O COMPLEXO HOMEM COMPLEXO1 Berenice Gonçalves Hackmann∗ Resumo O artigo pretende refletir sobre o homem complexo que convive interna e externamente com seu lado prosaico e poético, dotado de um aparelho neurocerebral que lhe permite a competência para buscar o que pode completá-lo em suas necessidades, refletindo sobre suas várias dimensões e singularidades, vivenciando incontáveis conexões e possuindo diversas faces que convivem com o seu Homo sapiens, pleno de emoções, sentimentos, afetividades e subjetividade. Palavras-chave: Homem complexo. Complexidade. Subjetividade. Abstract The present text intends to reflect about the complex man that lives together its prosaic and poetic side, endowed with a nervous system that allows it the competence to look for what it can complete it in its needs, contemplating on its several dimensions and singularities, living with countless connections and possessing several faces that live together with its Homo sapiens, full of emotions, feelings, affectivities and subjectivity. Keywords: Complex man. Complexity. Subjectivity. Introdução Pensar sobre o Homem, entrelaçando-o à complexidade (sobre a qual Edgar Morin estabeleceu um denso diálogo/reflexão), é realizar um passeio pela poliscopia do ser humano atravessado por uma bagagem plena de comprometimento com o prosaico do cotidiano. Tendo o seu lado poético, muitas vezes, colocado em segundo plano, esse ser, grávido de afetividade, que teima em emergir à superfície de sua mente é, muitas vezes, subjugado pela necessidade de estar, como Homo faber, ativo e dominante para fazer frente às exigências de um cenário contemporâneo pleno de sísifas ações. Essa analogia provém da mitologia grega (KURY, 2003), que nos apresenta o mortal Sísifo - castigado por Zeus por tê-lo denunciado do rapto de Egina, filha do deus do rio denominado Ásopo - rolando uma grande pedra até a proximidade do topo de uma montanha. Porém, cada vez que se aproximava do cume, o bloco de mármore voltava ao ponto de partida e, essa tentativa, repetiu-se por toda a eternidade. Por esse motivo, tarefas ou ações que são 1 ∗ Artigo publicado na revista Colóquio – Revista Científica da FACCAT, vol. 3, n. 1, jan./abr. 2005. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Professora das Faculdades Integradas de Taquara - FACCAT. O complexo homem complexo - Berenice Gonçalves Hackmann 2 constantemente feitas, desfeitas e refeitas, resultando, muitas vezes, em esforços inúteis, são chamadas de trabalhos de Sísifo. Morin, em Um ano sísifo (1998), utilizou essa metáfora - inspiradora para o início deste artigo - fazendo o seguinte registro (p. 412): “Sísifo, vagueio por debaixo da montanha. O ano de 1994 foi também para o planeta um ano sísifo. Tudo deve recomeçar do zero”. Essa relação é extremamente pertinente, pois o dia a dia, não raras vezes, oferece-nos a hercúlea tarefa de mesclar/separar constantemente os vários Homo que habitam em nós e, além disso, abrir espaços para permitir que os demens aflorem e pintem, de cores diversas, o nosso imaginário. Para trabalhar as idéias, apresento no texto, primeiramente, a de sapiens, que caracteriza a nossa espécie e, após, pensamentos sobre nossa face biológica e social, sobre a autonomia/dependência do ser humano, referindo-me também aos vários Homo que Edgar Morin nos apresenta em sua obra. Refiro-me ao ser-sujeito em algumas de suas dimensões, às diferenças entre indivíduos e apresento o Homem mergulhado na sua subjetividade onde a fantasia, o pragmatismo, o sonho, o pesadelo, a paixão, o amor, o ódio, dentre outros sentimentos e emoções, fazem parte da vivência e, muitas vezes, também constituem o viver diário de cada um de nós. Finalizando, procuro tecer esse Homem junto à educação, integrando-o aos nossos aprendizes dos