ALMADA, Francisco Vaz de, sec. XVII
TRATADO1:DO SUCESSO QUE TEVE A NAO S. JOAMBAPHISTA: E
JORNADA QUE FEZ A GENTE QUE DELLA ESCAPOU, DESDE TRINTA
& TRES GRÃOS NO CABO DE BOA ESPERARÁ, ONDE FEZ NAUFRAGIO,
ATÉ SOLFALA, VINDO SEMPRE MARCHANDO POR TERRA... / [POR
FRANCISCO VAZ DALMA] : — - EM LISBOA: POR PEDRO CRAESBEEC
16 25.
95, [1] p. ; 49 (20 cm.).
32,
2 , 17 A n . 3
(coleção dos Naufragios)
TRATADO
DO SVCESSO QVE T E V E
A N A O S. J O A M
BAPTISTA,
E jornada que fez a gente que delia eP,
capou, deíde trinta & tres grãos no
Cabo de Boa Efperança, onde
fez Naufrágio, ate Sofala,
vindo fempre marchando por terra.
%A Diogo
Soares
Fazenda
Secretario
da Confelho
de Sua
da
ageflade7c.
A ü Z E N T E
A o Padre Manoel Gomes da Sylveira*
Com licença da S. lnquifiçaõ,
*r i M
I Í III
.ulrT
•
EM
Ordinário,
•IMHII1I I
&
• • III ••••
LISBOA.
Por PedroCraesbecí:Impieífor delRey, anno
Sá.
•
I
I
Paço:
1-
V, h
«•*»
.
•
i\
V ,'\ .V *
r-%
S ?" /'. • t. ti (U: '7 .. . , •\Ji\ "•'„ f
" •• ; ' I , J" i,.^
• ' C3
T; rA
'
«s «.f H
^
i'
Í"
Is u
s
,' j
•rX-W
1
v.,
•
ft
o À,
'» ' 1 ' • -'•-•s-,f
ik^i'-r^MX.^
t" '
•«Wvt.
'
.»
' ï A' ..
..fi-1:; .
O H «/ :
, ?1 1 i
M
^Ho^HSâ
f«.
s
X
f 1' * ,»
VvUkJ
A DIOGO SOARES
SECRETARIO
DO
CONCELh
da Fa5xr1di.de S. Mageftade,&e.
auzenté, ao Padre Manoel
Gomes da Silveyra.
Smuytos defejos, que tive de bandar a V. M.
a relatoria dejiefitcsejfo,me obrigarao afazela em doze dtas% antes que efias Nàts^ue Veos
falve, fe partijfm, £ defcudeyme tanto porque
me tinha dito o Padre Frey Diogo dos Anjosy
quefoy também companheyro, quefazia hum tratado muy co•
piofo, contando miudamente todas as particularidades, ^
jornada fuccederao.EpedindolhoeuneJie tempo para mandar
o treslado delle a VM, me dtjje,
0
puderafazer por ef*
tarfempre doeme, & porque também lhe nao tinhaõ dado tempo as obrigações da Religião.Ejiefoy o reJpeyto>que me moveo a
fazer efte>findoajfm q nu dk muyta pena efcrewfyualq*wr
carta larga, quanto mau tantas folhas de papel, mayormentt
nadfabendoeuo eftylo> com que feifto cofiumafazer. Pelo que
pefo a V\ M.que antes que o moftre o veja muy miudamente,
* w^and^he o cjlylo, & o mais de çie vir tem necejfidadt, re*
Iç ando mi nhnsfaí
m amigo. E depoü que ejiiver parê
fe ver empublicoy * ; que lhe parecer.
Francifco Vaz Dalmada.
v,0
â
a
a
' A O ' ? ,
vSj'anwoD o ti
r»
"
?
loomm
.
.r
: -i
*'•-
V•"-
D O
«»• tf
X ,f * il
i -,
j""í W V
V- i
•"
«,.: h : t.. ..• . ï « . .','
li' Íl
? f-> . . !
oiDfj "0-J5
^ s p v í i c i-fc
* í»
*.
â
O
zsmntj
^
rrj^r;" • • y
v'x T^Wi ski.v^ittv: /a.ù, vs*\ia
v. h ' •
fc\ * W.*»'
S • \ . *W»V5 •V-,£\«>iv\ K .<4
«. •,.> « íV •«'"> M
' "í ï
:
;
•v;; - • t • '
.
- f
A»wA^i
' ""V;'' c
. v'iï^i ^ "V
•'• 'VU^ í ".Vi
• m t^S QftV-^'t!-;
« ö^i^v/.ttKU'ft iWth• V. • _
v
"tA^ír.Vw^''
v..'-. 1 . "vv-
; V;."wcví
t
:vi
'
ï í.
V,
/
.
».
..V ,
t^iv.',..;
.Ví-.íV. {•;!>«. -HI-..V-. \ :»V) V. » •!<:••-V.
*-
î
'Vvj
-H
y,.
i
".,.''
<
Cv.,1».
í, 4
„
-..5
-t
n
A.
y
..,}
s li i-
\!
-Ú "V;, Ö
0
.-j
•
Pag
i
I A V
F % J
Ç
1 0
Da 3SQr í f $ <BaptiJla no Cabo de "Boa
&JJ>eratiça no amo de 1622.
M o primeyro dia de Março f^i"
^ vinte dous> partimos d? jarra ae Uoa a
JNáo Capitai?U 9 de que era Capka-õ mòr
Nuno Alvares Botelho, Sc a Náo Sau Joâoj
de que era Capitaõ Pero de Moraes Sarmêío,& depois de termos navegado quinze, ou vinte dia?
indo-fe vera bomba feacháraõnella quatorze,ou quinz e palmos de agua> & tratando de a efgot. r, não foy pofiivel, porque eraõ pequems a? bombas, que a Náo trazia, por ferem feytas para hum Galeaõ > de maneyra que
as desfizeraõ ? & acrefcentáraõ ? & nunca pode íervir
mais que híía 5 & com barris fazendo baldes deli es a puzemos em eftado de quatro palmo° fr- "f^r iioíTa viagem com grandrs calmanas acè vinte cinco
grãos, que dahi por diante tivemos notáveis frios.
A dezafete de Julho nos apartamos d;: Náo Capita^ nc
per fe
*v»?V vti •> forol: outros dizem»
^' >
^zer os otticiaes. De mim fey dizer a V. iVÍ. conv qi -u perdia tanto em perder a companhia do Capi- j mòr, que toda a noyte vigiey, & que
mm. a © vi.
Em dezanove de Julho hum Domingo pela manhãs
cm trinta & cinco^
? & meyo largos vimos por noíTa
proa du£S Náos Olai; ,:za?, Ja. logo nos fizemos preltes,
poiiúo a Náo em armas, o que nos cuftou muyto trabalho p or efiar eirpachada y de ma^cyra que ainda aquella
"• " "
'"
A *
tar«*
r:v?.
Tratado do naufragio
te lhe demos duas cargas, & fomos br;ç* ido com eftas duas Náos, entr inchey randono; coai .ardos de li.
jberdade0 & foy efte grande rerje ^ P? r Iiei
diante matàraõ muy pouca gente ^feh.dc^ ^4iní que nos
primeyros doüs diastjtrè hàfõ títAgmos
efta diligencia nos matàraõ vinte homês, atèaltui a de quarenta
«r ^ " ç grics em éfpaço dedezanõve dias*3 dos quaes fó
Jiovv. brigáraõ^om nofco de Sola Sol çàda dia3& riosjpu^
zer&5cem o maismiserável eftadò que fe pode imaginar,;
porque; nos quebrár&o o gouropès pelos cabreftos com
íbombárdadas5& ò mafíro grande dous covados por cima
dos tambores, & o traquctc, & o leme/poftoque era^e*
l h o , que tinha fido dé hüa Náo, qüe ern Goa í e desfez,
& havia dous unnos, que eftava deytado na praya, &
podre, que deita maneyra fe coílumaq haviar as JNaos
nefta terra.Digo iíto, porque o naô termos leme foy califa de noffa diftruiçaô,porque vinha elle tal, que fó duas
bombardadas baftáraõpara o fazer em pedaços. Enàq
foy efta a fàt a ; com que efta Náo par tio de Goa, por?
que naõ truuxsmuniçòes, nem polvora baftante pari po*
der brigar, trazendo fó dezoyto peças dò artilharia de
anuy pequena cala, &: com ferem eftas, brigamos atènos
uaõ ficarem mais que d- is hirris de oolvoraA vipt> ovto cartuxos.
h
'
Vendo-fcque a Náo naô tinlie ar sove nenT\üa, & as
cntenas de fobrecellente todas cheas de ^iouracias, que
a que tinha menos tinha n o v e ^ a Náo indo-fe ao Lnda
com agua, porque nos fundiárâõ a pd ouradas porhuma
braça debay xo d'agua ; & o leme r -Mo .quebrou levou
duas femeas comíígo, abrin*> os l jracos das cavilhas das
mefrrras femeas, de modo que nos hiamos apique m>.úiv:
do fem podermos vencer a agua , riem fe ter efperança
Que teve a Nao S.JoabBaptifta. xj
de remedio úgum dando de noyte, & de dia à bomb^òc
gamotes tot gtii^o de peíFoa, tra? áraõ os Religiofos úxs
haver algun concc > de modo que fe entretiveíTenvos
inimigos,p, a v, ae entretanto viíTemos fe podíamos vencer a agua, tapar alguns buracos. E para iffo me pediraõquizeíle er ler huma das peíToas , que trataffe comosOlandezes bum concerto honrado, fobre e que tive ínguas razões com elles, & diffe , que quriii quena ^ tal
concerto* f*^ foíTe lá, & que não erac meus amigo? J
tal me aconfelhavaõ, & me iuy me* r na eftant.a, dt
o Capitaõ me encarregou , de maneyra, que na5' vi batel
a bordo,nem Olandezes, ficando odiado com muy ta ^ente da Náo. Depois pedirão a Luis d* Afônica
a Maiiowa Peres quizeffem ir fazer efte contrai o, os quaes foraõ, & as tormentas foraõ taõ grandes, & continuas, que
naõ vimos mais a Náo para uuue eftes dous homes foraõ.
A outra nos fo; 'guindo íem nos querer abalroar,& madou faber pelo batel fe viramos a outra fua Náo, porq tinha defapparecido delia,& d a muyta agua, que de contino fazianws ^ ando deLparelhauoc,, cx • ,os de todo
o remedio, v*yo faber, que c eterminaçaõ o i a nofla , &
eftando toda a gente muy miferavel, & <Mct níiada lhe
diífemos, que naõ fabianos da "' 10, & com e' U repofta
íc ...
batel J ^ i., .onde vie eftando nòscada vez
mais v. *ot íoidi
porque padecíamos as mais nota*
r
veis toj menti. & frios, que os homês viraõ, chovendo
n e \ ' .íuytuü vezes, de maneyra que morrerão miiytoi*
çfcravoscom os frios , os quaes nos faziaõ rr.iyta f::3t-:
pelo remedio da boi
& alijar ao mar , oque tudo fazíamos continurmen
& c. ~n trabalho por as tormen9
tas
balanço* da Náo não darem lugar a que fe acendeífem os fogões, que era ca^fk defles trabalhos nos íicarem
$
.
Tratado do naufragto
% e m fendo muyto mayores. EfiandoneO^ eftadofizèmoshiia bandolado niaftro da mezen^, &> puzemos m
proa 5 & o botalò por goroupes, *, hiamo> para onde o
vento nos levava, de maneyra que niuytas /ezes era o
vento bom para virmos para terra, & a N áu tomava na
voltado mar r que corno não tinha leme, nem governo j
cndí va de lè para onde o vento a levava. Ifto tudo aconíeceo andando^mquarenta &: dous grãos, & vinda-nos
fem^efeguindoefta
derradeira Náo. E hünuoyte íen*
dücomeitana volta i o mui4, por fer grande o efcuro, ôc
a tormshta, amaynamos a bandola, pedindo à Virgem da
Coiiicyçaõíque permitiíTe a Náo tomaffe na volta da terra, ficando apartados da que nos feguia: E aífim focedeo,
porque amanhecemos na volta da terra, na qual fomos
muytos dias As Náos Olandezas pelo que agora foube^
Tnos nos foraõbufcar na volta do mar atè altura de quarenta & leis graos:là fe deve contar o eftado,em que chegáraõ a Zacotorá.
A nos, como tenho dito nos pareceo tinhamos mais
remedio apumndonos das Náos pelas coutmuas tormen-"
tas, & buracos que de novo fe abriaõ, & por a gente vir
toda defmayaia com os trabalhos, 8c além defte ? que digo acudiaõ a hum leme que no convés fe fez , o qual o
carpinteyro da viagem meteo em z^b^a ao Ct
q
em tal altura, & com taes tempos o
ia ae m e . ^ 3 fendo a ílim, que muytas vezes deyxaõ as ei .barcayjes de o
meter eftando em bahias, & rios com qualquer altc * çaõ
do tempo. O Capitaõ Pero de Moraes como naõ era muy
experimentado, fuppofto que valente,naõ quiztomar
parecer dos officiaes da N | - , ne. das peíToas, que nella
hiaõ de mais experiencia, & feguio o de hum vil ^ e r *
tinaz , naõ querendo uíar do remedio de efpadellas, que
Quetevea
NaoS.foào
Bápttfta.
