MUNDO
ÁRABES
SEM
DEUS
É provável que o número de ateus
no Egito tenha ultrapassado
o de cristãos. E que na Arábia
Saudita eles sejam «a maior
minoria». Entrevistas com Khaled
Diab e Brian Whitaker, autores
de um ensaio e de um livro sobre
este fenómeno numa região onde
a fé – ou a falta dela – pode ser
uma sentença de morte
Muitos ateus no Médio
Oriente pertencem a uma
nova geração desiludida
com os velhos líderes
políticos e religiosos
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AMR ABDALLAH/REUTERS
MARGARIDA SANTOS LOPES
12 DE FEVEREIRO DE 2015 v 71
MUNDO
MÉDIO ORIENTE
MUNDO
A
s dúvidas de fé começaram quando ainda era
miúdo. Diziam-lhe que se
dissipariam com o tempo, mas apenas se multiplicaram. Durante anos,
escapou a alguns dos dilemas descrevendo-se, em termos vagos, como muçulmano «laico, não praticante ou progressista».
Chegou, porém, uma altura em que as táticas de estar sempre a protelar se tornaram
vãs. O egípcio-belga Khaled Diab decidiu
enfrentar a verdade: «Eu já não acreditava
no Islão, nem em qualquer outra religião.»
«É muito difícil dizer se o número de
ateus está a aumentar no Médio Oriente,
porque não há estatísticas fiáveis a este respeito e porque os Estados árabes exigem
que os cidadãos se registem como membros
de uma comunidade religiosa, geralmente
das tradições abraâmicas», disse Diab, à
VISÃO, em entrevista por e-mail. «No que
diz respeito ao Egito, as estimativas variam
entre o número governamental ridículo de
‘exatamente 866 ateus’ até 10 a 15% da população. Ou seja: há no país quase tantos ateus
como cristãos.»
Os armários da religião
Jornalista e blogger (chronikler.com) que,
em 2014, ganhou o prestigiado prémio de
imprensa da Fundação Anna Lindh, pelo seu
artigo Without a God («Sem Um Deus»), publicado pela revista libanesa The Outpost,
Khaled Diab vive atualmente em Jerusalém,
dividindo o tempo entre o Médio Oriente e
a Europa. Foi difícil assumir-se como ateu
numa região onde apostasia equivale a mor72 v 12 DE FEVEREIRO DE 2015
te? «Nunca tive medo, mas sentia-me ansioso e apreensivo quanto às reações que poderia gerar, sobretudo de familiares e amigos»,
admitiu.
«Os primeiros a saberem foram os amigos, que me apoiaram, mesmo não partilhando as minhas convicções. Tal como
acontece com os homossexuais que ainda
‘não saíram do armário’, havia familiares
a par da minha descrença, sobretudo a minha mãe. Alguns tentaram persuadir-me a
voltar à religião, mas todos têm a certeza
de que não me transformei numa pessoa
má.»
Ao escrever, há alguns anos, o primeiro
artigo sobre o seu «ateísmo/agnosticismo»,
no diário britânico The Guardian, Diab ficou
surpreendido com as inúmeras reações positivas. Em 2013, deu «o passo psicologicamente significativo» de se identificar como
ateu num jornal árabe, o Daily News Egypt.
Apesar do «título provocador», Confissões
de um infiel egípcio, este artigo foi dos mais
lidos e aplaudidos. «Talvez ajude o facto de
escrever em inglês, língua que não preocupa
os regimes, mas há, definitivamente, uma
mudança de atitudes.»
Uma das mais extraordinárias «revela-
A cruz e o crescente,
símbolos do Cristianismo
e do Islão, parecem
mobilizar cada vez menos
ções», para Khaled Diab, é «a larga minoria
de ateus no berço do Islão – a Arábia Saudita». Esta «aparente realidade» levou o governo fundamentalista do reino a classificar
os ateus de terroristas, «o que é totalmente
surreal».