espaços educacionais, onde o passado e o presente de nossas ações contribuem para a formação de um ser complexo inserido no contexto planetário, desafio em que se faz presente a reivindicação da subjetividade e a do sujeito solidário com a humanidade. Nós, os sapiens Homo sapiens. O sapiens, que deriva de um verbo que significa “[...] ter gosto, sentir finamente os sabores e perfumes” (SERRES, 1999, p. 219), é também, complementa o autor, o termo pelo qual “[...] os latinos traduziam sábio, inventado pelos gregos, e que a antropologia retoma para definir o homem”. Morin questiona o que é ser sábio e ter uma vida sábia, perguntando-se se isso implica “[...] cuidar-se, ter um regime alimentar, não beber mais do que um copo de vinho por dia, não pegar meios de transporte perigosos, etc.?” (2002a, p. 60). E continua perguntando-se (loc. cit.) se “[...] a verdadeira sabedoria não está na consumação, viver plenamente todos os riscos que isso comporta?”. O complexo homem complexo - Berenice Gonçalves Hackmann 3 Dessa forma, a idéia do sapiens dilui-se na multiplicidade de conceitos, que pode também abraçar a idéia de que o Homo sapiens “[...] é a primeira das espécies do reino animal na classificação de Lineu”, como relembra Lalande (1999, p. 474), que informa ainda que, desde a primeira edição do Systema naturae, o cientista “[...] inscrevia na coluna reservada às características distintivas da espécie: ‘Nosce te ipsum’. Ele justifica a palavra ‘sapiens’ por essa característica consciente da humanidade, pela faculdade de conhecer em geral”. Para essa capacidade de conhecer é indispensável a presença do aparelho neurocerebral, o que o torna um ser mais do que computante: é um ser competente à procura daquilo que pode completá-lo em suas necessidades. Para isso, reveste-se de importância a existência de inteligências computantes e cogitantes para que possa pensar conscientemente. Essas foram conquistas na evolução biológica, lembrando que o indivíduo-sujeito evoluiu a partir de seres unicelulares, chegando ao apogeu dos primatas, o Homo. Morin (2001a, p. 466) diz que não somos apenas mamíferos, somos supermamíferos porque “[...] trouxemos a vida, a juventude – o jogo, a aprendizagem – e a velhice – a experiência, a sagacidade – e tornamo-nos metamamíferos, quando podemos envelhecer sendo jovens e permanecer jovem velho – isto é, jogar e aprender toda a nossa vida”. Continua (p. 467), ressaltando que, na realidade, o Homo sapiens possui uma cabeça, que, “[...] na técnica, na viagem, na exploração, na prospecção, na gastronomia, no jogo, no amor, no erotismo, na droga, na mística, na poesia, na filosofia e na ciência”, propaga as suas buscas. Mas, antes de prosseguir, pergunto-me: O que é sujeito? Nós, os sujeitos Para Lalande (1999), o sujeito pode ser considerado sob vários enfoques e definições. Dentre elas: “[...] o sujeito refere-se preferencialmente ao ser pensante” (p. 1092). Essa máxima apóia a idéia que Morin tem do indivíduo como sendo o oposto de um organismo-máquina ou uma marionete (2001a). Para ilustrar essa idéia, o autor traz à lembrança Petrouchka2, um palhaço de pano, recheado de palha, manipulado por seu criador. Portanto, a noção de sujeito é uma noção que gera muitas controvérsias, mesmo que exista, como reflete Morin (1996, p. 45), “[...] uma primeira pessoa do singular”. De certa forma, pode ser significativo pensá-lo como um produto de uma reprodução sexuada, uma vez que resulta da união 2 Petrouchka foi apresentado pelo Ballet Russo de Diaghilev no Teatro Châtelet, Paris (França) em 13 de junho de 1911, iniciando uma longa série de apresentações. Coreografia - com 1 ato e 4 cenas - de Michel Fokine, história de Igor Stravinsky (também autor da música) e Alexander Benois (O’SAGAE, 2004). O complexo