%
foy fcmpre o o;je as Náos coftumáraô faltandolhe leme*
E por derrad syro ny^ca efte leme fe pode meter, andando quinze
a m a n d o pela p opa,aguardando, que tiveííemos alguma quietaçaõ para o poder meter; & que*
brandonos os viradores, com que eftava amarrado o perdemos hüa noyte , & tivemos, que fora mercê de Deos,}
porque nos quebrava a N i o com as continuas
r
que fempre eftava dando.
v-l .-•
Em quanto Çe^fto fazíc,-- ef^eravámos cada
« nói
foflfcmos aofundo^ &naõ tinfiamos^á mais efperanças,
que da falvaçaõdas almas. Os Reli giolos, que nefta Náo.
hiaõ, exhortavaõ as mais peíToas fizeffem penitencia de
feus peccados, fazendo prociíToês os mais dos dias>&:<
difciplina da qual fenão efcufava pequeno, nem grande,;
antes todos aíliftiaõ com muytas lagrimas. E tivemos t o dos neíias miferias, que fora caftigo de Deos apartaremfe as Náos inimigas de nòs; porque tínhamos por couía
nunca acontecida vir hüa Náo fem leme r nem vellas de
taõ longe em partes taõ tormentofas, a porto flfeüm; N o
que fe vio fer manifeftamente milagre da V irgem, comoacima digo.
'•
Depois que o leme defappareceo fe fízçraõ duás ef-pidellas rcsyto b^mie$(ías dos pedaços dos maffros, 6c
gJ/oopçs^."queCcár^»metidos n a N á o , & fe pòdeaífír-;
mar yqueí.naõho^vefemedioalgum humano, que fenão
ufaífe, que c^vo cada hum tratava de remediar a vida,
era o trabalho geral de todos. Feytas às efpadellas como
naõ tinhaõbandolas, nem paos de que as pude nem lazer,
naóhia a Náo defpedida. Depois deftes remedios todos
ficou a Náo aos mares toda desveyta, porque os inimigos
desiízeraó amayor parte dos caíHlos,ficando os prègos,
.& amadeyra em rachas,efeadeada, & cqmos grandes.
B
bala a-
$.Tratado do naufragto
balanços,que a Náo dava cahia a g e n t e ^ fe feria, &
por eftc refpeyto fe acabàraò de cc ' ar.
Acabando nefta confufaõ, & aperto, em vinte nove
de Setembro fomos amanhecer duas legoas da terra em
trinta & tres grãos, 6c hum terço, & foy tamanha a alegria em todos como fe fora a barra de Lisboa, naõ imagiiiandbc muyto caminho, que tínhamos para andar, Òc o*
trabalhos, que
aguardavaõ ao diante,
briga da
Ná^ nl morrerão i omc. ccxihecidoíf falvo }daõ d* Andrade Caminha, U joaõ de Lucena. Lopo de Soufa, que
Deos tenha no C e o , & o Capitaõ Vidanha aíliftiraõ no
€onvès, doncfepelejáraõ valerofamente, & ficou Lopo
de Soufa ferido com tres dedos menos do pè efquerdo, &
o pè quebrado todo, com hüa raxa em hum quadril,outra
na barriga, outra no roíto, &c duas na cabeça > & o Capitaõ Vidanha com duas raxas, hüa na cabeça, & outra na
barriga. Nocaftello de proa aífiftio Thomè Coelho Dal*
meyda, & da tolda do Capitã o aííiftio Rodrigo AíFonfo
de Mello; 3c eu nas peças do leme, aonde o inimigo mais
frequentava, porque todas as vezes,que vinha dar carga*
dava nas primcyras peças, tendo primeyro dado no goroupès por bayxo da v ^ n d a atirando ao leme. Não trato aqui do procedimento, que nefta tr o com}
Wv^
tivemos, nem o dano, que os Olanues. ^s i ~cetjjtac , porque efpero, que elles proprios fejaõ os p*egoey ros nefte
particular.
Aquelle dia não nos pudemos chegar a terra tanto
como oeíejavamos para nella furgir, fk defembarcar,mas
ao outro pela manhaã ,que foy dia deS. Teronymo amanhecemos mais abayxo, & mnis juntos a terra, o: " t o a
Náo naõ tinha governo, tememos, que defvairaífe indofeparaomar.E porque nos pareeeo hüa praya d€ area,
Que teve a Nao S.Joab Baptifta.
xj
& bom defembircadouro ( o que depois conhecemos não
fer afíim) furgimos em fete braças com duas ancoras.
Mandou logo o Cartão a Rodrigo AíFonfo de Mello
com quinze homés arcabuzeyros reconhecer a terra, &
tornar bom fitio donde fe defendeífe a defembarcaçaõ > o
que elle fez com muyto cuydado como fazia tudo, & nos
mandou agua doce , & hervas cheyrofas, com que nos
caufou notável alegria. E porque naõ fic;e cafojiotavci
acontecido nefta viagem A quero comar a Y. M. o fe*
guinte. "
Vinha nefta Náo hum homem por nome Manoel
Domingues Guardiaõ delia,ao qual o Capitaõ tinha pofto no lugar de Meftre por elle fer morto, Efte fe fez taõ
foberbo, mal eníinado, &: livre, que .havia poucas peffoas com quem nãoliouveíTe tido hiftòrias. E como tinha a mayor parte da gente do mar por fí, fe deíavergonhou de maneyra, que fe foy ao Capitaõ, & lhe diíTe: V .
M. pela manhaã ha fe de meter no batel com trinta home s, que para iífo tenho éfcolhido, & havemos de levar
com nofco toda a pedraria: & faltar em terra daqui a tres
legoas onde moftra a carta hum areal, ct havemos de atraveffar eífa Cafraria atè o cabo das Correntes, porque
í?jlim iijdo fó trinta peífoas efeoteyras com fuas armas
jpòderemos checar aonde digo, & tratar de ir com arrayal de mulheres , & mininos por terras, taõ fragofas, 2c
caminhos taõ longe, era fallar no ar.Perode Moraes lhe
a-eípondeo naõ havia de fizer tal, que naõ queria que o
caftigaíle Deos
q conta havia de dar ao mefmo Deos,
& aos homés em commeter tal crueldade , & que nab tallaffçt-iô livre. Elie refpondeo, que quer quizefíe, quer
Wt/quizeíTe o havia de tomarem braços
botar no bat e l DiíTxmulando o Capitaõ vfndo o danado intento que
Ba
eftc
tt
Tratado donàufragk
efte homem levava,& os muytos trabalhes ,laftimas, 6c
perdas que de taõ mao confelho haviaõ de refultar, fe
deliberou ao matar, &afíim o fez a,atando-o às facadas
o fegündo dia depois deeftar a Náo furta, f e n embargo,
que o Meftre andava já de fobre avifo, cuja morte foy
fentida de poucos,& feftejadade muytos.
r
*
Depois íè poz em terra o mantimento, & armas neCeifarias, aíndi, nue foy com muyto trabalho inorque era
a cofta brava r de a, meyra qu«* todas ar vezes, que o barei ^ .jLCi: Marcava ais u,a c^aía antes que chegaíTe havia
de furgir com hua fateyxa pela popa> & h'aVia5 de faltar
em w r a tendo maõ nelle, de modo que ficaíFe direyco
pofto ás onda« - em tanto que hua vez que não furgiraõ
pela popa , fe aioglraò dezoyto peífoas ao de&mbarcar
(de hüa fó batelada. Efte foy o refpeyto, porque depois fe
não tratou de fazer embarcaçaõ, porque he efta coita taã
tormentofa, que fe temeo, que depois de fey ta fe naõ podeífedeytar ao mar.
Aos tres de Outubro eftando nòs acabando de defc
embarcar as coufasneceífari is para a viagem da terra, &
fazendo noífas choupanas, aonde nos pudeffemos recolher dos grandes frios, que naquella paragem faz, o tempo , que aíli podíamos eftar, derac rebate ^s home s , quo
eftavaõ de vigia, que vinhaõ negros. Tomámos armas, &.
elles fe vieraõ chegando a nòs, dando as azagayas, que
traziaõ a feus filhos ,atè que ítcáraõ muyto pegados com
nofeo aíFentados em cocaras, tangendo as palmas, & affubianHo mnnfamentede modo que tocbs juntos íiiziaô
hum lom concertado, & rnuytas mulheres, qne com elles
vinhaõ fe puzeraõ a baiihar. ^ftes negros íaõ mais brancos, que mulatos, homens corpulentos , & fe disforn^a
com as unturas de almagra* carvaõ, & cinza, com que
'
' ordi- '
Que teve a Nao S.Jom Baptifta.
i -j
ordinariamente trazem o rofb pilhado, fendo aífim,que
faô bem afigixados. Trouxeraõ de Sagate efta primeyra
vez hum boy capado grande, & fermofo, & hum fole de
leyte, &; o R ey o aprefentou a Rodrigo AfFonfo de Mel«
lo, que enrau fervia de Capitaõ por Pero de Morae s eftar
ainda na Náo. As cortefias, que efte Rey fez ao Capitaõ, que digo, foraõ encayxarlhe a barba muy tas vezes*
E depois de nòs lhe darmos o retorno do °agafe, que fôraò hüs peuaços de arcos de ferro, & nuns bertangi«, f e
foy o Rey ao ooy, <3co manao^ abrit, eftando vi\
^elc
umbigo, & elle com a mòr parte dos que trazia meteraS
as mãos nó buxo do boy, que ainda eâavá vivo,& ber*?m*
do, & fe untáraõ todos com aquella bofe&r entendemos^
que todas eftas ceremonias faziaõ em f é 5 c final de amizade*, & depois cortáraõ o boy, & nolo entrteáraõ cm
quartos, tomando elles para fi o couro > &; as tripas, qu£
logo comerão alli mefmo pofta nas brazas.
Em hum mez, & feis dias , que alH eftivemos fe nao
pode entender nunca a e í l i gente palavra algüs, porque
o feu fallar naó xie como de gente, & par? qualquer coufa, que queriaõ dizerdavao eftralbs com a boca, hum no
principio, outro no meyo, & outro no cabo, de modo que
fe pôde dizer por eíles: que nem a terra he todahüniai
nem a gente quait quaíí,
Eiíando já entrincheyradòs em terra, fizemos hua
Igreja cubem com velas forrada toda por dentro de cobertores da China borlados de ouiro,& de outras muytaá
peças ricas, de modo que toda eftava cofída em
„ na
qual fe diziaõ tres MiíFás todos os dias, & nos confeífa?iios ,& comungamos todos Ordenou o Capitão Pero de
..v^iaes depois que os home. d j mar difTerãoquefenão
podia fazer embarcação,fe queymafíe a Náo por os CaC:
.I
B %
~
fres
X
14
Tratado do naufrapo
fres fcnao aproveitarem dos pregos,& nos ficar oreígate caro, & que a pedraria.toda,que na Náo vinha, fe me-,
teííe emhüaborçoletanos propriosbifalhos, em que os
homês, a quem fe entregou a traziaõ mutrados yôc tudó
iffo com papeis autênticos, dizendo, que pois o trabalho
de a vir defendendo era de todos, que também parecia
razaõ, que o galardão, & provey to , que difto fe tivwTe,
ibíTe de todos v cabendo lhe pro rata a cada hum conformeíeus procedimentos, alugar.
/ Ivc.^e tempo hiá mos 1 ígatando v aras, que comia-í
mos, poftò que não erão tantas quantas havíamos mifter>
& a* que nos pareciaó boas para trabalho as guardavamos em hum curral de eftacada, que para iíTo fizemos, acoftumando-as a andar com albardas ,que para iíTo fe fí->
ZGvto de alcatifas muyto bem feytas , que não faltarão
officiaesna companhia, que íoubeffem efte officio.Eu nefte tempo como cheguey a terra doente de gota, & mal dc
loanda,&vi o muyto caminho, que tinha para andar,
tratey de fazer fahidas, tomatfdo hua efpingarda a melhor defete que trazia, & me andava à caça, hora para a
banda do cabo >*e boa Efperança, hora para eftoutro do
cabo das Correntes, que .como fou filho de caçador, &
criado na caça, foy me iílo de gofto, & pro ,r eyto, porque
ao cabo de hum mez, & feis dias, que neíía terra eftive*
mos, fíquey taõ forte, & bem difpofto, que poíTo dizer,
que ninguém no arrayal vinha com melhor difpoíiçao
que eu.
feis de Novembro partimos áéfta terra de trinta & tres gràos em hum arrayal formado,em que hiaõ duzentas fetenta & nove peííW; repartidas em quadro efr
tancias, de que erão Capkr.es Rodrigo AíFonfo de
lo, Thomè Cpelho Dalmeyda, Antonio Godinho, & Se-;
baftiaõ
Que teve a Nao S. Joab Baptifta.
xj
foaftiaõ de Moraes, A companhia de Rodrigo AíFonfo de
Mello,& de Sebaftião de Moraes hia na dianteyra, o Capitaõ Pero de Moraes hia no meyo com a bagagê, & mu-í.
lheres,&- T> )mè Coelho,& Antonio Godinho vinhaõ na
retaguarda. Trazíamos comnofco dezafete boys carregados com mantimentos,& coufas para orefgate neceíTarias^Ôt quatro andores, em os quaes vinhaõ Lopo de Soa*
fa,Beatriz Alvrez mulher de Luis d* A r i:*ieca,D JJrfulá
mulher ,q"e fov de Dominga 0.fdofo de M e l l o , ^ . váy
de Dona Urfula. Elie dia foy de muyta chuva, & como
a ronfas naõ hião ainda bem concertadas, andaríamos
hüa legoa, & aíTentamonos á borda de hum rio dwagua
doce,& tivemos roim noyte por chover íVmpre.Eíla terra he toda cortada de rios de muy boa agua,& tem lenha*
mas falta de fruita, & de mantimentos, fendo afíim, que
parece tal, que dará tudo o que nella fe femear abundantemente. A gente que nella habita naõ fe fuftenta mais
que de marifco,& dehíias raizes como tubaras d* terra,
& da caça. Naõ conb^em í nenteyra algüa, nem outro
modo de mantimento 5 & aíí n andão bei \ difpoftos, &
valentes, & fazem coufas notáveis de forças y &Iigeyrezas, porque tomao a coifo hum touro, & o tem mão fendo
slles os mais mo jftruofos animaes de grandes, que fe
podem imaginar.
