Para entender o que acontece entre Cuba e Estados Unidos Roberto Moll Tão perto dos demônios e tão longe dos deuses. Dizem que é possível ver as luzes de Miami dos pontos mais altos da ilha de Cuba. No final do século XIX, o desenvolvimento do capitalismo industrial estadunidense estimulou a continuidade do processo expansionista para além das fronteiras terrestres. Nesse sentido, a ascensão da potência estadunidense articulada com o declínio da congênere espanhola resultou nas guerras para controlar a Bacia do Caribe. As potências europeias consideravam a região estratégica para o desenvolvimento dos capitalismos nacionais, uma vez que por meio da construção de um canal sobre a América Central poderiam dominar o comércio entre o Oceano Atlântico e o Oceano Pacífico, integrando os mercados europeus, americanos e asiáticos. Isso possibilitaria tomar a dianteira na corrida imperialista. Especialmente, para a nascente potência estadunidense, a região consistia em desaguadouro do Rio Mississípi, encurtando o caminho entre os produtos da indústria nortista para a América do Sul e para a Ásia. Por isso, também era uma área de suma importância para segurança militar, a fim de impedir que os inimigos acessassem a Boca do Mississípi para chegar ao coração do território estadunidense. Após a vitória na guerra contra a Espanha, com ajuda de ingleses e franceses, os governos dos Estados Unidos concretizaram a passagem inter-oceânica através do Canal do Panamá e consolidaram o domínio político sobre a região por meio da instalação de protetorados em parceria com as elites oligarcas-militares locais interessadas em fornecer matéria-prima e exercer o controle social sobre os trabalhadores. Dessa forma, os Estados Unidos começaram a assumir o papel de representantes do desenvolvimento do capitalismo internacional como fiadores do livre fluxo de mercadorias para os maiores mercados de matéria-prima e consumo: a Ásia e a América. Mais tarde, a região ganharia ainda mais importância após descoberta de grandes fontes petrolíferas no Golfo do México, área adjacente. Nesse quadro, Cuba se tornou um ponto estratégico sob a tutela estadunidense e de seus procuradores. Em 1959, jovens liberais, socialistas, comunistas e nacionalistas conseguiram derrubar o ditador Fulgêncio Batista, pró-estadunidense, com ações que poderiam ter saído de scripts cinematográficos. Os membros da elite oligarca-militar de Cuba fugiram rumo aos Estados Unidos, sobretudo para Miami. Em meio à Guerra Fria, os comunistas conseguiram hegemonizar as diversas tendências revolucionárias e dirigir o país, com apoio, por vezes reticente, da União Soviética. Sendo assim, os revolucionários cubanos ameaçaram a manutenção dos fluxos comerciais e interesses capitalistas que os Estados Unidos, naquele momento a maior potência do mundo, representavam. Além disso, a relação entre Cuba e União Soviética representou uma ameaça a segurança estadunidense. Por isso, seus governos buscaram desestabilizar a revolução cubana por meio de ações orquestradas principalmente pela Agência Central de Inteligência (CIA) e pela Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional (USAID), em parceria com exilados cubanos, como aconteceu na Invasão à Baia dos Porcos. Em 1962, depois da famosa Crise dos Mísseis, os Estados Unidos impuseram um embargo comercial à Cuba, que impede trocas comerciais entre os dois países e sujeita empresas estadunidenses ou estrangeiras com atuação no país a sanções e processos. Ademais, limita remessas de capitais, visitas e qualquer financiamento de residentes estadunidenses à ilha. O embargo visava pressionar o Governo Cubano pela escassez de abastecimento e, acima de tudo, pelo sufocamento da economia sem a possibilidade de vender para o maior mercado consumidor do mundo. Daquela data em diante, o embargo seria renovado e alterado pelo congresso estadunidense a cada ano. Em Cuba, o governo impôs limites às liberdades individuais e à participação política sob a justificativa de que os Estados Unidos financiariam oposição civil e armada até minar a disposição do apoio popular. Em 1977, a Administração de Jimmy Carter (1977 – 1981) buscou restabelecer as relações entre os dois países para incentivar trocas comerciais e negociações diplomáticas, mas sem abrir mão da pressão militar e política para forçar um arranjo favorável. Como resultado inicial das