologia percebemos constantes lutas entre deuses e deusas, mas, como em todas as sociedades ancestrais, os primeiros habitantes da Grécia foram povos adoradores da deusa. A partir de 2000 a.C., com a invasão indo-europeia que assolou o país, estes trazem consigo os deuses masculinos8. Uma divindade trazida pelos homens foi Zeus, que se casa com Hera, representante do culto à deusa. O casal divino vive em constante luta. Apesar da desarmonia conjugal, Zeus é incapaz de governar sozinho. 6 ROBERTS, 1998, p. 24. 7 ROBERTS, 1998, p. 27. 8 ROBERTS, 1998, p. 32. 8 PNV 329 No período da Atenas clássica, as mulheres já estavam firmemente sob o controle dos homens e a democracia vigente só valia para o homem. Somente os donos de propriedade podiam votar e as propriedades estavam sob o poder dos homens. Sólon9, por exemplo, foi um governante que separou as mulheres em classes (esposas e prostitutas), ficando as mulheres do primeiro grupo cada vez mais restritas à casa. As mulheres respeitáveis não deviam ser vistas e nem ouvidas. Em muitos casos, eram proibidas de irem ao mercado, tarefa que ficava a cargo do marido ou dos escravos. Para o governador Sólon, qualquer mulher que tentasse manter-se por conta própria, independentemente de ser pobre, estrangeira ou escrava, deveria ser considerada prostituta. Mas, ironicamente, este governante aproveitou dos enormes lucros obtidos pela prostituição, tanto comerciais como religiosa; ele próprio organizou em Atenas bordéis oficiais administrados pelo Estado10. Muitas prostitutas famosas contrariaram Sólon. As hetairae tinham fama de serem excelentes mulheres de negócio. Frine, por exemplo, foi amante do escultor Praxíteles e, por ser considerada uma das mulheres mais bonitas de Atenas, serviu de modelo para retratos e estátuas da deusa Afrodite. Outra hetairae famosa foi Aspásia, amante do governante ateniense Péricles. Ela tinha reputação de ser extremamente instruída e excelente filósofa. O filósofo Sócrates frequentemente levava seus amigos e seus alunos para ouvir as conferências de Aspásia11. Também na Roma pré-histórica, assim como em todas as civilizações mediterrâneas, a propriedade e o poder eram transmitidos pela linhagem feminina. Através do casamento com qualquer mulher herdeira de propriedades e trono, ficava, porém, para o homem o direito de governá-los. Além da transmissão dos bens, o estado ainda criou leis violentas como o paterfamilias, que mencionaremos mais adiante. 9 Sólon governou Atenas na virada do século VI a.C. ROBERTS, 1998, p. 33. 10 ROBERTS, 1998, p. 34-35. 11 ROBERTS, 1998, p. 44. PNV 329 9 Ao contrário das mulheres gregas, as mulheres romanas eram orgulhosas, animadas e valorizavam sua independência. Quando o Imperador Augusto introduziu leis obrigando as mulheres aristocráticas a se casarem e terem filhos, estas se cadastraram como prostitutas, isentando-se das regulamentações estabelecidas. Eram mulheres que vinham de famílias consideradas respeitáveis, mas que se tornaram cortesãs, evidentemente, para se manterem financeiramente autônomas, sem depender de marido12. As prostitutas que trabalhavam em Roma, além das mulheres aristocráticas, eram em sua maioria estrangeiras que se tornaram escravas nas conquistas das colônias, assim como as mulheres campesinas que vinham em busca de trabalho na cidade e não tinham como sobreviver. Roma se tornou o maior e o mais rico império às custas da mão-de-obra escrava. Foi a escravidão que permitiu que Roma mantivesse o poder durante séculos13. 1.3 O mundo grego 1.3.1 O espaço do homem A polis tem fator fundamental na vida do homem grego. É na Cidade-Estado que os cidadãos gozam de seus direitos de cidadania. E para que adquirisse a cidadania grega, era preciso passar pela educação recebida no ginásio. A primeira etapa da educação da criança começava pela leitura da poesia épica e lírica; quando adolescente, ela ia para o ginásio exercitar o corpo na ginástica. Após esta etapa estaria apta para atuar no exército. A outra etapa era aprender as leis. O objetivo de todos era educar os jovens na virtude política14. A fonte de grande orgulho do homem grego era a autonomia política e a autossuficiência econômica da cidade, a qual era local de integração de pessoas de várias línguas, raças e classes sociais. 12 ROBERTS, 1998, p, 72. 13 ROBERTS, 1998, p. 57. 14 CASTRO, p.36. 10 PNV 329