DA ARTE DE LER DADOS E SIGNIFICÁ-LOS Dados e mais dados! Sim, já houve um dia nesse país que não dispúnhamos deles tal como seria necessário, ora por incapacidade de colhêlos, ora pelo potencial subversivo que o conhecimento, uma vez gerado, guardaria. Nosso problema hoje em dia talvez não esteja mais na posse de informações atualizadas, mas na capacidade de significá-las e saber o que fazer com elas. O objetivo deste artigo é apresentar um resumo de dados produzidos sobre a cidade do Recife em 2009 e pensar no que fazer com eles. Uma das maiores cidades do país, Recife também se destaca no ranking das desigualdades sócio-econômicas. Não analisaremos cada dado (o espaço de um artigo não permitiria isso), mas também não nos furtaremos a apresentar nossa visão do que poderia representar, em termos práticos, a apropriação dessas informações pelos informantes: o povo. Vamos a alguns dados, separados pelas fontes pesquisadas: IPEA, 20091 - A média nacional de diminuição de pobreza no país foi de 26,8% entre 2004 e 2009. Em Recife a queda foi menos intensa: 14,1%. - No mesmo intervalo de tempo, a região metropolitana (RM) do Rio de Janeiro registrou queda no número de pobres de 1,4 milhões de pessoas. A região metropolitana de Recife retirou da condição de pobreza 100 mil pessoas. - A RM do Recife possuía a maior taxa de pobreza no mês de junho de 2009 (51,1%), enquanto a região metropolitana de Porto Alegre registrava a menor taxa de pobreza (25,7%). IBGE, 20092 - Um em cada três estudantes do ensino fundamental tem idade superior à recomendada para a série que cursam. 1 INSTITUTO de Pesquisas Econômicas Aplicadas. Pobreza e Crise Econômica – O Que há de Novo no Brasil Metropolitano. Rio de Janeiro, 2009. 2 INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar. Rio de Janeiro, 2009. - Jovens de 14 anos estudam em média 5,6 anos. Entre os jovens 18 e 19 anos são somente 40% os que apenas estudam. - 44,7% das residências têm telefone fixo e em 77,7% delas pelo menos um morador está de posse de um telefone móvel. - A taxa de freqüência escolar das pessoas de 7 a 14 anos de idade é de 98,9% entre os brancos e de 96,6% entre os pretos e pardos. - No que se refere ao serviço de abastecimento de água por rede geral 89,1% das pessoas dispõem de canalização interna. 8,4% não têm acesso a esse serviço. - 43,8% dos moradores de Recife contam com serviço de rede coletora de esgotamento sanitário e/ou pluvial. - Em Recife o arranjo familiar de tipo monoparental feminino é o mais alto das regiões metropolitanas analisadas: 25,5%. - Dentre as famílias com rendimento a média mensal familiar per capita dos 10% mais pobres é de R$ 47,18 e entre os 10% mais ricos é de R$ 2.659,83. - As crianças e adolescentes de 5 a 9 anos de idade, ocupados na semana de referência da pesquisa, eram 3,6%. A taxa sobe para 16,3% se considerarmos a faixa entre 10 e 13 anos. - A taxa média de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade é de 8,6%. Se desagregada sobe para 12,9% entre os pretos e 9,8% entre os pardos. Observatório do Recife, 20093 - Os standards internacionais de mortalidade infantil são aceitos quando abaixo de 20 por mil. A cidade apresentava em 2008 uma taxa de mortalidade infantil de 12 mortos por mil nascidos vivos. - Em termos de mortalidade infantil pós-neonatal Recife era o sexto lugar entre 27 capitais. - Se na área de saúde os indicadores acima são animadores, o índice de desenvolvimento da educação básica na rede estadual é o pior entre todas as capitais brasileiras. 3 OBSERVATÓRIO do Recife. Recife, 2009. Pois é, dados e mais dados! O que fazer com eles? Organizações governamentais, não governamentais e a sociedade civil lidam com os diversos indicadores acima há anos e têm ajudado, em diversos casos, a melhorar o que em alguns casos configuravam situações caóticas. O monitoramento dos indicadores é fundamental para o acompanhamento da eficácia das ações, da gestão dos recursos e ajuda a manter o moral das equipes de trabalho, que tão comumente desanimam por considerarem que estão “enxugando gelo”: quanto mais fazem, mais problemas aparecem. Quais as ações possíveis, de maneira a passar do estágio da simples constatação? Existiria uma metodologia que pudesse fazer com que as pessoas diretamente interessadas entendessem os dados e a partir daí propusessem ações educativas, de saúde, trabalho e renda, habitação? A necessidade de encontrar essa convergência entre produção de informações e ação me vem de algumas observações: 1) Muito recurso e energia já foi gasto para produzir conhecimento sobre questões sociais. Muito ainda precisa ser investido. Enquanto umas questões parecem bem encaminhadas, como a da mortalidade infantil na cidade de Recife, outras, como o trabalho infantil, continuam a gritar. 