«O ateísmo numa geração mais nova pode
ser, em parte, uma resposta às ideias reacionárias de muitos teólogos muçulmanos,
especialmente na Arábia Saudita», diz-nos,
por seu turno, Brian Whitaker, autor de
Arabs Without God, obra de grande erudição. «Um outro fator é o das sublevações
populares contra ditaduras: as pessoas tornaram-se destemidas e questionam mais.
Ao questionar um sistema político também
se questiona a religião – porque ambos estão
estreitamente interligados no Médio Oriente. É claro que, simultaneamente, há muitos
OS MEDIA ÁRABES TRADICIONAIS
APONTAM O ATEÍSMO COMO
UM ‘PROBLEMA SOCIAL’,
A PAR DA TOXICODEPENDÊNCIA
E DA HOMOSSEXUALIDADE
DEUS JÁ NÃO TEM PÁGINA NO FACEBOOK
São ainda poucos os que
se assumem publicamente
como ateus no Médio
Oriente, mas na sua
investigação para o livro
Arabs Without God,
o jornalista Brian Whitaker
encontrou histórias de
grande coragem. Uma
delas é a de Waleed
al-Husseini, protagonista
no primeiro capítulo.
Natural de Qalqilya, na
Cisjordânia ocupada
por Israel, Husseini, 25
anos, «decidiu que Deus
deveria ter uma página
no Facebook (FB)». Criou
uma e chamou-lhe Ana
Allah («Eu Sou Deus»).
O jovem palestiniano
anunciou também
que «Deus passaria a
comunicar diretamente
com o povo» através da
rede criada por Zuckerberg
porque, «apesar de há
vários séculos ter enviado
vários profetas, ainda não
conseguira fazer passar
a sua mensagem». Entre
as instruções divinas
que Husseini colocou
no FB, uma delas, escrita
no estilo dos versículos
corânicos, proibia os fiéis
para quem a solução é mais e não menos religião. A atividade ateísta na internet ainda
é mínima, se comparada com a vasta quantidade de material religioso que é colocado
em árabe.»
Mitos e preconceitos
«Houve um período, a partir dos anos 1970,
e que durou cerca de quatro décadas, quan-
de «misturarem whisky
com Pepsi». Deviam fazê-lo apenas com água.
A Autoridade Palestiniana
não achou graça à
paródia do informático
desempregado desde que
concluíra a universidade.
Um dia, estava Husseini
num café com amigos
quando chegou a polícia
secreta e o prendeu.
Passou dez meses numa
cela, uma parte do tempo
em isolamento. Agora,
vive exilado em França,
separado dos seus
familiares e amigos. M.S.L.
do os árabes ateus eram quase totalmente
invisíveis – sendo a razão principal uma
crescente religiosidade e a ascensão de movimentos islamistas», explicou Whitaker,
repórter britânico cujo blogue, al-bab.com,
é uma das mais importantes fontes de informação regionais. «Recentemente, os árabes
ateus tornaram-se mais visíveis devido às
redes sociais. A internet deu-lhes voz. Há
AMR ABDALLAH/REUTERS
O britânico Brian
Whitaker, jornalista
do The Guardian
e autor do livro
Arabs Without God,
e o blogger egípcio-belga Khaled Diab,
um dos primeiros
ateus a assumir-se
publicamente
MÉDIO ORIENTE
imensos grupos no Facebook – alguns públicos, outros fechados – e há os que partilham
no YouTube vídeos dos seus debates. Os
media árabes tradicionais também fazem
mais referências ao ateísmo, mas consideram-no ‘problema social, tal como a toxicodependência e a homossexualidade’, que
necessita de atenção dos governos.»
«As sociedades árabes são profundamente religiosas no sentido de que a religião
é parte integral da esfera pública», adiantou Khaled Diab. «Neste contexto, admitir
abertamente ceticismo ou descrença envolve riscos. Até nas sociedades árabes mais
seculares os ateus são ostracizados ou desonrados pelas famílias se assumem [o seu
ateísmo] publicamente. Alguns preferem,
pois, manter-se na sombra para evitar perseguições.»