tratativas, os dois países acordaram em estabelecer seções de interesse dos rivais em suas respectivas capitais. Entretanto, o Governo Carter sofreu forte oposição de setores conservadores, principalmente dos exilados cubanos que ao longo dos anos se tornaram uma importante força econômica e política na Flórida e em outros estados. Inclusive, a proposta de reaproximação serviu de munição para aqueles que acusavam a Administração Carter de enfraquecer os Estados Unidos e entregar o mundo ao domínio comunista da União Soviética. Mesmo assim, no final do Governo Carter, os Estados Unidos receberam uma onda migratória de cubanos que fugiam da crise econômica que atingiu o país caribenho como reflexo das dificuldades econômicas da União Soviética, principal parceiro comercial. Longe de representarem a antiga elite que chegou à Miami nas décadas anteriores, esses exilados foram confinados em campos de triagem e na prisão de Guantánamo. Do final dos anos 1970 até os anos 2010, a relação entre Estados Unidos e Cuba alternou momentos de afrouxamento e retração. Durante o Governo Clinton (1993 – 2001) esse duplo movimento, característico das políticas Democratas para a ilha, ficou evidente. Em 1995, Clinton suspendeu as garantias automáticas de visto e permanência para os cubanos que fugiam da crise econômica que atingiu a ilha após o fim da União Soviética e, consequentemente, a desestruturação da principal aliança comercial do governo socialista cubano. A partir de então, passou a vigorar a política que ficou conhecida como “pés molhados/pés secos”. Os cubanos que conseguissem chegar ao território estadunidense conseguiriam permanecer (pés secos), mas aqueles que fossem pegos no mar (pés molhados) deveriam retornar à ilha. No ano seguinte, após o Governo Castro derrubar dois aviões civis que violaram o espaço aéreo cubano, o Governo Clinton e o congresso estadunidense reforçaram as sanções contra Cuba com a suspensão de voos fretados que levavam turistas estadunidenses para ilha e, principalmente, com a aprovação da Lei Helms-Burton que restringiu ainda mais o embargo, inclusive a remessa de dólares e comercialização de alimentos. Contudo, em 1998, os governos Clinton e Castro ensaiaram uma pequena aproximação por meio de medidas que visavam ampliar o contato em algumas áreas específicas como educação e ajuda humanitária. Além disso, o Governo Clinton colocou fim à suspensão dos voos fretados e ampliou as possibilidades de remessas de capital entre cubanos exilados nos Estados Unidos e seus familiares em Cuba. Os governos Republicanos de Ronald Reagan (1981 – 1989), George H. Bush (1989 – 1993) e George W. Bush (2001 – 2009) intensificaram a retração ou, no mínimo, a manutenção das sanções, com pouquíssimo espaço para negociação. Em 2014, trinta e sete anos depois da primeira tentativa de aproximação realizada na Administração Carter, a relação entre Estados Unidos e Cuba está inserida em novos condicionantes históricos internos e externos. Internamente, os principais grupos conservadores e liberais, desde os anos 1970, vêm adotando uma postura econômica libertária, com ênfase no livre comércio. Para muitos deles, o comunismo não é uma ameaça plausível e o livre comércio seria a principal arma contra o regime cubano. Sendo assim, o embargo econômico e as restrições políticas deveriam ser suspensos. Dentre os cubanos exilados, a primeira geração, mormente conservadora com origem na elite cubana, está desaparecendo e seus descendentes estão integrados à sociedade estadunidense sem o sonho de regressar à ilha para dirigir o país. Assim, os exilados econômicos dos anos 1980 e 1990 que têm mais interesse na reaproximação para enviar dólares aos familiares e visitar a ilha esporadicamente do que regressar para administrar o país começam a prevalecer na comunidade cubana. Do ponto de vista geopolítico regional, a China e a Rússia parecem não aceitar os Estados Unidos como fiador das trocas internacionais e planejam construir um novo canal inter-oceânico na América Central, possivelmente através da Nicarágua. Como resposta, o capital internacional, representados pelos Estados Unidos, iniciou um processo de reestruturação e ampliação do Canal do Panamá para receber navios maiores e aumentar o fluxo comercial. Em paralelo, Cuba passa por um processo de abertura econômica. Nos últimos anos, as relações comerciais com europeus e