Artigo:
A “audiência de custódia” e o direito à liberdade
O Pacto de San Jose da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos
Humanos), seguramente, é um dos tratados internacionais mais importantes no
que diz respeito à proteção dos direitos humanos e das garantias individuais. O
documento foi elaborado em 1969 e celebrado pelos integrantes da Organização de
Estados Americanos (OEA), com o objetivo de consolidar entre os países um regime
de liberdade pessoal e de justiça social.
Após ter sido ratificado pelo Brasil em 1992, era de se esperar que o país
passasse a colocar em prática os direitos e garantias nele estabelecidas, muitas das
quais já previstas, expressamente, na nossa Constituição Federal de 1988. Porém,
algumas das previsões deixaram de ser adotadas, tanto por questões de política
interna, como por dificuldades financeiras e estruturais para a efetiva implantação
de todos os itens do pacto.
Como exemplo de descaso, podemos citar o artigo 7º, item 5 do tratado,
que tinha por objetivo instituir, nos países signatários, a chamada “audiência de
custódia”. Basicamente, esse dispositivo permite que o cidadão, uma vez preso em
flagrante, seja conduzido à autoridade judicial em, no máximo, 24 horas, para
assim permitir que o juiz analise a legalidade e a necessidade da prisão.
Trata-se, positivamente, de medida salutar, já que permite que o
magistrado, em pouco tempo após a prisão, tenha contato pessoal com o preso de
modo a verificar se a manutenção da custódia é necessária e, ainda, se houve
algum tipo de abuso por parte da autoridade pública.
Dependendo das circunstâncias, o juiz pode, prontamente, relaxar a prisão
ou colocar o cidadão em liberdade, mediante condições. Ou seja, a Convenção
Americana de Direitos Humanos confere ao cidadão o direito de ter a legalidade da
sua prisão em flagrante analisada por um magistrado, em tempo excessivamente
curto.
Mas, apesar de o Brasil ter aderido à Convenção em 1992, somente agora,
com mais de 20 anos de atraso, é que, finalmente, após recomendação feita pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foram adotadas medidas efetivas para colocar
em prática a chamada “audiência de custódia”.
Ao menos por enquanto, o processo vem sendo adotado, unicamente, no
Estado de São Paulo, e a sua implantação está regulamentada pelo Provimento do
TJ/SP n. 03/2015, elaborado pelo Poder Judiciário paulista em parceria com o Poder
Executivo.
De acordo com o referido provimento, toda e qualquer pessoa detida em
flagrante delito tem o direito de ser apresentada ao juiz, em até 24 horas após a
sua prisão, “para participar de audiência de custódia”. Em função das óbvias
dificuldades práticas, como a notória falta de estrutura, problemas para escoltar o
preso, ausência de recursos financeiros, entre outras, é certo que a medida, por
ora, está sendo implantada apenas na Capital paulista, mas, gradativamente,
passará a ser aplicada a todas as unidades judiciais do Estado.
Importante ressaltar que, considerando as regras recentemente
estabelecidas para a “audiência de custódia”, ao preso em flagrante também será
garantido o direito de defesa. Além disso, por se tratar de procedimento realizado
antes mesmo do oferecimento da denúncia, o juiz não pode elaborar perguntas ao
autuado que importem em antecipação do mérito.
O provimento prevê, ainda, que, durante a audiência, tanto o Ministério
Público quanto a defesa poderão se manifestar a respeito da necessidade e
pertinência da prisão. Ou seja, mesmo carecendo de uma regulamentação mais
clara e específica a respeito, certo é que o sistema adotado no Estado de São Paulo
permite um “debate oral” entre as partes durante a audiência. E tudo isso é
necessário para que, ao final, o juiz possa decidir, fundamentadamente, se relaxa a
prisão, aplica alguma das medidas cautelares alternativas à segregação cautelar,
ou, por fim, se converte o flagrante em preventiva.
Independentemente do teor do referido provimento, convém esclarecer que
o Código de Processo Penal já determina, em seu artigo 306, que a prisão de um
cidadão seja prontamente comunicada ao juiz, o que se dá, na prática atual, com o
envio do auto de prisão em flagrante ao Juiz competente. Assim, se, atualmente, a
comunicação da prisão em flagrante já é feita ao Magistrado em até 24horas, seria
mesmo necessária a realização da “audiência de custódia”?
É evidente que sim, afinal, uma situação é encaminhar um calhamaço de
papel ao juiz, para que ele o analise e conclua se a manutenção da prisão é
necessária, ou não, outra, bem diferente, é apresentar o próprio preso ao
magistrado, assim lhe permitindo narrar, sem receios, os abusos e as
arbitrariedades eventualmente cometidas no momento da prisão. Até porque, como
normalmente acontece na prática, eventuais abusos ou desvios de conduta
praticados por ocasião da prisão em flagrante dificilmente são detalhados no corpo
do auto de flagrante. Dentro desse contexto, a “audiência de custódia” assume
especial relevância, já que será o meio mais eficaz para se comunicar ao
Magistrado, rapidamente, os excessos porventura cometidos no momento da
prisão.
Por todos os ângulos em que analisada, fica claro, portanto, que a
“audiência de custódia” confere ao cidadão uma oportunidade ímpar para tentar
recuperar a sua liberdade (sobretudo nos casos em que existir algum tipo de
abuso). Trata-se, pois, de uma medida extremamente positiva que, na prática,
pode ser muito útil para se evitar injustiças.
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A "audiência de custódia"