homem complexo - Berenice Gonçalves Hackmann 4 entre o gameta masculino, o espermatozóide, e o feminino, o óvulo. Mas o ciclo não termina no nascimento, pois o indivíduo “[...] é, ele mesmo, produtor no processo que concerne a sua progenitura; somos produtos e produtores num ciclo rotativo da vida. Desse modo, a sociedade é, sem dúvida, o produto de interações entre indivíduos” (p. 48). Há nessas reflexões a idéia de que o sujeito é uma representação hologramática, uma vez que produz a sociedade da mesma forma como esta produz o indivíduo. Para Morin (2001a), há outra maneira de olhar o sujeito sob a ótica das denominadas dimensões: lógica, ontológica e ética. Elas são multidimensionais, inseparáveis, que estão permanentemente unindo o abstrato (aqui se incluindo o lógico e formal) e o concreto (que diz respeito à existência e ao próprio ser). A dimensão lógica é aquela em que se refere a si mesmo e englobando o que se pode chamar de ego-autofinalidade; a dimensão ontológica envolve o egoautocentrismo – necessário à definição de um indivíduo vivo e a dimensão ética comporta a distribuição de valores. O referir-se a si mesmo traz como pressuposto o egocentrismo que carrega uma autoreferência. Morin diz, com muita propriedade, que “[...] o termo ‘mim’ exprime plenamente a referência a si e afirma o egocentrismo exclusivo do sujeito”, pois “dois ‘mim’ não podem ocupar o mesmo mim” (2001a, p. 190). É previsível que a isso não se alia à idéia de imutabilidade da matéria física, uma vez que as transformações pelas quais o nosso organismo é acometido ao longo da existência, levam-nos à idéia de que nos aproximamos de metamorfoses, se não em nível de organismo durante o seu ciclo vital extra-uterino até a senescência orgânica, pelo menos nas esferas das incontáveis organizações e transformações embrionárias. No entanto, se nos referimos ao lugar biológico do sujeito, podemos considerar que é, “[...] simultaneamente, único e inúmero, insubstituível, irredutível e reprodutível, absoluto e dependente de uma existência contingente e efêmera. O sujeito é ‘aquele que é único’ e, ao mesmo tempo, ‘qualquer um’”, como aponta Morin (2001a, p. 191). Surge irresistivelmente enquanto sujeito, emergindo de suas condições de formação (biológicas, antropológicas, sociais) e dissociando-se daquilo de que ele é uma face embricada, amalgamada: o indivíduo vivo da espécie sapiens. E esse ser vivo carrega consigo o viver, que se constitui no modo de existir do indivíduo-sujeito, caracterizando-se por uma forma singular, própria do ser humano, que pode ser centralizadora, egocêntrica, muitas vezes até egoísta, lutando contra obstáculos, ameaças, desvios que podem, a qualquer momento, conduzir à morte, mas apostando neste jogo de viver para conquistar a vida: “A O complexo homem complexo - Berenice Gonçalves Hackmann 5 condição existencial do jogo marca toda a vida: é a incerteza sempre renascente e a luta sempre renascente contra a incerteza” (p. 217). Porém, mesmo sendo único ou qualquer um, precisamos considerar que as singularidades de cada indivíduo lhe permitem disposições individuais diversas para transgredir, imaginar, extasiar-se, criar, conceber e resistir ao imprinting, como expõe Morin (1998), e, mesmo com relativas supremacias na natureza, em semelhança à sua capacidade pensante, não podemos esquecer sua pequenez e fragilidade. É importante vê-lo como ínfimo ponto no espaço e no tempo com definição propiciada pelos encontros e desencontros que o constituem, aparecendo-nos não como auto-suficiente, mas como o encontro de processos auto-(genos-feno-ego)-eco-reorganizadores. (MORIN, 2001a). E esse ser pensante amiúde considera-se independente, autônomo, numa idéia de completa disjunção do mundo que o rodeia. Para compreender a autonomia