Ao outro dia lete de Novembro fomos fazendo noffo caminho fenpre pegado pela praya, & tendo andado
obrp de ires legoas, á tarde aíTentamos o arrayaí à borda dehumrioj&puzemos noíFas tendas em redondo,metendo de noytr as vacas no meyo, pondo noíTas poftas de
fo .ondas com muytocu\ dado, & vigilância , mas
não nos valeo iíTo para que os Cafres deyxaífem de roubar todas o s vacas , ainda que nao foy fnuyt° a feu falvo,
por-
tí
Tratado do naufrágio
porque como eftes G tfres fao grandes caçadores, trazem
cqníigo feus cães dc cs ca •> ôz como eílas vacas faõ criadas entre elles, & as vigiaõ dos tigres, &: leles,que nefta
coftaha', os quaes.caos quando os fentsm ?sdeípertao;
com feus ladrldos, & affim andaã fempre juntos, & mifturados com eilas, ainda que animaes brutos, conhecemfe, & fefaztm fe&a. E como as vacas fe hiaõ afaftando da
terra onde fe
-ao, de.con.tino davaõ berros como fau-i
doW.>Ícno.«.|íiar£v d\d/ayKdo os Cafres botar os. cães-,
dentro coin grades-aílobios, & gritas, as vacas como os
íentiraõ íaltái a5 por cima das tendas fugindo com
caca aètras.Fomos apoz ellas;brigando com os Cafres,aos;
quaes lhes matamos o íilho do Rey, & muylos de fua cõ*
panhia, & ellei> nos ferirão tres hòmês.
•
Eftediafoy para nòs muyto trifte, porque nos levá*
raõ as vacas em que trazia mos todo o mantimento, & el*
las per íi o eraò também.Trazíamos em noffa companhia
hum Cafre, que veyo ter com nofeo onde deíembarcamos, natural das Ilhas de Argoxa, ao qual fomente ,entendiao os noTos Cafres, < t vinha prelo, porque como:
nos tinha p^omettido vir enfínando os caminhos , & depois, o não fazer, foy neceffario trazelo afiim> Eíle nos;
diíFe, que dali a vinte dias de caminho
Cafre acharia-,
mos vacas, que vinhão a fer dous mêzes do nof&> caminho, & que tudo atè là era defertò, como depois achamos,
& ainda muy to mais do que elle nos affirmou. Fomos fazendo noíTo caminho em ordem, comendo cada b«im daqui ao qiie podia trazer ás coftasj alem das armas, & refgate,que com todos fe reparti o , de modo que vinha cada peflfoa muy carregada, k erão os orvalhos tartos,que
ordinariamente vínhamos molhados todos atè ò m^yo.
dia, que o Solos derretia, mis ifto era para nòs 'crabalho
Que teve a Nm S. JoaoBaptifla.
t?
%
íiiave a refpeyto das chuvas, que 'r ordinariamente nos
perfeguiaõ, & de outras miferias, & apertos mayores,em
que nos vimos ao diante> & em que muytos acabárao a
vida. •
•/.,; ,.
A vinte hum defte mez pouc o mais , ou menos, de*
çendo hüa ferra altiílima,chegamos a hum rio, que paíFamos em efpaço dedous dias, & foy o primeyro que pairamos com jangadas, ao qual puzemos rçpmédo Almifçre,
por o Capitaõ mandar dcy>**•• nelle rodo o que ^ B m panhia vinha por deícarregar os hoiúes« q< 0 traziaõ. E
^minhandodousdias por ferras altiíTimas de pedra, d^mos em huma pray a toda chea de pedra folta, & em hum
rio, quepaífamos com huma jangada, que fizemos * & da
outra banda delleachamoshuns Cafres caçadores, os
quaes nos venderão hüa pouca de carne de cavallo mariliho, que foy para nòs grande alento, & a efte rio puzemos nome,o dos Camarões por nelle nos venderem muytos. Dali fomos caminhando por hüa íerra acima atè voltarmos á praya de oedra íolta que nos euftava muy to tra»
balho o caminhar por ella.
Aqui aconteceo hüa coufa laflimofajôc nosmofírou
o tempo hüa grande crueldade,& foy, que vindo na companhia hüa moça^nha branca filha de hum velho Portuguez, que nos morreo na Náo, o qual era homem rico, £c
a levava para a meter Freyra em Portugal, indo caminhando em'hum andor enfraquecèraõ os que por partido dedous mil cruzados a levavaõ; & como ella alli não
tinha mais que hum irmaõ moçofinho, que pudeíTe manifeftar ao Capino a grande crueldade, que era deyxar
J-üa moça donzela,6c fermofa Cm hum deferto aos tigres,
& lecoá, fe naõ teve a compayxuo, que em^taõ notável
cafo fe devias ainda que o Capitaõ fez algumas diligenC v
cias
Tratado do naufvcgh
cias tomando o ando' h eoftas, fazendo-c aےm todas as
peíToas nobres ,que iiiaõ m companhia, por ver Ce com
eile exemplo o queriaó fazer algüas das outras, prometendo-lhes muyto mayor partido do que&ntes fe lhes
dava.Com tudo naõ houve alguém, que o quizeíTe fazer,
nem realmente podíamos pela muyta fome,que entaõ pa- •
deciamos. t ov ella atè o outro dia caminhando a pèenco*
#ada em dous no. \es, & como vinha muvto fraca o naã
po^l çvzer ícnaócommuv^ v *gar, fr afluo a trouxemos
atè que tilar-" pode mais dárpafíb, ik fe começou a
cr >evxar,& laílimai^pois era taòdefgraçada, & qn r«- 5
' jüs peccados, que aonde hia tanta gente, & fe le vava<*
quatro andoru, naô houveífe quem levaífe o feu por nenhum dinheyro, fendo aíílm que era o mais leve que hia
na companhia, por ella Ter muyto magra, & pequenina*
& outras palavras laftimofas ,cue dizia com muyto fen*
timento.Pedio ConfiffaÕ, & depois de afazer diíFe em
voz -litade modo que foy ouvida: Padre Frey Bernardo»
m fico muyto confolada, •; ie De os ha de haver mifericordia com.a üinha alma, que pois elk. íoy fervido, que
em taõ pequena idade padeceíTe tantas miíems,&: trabalhos, permitindo medeyxem em hum deferto aos tigres,
& leões fem haver quem dííTo tenha ompayxaõ>. ha de?
permittir, que feja tudo para minha falvaçao. E dizendo
eftas palavras iedeytou no chaò cobrmdo-fe cum huma
faya de tafeta preto, que trazia veftida, & d. quando em
quando indo paííando agente defcobria a cabeç?? , & dizia : Ah Portuguezes cruéis, que vos raõ compadeceis de
hüa moça donzella Portugueza conr "òs, & a deyxais
para fer mantimento de ^nimaesj noííb Senior vos le ve a
yoíTas cafas. Eu que v u.aa de tras de todos conioley ao
irmão, que com ellaficava>& lhe pedi andaífe por diante«,.
Que teve- a Nm S/foaõ Bapifta.
tp
te•, o que elle naõ queria fazera? ítes mandou dizer ao
Capitaõ, que queria ficar com fua irmaá, o qual me aviíou, que por nenhum cafo confentiíTe t a l , & que o trouxeífe comigo, como fiz vindo-o çonfolando> mas fua dor
foy de man^/rà, que dahi a poucos dias fe ficou também,
Ve/a Y.M. que coufa tanto para laíHmar, de mim fey dizer, que eftes,& outros efpecfcaculos femelhantes me dayap mayor pena,que as fomes, & trabalho^, que padecia.
Fazendo aífim noífo camir 10 tçus dias, vi jmoster
ahum riu, oqaai^ziahaa puiyade area, & neiltf
^..os algum marifco,que foy de nòs nr\y feftejàjo pelas
:a v eis fomes, que hiamos padecendo. Aqui efperarnos
hüa tarde que acaba (Te de vazar para podermos paíTcuv
mas a tardança foy mayor do que ciiydav-nos, & como a
gente vinha taõ faminta, puzeraõ-fe a comer todos híías
favas, que pela borda do rio fe achavaõ, as quaes nos puzeraõ á morte, & íe naõ fora a muy ta pedra vazar , que
trazíamos, não efcapara peífoa alguma. E com ifto fer affim, cada hora nos punha *ieíle mefmo perigo í* grande
fome, para re^Svio da qual comia todo genero de herva,Òc fruta, que achavamos & naõ era ua tia*;: o conhecer o mal, que nos faziaõ para dey xar de as comer.
N o meyo deííes apertos nos foy de grande proveyto
muy ta quantidade de fígueyras bravas que nefta terra achamor, com os t ilos das quaes, & com muyta ortiga fomos paííando miiytos dias. Nefte rio eftivemos dous dias
çfperando tornafíemos do grande accidente, que tivemos , u. partinclonos daqui nosvieraõ feguindo a reta*
guarda hüs poucos de Cafres, os quaes nos tinhaõ furtado dous calaeyi oes , & porque nòs lhe naõ demos o cafti*
go, cj: w íeu atrevimento merecia.vierao a fazer taõ pour
co cafo denòs ,que nos vinhaõ tirando com paos toíkC 2
àos%
no
Tratado do naufv agio
dos, mas pagaraò logo íua dema fiada oufadia, porque o
carpinteyro da viagem que mais perto fe achou, lhe tirou com a efpingarda, & quebrou os braços a hum , & 6
atraveíTou pelos pey tos. Os quaes vendo o iFiiyto danov
que hüa í o arma das noíTas ihes fazia, deyt* . ao a fugii*
& nos viemos fazendo noíTa viagem.
Forao apertando as fomes tanto com nofco,qne nos
obrigáraõa cogier immundicias , que o mar botava tora,
que eraõ alforrecási & m'ja vinagre, & era tal a neceíllda de, qüe quem tinha alguma coufa decomer a naõ dava, ainda que \ l\l; perecci Lüü; amigo, ou parente. È«t
em torlas eftas rieceífidades (feja Deos bemdito ) pafíuy
melhor, que>mi^y tos , porque me poíTo gavar, que trazia
a melhor efpingarda da companhia, & que era o que melhor tirava,& aíftm nunca me faltou caça»pouca,ou tiiuyt a , poílo que me cuftava muyto trabalho bufcala, <k achala, por efta terra fer muy deferta de aves, & ánimáes,
de maneyra que nunca houve occafi^õ, que pudeífe matar anknal grande: & do que .matava partia com quem
me parecia , Sc o demais efjondia-o quenâõ foubeíTem
parte dellc 5nazs que os matalotes, & tudo era neceííaria
pelos odiós, malquerenças, & perigos, que dahi podiafra
fucceder.
Caminhamos aííim mais algüs dias atè chegarmos á
hum rio, em que havia muytos caranguejos, & por chover infinita agua o não pudemos paíTar, & ao outro dia
pela manhaã aconteceo hum notável cafo, & foy: Que
nas terras atras tinha o dito ao Capitaõ Pero de Moraes,
que hum Sebaftiaõ de Moraes Capitaõ de hum a eflanck>
que fe dizia fer feu parente, tratava com a gente de que
era Capitão, de que a mn vor parte era5 mance bos Y;val aeaftumados, adiantarfe com ella,& tomamos, a pedraria,
apar-
Que teve a ISiãã S. Joao Bapufia.
11
apartando-íe de nòs, dando por rr z a õ , que queria6 andar mais depreífa. Ao que Pero de Moraes acudiologo,
& com muyto fegredo abrio a borfoleta, & tirou delia os
oy to bifa lhos 5 em que vinha refumida toda
os meteo
em Mim aircige, o qual entregou ao carpinteyro da viagem Vicente Eííeves, de que elle muyto c o n f i a v a d e n tro na borfoleta 5 em que a dita pedraria vir.ha 5 meteo
pedras, que podiaõ pefara quantidade ^ que delia tinha
tirado, & iitotudo fez com tanto fegredo
muyto
poucas peííoas ofiT&iaõ.E neiíe rio, em oue efra vamos,
por as fomes ferem notáveis, & andarmos todós esfaimaüinimos j aconteceo na tenda do carpinteyro, que tenho
dito, verem os íeus negros andar demain hüm alforge^
que feu amo naõ fiava de ninguém, & pareceolhes, que
feria arroz ,& ajuntando-fe com os do Capitaõ, determináraõabrilode noyte, comofizeraõ,, tirando-íhehum
dos ditos bifalhos, parecendolhes era cada hum hüa medida de arroz, porque affim o coftumavamos trazer repartido em atadozinhos de medida cada hum.Tirado f o ra o bifalho foraõ-no abrir aoAato, & vende que era pedraria, temendo, que os enforcaííem pelo finco jfugiraõ
Cornelia.
Pela manhaã vio o carpinteyro o alforge rafgadò*
foyfe logo ter com o Capitaõ* dando gritos, & dizendo,
que era roubada a pedraria. E como nelíà vinha noíTa
remedio, tomámos as armas, & fomos muyto depreffa à
tenda do Capitaõ Sebaíliaõ de Moraes, & vimos a borfòleta chea, & fechada com os cadeados, que dantes tinha,
& julgamos fer nid© por zombaria. O Capitaõ Pero de
Moraes muyto aga fiado nos conteu a hiUoria, que atras
tenho dito, dizendo-nos, que aílinaõ vinha pedraria &
moftrandonos aonde eftava, vimos o furto, ^iie fe tinha
€ 5.
£e.y~
%%
\Tratado do nau fragh
fey to, tk tendo por ct rto o que o carpinteyro lhe tinha
contado, fem mais vereficar confa algüa íl- foy à tenda de
Çebaftiaõ deMoraes>& o mandou prender,amarrandolhe
as mãos atras, &juntamente a quatro homês de íua companhia , a hum dos quaes deu cruéis - - tormentos eílando
cego da payxaõ, fen Jo aílim, que eftavaõ os pobres homês innoccntes do que lhe tinhaõ levantado.Efte fecha-»
Hiava Joaõ Curvalho , ao qual lhe deraô rijos tratos. O
pobrè homem chamava pela Virgem Maria da Concey' p õ lhe acudiíFe, a qual permituo, que"neíte mefmo tempo fe íoübe quem tinha furtado a pedraria , que íè fe n^o
ctefcobrira tão depreíTa tinha o Capitaõ ordenado á t os
mandar enforcar. Como feconheceo a innocencia cios
quatro homfe», os mandou foltar, ficando prefo o feu Capitaõ Sebafliaõ de Moraes.