chineses aumentou significativamente. Grupos empresariais europeus têm atuado na ilha em parceria com o governo cubano em diversos setores, desde o hoteleiro, como a rede espanhola Meliá, até o varejo automobilístico, como a Peugeot. A construção do Porto de Mariel é um sinal notável desse processo. O porto, que teve investimento de empresas brasileiras com aval e financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), terá calado capaz de abrigar navios “pós-panamax” que têm capacidade três vezes maior do que as embarcações que trafegam na Bacia do Caribe atualmente e que se ajustam perfeitamente às novas condições do Canal do Panamá e de um novo canal na América Central. Poucos portos na região, inclusive nos Estados Unidos, têm a mesma capacidade. Por fim, vale lembrar que a comunidade internacional tem pressionado os Estados Unidos para por fim às sanções à Cuba por motivos humanitários e de interesse econômico. Nesse quadro, o Governo Barack Obama (2009 – ) tem dado um passo importante para restabelecer plenamente as relações entre Estados Unidos e Cuba e, consequentemente, salvaguardar a posição estadunidense na estrutura do capitalismo global e na região. Durante a sua primeira campanha presidencial, Obama prometeu democratizar Cuba. Em 2009, em seu primeiro ano na Casa Branca, apoiou medidas que facilitaram o transito de pessoas, em especial cubanos que queiram visitar seus familiares e cidadãos estadunidenses envolvidos com projetos culturais e educacionais, as remessas de dólares dos Estados Unidos para Cuba e o restabelecimento de voos comerciais para a ilha. Contudo, Obama se colocou publicamente a favor da manutenção do embargo como ferramenta para pressionar o Governo Castro a promover reformas econômicas e políticas, a despeito dos problemas de abastecimento e das perdas financeiras com exportação. Além disso, continuou a desenvolver medidas de desestabilização, sobretudo por meio de projetos da USAID que buscam viabilizar propaganda de oposição ao governo cubano por meio da internet, do rádio e da TV. No fim de 2014, Obama surpreendeu o mundo ao anunciar medidas de reaproximação com Cuba. Dentre as principais estão: facilitar o trânsito de pessoas; ampliar a remessa de dólares de exilados cubanos nos Estados Unidos para familiares em Cuba; permissão para pequenas compras em território cubano; investimentos no setor de tecnologia e comunicação; restabelecimento de representações diplomáticas, possivelmente com a reinstalação recíproca de embaixadas; retirada de Cuba da lista de países que patrocinam o terrorismo; e a troca de presos. A elevação do teto de remessas de capital de $500 para $2000 dólares atende aos anseios dos exilados econômicos que ajudam a sustentar suas famílias em Cuba. As medidas que visam facilitar o trânsito de pessoas incluem trabalhadores a serviço do governo estadunidense e grupos empresariais que buscam realizar negócios e parcerias com empresas estatais cubanas. Os investimentos no setor de tecnologia e comunicação preveem a disponibilização de aplicativos e serviços de informática e comunicação e a construção de infra-estrutura necessária para estabelecer uma melhor conectividade de Internet e serviços de telefonia móvel. Essas duas medidas, articuladas à instalação de uma representação diplomática estadunidense poderão facilitar futuros negócios e investimentos na ilha, incluso o acesso ao Porto Mariel. Resta saber se esses dispositivos não serão utilizados para estabelecer novos programas de desestabilização por intermédio da embaixada e da implantação de meios de comunicação. Como um indício de bom augúrio, pouco antes do anúncio de reaproximação, Rajiv Shah, chefe do USAID e contrário as medidas, pediu demissão. A permissão para realizar pequenas transações comerciais em território cubano é apenas um pequeno passo. Será preciso esperar o congresso estadunidense suspender o embargo comercial para que as relações entre os dois países sejam plenamente restabelecidas. Em 2015, esse congresso será mais conservador e Republicano, mas a suspensão do embargo não está totalmente descartada, principalmente devido à convicção de importantes setores de que o livre mercado pode vencer o socialismo. De todo modo, o Governo Obama fez história. Há que se comemorar a volta dos (supostos) espiões de ambos os países presos. Os “últimos soldados da Guerra Fria” voltam para casa.