do indivíduo é imprescindível relativizar a idéia e a situação e, sobretudo, pensar de uma forma complexa. E é essa idéia discutida a seguir. Nós e alguns de nossos paradoxos Nessa linha de pensamento da complexidade, lembremo-nos de que o Homem é inseparável de genos (quando falamos de sua herança genética) e oikos (quando a ecologia exterior o insere num espaço físico e temporal). Assim, a denominação de auto-suficiência é um verdadeiro atestado de esquecimento dos incontáveis e infindáveis ciclos e anelamentos feitos com os outros seres de nossa mesma espécie e com outros (animados e inanimados, como denomina a Biologia) que contatamos direta e indiretamente (os quais, muitas vezes nem sabemos que existem) de uma forma tal que há permanente e emanente ligação efetiva, mesmo subjacente ao nosso conhecimento. No aspecto físico, há a questão da nutrição que se inicia com mecanismos de captação do alimento, seguindo-se por processos de transformação de energia captada no exterior que explode em vida interior. Esse processo é um quesito vital para a nossa sobrevivência, pois o alimento se encontra no bojo dessas interpolitranscomunicações que estabelecemos com e no ambiente natural (lembro-me de Lavosier, mestre que pensou na transformação da matéria). E é esse um dos paradoxos do Homo sapiens: somos autônomos, mas não somos independentes. Essa noção de autonomia não compactua com a noção de liberdade, que é “[...] imaterial e desligada das constrições e contingências físicas. Pelo contrário, essa é uma noção estreitamente ligada à de O complexo homem complexo - Berenice Gonçalves Hackmann 6 dependência, e a de dependência inseparável da noção de auto-organização”, como enfatiza Morin (1996, p. 46). Como participante da teia da vida (com a qual possui incontáveis conexões importantes e significativas), o Homem, antes de qualquer coisa, tem a sua materialidade expressa pelas células e sua herança genética compreendida nos genes, que contêm a mensagem – mesmo que, muitas vezes, pontilhada de ruídos3 - implícita num ser computante policelular. Pensando na disjunção entre o homem no seu lado biológico e o denominado social, Morin (2002b, p. 35) aponta que “[...] nós sentimos a cada instante, ao comer, caminhar, amar, pensar, que tudo o que fazemos é simultaneamente biológico, psicológico e social”. Essa percepção tem invadido minhas reflexões, permitindo-me constatar que as pessoas com quem estabeleço incontáveis interfaces nas minhas trajetórias profissionais e sociais, estão se apropriando da noção de que estamos mergulhados num verdadeiro mar de interconexões. Esse pensamento é basal, o que nos aproxima da idéia de aceitar um sujeito fechado/aberto, pois o ser organizador-de-si precisa, para organizar a sua autonomia, não só de “fechamento” em relação ao seu meio, mas também de abertura para o ambiente onde se encontra, como propõe Morin (2000b). Além disso, alia-se outro conceito: o existencial: “A afetividade, desenvolvimento da dimensão existencial nos animais superiores, constitui não a definição primária, mas uma das emergências supremas da qualidade de sujeito” (MORIN, 2001a, p. 220). Pelas idéias até aqui expostas, reitera-se o conceito de sujeito como um macroconceito complexo, uma vez que se constitui de inúmeros conceitos basilares que o tornam um centro de comunicações onde os papéis de ator e jogador se alternam e, muitas vezes, podem até gerar o que Morin denomina de comunicações interindividuais frias (2001a), onde a tônica é apenas a troca de informações. Mas há também uma comunicação quente que permite a comunicação entre dois sujeitos. E mais esclarece o autor (p. 229): “O indivíduo-sujeito dispõe, em princípio, da capacidade de considerar objetivamente o outro como ser-sujeito semelhante/estranho e que pode subjetivamente identificar-se com ele na comunicação”. Assim, há condições de emergir uma relação e uma sociedade a partir de indivíduos-sujeitos egocêntricos e o circuito de intercomunicação permite que o anel intersubjetivo tenha feito aderir a si um transubjetivo que, se constituir em algo duradouro, formar-se-á uma comunidade com organização solidária inter e transubjetiva. 