E logo chamou o Capitaò os mais príncipaes homcsj
queaili vinhaõ, os quaes eraõ Rodrigo AfFonfo de Mel*
lo, o»Capitaõ Gregorio de Vidanha,Thomè Coelho Dal*
meyda / Vicente Lobo de Se^ueyra > Antonio Godinho,
& eu, & a cida hum de no; per fi fo nes moftrou hum libelío,.qp contra Sebaftiaó. ue Moraes tinha fey to , no
qual fe dizia, que era homem inquieto, & revoltofo, cabeça de rancho, amotinador,& que fe temia,que elle foffecaufa denoíTaxleftruiçaõ, &que fizelfc com os homens
tfefua parcialidade divifaõ, Stfe foíFe roubando-nos
geando o arrayal enfraquecido lem aquelles homens de
, armas, que eraõ da melhor gente, que havia, & com outras palavras criminofas defta.qualidade , dfocndonos,
que para quietação do arrayal era necefíario matar cfte
homem, pois de fúa vida podiaÕ refultár muytos trabalhos , & com fua morte ficavaõ evitados todos, pedindo
a eftas peffoas votaffem fobre a materia > as quaes votá-
Que tem a Nao & João Bupifla.
%J
raõ o que lhes pareceo, & chegando a eu haver de votar,
propondo-mè elle a caufa, lhe diífe, que eu naõ era Desembargador para fentencear a ninguém á morte>& ques
fe eile o queria mandar matar lhe armafíe outro cara milho. Elie nk refpondeoeftas palavras: Que direis àqüillo fe o eu tenho afrontado ? Caleyme, & elle fe foy á cabana de Lopo de Soufa a eommunicar o nego jio , ieytos huns papeis >o mandou degolar, fem a iffo lhe poder
valer ninguém, nem fe <5 ube jaufa bafíante para eftâ
morte deyxar de fer eílranhada , antes fe teve i grande
crueldade, mayormente em tempo ,que haviamesmifter
coihpanheyros,& fendo aquelle de boa dii"poíiçaõ5& ma"cebo.
Fomos fazendo noíTo caminho por cites defertos$
fubindu, & decendo cerras muyto fagofas, paíFandc*
muytos rios todos cheyos de cavallos marinhos, & notáveis animaes. Aqui matamos hum Cafre, que atras diffe
tinhamos achado onde defembarcamos, que dizia fer der
Angoxa. Efte nos promette^ pelo que lhe là demos de;
vir com noíco, & nos eníinar o caminho , St porque nos
quiz fugir por muytas vezes,, o trazíamos pi cio, & temendo nòs diffefíe aos Cafres algüs defcuydos, que em
nòs havia, & como as noíFas efpingardas naõ faziaõobra
pelo tempo de chuva, o que ellè ordinariamente vinha
perguntando aos noíFos negros, & via muytas vezes quererem-nas jpifparar , & o naõ poderem fazer por virem
molhadas, alem do que muytas vezes nos dizia hüa couíà, & depois outra em contrario, & por todas eftas caufas
ferefolveraõ a ^ t a l o .
Continuamos noíTa viagem atè quinze de Dezembro
pouco mais, ou menos, & chegamos a hum rio, aojade vínhamos já taõ mortos de fone que vendiam m arrayaí
os-
*4
Tratado do naufragio
qs Grumetes, & marinheyros a medida de arroz por cento & ciacoenta pardaos, & chegou a valer* cento & oytenta, & houve pefToas, que gaftaraõ nifta mais de quatro mil pardaos, das quaes foy huma Dona IXrfula para
feu fnftento, & de feus filhos, & outra Beatriz Alvrez. E
vínhamos muy triftes por nos ir faltando muy ta gente,&
laenhüa de doença por fer a terra fadia.
Aqui meaconteceo hüa hiíloria, que por fer a V.
M. tenho confiança para a coi itar, & porque também foy
nõtoria a todos. Antes que deceíTemos a efte rio encima
na ferra diííe o Capitaõ, que foíTe eu com quinze homes
arcabuzeyros obra de huma legoa por cima ver íè deícobria dgüa povoaçaõ, por q eraõ já limites donde o Cafre
lios tinha dito acharíamos vacas,& indo eu obra demeya
legoa na volta, que fazia o rio em huma vargea, vi efíar
hüa povoaçaõ de quinze cafas de palha, & por naõ caufar efpanto aos Cafres mandey feis homens foífem ver fe
havia algum modo de mantimento, que nos vendeíTem,ao
que elles fe efcufáraõ dizendo , que aquella povoaçaõ
moftrava ter muyta gente, a ficavamos longe para os
poder focorrer. Com o que eu enfadado depois de ter razões com elles, efcolhi os melhores quatro arcabuzeyros, que alü eftavaõ, que eraõ Joaõ ítibeyro, Cypriano
Dias, Franciícò Luis, & o defpeníèyro3& eu com elles, &
nos tomos pela ferra abayxo paífar hum valle,que entre
nos, & a povoaçaõ dos negros eftava, no qual havia hum
rio cheyo untaõ com a maré; paífamolo com a agua pelo
peícoco, &, chegamos á porta dacerc?*
pedimos-lhe
iiü$ vendeffetn algua couía de comer fa^ndo-lhe por a*
cenos, metendo a ma5 na boca* que por inadvertência, 5c
efquecimento naõ levamos l í n g u a , que lhes diíTeífe a que
hiamos,nema pedimos ao Capitaõ , porqoe eftes Cafresi
F
Que teve a Nao $$omMptifia.
21
jáentendiaõ aos noíTos ,que da índia traziamos. Elles
como nos viraÕ veftidos, & brancos pafmáraõ, & as mulheres, & mininosderaõ grandes gritos, chamando genté
da outra povoaçaõ, que eftava no mato.E os .maridos,què
comellas eílavaõ nos foraõ íeguindo,& atirando còpaos
toílados. Vendo eu o danò,que nos podia o fazer, mandey
a Joaò Ribeyro, que atirafle com ofeu arcabuz, o que
logo fez, & naõ tomando fogo dentro fe aífanháraõmais
os Cafres ,&tiveraõ por feyticeria o acencjerfe fogo. E
vifto o perigo, em que eftavamos pu«.& efpingarda no
rofto, & matey tres de hum fó tiro por atirar fempre com
hum pelouro, & tres feytos em dados. Caufáraõ eíks
mortes grande efpanto, & paráraõ os ostros com o furor, com que vinhaõ. Torney a carregar a efpingarda, &
viemos muy to de v a g a r q u a n d o chegamos ao braço do
rio, que a tras digo, o achámos quaíi vazio, & nelle hüa
gamboa com dous còvos muy to grandes cheyos de tainhas , os quaes abrimos , & nifto deceraõ os outros companheyros como ouvirão o e&ouro da efpingarda, & nos
carregamos defte peyxe, que em tal tempo foy hü grande foccorro 5 mas vínhamos temerofos do que nos tinha
fuccedido, a rt fpeyto do Capitaõnos haver encomendad o , que nos fofreffemos, & nos naõ defcompuzeífemos
com os Cafres, porque tinha para íi, que ficaria hüa guerra alevantada por toda a Cafraria, & feria caufa de noífa
deftruição, O que foy pelo contrario, porque daqui por
diante, & depois que foy forçado matálos em algüas partes , logo das meímas povoações nos vinhaõ pedir algua
çoufa para a rnuÜ^r, ou filho do morto.
. Chegando á prefença do Capitaõ lhe fiz hum fermoíb prefente de tainhas^que elJ j fefícjou muy to, & depois
deeftar contente com a vifta de coufa taõ defejada, &
D
para
$
.
Tratado do naufragto
paraeftimar cm meyo de tantas fomes , ! he contamos o
que nos fuccedera,o que elle fentio muyto, & naõ duvido, que fe defte cafo refultàra algum mal, que me cuílara caro, porque fe caftigava muy rigurofameme toda a
defordem. Neíle meímo dia como o Capitaõ chegou abayxo ao rio, vio-fehum Cafre , & tomando falia delle,
diffe que dali por diante havia vacas, & algumas fementeyras, & logo pedio a Rodrigo Aífonfo de Mello foífe
comvntehomês deícobrir o que havia» & o negro foy
com elie, & depois lhes diffe, que fe recolheífem, que era
tarde, & que ao outrodia viria, & os levaria aonde lhes
rinha dito o que logo fez Rodrigo AíFonfo, & fazendo
caminho peta povoaçao aonde tinhamos mortos os tres ne*
gros, os achou ainda por enterrar, & lhos moftráraõ com
muyto medo,& tremendo, do que Rodrigo Affonfo ficou
efpantado,porque naô fabia do que acontecèra,& lhe dif»
feraõ, que os mortos tiveraõ a culpa, porque começara©
a guerra prinieyro, & que )i o tinhaõ feyto faber ao fèu
Rey, & lhes deraõ do que duhaõem fua fementeyra,que
eraô aboboras de carneyro, & patecas verdes. Rodrigo
Aífonfo Jhes deu dous pedacinhos de cobre,que he a melhor veniaga deitas partes, & veyc-fe recolhendo.
Ao outrodia tornou avir orr^frrj Cafre,&foyRo*
drigo Affonfo com elie, & andou làhnm dia, & hüa noyt e , & caminhado mais avante encontrou o filho do Rey,
que os Cafres diztaõ, com cem Cafres de guerra bem armados todos com fuas zagayas de ferro em hum valle, os
quaes vinhaõ vifitar onoífo Capitaõ, & traziaô o mais
fermofoboy, que nunca vi,fem cornc , h fizeraõ Sagua*
tedelleao C a p i t a õ , a o outro dia nos troureraõ mah
quatro vacas, que nos venderão, di zendo, que fe quizeí«
femefperar mais oyto dias >nos trariaõ a "vender quan;
"
tas
Que teve a Nào S.foaõ
Bapti/la.
i?
tas qúizeíTemo?, & quando naõ que efperaíTemosatè ò
outro dia, que nos venderiaõ vinte vacas, o que fizemos,
mas elles naõ vieraõ. E porque nos hia enfraquecendo a
gente, principalmente os que traziaõ os andores, & fe acabava a comida , êc eftavamos quedos, êc também pelo
qup o Cafre nos tinha dito entendemos,que feria já a terra farta, determinamos de ir por diante, & ao outro dia
fomos dormir a bua alagoa, a qual naõ tinha raãs,do que
ficamos inuy to fentidos. As fomes eraõ já intoleráveis^c
fe comia já no arrayal todo o caõ, que fe podia matar, o
qual he muyto bom comer ( fallando fora de fomes) porque eu muytas vezes tinha vaca, & fe havia caõ gordo, a
deyxava pelo comer, & aílim o faziaõ muytas pefíoas.
Os homes que traziaõ os andores fe efeufavaõ já de os
trazer, por naõ poderem, & querendo o Capitaõ forçar
algüs a iffo , fugio nefta paragem hum marinheyro para
os Cafres, que fe chamava o Rezaõ.
Indo caminhando hüs poucos de dias chegamos a
hum rio, aonde da banda do Cabo num alto eftava huma
povoaçaó de pefeadores, & nos aíTentamos o arrayal da
outra banda. Elles nos troi xeraõ a vender hüa pouca de
niaíTa fey ta de hüas feme^ites mais miúdas que moftarda,
de hüas hervas, que npegaõ no fato * a qual fabia muyto
bem a quem delia podia alcançar algüa coufa. Aqui fe puzeraõ todos os homens , que traziaõ os andores em hum
corpo, dizendo, que fe nenhuma peífoa do arrayal podia
dar paliada com fome, & fícavaõ muytos mortos, que fariaõ elles, que naziaõ os andores às coílas , que bem os
podiaõ mandar aí,atar, quenaõ haviaõdepaffar dalli com
elles ainda que lhes deffem por iffo os thefouros do mundo, Sc que parece bailava haver mais de mez,& meyo,que
os traziaõ, fubindo, & deceudo ferras , que elles perdoaD 2
vaõ
%$
,Tratada'dó
mufr ágio
vaÕ tudo o que fe lhes tinha promettido pelo trabalho
^tras paífado, 6c ifto com grandes clamores
lagrimas»
Ao que acudiraõ os Religiofos, dizendo ao Capitaõ, que
ellenap podia forçar a ninguém a tomarem trabalhos
mortaes, & que já nos tinha fugido hum para os Cafres,&
que eftes pobres homês parecia já cada hum huma Semelhança da morte. O Capitaõ ajuntou a todos 3 & em voá
alta mandou lançar hum pregão, dizendo, que fe houveífe quatro homês, que por preço de oyto mil cruzados:
quizeflem levar Lopo de Souía ás coitas, & outro ít a
qualquer das mulheres > que nos ditos andores vinhaõ,
que logo os depoíitaria namaõ dé cada hum pro rataco*
mo lhe coubeíTe, ao qual pregaõ ninguém fahio.