2) A sociedade civil parece descrente da maioria das organizações dedicadas ao trabalho nas comunidades. O olhar há muito deixou de ser apreciativo para ser, como hoje, desconfiado e descrente. A não convergência entre produção de informações e ação só faz piorar esse quadro. 3) É, foi e será bastante difícil, senão impossível, tirar da cidade e do país o triste rótulo de lugar onde muitos nada têm e de poucos que fazem dele o paraíso do consumo se não conseguirmos de fato estar junto do povo, ensinando e aprendendo, errando juntos, nos apropriando de dados e informações e dispondo de iniciativas conjuntas. Processos sociais mudam a realidade de comunidades quando focados na formação de capital social (BOURDIEU, 1999). A transformação de espaços marcados pela desigualdade não chega unicamente pela doação de projetos, saberes ou do tempo de voluntários. É necessário que as pessoas da região a ser trabalhada pensem nos problemas locais, pesquisem, elaborem propostas e se apropriem do fazer / acontecer cotidianamente. Políticas e Programas desenvolvidos nessa perspectiva guardam forte potencial de mudar quadros marcados pela desigualdade de oportunidades e de se tornarem sustentáveis. Jovens e mulheres negros e pardos, que até então só apareciam nas estatísticas como portadores de males a serem resolvidos, passam a dispor, nessa perspectiva, de mecanismos de educação para a transformação forjados na prática, no dia a dia de quem vive algo que não agrada e luta para transformar o quadro vigente. Foi no Recife que nasceu um indivíduo que ao alongo da vida produziu junto de intelectuais orgânicos (GRUPPI, 1991) e do povo uma pedagogia voltada para a emancipação popular. Paulo Freire sistematizou uma proposta político-pedagógica voltada para a construção coletiva de conhecimentos (FREIRE, 1983). Para ele a ação social só é educativa se acompanhada de sustentação política. E é política apenas e tão somente se ajuda a construir espaços de produção de conhecimento nos quais as pessoas construam estratégias de atuação ancoradas na práxis, na reflexão engajada e que ganha seus significados no dia a dia de cada um e de todos. Constitui-se, assim, uma pedagogia de base popular. Não são raras as estratégias que têm ajudado a construir novas dinâmicas sociais dessa maneira endógena, como forma de acesso das classes populares aos meios e estratégias de combate à desigualdade. Ainda no campo da pedagogia outros autores rechaçam com veemência formas geradoras de dependência no meio popular (DEMO, 2000), reforçando a pedagogia freireana no que se refere à construção de conhecimentos e à não absorção de saberes prontos ou descontextualizados. Não é novidade o que está sendo aqui abordado. Mas, num mundo sedento por novidades tecnológicas, comunicacionais, mercadológicas, talvez parte de nosso problema resida aí: na diminuição do ritmo de produção de novas informações, em se dar o tempo de esquecer os softwares que nos fascinam e aí então poder encontrar gente de carne e osso para conversar e entender o que está acontecendo. A grande questão talvez esteja no retomar de procedimentos simples apontados por Paulo Freire mais de quarenta anos atrás: cuidar do ser humano. É com a sugestão desse cuidado amoroso sustentado por esse humanista ao longo de toda a sua vida que vou terminando esse artigo, sem deixar de lembrar, entretanto, que esses mesmos homens e mulheres são (como nós mesmos) contraditórios, esquecem a data de reuniões que agendamos com eles e elas, às vezes batem nos filhos e nos irritam, preferem a novela à associação. É com eles, contudo, que devemos contar para não contabilizar outros sinais de desumanização e novos indicadores de desagregação social nas demais décadas do Século XXI. Paciência, fé e inteligência! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo, Brasiliense, 1999. DEMO, Pedro. Educação pelo Avesso. São Paulo, Cortez, 2000. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002, 41ª ed. GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro, Graal, 1991. 3 ª ed. INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de Indicadores Sociais – Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira. Rio de Janeiro, 2007. INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar. Rio de Janeiro, 2009. INSTITUTO de Pesquisas Econômicas Aplicadas. Pobreza e Crise Econômica – O Que há de Novo no Brasil Metropolitano. Rio de Janeiro, 2009. OBSERVATÓRIO do Recife. Recife, 2009.