3 “Denomina-se ruído toda perturbação aleatória que intervém na comunicação da informação e que, por isso, degrada a mensagem, que se torna errônea. O ruído é, portanto, desordem que, desorganizando a mensagem, se torna fonte de erros. Desordem, ruído, erro são aqui noções ligadas” (MORIN, 1999a, p. 295-296). O complexo homem complexo - Berenice Gonçalves Hackmann 7 Considero importante enfatizar que a originalidade ou particularidade do ser humano o distingue singularmente, lhe abrindo os caminhos para uma identidade complexa e viva que comporta os aspectos infra-identitário, pré-identitário e sobre-identitário, que simultaneamente a organiza/desorganiza e alimenta/destrói. E, nessa complexidade, delineia-se a sabedoria de o sujeito assumir os vários Homo que o habitam. Nós, resultantes da multiplicidade do Homo Morin (1973) apresenta-nos a dialógica do sapiens/demens. O Homo demens é a face escondida, oculta, pelo sapiens. Ambos reúnem, no ser humano, suas ambivalências que contêm, como ressaltam Morin e Kern (2002, p. 141), “[...] fraquezas, misérias, carências, crueldades, bondades, nobrezas, possibilidades de destruição e criação, consciência e inconsciência [...]”. Dessa forma, posso dizer que o homem da racionalidade é também aquele homem pleno de afetividade, que pode assumir um lado de delírio, o demens. E essa complexidade envolve outros Homo (2000b): Homo faber (homem do trabalho), Homo ludens (homem do jogo), Homo empiricus (homem empírico), Homo imaginarius (homem imaginário), Homo economicus (homem da economia), Homo consumans (homem do consumismo), Homo prosaicus (homem prosaico) e Homo poeticus (homem poético), que é o do fervor, êxtase, amor, participação. Porém, gostaria de salientar que não podemos deixar esses Homo caírem na idéia simplista de serem, por exemplo, 50% um e 50% outro, ou ainda considerar outras porcentagens na tentativa de quantificar a população de seres invisíveis que nos habitam, pois, como esclarece Morin (2002a), não há fronteira entre os Homos sapiens e demens, o que quer dizer que possuímos essas duas polaridades, não existindo fronteira entre as duas. Continuando a pensar sobre o complexo homem complexo, posso dizer que somos não só um centro de solidão como também um centro de comunicações, além de integrar também “[...] um centro de sensibilidades ou sensações que se tornará centro de sentimentos e afetividades...” (2001a, p. 220). E, como afetividade é a conseqüência da existência subjetiva, estamos mergulhados num universo que contém/está contida a subjetividade e é do outro, dos nossos amores e das fraternais ligações, que extraímos o prazer e sentido de nosso viver. O complexo homem complexo - Berenice Gonçalves Hackmann 8 É interessante a idéia de Morin (2001a, p. 323) de que “o cérebro espírito4 constitui um centro de subjetividade próprio, inseparável do corpo/sujeito, uma vez que o sistema neurocerebral está ramificado em todo o corpo, mas é relativamente autônomo na sua atividade de comando/controle de todo o ser”. Esse centro comporta a compreensão, banida das ciências e incorporada na afetividade do ser humano, importante para que um ser seja inteligível por outro. Ela alia-se à explicação, completando-se de forma recíproca de tal forma que existe um circuito formado por explicação/compreensão/explicação “[...] onde, enquanto a explicação introduz na vida os determinantes