Nefte lugar fuccederaõ por meus peccados as ma«*
yores crueldades, & os mais laftimofos efpe£taculos,quc
já mais aconteceraõ, nem fe podem imaginar, porque a
eftas mulheres, que vinhaõ nos andores fe lhes pergún*
tou fe nos podiaõ acompanhar parfeu pò, porque doutra
tnaneyranaõ podia fer > & a feu refpeyto tínhamos vin*3o taõ vagarofamerite, & c Cravamos mu y átrazados do
caminho, & era morta muyta gente fó de fome,Ôenaõ havia quem por preço algum os quizeffe trazer ás cofias, &
que por evitar males mayores, & por parecer de hu- Religiofo Theologo fe tinha ordenado de fe naõ efperar pos?
ninguém, quenaõ pudeíFe andar, porque nos hiamoscõfumindo, que as que tiveíTem faude para o poder fazek
fe deliberarem ate o outro dia, & as que haviaõ de ficar*
asdeyxariaõ em companhia de muytas pefíbas, que no
arrayal vinhaõ fracas, 5c doentes, na povoaçaõ ck pefcadoress que defronte de nòs eftava. Julgue V.M.agora,qu©
nova. podia efta fer para Breatiz Alvrez, que trazia alli
quatrofilhos*tres delles criadas , & para Dona Uifulâ„
- •
que
Que teve a NãóS.
Joab Baptifla,
tf-
que trazia tres filhinhos, o mais vdho de onze annos, &
íua mãy vèlha, que de força havia de ficar , fendo-lhe já
morto íeu marido, & feu pay, naõ tratando de Lopo de
Soufa fidalgo taõ honrado, & taõ valente, & como tal tinha brigado na Náo, de que ainda trazia as feridas abertas, & vinha doente de camaras, na qual dor ,6c fentimentome coube a mim mayor parte, por fermos ambos do
hüa criaçaõ em Lisboa, & fermos de hum tempo no ferviço da índia.
*
,r
Toda efta noy te fe paífou em puras lagrimas, 6c gemidos, defpedindo-fe os quehiaò dos que haviaõ de ficary
& foy a mais compaíliva coufa, que já maisfevio, que todas as vezes, que iíto me lembra naõ poffo ter aslagriinas. Ao outro dia pela manhaã fe foube, qüe ficava Breatiz Alvrez com dous filhos dos tres machos que tinha,
£chüa filha deidade de dous annos linda creatura, 6c o
filho mais pequeno lhe tomamos, ainda que contra fua
vontade,por naõ ficar alli hüa geraçaõ toda; 6c a mãy de
Dona Urfula Maria Colaça, & Lopo de Soufa, 6c tres, ou
quatro peffoas muyto fracas, que nos naõ podiaõ acompanhados quaes fe confeíTáraõ todos com grande dor, 6c
lagrimas, que realmente parecia huma coufa cruel naã
nos deyxarmos ficar com ellas,antes que vermos tal deípedida. Por hüa parte fe via Breatiz Alvres mulher delicada, 6c mimofa com hüa minina de dous annos no colla
de hüa Cafra, que com ella ficou, a qual naõ quiz nunca
largar, com hum filhinho de cinco annos, 6c outro de de*
zafete; o qual mofirou grandiífrmo animo , 6c amor, fazendo a maís honrada coufa quenaquelle efíado puderam
fazer peíFoa: algüa,&.foy, que.a mãy lhe diíTe por muytas
vezes, que elta ficava meya morta , porque o íeu mal an-íigo do ligado a tinha entrado muyto, que poucos haviaa
V,
D 3
' de
V**
$
.
Tratado do naufragto
de íer feus dias de vida, ainda que ficára entre regalos,&
que íeu pay hia com huma Nao daquellas,que brigara
com nofeo , & podia fer morto ,que era moço que nos acompanhaíTe, & todos os Religiofos apertárão com elle,
dando-lhe muy tas razões, dizendo-lhe, que naõ fó arrifcava o corpo, mas que também arrifeava a alma por ficar
em terra de infiéis, aonde lhe podiaõ entrar os feus máos
coftumes, & ceremonias. Ao que refpondeo com muy bõ
animo, me noífo Senhor haveria mifericordia de fua alma, & que atègóra os tivera por feus amigos, & agora os
ficava tendo em diíFerente conta, Seque razaõ podia elle
dar depois aos homês , deyxando fua mãy cm poder de
Cafres barbaros. Por outra parte fe via Dona Urfula
defpedir da mãy,que ficava: julgue V.M as laftimas,que
fe diriaõ hüa á outra, & as que nos caufariaõ. De Lopo
de Soufa fe foraõ todos defpedir
vendo elle, que eu o
não fazia, mandou, que foífe o andor,que o levava , &
paífaíTe pela tenda onde eu eftava , & me diífe efías palavras em voz alta, 6c com muy to animo: Eya fenhor Fracifco Vaz d'Almada não fois o amigo, com que me criey
iiaefcola,&naIndia andamosfempre juntos como me
não fallais agora ? Veja V.M. qual eu ficaria vendo hum
fidalgo, de quem era particular íervidor naqueHe eftado. Levanteyme, & abraceyo, diíTe-lhe: Confeífo a V.
M.de mim efta fraqueza, porque naõ tive animo para
ver a peíToa, que eu tanto amava em tal eftado; que me
perdoaífe, fe niífo o ofíendera. Elle, que atè então teve o
roíto enxuto não pode ter as lagrimas,òc diífe aos q o trajzião, que andaífem, &; querendo eu acompanhalo atè a
povoação dos Cafres donde elle havia de ficar, o não
quiz confentir, &: tapando com a mão os olhos me diífe;
Ficayvos embora amigo, & alembrayvos da minba alma,
levan-
Que tem a Nao S.Joaõ
Baptifta.
31
levandovos Deos a terra onde o pòíTais fazer. Confeífo,
que foy eüa a mayor dor, & fentimento , que nunca atè
pntaotive. O Capitão lhe deucoufasde refgate, como
erão muy tos pedaços de cobre^ & de latão, que hecoufa,
que aqui vai mais que tudo, & dous caldeyrões. Aqui ficarão dons homens cfcondidamente, que fe chamavão
Gafpar Fixa, & Pedro de Duenhas.
Partimonos muy lafÜmados fazendo noífo caminho
por íerras altas, & fomos albergar aquella noyte à borda
de hum rio, aonde achamos algus carangueginhus pequenos, que não foy pequeno bem paranòs
ao outro dia
continuamos o caminho, & aíFentamos o arrayal á noy t e
em hum rio frefco ^ao longo do qual por c l k acima havia tres, 011 quatro povoações *ás quaes mandamos faber
por hum Cafre lingua fe havia vacas, ou quem deífe razão delias, & nòs entretanto fomos esfaymados ahuma
ponte de pedra, que a praya fazia, ao mar i f c o , & cortar
figueyras bravas para comer. Vindo-nos recolhendo á
nóyte às tendas, que deyxamus armadas, muy contentes
por trazermos muy tas figueyras cortadas oara comermos, achamos por nova , que viera a lingua, & trouxera
dous negros comfigo,que dizíão, que lhe delTem dous homés, & hum pedaço de cobre, que elle os levaria aonde
houvefíè vacas,& que levaífem cobre, que elles as trarião
pela manhaa , o que o Capitão fez com muy ta alegria
mandado Fru&uofo d* Andrade, & Gafpar Dias,os quaes
levavão o que os Cafres pedião, & nòs ficamos muy alvoroçados efper ando nos trouxeífem muy to bom recado, porque delle dependia a vida de todos. Quiz Deos,
que ao outro dia às dez horas vierao os homens muy alegres , trazendonos hua vaca , & dando-nos por novas virão muy tas povoações toda, com vacas.. Logo fe mandou
ma-
$
.
Tratado do naufragto
matar a vaca, & partir , & fe comeo aífada, da qual coftumavamos naò deytar fora mais que a boíla groífa , porque a mais miúda, & as unhas , & o miolo dos cornos, ôc
couro tudo fe comia. E naõ fe efpante V. M. difta, porque quem comia todos os negros, & brancos, que morria õ3 mais fácil lhe ficava efte manjar.
Logo nos fomos em bufca das aldeas levando por
guias os Cafres, que com os dous Portuguezes, que trouxeraõ a vaca tinhaõ vindo, & não podendo chegar lâ aquelle dia poílo que andamos muyto, dormimos aquella
iioyte em hum valle ,que tinha feno mais alto que huma
lança, & ao outro dia pela manhaã levantamonos cedo,&
caminhando por hüa ladeyra acima terra bem aííombrada , encontramos alguns negros aos quaes perguntamos
pelas povoações, & nos diíferaõ , que fe caminharemos
bem, como o Sol empinaíTe chegaríamos lá. E como hiamos defejofos, & neceííitados , íuppoflo que fracos, nos
puzemos ao caminho fubindofempre, & chegamos á tarde acima de hüa ferra,da qual vimos a mais fermofa cou.
ía, que a vifta entaõ podia defejar, porque fe defcobriaõ
dali muytos valles todos coi tados de rios, & £ rras mais
pequenas,pelas quaes fe viaõ infinitas povoaçoens todas
cheas de vacas, & fementeyras, com a qual vifta decemos
á ferra muy contentes, & nos vinhaõ trazendo ao caminho vafos de leyte a vender, & vacas, as quaes lhe naõ
compramos alli, & lhes diíTemos, que paffando hum rio,
que aparecia do cume, em hüa ferra pequena, havíamos
de aíTentar o arrayal, & eílar tres, ou quatro dias, pelo
que falaíFem huns com outros, para que quem tivefíe âl*
g^macoufa de comer, &aquizefíe vender por aquelle
dinheyro, que eraõ pedaços de cobre, & lataõ, fe fotfem
ter com nofço. Paliando o rio chegamos ao Sol poílo á
para-
Que teve a Nüo S.Joaõ
Baptifta.
3 j
paragem que digo, & pondo noíTa? tendas em ôrdem^
mandou o Capitaõ a Antonio Borges » que tinha a feu
carrego comprar todas as coufas de comt r , conv quatro
homes de efpingarda de guarda a faixados do arrayal, para que os negros íe não mífturaííem com nofco (coftume,
que íempre nefta viagem fe guardou inviolavelmente.)
È para que V.M. fayba que vinhamos com boa ordem,
digo, que traziamos todo o refgate,& coufas com que fe
comprava de comer repartido entre nòs, trazendo o ho*
mem, que menos arma trazia, mayor quantidade,de maneyra que naõ havia peffoa nenhuma, que ficafle izenta
deites trabalhos. E todas as coufas por pequenas que foifem vinhaõ aílentadas emhü livro por receyta, asquaes
defpendiaefte Antonio Borges como feytor, & comprador, que era, & fe algüa outra peíToa queria comprar algüa coufa, era caftigado muy rigurofamente, ainda que
foíTe com coufa, que trouxeííe efêondida 5 & ifto fe fazia
por evitar a alteraçaõ do preço, que os muy tos compradores coftumaõ fazer. Efte homem dava conta ao Capitaõ com efcrivaõdo que defpendia , & iftofe guardou
em vida do Capitaõ, & depois de lhe eu fucceder atè o
fim, como ao diante fe dirá.
Ainda nefte dia fe refgatáraõ quatro vacas, entre as
quaes vinha hum grande touro, que o Capitaõ mepedio
mataífe á efpingarda, porque eftavaõ infinitos negros
juntos, para lhe moftrar a força, & poder das armas que
traziamos. E andando efte touro com as vacas comendo
entre ellas, para fazer mayor efpanto, lhes diíTe, que fe
afaftafíem todos, & que aquillo lho dizia, porq lhes naõ
fizeíTe mal aquella arma. Elles fazendo poucocafo, fe
üeyxáraõ ficar, & eu me fuy chegando ao touro obra de
trinta paffos, dando hum grito alevantou a cabeça, a
fia tr.
Que teve a Nao S.Joaõ
Bapiifta.
3 j
paragem que digo , & pondo nofias tendas em ordem,
mandou o Capitaõ a Antonio Borges , que tinha a feu
carrego comprar todas as coufas de comt r , com quatro
homês de efpingarda de guarda afafiados do arrayal, para que os negros fe não mifturaííem com nofco (coftume,
quefempre nefta viagem fe guardou inviolavelmente.)
E para que V. M. fayba que vinhamos com boa ordem,
digo, que traziamos todo o refgate,& coufas com que fe
comprava de comer repartido entre nòs, trazendo o ho*
mem, que menos arma trazia, mayor quantidade,de maneyra que naõ havia peffoa nenhuma, que íicaíTe izenta
deites trabalhos. E todas as coufas por pequenas que fof.
fem vinhaõ aííentadas em hü livro por receyta, as quaes
defpendia efte Antonio Borges como feytor, & comprador, que era, & fe algüa outra peíToa queria comprar algüa coufa, era caftigado muy rigurofamente, ainda que
foíTe com coufa, que trouxeíTe eícondida j & ifto fe fazia
por evitar a alteraçaõ do preço, que os muy tos compradores coftumaõ fazer. Efte homem dava conta ao Capitaõ com efcrivaõ do que defpendia , &: iíto fe guardou
em vida do Capitaõ, & depois de lhe eu fucceder atè o
fim, como ao diante fe dirá.
Ainda nefte dia fe refgatáraõ quatro vacas, entre as
quaes vinha hum grande touro, que o Capitaõ me pedio
mataíTe á efpingarda, porque eftavaõ infinitos negros
juntos, para lhe moftrar a força, & poder das armas que
traziamos. E andando efte touro com as vacas comendo
entre ellas, para fazer mayor efpanto, lhes diíTe, que fe
Íifaílaííem todos
que aquillo lho dizia, porq lhes naõ
fizeíTe mal aquella arma. Elles fazendo pouco cafo, fe
ileyxáraõ ficar, & eu me fuy chegando ao touro obra de
trinta paffos, ác dando hum grito alevantou a cabeça, a
/
E»
qual
.