Brian Whitaker elogiou os que se declaram publicamente como ateus: «É um ato de
bravura! Obviamente, cabe a cada indivíduo
decidir e ninguém – seja ateu ou gay – deve
sentir-se obrigado a uma exposição pública
se não quiser. Dito isto, só quando números
substantivos se assumirem é que os seus direitos começarão a ser reconhecidos.»
«No caso dos árabes ateus, ser preso ou
não depende de alguns fatores: quem são
eles, o que dizem, como dizem, quem repara e quem se queixa», explicou Whitaker.
«Os julgamentos por blasfémia não envolvem ateus, na maioria dos casos, mas outras
pessoas que disseram ou fizeram algo que
acidentalmente ofendeu alguém, ou são vítimas de processos políticos.»
É o ateísmo exclusivo da geração mais
nova e das classes média-alta? «Isso é um
mito», assegurou Khaled Diab. «Há ateus
de todas as classes sociais, idades e género.
As diferenças relacionam-se com as barreiras que se erguem contra os que querem
assumir as suas ideias e o estigma social
variável a elas associado.» Brian Whitaker
confirmou: «Os ativistas ateus são, aparentemente, pessoas cultas, nos seus 20 anos,
mas também há uma geração mais velha,
talvez influenciada por ideias marxistas e
de esquerda.»
Injustiças divinas
Em Arabs Without God, há um argumento
interessante, segundo o qual enquanto os
ateus ocidentais estão mais envolvidos num
debate ciência versus religião, os árabes
ateus tendem a centrar-se mais na «aparente injustiça divina». Khaled Diab concordou,
com reservas. «A diferença mais importante
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MUNDO
MÉDIO ORIENTE
Victor Ângelo
A intolerância da sociedade
e das famílias contribui para que
muitos ateus se mantenham
na sombra, ocultando a perda de fé
não está na natureza do debate mas no facto
de os árabes ateus terem de tomar a decisão
consciente de abandonar a fé, ficando em
contracorrente face à sociedade. No Ocidente, a religião pertence, para muitos, ao
foro privado e é até irrelevante. A ciência
tem sido mais importante no Ocidente, embora eu conheça árabes ateus que abandonaram a religião devido à sua inconsistência
científica e racional, e não por ser injusta.»
Brian Whitaker discordou: «Passei imenso tempo a tentar perceber por que é que
alguns árabes se tornaram ateus. Muitos
descreveram um afastamento gradual, e não
uma súbita conversão ao ateísmo. A centelha era, quase sempre, determinado aspeto
ilógico ou contraditório dos ensinamentos
religiosos. O que mais os incomodava é a
imagem de uma divindade por vezes irascível e irracional que se comporta como os
ditadores árabes – uma figura antropomórfica que toma decisões arbitrárias e parece ansiosa em castigar as pessoas à mínima
oportunidade.»
Os «avisos assustadores repetidos no
Corão» do que pode acontecer aos não
crentes deixa cicatrizes profundas na infância. Na escola, Ahmed Saeed, um iemenita que Whitaker ouviu para a sua investigação, perguntou aos professores por que
haveria Deus de castigar as pessoas só por
não acreditarem nele. As respostas desagradaram-lhe: «Diziam só que não podíamos questionar as palavras de Deus.» Saeed
deduziu: «Se não tivesse nascido no Iémen
ou noutro país do Médio Oriente, não seria
muçulmano. Se tivesse nascido na Índia,
haveria grande probabilidade de estar agora a adorar uma vaca. Ser educado como
muçulmano não é escolha mas demografia
da natalidade.»