físico-químicos, as regras, os mecanismos, as estruturas de organização, a compreensão restitui-nos o próprio indivíduo-sujeito vivo” (p. 325). Agora acredito que é possível fazer avançar a questão da complexidade, pensando na nossa vida diária e no processo de aprendência, que podem ser incessantemente parasitados e estimulados pelo que Morin (1999b) chama de desordens e ruídos, fantasias, sonhos, imaginações e delírios, pois os sentimentos e emoções fazem parte do próprio processo de conhecimento. Tecerei ainda algumas dessas idéias integradas a essas reflexões. Encaminhando às reflexões finais/temporárias Na obra de Morin, freqüentemente encontro a palavra fantasia associada a deuses e mitos (2002b); imaginação (2000b), sonhos, delírios, imaginário (1999b). Para o autor, a importância da fantasia e do imaginário em nós é inimaginável e “[...] constituiu-se um mundo psíquico relativamente independente, em que fermentam necessidades, sonhos, desejos, idéias, imagens, fantasias, e este mundo infiltra-se em nossa visão ou concepção do mundo exterior” (2000b, p. 21), lançando-se, “[...] por um lado, nos sonhos e fantasias e, por outro lado, através da linguagem, rumo às idéias e às especulações” (1999b, p. 77). Outro aspecto a considerar é que as instabilidades e perturbações próprias do cérebro se integram às incoerências, imaginações, fantasias, sonhos, fragmentos de idéias e memória que ocorrem durante o nosso período de vigília como também em nosso período de sono. No entanto, o espírito humano pode saber que fantasia na fantasia e discernir as diferenças que existem entre fantasia, sonho, percepção e lembrança. É de uma complexidade imensa essa capacidade de relacionarmos o real e imaginário por se tratar de fenômenos opostos e diferentes, que partem de dois mundos antagônicos, mas que podem ser complementares: o da percepção (integrando-se à exploração do real) e o da fantasia e do 4 “[...] concebido aqui como a totalidade emergente da organização-cérebro” (MORIN, 2002b, p. 343). O complexo homem complexo - Berenice Gonçalves Hackmann 9 sonho, que, como esclarece Doron e Parot (2001), pode ocorrer quando a pessoa está no seu período de sono noturno ou então numa espécie de devaneio, visando à satisfação de desejos. A partir dessas idéias, penso que, por nossa condição de seres humanos, podemos viver plenamente a condição de indivíduo-sujeito, pois somos seres que sentimos mais intensamente a vida e o viver do que os outros seres vivos. Possuímos nossas emoções, nossos sentimentos, dores, gozos, alegrias e somos capazes de amar, odiar, de sermos altruístas ou egoístas, de possuirmos ternuras incomensuráveis, imersos no mar e no turbilhão de outras afetividades que crescem desde o tempo do desenvolvimento neuronal na vida intra-uterina. Nesse processo afetivo, o outro é elemento importante, pois “[...] restitui a nós mesmos a plenitude de nossa própria alma, permanecendo totalmente diferente de nós mesmos” (MORIN, 1996, p. 53). Pois é nessa complexidade que professores/educadores/ensinantes/docentes/aprendizes/aprendentes/ensinados/alunos/discentes vivem: perpassados pelas emoções e sentimentos, precisando romper diuturnamente velhas malhas de contenção do sujeito, abrindo a possibilidade de aceitar-se e ver-se um ser completo, transitando pela autonomia/dependência, produtor/produto, individualidade/coletividade, imersos em ações/emoções/sentimentos/afetos antagônicos/similares/complementares, vendo-se fraco/forte, decidido/indeciso/ambivalente e consciente/inconsciente de suas contradições. E uma das missões-desafios do ensino educativo - termos que Morin introduz em A Cabeça bem-feita... (2000a) - é transmitir uma cultura que permita compreender nossa condição de seres humanos com todas as nossas limitações e