U
f
'Lgfr
v..- ;; A
V
/
34
Tratado dònaufrágio
:
qual tinha bayxa pprandar comendo, lhe dey Com Á
pelouro na tefta caindo logo morto. E venao os Cafres o
eífeyto, que fez a efpingarda botáraõ a fugir, & depois
o Capitaõ os mandou chamar, os quaes vieraõ muy temerofos, & ficàraõ ainda muy to mais depois que viraõ ò
boy morto, & que metèra5 o dedo pelo buraco do pelouro 3 que na tefta tinha. Todas eftas quatro vacas fe íiiatá*
raõefte dia, & fe repartiraô igualmente por toda a gente
como femnre fe fazia por peííbas, que para iífo havia ff
paradas; & ao outro dia fe refgatáraõ dez ,ou doze, & ie
matáraõ outras quatro, cabendo a cada peífoa de quatro
vacas tres arrateis, a fora o couro, & tripas, porque tudo
fe repartia. Quiz aqui o Capitaõ dar efta fartura à gente para ver fe tornavamos a tomar forças, & difpoíiçaõ*
matando todos os dias, que aqui eftivemos quatro vacas.
Mas foy efta fartura caufa de nos daré camaras a refpeytode comermos a carne mea crua , & afiim ficamos com
pouca mais melhoria da que trouxemos, que realmente
nos caufava efpantò ver, que morriamos r>or naõ comer,
& que o muy to também nos matava. Aqui nos trouxeraõ
também a vender muy to Ir yte, & hüas frutas da cor, &
fabor de cerejas, mas mais compridas.
Efta foy a paragem, em que fe ^efgatou mayor quantidade de vacas juntas, que em toda a jornada, porque a~
lèm de treze, que fe matárao em quanto aqui eftivemos,
que foraõ íinco dias, levamos com nofco outras tantas,
no fim dos quaes nos fomos caminhando por huma ferra
alta, & muy comprida, aonde nos traziaõ muytos cabaços de leyte a vender, & das frutas, que tenho di to,& alojamos no meyo de hua ferra rodeada de povoações toda>
cheas de gado, & fementeyra, Sc hum rio pelo pè. Ao outro dia acudindo negros com vacaspara vender lhe com »
pra-
W f
Que teve a Na o S. Joaõ Báptifta.
3f
pramos dez 4 ,ou onze. A q u i aconteceo mandâr oCapitaõ enforcar hüa negra por furtar hüa pequena de carne*
que naõ pezariameyo arratel ( demafiada crueldade.) E
ao outro diâ acabamos de fubir aquella ferra, que era
muyto alta, em bufca de huma povoaçao, aonde vivia o
Rey de todo aquelle Concam, à qual chegamos à tarde,
& era a mayor que atè entaõ tinhamos viíto. O Rey. qua
era cego veyo vifítar áoCapitaõ, & lhe trouxe deSagua«?
te hum pouco de milho em hum cabaço,o qual, ainda que
velho era bem difpofto. E he coufa para notar, que fendo barbarosfemconhecimento da verdade ,faõ taõgraves,^ taõ refpeytados de feus vafíallos,que o não fey encarecer, elles os governão, & caftigão, de modo que os
tem quietos, & obedientes. Tem fuas leys,&: caftigão os
adultérios galantemente defta maneyra, íe hüa mulher
faz adultério a feu marido, & lho prova comteílemunhas, a manda matar, & ao adultero juntamente fe o podem apanhar ; com as mulheres do qual cafa o aggravado. Quando fe querem cafar, o Rey he o que faz o concerto, de maneyra que fenão pôde fazer cafamento fem
elle nomear a mulher. E tem por coftume, que os filhos
íendo de dez annos os botão para o mato, & fe veftem dc
humas folhas de arvore como palmeyra, da cintura para
bayxo, & fe untao com cinza ficando cayados, os qüaes
fe ajuntaõ todos, & não chegaõ a povoado, porque lá abs
matos lhes leva5 as mãys de comer. Eftes tem por ofiicio
bailarem nos cafamentos, & feftas, que elles coftumaõ
fizerj aos quaes pagaõ com vacas, & bezerros, & com ca*,
bras aonde as haï & depois que nefte oíficio a junta qualquer délies très,ou quatro cabeças de gado,& he de idade
cie dezoyto annos para cima, vay o pay, ou a mãy ao feu
Rey, & ihe diz que tem hum filho de idade conveniez
E 2
te,
Tratado do naufragio
t e , o qual tem por feu braço ganhado tantg s cabeças de
gado
o dito pay, ou mãy o quer ajudar , dando-lhe
mais algüa coufa, & lhe pede o queyra cafar. ElRey lhe
diz: Ide a tal parte, & dizey a fulano, que traga cá fua filha, & em vindo os concerta no dote, que o marido he obrigado dar ao fogro, & fempre o Rey neftes concertos
coftuma ficar com as mãos untadas. Iílo he o que íe ufa
atè Unhaca Manganheyra , que he o rio de Lourenço
Marquez.
Depois de o Capitão fer viíitado deite R e y , como
era mayor que todos os que atè então tínhamos vifto, determinoulhe dar de Saguate hüa grande peífa, a qual foy
hum caftiçal de latão pequeno com hum prego prefo na
fundo, com o qual ficava tangendo como campainha, &
muyto bem limpo, atado com hum cordão de retròz lho
lançou ao pefcoço, ao que o Rey fez grande feita, &os
feus ficarão efpantados de ver coufa tão excellente. Dali
fios fomos ao outro dia continuando noífo caminho atè
junto de hum rio o mayor que atè entaõ tínhamos vifto,
acima do qual dormimos,& ao outro dia caminhámos pel o meyo de ferras muyto altas, que por junto delleefta»
vão, com propoíitade ver fe lhe podíamos achar vaò, ou
parte em que foífe eftrey t o , &que correífe com menos
íuria para o podermos pafFar com jangada.
Levavamos em noíTa companhia vinte vacas,& fuppofto que matávamos cada dia hííá > & cabia acadapeffoa hum arratel, padecíamos grandiíTimas fomes. E por
fer o rio muyto largo caminhámos poi cima de hüa ferra
por caminhos muyto íngremes, & arrifeados por ficarem
caindo encima do rio dous dias atè chegarmos a hüa vargea, por cima da qual ficavaõ algüas aldeas ,em que determinávamos comprar vacas. Os negros fe embofeáraõ
Que teve a Nao S, Joaõ Bàpufta.
37
pela borda dc rio, aonde de força havíamos demandar
buícar agua, & nos furtáraõ dous caldeyrões, que para
ella ferviaõ, mas pagárão o atrevimento » porque dt pois
de lhe termos comprado duas vacas, vendo que não trazião mais a vender, & vindo hum negro com hüas canas
de milho para vender, asquaes cofíumavamos comprar
para comer ,por ferem doces, me mandou o Capitaõ lhe
atirafíe á efpingarda, o que logo fíz, pafFando-o pelos
peytos com hum pelouro, & aífim botou a
pela ferra acima. Aqui mandou o Capitão enforcar hum noífo
Cafre por nos fugir duas vezes.
Tendo caminhado mais dous dias pela ferra ao longo do rio, chegámos a húa parte onde nos pareceo mais
eftreyto rio. Aqui mandou o Capitão hü mulato feu,que
nadava muyto bem, a ver fe podia paíTar o rio, o qual fe
afogou logo em fe lançando, por fer grande corrente de
agua, & ir em redemoinho. Como vimos , que a água vinha com tanta força, determinámos de ir mais acima, &
ao outro dia fomos caminhando por hüas ferras bem affombradas,por ferem cheas dc povoações, & ao meyo dia
aífentamos o arrayal. E depois continuando noífo caminho com o propoíito, que tenho dito, paffamos por huma
povoação, que efta va em hum alto, & ao paíTar delia nos
trouxerão a vender muyta quantidade das frutas que atras diíTe, as quaes nos vendião por agulhetas de atacas.
Vindo dt trás da retaguarda dous grumetes fracos
eom fuas eípingardas ás coftas, como os virão taes,& que
vinhão afaftados de nòs lhes fahirão da povoação huns
poucos de negros, & lhes tomarão as efpingardas. Ao que
acudirão Thomè Coelho, & eu , & outros foldados ,que
na retaguarda vinhão, &: lhe entrámos a j ovoaçíio, matando todo genero de peíToa, que nella achámos, & toE %
mando
A
3?
:
Tratado do naufrágio
mando quatorze novilhos,que dentro efhvaõprefos, os
trouxemos com nofco, & viemos aíTentar o arrayal abayxo defta aldea, da outra banda de hum rioftnho pegado
com outras aldeas, fempre com muyta ordem , & vigilância. Ao outro dia pela manhaã nos mandáraõ dous negros velho?, a compor , & fazer amizades, ao que o Capitão fs moftrou muy to aggravado, dizendo , que vindo
elle feu caminho fem fazer mal a alguém o roubáraõ, &
que prorprr*' de vingar toda a injuria, que nifto fe lhe
tinha feyto. Elles deraõ fuas razões, dizendo, que lhe
matara mos muyta gente ; & em fim de razões, nos trouxeraõâs efpingardas, & nos pagáraõ de compoftção duas
vaquinhas, & pelas azagayas, que lhes tinhamos tomado nos deraõ outras duas , & nos lhes entregamos nove
bezerros dos quatorze, que lhes tinhamos tomado, porque os finco matámos aquella noyte, & deícendido a
m i m , & a meu matalote nos coube hum, de que partimos com os amigos. A' tarde nos trouxeraõ outras duáâ
vacas, & hum touro, que lhes comprámos i ôc por fer o
touro muyto bravo, mandou o Capitão o mataífem às catanadas, ao que fe defendeo elle de maneyrarque o não
puderaõ matar, antes elle deuhüa revolta teza ao Capitão, & a três, ou quatro peíToas, pelo que me pedio ornataíTeá efpingarda, o qual antes que eu o m e t t e me deü
hua grande eftropiada, lançandome a efpingarda por hi
àlem ; & alevantandome logo lhe atirey, 8c o paíTey pelas efpadoas caindo logo morto por hua ribaneyra abayaco, encima da qual me punha todas as veies que fe ofíeTeciaó íemelhantes occafioens, &feraalvitre para mim,
-porque por cada touro que matava á efpingarda , me davãohuma mão, que naquelle eftado não era pequeno
•bem*
- .•Dali
Que teve a Nao S. João Bápfijla.
39
;
- Dali fómòs á borda do rio y & nos puzemos junto a
e!3e encima de húa ferra , lugar forte , que efcolhemos
para eíperar aiè que vazaífe com menos fúria, o que nao
fez.por efpaço de vinte finco dias pouco mais, ou menos,
que fo.y os que gaitámos neile contorno, andando fempre
ao longo do rio; no qual tempo nos açonteçerap as çoufas
feguintes ; Dia de Natal pela manbaã mandou oCaplfaô
a Thomè Coelho Dalmeyda com vinte homens fubiffe
bua ierra muy alta, que fe eftendia fempre a© longo do
rio, & çaminhaffe finco, ou feis legoas pot ^ À vifta do
rio, & viííe fe por là podia haver aigüa paífagem. E de*
pois de andar por là dous dias, fe veyo, dizendo, que não
achava melhor paragem para fe poder paííar ,quealli
ondeeftavamos, que aguardaíTemos fe acabafíem as chuvas» & que logo o rio havia de correr com menos fúria,»
trazendopQUcaagua,&: a (fim o fizemos. Aqui mandou
o Capitão enforcar dous negrinhos hum de Thomè Coelho , & outro de Dona Urfula fó por furtarem huns peda^
cinhos de carne, fèndo aífim.,que o mais velho naõ chegava a doze anhos, dos quaes fe teve muy ta laftima, & fe
eítranhou rarita crueldade;
^
A eíte rio puzemos o nome dá fome, porque nelíe
padecemos as mpyores que tivemos em toda a viage m. È
por ver fe havia remedio para fe pafTar,prometteo o Capitão cem d azados á qualquer dás peíToas, qü0 o paíTafíe da outra banda, levando com figo hüà linha de pefcar
para poder paíTar outra mais grofTa,que pudeffe ter huma
jangada em que paftaíTemos como já tinham os feyto noutro rio atras, & como ninguém o fizeíTe, fe offereceo hum
meu negro por nome Agoílinho fem nenhum interéíTè vO
qual o fez com facilidade por fer grande r a d a d c r j jnas
depois de paííar a linha a qaebrou a grande correnteza
agua*
Trat adi do naufrágio
água, cm que claramen fe vio, que fe não poderia paf~
far como queríamos fei. > dahi a alguns dias i nos quaes
nos fomos entretendo, pondonos á vifta de hüas povoações por ver fe nos queriaõ vender algüas vacas,o que fizeraò mais por temor, que vontade por lhas irmos comprar dentro ás mefmas povoaçoens já defefperados para
que quando no las não quizeffem vender, lhas tomaremos por força.
Aqui indo eu a hüa povoaçaò em companhia de Antonio Gouinrio depois de termos comprado duas , ou ires
Vacas, vendo que não havia^mais que fazer me vim para
o arrayal, que à vifta de nòs eflava. E depois de ter andado hum pedaço virey para tras, & vendo que não vinhaõ
ainda os companheyros, me aíTentey á fua vifta, efperando, elles vieffem,ficandomenas coftas hum feno muy to
alto, por entre o qual veyo hum Cafre muy acachado, &
fe abraçou comigo por detrás, pegandome na efpingarda
com huma mão pelo couce, & outra na ponta, ficando eu
entre elle, & a efpingarda, andando hum grande efpaço
ás lutas comigo, E acordeyme , que trazia hüa faca , & a
Jirranquey chamando por nc Ha Senhora da Conceyção,
porque me vi fem alento nenhum, por ter o Cafré muyta força, & lhe fuy dando com a faca atè que me largou a
efpingarda , a qual meti logo no rofto, & indo para a difparar cahi no chaò de fraqueza, & lhe hao pude atirar, fe
não quando jáhla longe, & ainda aífim o tratey mal, ôc
depois lhe apanhey afuacapa depelles, que trazia embrulhada no braço, & a deyxou com a preíTa. Todos eftes Cafres ufaõ de capas, que lhe daõ por bayxo do quadril de pelles muy bem adobadas de animaes pequenos
de fermofo pelo, & íegundo a qualidade do Cafre fe veltemeom melhores pelles huns que outros, & nifto tem
muy-
Que teve a Nfa S. jfoaõ Baptifta.