74 v 12 DE FEVEREIRO DE 2015
N
a cimeira europeia de
hoje, dia 12 de fevereiro, Alexis Tsipras e
Angela Merkel estarão sentados, pela primeira vez, à
volta da mesma mesa. Não
vai ser fácil. Para além do
choque de personalidades,
que são bem diferentes, e
das opções políticas divergentes, haverá certamente
um grau elevado de tensão
emocional. Ora, no topo da
pirâmide política, a empatia
– neste caso, será de falar
de antipatia – entre os líderes tem muito peso. Creio,
no entanto, que a preocupação fundamental de ambos
vai estar focada no que
entendem ser a defesa dos
interesses dos respetivos
cidadãos. Mas se cada
um deve lutar pelos seus,
não pode deixar de ter, ao
mesmo tempo, a lucidez necessária para identificar os
pontos comuns, os destinos
partilhados. Sobretudo agora, num momento de crise
profunda e de inquietação
geral em relação ao futuro.
Nesta cimeira temos em
cima da mesa, mais do que
nunca, um desafio existencial: manter a coesão da UE.
É isso que espero, embora
com uma dose de pessimismo, que esteja na linha de
mira de Tsipras e de Merkel.
E também dos outros chefes de Estado e de governo.
Esse é o discernimento que
permite identificar quem
tem craveira de estadista.
Sejamos claros, neste momento de incertezas e de
riscos. Diga-se que quem
pensa apenas em termos
nacionais não cabe no projeto comum. Os nacionalismos a todo o custo foram
a causa de muitas calamidades no nosso continente.
Hoje são de novo um perigo
maior. Fala-se amiúde nos
valores europeus, tantas
vezes de modo irrefletido,
sem que nunca se faça referência ao valor da harmonia,
que se deve manifestar
através da cooperação
entre os distintos países
que constituem o mosaico.
O crescimento dos movimentos populistas, cada
vez mais evidente, é uma
ameaça direta contra esse
valor. Sobretudo o populismo de extrema-direita, pela
tendência que tem para a
xenofobia e o racismo. Uma
grande parte do combate
político passa agora pela
REUTERS/ALEXANDROS STAMATIOU
SAIF DAHLAH/AFP
À mesa da Europa
Muita gente politicamente
importante no Centro
e no Norte da nossa Europa
olha para os gregos
como gente do kebab
denúncia dessas ideias e
pelo isolamento de quem as
apoia, no interior da Europa,
e de quem as instiga, de
fora, por ver vantagens no
esfarelar da união.
Coesão, sim, e acima de
tudo. Porém, a coesão tem
um preço. Cada Estado-membro deve assumir o
seu quinhão de responsabilidade. Também aqui convém
ser claro. A responsabilidade primeira, quando um país
está em apuros, pertence
aos seus cidadãos e às suas
instituições nacionais. Esta
é a única posição que tem
pés para andar. Como diz o
ditado, Deus ajuda quem a
si se procura ajudar. Culpar
os vizinhos e esperar que a
salvação venha do exterior
reflete fraqueza e demagogia. Quem tem um problema faz um plano, gostava
de repetir o meu jardineiro
no Zimbabué, um homem
simples mas cheio de bom
senso. E mostra que o quer
executar, respondia-lhe eu.
Do outro lado da mesa, o
preço inclui saber ultrapassar os preconceitos. Sei
que muita gente politicamente importante no
Centro e no Norte da nossa
Europa olha para os gregos
como gente do kebab, do
Médio Oriente, uma espécie
de antecâmara dos turcos
e dos libaneses, com tudo o
que isso significa nas suas
mentes em termos de desconsideração. E que acha
que chegou o momento de
limpar a casa e deixar os
«levantinos» ir à vida. Não
tenhamos ilusões nem papas na língua. Esta maneira
de pensar é mais generalizada do que julgamos, num
continente em boa parte
conservador e enviesado.
Tem que ser combatida.
À mesa da Europa, o menu
deve continuar a ser variado e a poder combinar
diferentes sabores.
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É provável que o número de ateus no Egito tenha - Al