possibilidades. Além disso, a educação precisa nos ajudar a viver plenamente a vida, favorecendo também um “modo de pensar aberto e livre” e tornando mais felizes todos aqueles que possuem uma interface conosco e com nossos alunos/aprendentes. Precisamos igualmente (Morin, 2000a, p. 11) “[...] assumir a parte prosaica e viver a parte poética de nossas vidas”, não aceitando a fragmentação de saberes que nos torna um mosaico sem sentido e aprendendo a pensar local e globalmente, como propõe (2000c), sem esquecer a formação ética voltada à responsabilidade. E é importante termos consciência dos diferentes modos de existir, assumindo o nosso lado prosaico para responder às situações utilitárias e funcionais e investindo no estado poético que pode não apenas relacionar-se à finalidades amorosas como também às de fraternidade. Assim, há necessidade de uma reforma do pensamento que envolva o pensamento sistêmico (que, para Morin, não deve se confundir com a análise sistêmica - que destaca o todo em detrimento das partes, oposta à tradição cartesiana, ainda tão presente em nosso ensino, em que se O complexo homem complexo - Berenice Gonçalves Hackmann 10 chega ao conhecimento do todo através das partes). Diz o autor (2001b, p. 150): “Meu axioma é ao mesmo tempo sistêmico e analítico. Ele se expressa em uma fórmula de Pascal, que cito freqüentemente: ‘Considero impossível conhecer o todo sem conhecer especialmente as partes’. Isso implica um caminho do pensamento ‘em vaivém”. Como procurei delinear, carecemos de uma concepção complexa do sujeito para dar conta da complexidade em que estamos mergulhados e, para finalizar, aposso-me desta reflexão de Morin (1996, p. 52): “Tudo que é humano obedece às características que acabo de enunciar, mas de modo algum se reduz a elas. Há algo mais. Há muito mais”. Podemos relacionar esse pensamento a um toque feito na parte superior de um iceberg. Esse toque apenas esbocei neste texto e preciso mais compreender/explicar o Homem e sua complexidade para ter mais fios nessa complexa urdidura. É... há muito mais. Referências DORON, Roland; PAROT, Françoise. Dicionário de psicologia. São Paulo: Ática, 2001. KURY, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. 7. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000a. ______. A noção de sujeito. In: FRIED SCHNITMAN, Dora (Org.). Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade. Porto Alegre: Artmed, 1996. p. 45-55. ______. Ciência com consciência. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999a. ______. Edgar Morin: ninguém sabe o dia que nascerá. Nomes de Deuses – entrevistas a Edmond Blattchen. São Paulo: UNESP; Belém: UEPA, 2002a. ______. O Método 1: A natureza da natureza. 3. ed. Lisboa: Europa América, 2002b. ______. O Método 2: A vida da vida. Porto Alegre: Sulina, 2001a. O complexo homem complexo - Berenice Gonçalves Hackmann ______. O Método 3: O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 1999b. ______. Notas para um “Emílio” contemporâneo. In: PENA-VEGA, Alfredo; ALMEIDA, Cleide R. S. de; PETRAGLIA, Izabel (Orgs.). Edgar Morin: Ética, Cultura e Educação. São Paulo: Cortez, 2001b. p. 149-156. ______. O paradigma perdido: a natureza humana. 4. ed. Mem Martins: Europa América, 1973. ______. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2000b. ______. Saberes globais e saberes locais – o olhar transdisciplinar. Rio de Janeiro: Garamond, 2000c. ______. Um ano sísifo: diário de um fim de século. Mem Martins: Europa América, 1998. MORIN, Edgar; KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2002. O’SAGAE, Peter. Petrouchka. Disponível em: <http//:caracol.imaginario.com/letrasonora/index.html>. Acesso em: 3 nov. 2004. SERRES, Michel. Luzes: cinco entrevistas com Bruno Latour. São Paulo: Unimarco, 1999. 11