41
íDuytoponto 5 & não trazem mais veftido, que eftas capas, Sc hüa pelle mais galante, com que cobrem as vergonhas , & eu vi a hum Cafre grave huma capa toda de
Marras Zebelinas,& perguntando-lhe onde havia aquelles animaes, diíTe, que pela terra dentro havia tanta
quantidade delies,que todos em geral fe veíliaõ de fuás
pelles. Também achey no cháo duas azagayas , & hum
páoíinho de groífura de hum dedo, & de dous palmos
meyo de comprido,forrado do meyo por diaritecom hum
rabo de búzio, o qual pàocoftümaõ trazer quahemtoda
a Cafraria atè o rio deLourenço Marquez, & não coflumaò fallar íem o trazerem, porque todas as fuas praticas
faõ apontando com eite páo na mão, a que c hamão fua
boca, & fazendo efgares, & meneos. Os companheyros
vinhão chegando, & vendo o que me acontecera apreffarão o paíTo cuydando íicára eu maltratado do fucceífo,
& nos viemos todos ao arrayal, o que eftava efperando
por nòs com muyto alvoroço pelas vacas, que eftavao
vendo lhes trazíamos.
E fiando nòs nefte mefmo pofta,dahi a dons dias chegou hum negro dos noífos, que tinha ficado na companhia de Lopo de Soufa, ao q u J fe foy o Capitão, & íem
ninguém lhe dizer nada,pegando nelle lhe diífe: O s cão,
quem matou os Pprtuguezes ? confeíTa-o íenão hey te dc
mandar enforcar logo; o negro ficou trefpaífado,& diífe,
que elie não era culpado em taes mortes , nem nenhum
dos noífos, que com elle ficáraõ. Pafmamos de o Ca pitão
fazer aquella pergunta f m faber nova alguma da dita
gente, & lhe perguntámos quem lhe diífera tal nova, ao
que refpondeo, que havia dous dias, que andava fc mpre
com a imaginação naquella gente } & quefempreo cora«
ção lhe diífera', que os negi os, que com elles ficarão os
F
tinhão
Tratado 4&. naufragfo
tinhao mortos, & por iffo fizera a tal pergunta. Diííe mais efte negro, qus os Cafres da terra matárão em huma
noyte a Gaípar Fixa , & a Pedro de Duenhas, & ao íbbrínho do contrameftre Manoel Alvrez, por lhes tomarem bum caldeyrão, 3c que os noíTos negros íeus companheyros ficàrão em outra povoaçaõ mais abayxo aparta*
dos dos portuguezes, E perguntando-lhe como £ cava
Lopo de Soufa, diife, que quando de lá partira havia
rres.dias vQueettava fem falia, & fem duvida morreria
noderra^e)^oqueovio, fcque Breatiz Alvrez mulher
de Luis d'Aftonfeca ficava muyto doente feyta lazara,
de maneyra que fe nãopoJia bolir , & as outras peííbas
muyto mortas de fome, que por não terem forças para
podetámandar ,nãqvierão c o m e l l e , & f e m duvida ferião todas mortas, QÇapitao o mandou olhar
àchando-lhe peífas de ouro, & diamantes , que conhecerão fer
dos Portuguezes, que là fícàraõ, mandou tiveflem tento
nelle, com fundamento de o mandar matar de noyte , o
que elle não aguardou, porque d abi a pouco efpaço vimos virdous moços de fua companhia, & como elle os
conheceffe temendo defcobr' (Tem a verdade fogio, & os
dous que digo em chegando for ao logo prezos»& dandolhe tratos confeíTárâo o feguinte, dizendo, que depois de
nos apartados de Lopo de Soufa, dahi a tres dias chegou
àquelle mefmo lugar hum Rey Cafre,o qual trazia quarenta vacas, & difle» que era o que atras tinha promettido vir com ellas ao Capitão, pelo qual perguntára j & di-.
zendo-lhecomo era partido , & que eí^ivera efperando
por elle, & como vira, que não viera no tempo *que promettenufe fora: Refpõdeo elle,que por caufa das enchentes de hüs rios não pudera vir mais cedo , & perguntou
fenos poderia ainda encontrar, ao qual diíferaõ, qne
naõ3
Que teve a Nào S.Joao Bapiifta.
43
mo,porhavermuytos dias que éramos partidos,mas que
aiii ficarão dous ranchos de gente íua,hum de Portuguczes,& outro de negros, & que tinhaõ dinheyro com que
lhes podiaõ comprar alguas vacas. Refpondeò, que folgava muy to, porque para iífo as trazia de taõ longe
logo os Portuguezes compráraõ tres vacas , & os negros
quatro, & pedirão ao Rey, que íe naõ foffe com as que
lhe ficavaõ, que depois daquellas comidas lhe comprariaõ mais. Ao que refpondeo, que por alli não haver boa
paftos dava hüa volta,& tornaria dalli a féis, ou fetc dia*
com ellas para lhes vender as que houveífemmifter.NeHe tempo foy o rancho dos Portuguezes comendo as quê
tinhaõ comprado, & faltandolhes fe foy Gafpar Fixa a*
bayxo a outra povoaçaõ aonde eílava o outro dos noffos
negros
que ainda tinhaõ duas vacas vivas, 5c lhes p o
diomatafTemhua daquellas vacas,& lhes emprefbffem
ametade, que logo em tornando os Cafres comprariaõ
com que fa tis fazer, o que elles fizeraõ logo corn facili^
dade, matando hüa delias, & dando-lhe o que pedia. Dahi a dous dias vieraõ os Caf es, & fe proverão todos de
vacas, Sc querendo os negros lhes pagaífem o que tinhaõ
empreitado, lho foraõ pedir em hum dia, em que os Portuguezes tinhaõ morto hüa vaquinha muyto pequena : &
rc fpondeo-Jhe Qafmr Fixa,que elles tinhaõ morto o que
viaõ, q por ier pequeno quinhão,a refpeyto do que elite
lhe tinhão dado, lho não da vão, mas que efperaffem
dous dias, que era o tempo em que elles a podiaõ comcr#
Sc que logo lhes dariaõ ametade da mayor que alli tiiihaõ: d i fie rã o os negros, que a mataffem logo, & lhes
pagaífem ; ao que Gafpar Fixa replicou, que entaõ lhes
ficaria a carne perdendo-fe, Sz vendo, que não fe aquietavão com eftas razões 3 agafíado com repofta taõ defaF 2
ver-
$ .
Tratado do naufragto
vergcmhada, & atrevida, deu hüa bofetada em hum negro Chingalà que era a cabeça dos outros chamando-lhe
ca5, & outros roins nomes,, &ellesfe foraõ. E fazendo
Gafpar Fixa, & os outros companheyros pouco cafo do a-»
contecido , eftando denoyte dormindo na fua povoação
vieraõ os noffos negros com algumas azagayas, que pelo
caminho tinhaõ tomado aos Cafres, que vínhamos matado áefpingàrda, & mandando hü diante pedir lume paraque lhe abriíFem a porta, a qual lhe abriraõ, naõ fe lembrando ao q^c lhes podia acontecer , & entrando todos
juntos matáraõ quantos na cafa de palha eíravão, tirando
Lopo de Soufa,que eftava no eftado, que tenho dito, &
os mortos faô os que já atras nomeey.Também deraõ por
novas que Breatiz Alvrez ficava no mefmo efrado,que o
outro tinha contado. Diíferaõ também mais eftes dous
negros, que ellcs íe não acháraó em tal obra, & que a cabeça deftas maldades era já morto, que o matara o negro,
que primeyro tinha chegado, o qual era já fugido.
Ficámos fentidiíTimos com tal nova, vendo, que fó
nos faltava levantarem-fe os noffos negros contra nòs,
& demos todos graças a Deoj, pedindo-lhe mífericordia.
O Capitaõ os mandou logo enforcar aquelle dia,os quaes
naõ chegáraõ a pela manhaa a eftama força , por caufa
das muytas fomes, que entaõ padecíamos , & foraõ comidos efeondidamente dos negros da noífo arrayal, & de
quem o naõ era também , o que fe dilíimulava, & f n a õ
fazia cafo diífo/E eu vi muytas vezes de noyte pelo arrayal muytas efpetadas de carne, que cheyravao excel»
lentiílimamente a carne de porco , de maneyra que alevantandome á vigia, me drífe Gregorio de Vidanha meu
cõpanheyro^que viífé que carne era aquella.que os noííos
moços eftavaõ afíando, que cheyrava muyto bem. Fuy
ver ?
Que teve a Náo S. Joab
Baftifta.
4 j
ver, & perguntando-o a hum dos moços, me refpondeoj
que ic queria comer, que era coufa excellente,& que punha muyta força, conhecendo eu que era carne humana me fuy, & diíllmuley com elles. Por aqui pôde V. 1VÍ.
ver, a que miferias foy Deos fervido , que chegaremos*
tudo por meus peccados*
Dahi a dous dias eftando nòs nefte mefmo lugar,
mandou o Capitão enforcar hum mancebo Portuguez
criado do contrameftre por o acharem refgatando coufas
de comer com hum pedaço de arco de ferro que tinha tomado do alforge do Sotapiloto, & também por ter fugido para os Cafres, fendo moço forte, & que podia fer de
utilidade á companhia, que realmente em meyo de tantas miferias nos acabavão de coníumir eftes exceíTos de
crueldades, fem embargo, quehe neceífario ufar delias
quem houver de governar homens do mar , mas não por
modo taõ demaílado. Efte pobre pedia o mandaíTem enterrar por naõ fer comido, mas não lhe valeo feu peditorio, porque, dando lugar ao poderem fazer os moífos, que
anda vã o muy to fracos, & mortos de fome, o mandou 0
Capitão lançar no mato , od quaes tiveraõ bom cuydado
de lhe darem a fepultura, que coftumavaõ dar aos ou*
tros,quemorriao,
Logo ao outro dia mandou o Capitaõ a tres peffoas
paíTaíTem ene deíaventurado rio, que tanto nos cuftou a
fua paflagem, &que andafíem da outra banda, vendo que
terra era, & fe havia vacas, & viíTem fe os negros tinhão
noticia de nòs, o que íkeraõcom muy to cuydado,& vindo dahi a dous dias muyto contentes pedirão alviçaras
ao Capitão, & perguntando elle a João Ribeyro que era
oprincipal, fe queria huma peça que valeííe trezentos
cruzados,, refpondeo, que não, que antes queria que lhe
F 3,
fizeí-
$
.
Tratado do naufragto
fizeíFe merce de lhe dar todos os coraçõt s das vacas , que
dahi por diante fe mataffem no arrayal, pa radie,& para
o calafate feu companheyro, o q o Capitão lhe concedeo.
V e j a V . M . q u a õ pouco feeftimava entaõtudo por preciofo que foífe, a refpeyto do comer. Depois q fe lhe fez eÜe
prometimento, difíe, q da outra banda do rio dahi a quatro lego as havia muytas povoações todas com muytas
vacas, &: que a gente delias parecia boa, que eftavnõ defejofos que míMemos para nos vender, m do feu gado,
& que lhe fizeraõ bom gafalhado.Eíla foy para nòs muyto grande nova por naõ termos atè entaõ fabido coufa al~
gua do que lá havia, Sc também porque guardavamos algüas vacas para levar para a outra banda para as irmos
comendo quando là as naõ houveífe, & com eftes temores fazíamos efta provifaõ, que nos cuftava muyto, porque por effa caufa comiamos muy to menos.
Com eftas novas fomos chegando ao rio, paíTando pela povoação aonde atraz diífe lhes mataramos muytas
peíToas, & achamos os -negros de todo aquelle Concam
portos em armas,que nos perfeguiaõ a retaguarda , indo
paíTando , com muytas azagayadas, & pedradas, mas
quiz Deos nos naõ fez mal nenhuma de quantas atiraraõ.
JNelle achamos a jangada, que fizemos a primeyra vez,
que alli efti vemos cuydando nos dêííe Inaar de o paíTar
a corrente das aguas, & como achámos eíte * >3t*elho nos
foy fácil a paíTagem,antes da qual tivemos huma fartura
por matarmos as vacas, que já diífe poupavamos para a
outra banda, fuppofto nos haverem promettido, que là as
havia. Pafíado o rio, em que puzemos dous dias, fomos
caminhando por huma ferra acima muy to Íngreme > que
julgáraõ fer de altura mais de tres legoas, porque começando de andar por ellas ás onze horas não chegamos ao
cume
Que teve a Nao h. Joao Baptijlã.
47
cume fenaõ á noyte fechada; aonde fícámôs jdecendo por
hum modo de valie, em que achamos agua, m as naõ f y
poíllvel fazeríe de comer, por fer já muy to tarde. E ao.
outro dia em amanhecendo caminhamos em bufca das
povoações, às quaes chegámos ao meyo dia. Os Cafres,
delias íe chegàraõ a nòs com tres touros muyto grandes,
velhos, porque eftes nos coftumavão vender tanto,
que não preftavaõ para fazer filhos, outras vaca* de£*
te teor 5 com tudo havíamos, que nos faziaõ muy ta mercê. E porque ainda lhes não tínhamos moftvado a eftes
negros o para que preftavão noíTas armas, me mandou o
Capitão tirar á efpingarda a hum dos touros, que lhes ti*
nhamos comprado , o que fiz, &: elles vendo-o morto fizera o os efpantos coftumados. Aqui efti vemos efta tarde comendo-o, & efperando nos trouxeíTem mais a vender
vendo que o naõ faziaõ, nos fomos caminhando
pela manhaã, & elles nos vierão feguindo a retaguarda
ao decer da ferra > na qual por fer muy to Íngreme, nos
puderaõfazer muytodano,de queDeosnos livrou.
Seguindo noífo caminho fomos por entre aldeas atè
o meyo dia, & jantámos por cima de hum rio, ao qual lugar nos troux rão a vender dous b o y s ^ hum delles por
fer bravo fe matou á efpingarda, de que jantámos. Fomos
dormir aquella noyte por cima de tres povoações, que fi~
cavãoem h\ .a laaeyra j & tomando falia da gente deite
nos differao, que dahi a quatro dias não havíamos de a~
char povoações, & que fe queríamos vacas , que cfperaffemox dous dias, aoquerefpondemos» queftaõ podíamos
efperaryque fe quizeíTem vendelas vieífem pela manhaã,
porq nos havíamos de partir logo em amanhecendo, como fizemos. E tendo andado hum pedaço da manhaã nos
fahirao ao encontro hüs poucos de Cafres bem aimados
$
.
Tratado do naufragto
de azagayas cuydando nos fizeílem algü aífalto, os quaes
nos venderão hüa vaca muyto brava, depois de cobrarem o porque a venderão, fugirão, &: a vaca fez o meímo.
Mas nòs lançámos maõ de hum dos Cafres, & amarrado
o trouxemos hum pouco com nofco para ver fe nos tra*
ziaõ a vaca, que nos havião levado, o que fizeraõ logo,
vindo juntamente hum Cafre muy to grande, defculpando o furto, que os feus Cafres nos pretendiaõ fazer.
Continuando noífa viagem por ferras menos montuofas afaftados da praya tres, ou quatro legoas, chegámos a hüa ribeyra muyto fermofa, tm a qual nos trouxeraõ a vender muy tas frutas do tamanho, & feyçaõde frutas novas,mas fem caroços, as quaes tinhamos já atras comido, mas alli em mais quantidade. Depois conhecendo^fe o grande mal, que eítas frutas continuamente nos faziaõ, trabalhou o Capitaõ muyto pelo evitar, mandando lançar pregões com penas rigurofas, o que nunca pode
fazer pelas grandes fomes que padecíamos. Aqui achámos hum Jáo da perdição de Nuno Velho Pereyra,o qual
era já muyto velho, & fallava mal, & com muytas lagri •
mas beijou os Crucifixos, qus trazíamos, & fazendo o final da Cruz. ConfeíTo a V.M. que foy para mim notável
alegria ver em terras tão remotas,& entre gente tão barbara hum homem, que conhecia a Deos, & os inítrumentos, & figuras da payxão de Chrifto. Eíte woy contou como Nuno Velho fe perdera em hüa praya abayxo,que ferá jornada de hum dia: & porque elle ficára muyto maltratado dos olhos, 5c com as pernas feridas, fe deyxára
logo alli ficar, Advertionos de muytas coufas, que com
os Cafres havíamos de ufar, dizendonos, que dahi a quatro dias de caminho acharíamos hum negro Malavar,que
também tinha efeapado da própria perdiçaõ,& dahi a no.ve,
Que teve a Nao S. Joao BàptiJla.
49
v c , ou dez acharíamos hum Cafre por nome Jorge também damefma, & que na própria povoaçaõ onde o Cafre vivia etfava hum Portuguez natural deSaó Gonçalo
de Amarantej que fe chamava Diogo, o qual tilava cafado, & com filhos.
E porque meu companheyro Gregorio de V.idanka
vinha já muyto canfado, determinou de fe ficar com eite Jáo por naõ acertar de lhe fer neceíTario fazelo em algum mato, & deferto, como atras teve feyto por muytas
vezes, o que foy para nos defentimento, & perda per fer
a peííoa, que atras tenho dito. O Rey defta comarca veyo ver o Capita5 muy authorizado, trazendo hü fermòíb carneyro de finco quartos para lhe comprarem, & peei io por elle mais do quecuftava hüa grande vaca.E vendo nòs o pouco,que nos remediávamos com hum carneyro a refpey to da vaca, que podíamos comprar, com o que
por elle pediaõ, diíTemos, que nos mandaíTem vir vacas,
que naõ queríamos carneyro, & aííim o fizeraõ trazendo
logo tres s & determinando de nos fazer algum engano^
& furto, nos venderão hüa raça, & como tiveraõ avalia
delia na maó, botáraÕ a fugir com a vaca. Mas nòs fizemos preza em hum delles, & querendo-o matar, diíTe o
Jâo o naõ fizeíTemos, que elle traria logo a váca, òi que
c i t e negros nos naõ conheciaõ, & por eííe refpey to fizeraõ iffe, o ic eiie vinha logo com e l l a , pedindonos fe
nao defeompuzeffeninguém, o que fez com prefíeza. E
vendo quam má gente e r a e í l a , nos fomos logo daqui,
•dcyxando Gregorio de Vidanha em cafado proprio Jào*
& Ííüíu marinheyro, que íe chamava Francifco Rodrigues Machado em fua companhia, aos quaes demos cou~
í ; as,que alli valiaõ, que elles logo efeonderaõ para comprarem algüa vaca de leyte, ou outra coufa, que os íuf1
G
ten-
Tratado do naufraga* v
íeritaíTe atè vir a novidade do milho, que entaó eftávú
verde».
PaíTáudo pelo rneyo defta povoaçaõnos viemos fazendo; noíTo çaminho, no. qual; ficou também Cypriano
Dias, & à noíTa vifta 9 roubarão. Depois todos os Cafres
defta povoaçaõ juntos nos vieraõ com grandes gritas
perfeguindo a retaguarda com muytas pedradas, & azagayadas. E vendo o dano,que nos podiaõ fazer por ferem
muytos me deyxey ficar com oyto companheyrus,& vin~
do-feelles chegando lhes tirey com a efpingarda, & caindo hum paráraõ todos fazendo roda, &: nos deyxáraõ
de perfeguir, cobrando tal medo docftauro da efpingarda, quemuytas vezes vindonos aíllm feguirido ihefahiaõ
dous homês com fundas, que para iíTo fizeraõ , & com o
eftrallo,queellas davaõfebotavaõ nochaõ. Defde aqui.
viemos caminhando por terras muyto faltas de mantimentos, atè que no cabo de quatro dias decendo hüa ferra dêmos em hüa povoaçaõ aonde a vanguarda, que che *
gou mais cedo gritou paífanc o a palavra, dizendo eftava
alli hum Canarim de Bradès,ao que apreífamos o paífo^êc
chegando todos , vimos que era o M alavar que o Jào atras nos tinha dito, o qual fe veyo a nòs com muytas moflras de alegria, dizendo: Venhais embora minha Chriftandade, & que ficaífemos alli, que elle nos negocearia o
que houveífemos rnifter, & que aquelles ' , íres jáfabiaõ
havia dous dias como vínhamos, & lhe tinhaò dito , que
comiamosgente,osqiíaeseftavaõ armados: mas depois
ao outro dia conhecendo fer tudo mentira , nos veyo ver
© Rey muyto anojado por haver pouco , que feu pay era
morto, ôz nos vendeo quatro vacas a rogo do Malávar, o
qual nos trouxe a moftrar fuas filhas, que eraò as maià
fermofas negras, que alli havia, & perguntando-lhe quã-
Que teve a Nao S. Jqoq Baptijla»
jr
tas mulheres tinha, diíTe que duas r das quais tinha vinte
filhos, doze machos, & oyto femeas. Perguntamos-lhc
porque fe naõ vinha com nofco pois era Chriftaõ, rei*
pondto, que como podia elle trazer vinte filhos comfi*
go, & que era cafado com hüa irmaã do Rey, & tinha ga*
dos de que vivia, que ainda que elle o quizeífe fa^er , a
naõ deyxariaó os parentes de íiias mulheres, nem a nos
nos vinha bem trazelios em noíTa companhia, pelo dano,
que dahi nos podia vir, que elle que era Chriftaõ, & que
Deos fe lembraria defua alma. Pedio-nos humas contas»
que logo lhe demos, & beyjandoa Cruz com lagrimas as
lançou ao pefcoço.
Aqui nos ficáraõ tres moças cafadas com tres Ca-*
fres noífos, as duas Cafras, & huma Jaoa. E ao outro dia
fazendo noíFo caminho nos veyo acompanhando o Malavar hum grande pedaço, & com muytos abraços, & moíh*asde fentimento nos diffeyque tínhamos muyto caminho para andar cheyo de ferras altiííimas, & fefoy embo?
ra. Os Cafres daquella povoaeaõ, que era grande nos
naõ fizerãomal nenhum, 3t por iífo lhe chamámos a terra dos amigos. Andámos mais tres dias , em efpaço dos
quaes achámos pouca gente, &: nenhuma povoação, no
fim deileshum dia à tarde vimos de longe andar hüs poucos de carneyros oaííando, & por fer já tarde não; pafTa*
mos dâli .rv > mandámos defcobrir o que ao diante havia
para pela manha a nos aproveytarmos do refgate, que vínhamos fazendo. E vindo as peífoas, que tinhaõ ido íaber
o que havia, diííeraõ, que por fer tarde naõ viraõ mais
que muytos fogos, & em varias partes berrar muyto ga*
do, & fendo manhaã, nos fubimos em hüa ferra, &vimos
muytas povoações em partes muyto fragofas, & defviadas do rumo, que hlamos feguindo j mas logo veyo a nos»
G z
hum
hum Cafre, & nos difTe, que para todas as partes tinhamos povoações, tirando donde vinhamos,& nos enculcoii
huas, que ficavaõ no caminho, que nòs havíamos de fazer. E vindo com nofco vimos em hüa ladeyra duas grandes povoações cheas de muytas vacas, & com alguns carneyros, & nos pareceo eíla gente mais pulida, & farta»
Aqui nos venderão hüa vaca, & depois íe queriaõ arrepender de o ter fey to , & conhecendo nòs iíio, lhe atirá*
raõ á efpingarda, o que elies fentiraõ, &: ao que a vendeo
Ihe deu muy ta pancada hum feu irmaõ mais velho,porque fenaõ aconfelhára com elles. Eftas duas povoações
tinhaõ fuas fementeyras de mi lho, & abobaras as quae&
nos venderão,8c nos fouberaõ muy to bem .
Depois de alli termos jantado fomos dormir por ei*
ma de huma povoaçaõ;, aonde nos venderão tres vacas,&
aquella foy a primeyra onde vimos hüa galinha, que nos
m õ quizeraõ vender JL. caminhando dous dias por entre
valles, donde havia muytas fementeyras de milho, que
siaõ eftava ainda para fe poder comer, nos vieraõ vender
ao caminho algüas galinhas;; & chegando a hüa aldea, aonde nos diíFeraõ eílava o íeu Anguofe., que aílim chamaõ ao Rey naquellas partes ,.refgatàmos nella algumas
galinhas, quebaítáraõ para dar a cada duas peíFoas hüa:
Aqui nos deyxàmos eftar aquelle diaefperando nos trouxeífem vacas,porque tínhamos já muy ta
tfidade delias, &: em fim nos venderão hum pouco de milho velho,
& leyte, & duas vacas. E ao outro dia nos fomos decendo
a hum rio, ao qual puzemos nome das formigas, por nelle haver tantas, & tão grandes, que nos naõ podíamos valer com ellas^no qual eííi vemos dous dias, & aoterceyro
o paliámos em hüa jangada,.que fizemos.
Ao primeyra dia de Fevereyro de 623. começámos
.
a CSf
Que tem a Nao S. João Búptifta.
53
a caminhar da outra banda deite rio por hüa ferra altííllmacom immenfa chuva, que nos durou niuytos dias, 5c
naquelle mefmo nos fomos alojar ainda de dia emhuma
ladeyra pegado a hüas povoações,em que naõ havia maisT
que algüas abobaras, 5c poucas galinhas, de que refgatamosalgüa parte. Aqui nos deraõ por novas, que adiante
pouco efpaço achariamos muyta fartura, o qué feftejámos muyto por irmos fem coufa alguma de comer, 5c f e
nos faltára mais dous dias, acaba ramos todos de fome fe
Deos nos naõ focorrera, porque aqui nos ficâraõhumarinheyro, que chamavão Motta, 5c hum Italiano por nome Jofeph PedemaíFole, Sc hum paífageyro, que era manco, 5c o filho de Dona Úrfula, que foy coufa laítimofa, o
qual fe chamava Chriíto vão de Mello, & feria de onze
annos bem enfínado, 5c entendido, que vinha já taõ mirrado, que naõ parecia fenaõ a figura da morte, fendo-a
elle de hum Anjo antes deftes trabalhos .Como viraõ,que
©íte minino nos não podia acompanharT fizeraõ iramay
diante, 5c elle ficou atras como coítumavapor naõ poder
andar tanto,5c como vio, que nos não podia acompanhar,
diífe, que fe queria confeííar, o que f e z , & depois pedia
ao Capitaõ pelas chagas de Chrifto lhe mandafíe chamar
f ua mãy,que fe queria defpedir delia , ao que o Capitaõt
diífe, que naõ podia fer porque hia longe, & o m inino fe*
queyxava- « V e n d o : Rafta fenhor que me nega V.M. etta confolacaõ ? Elle dizendo-lhe palavras de amor o foy
trazendo pela níaõ até que naõ pode andar mais, 5c ficou
como pafmado,& nos nos fomos todos chorando,5c heda
crer, que fe a mãy o vira, arrebentara com tam grande:
dor , 5c por eííe refpeyío lhe tolheo o Capitaõ, que não
viííeamãy.
à dous dias de Fevereyro dia de noffa Senhora das
L
G 3
Cara*
$
.
Tratado do naufragto
Candeas, caminhando deílie pela manhaã fomos jantar a
humferm >f) bofque, ao qual atraveflava hum rego de
agua. Aqui nos trouxeraõ a vender fete cabras, com as
qúaes nos fomos por ver fe podiamos chegar a humas aldeãs onde nos diííeraõ havia muyto mantimento, & como a chuva era muyto grande, não nos deu lugar para
andarmos tanto,& fomos dormir aonde nos eftavaõ esperando hüs poucos de Cafres com balayos cheyos de milho , que depois de refgatado fe repartio por todos ., &
coube a cada peífoa hum copo de milho,& das feis cabras,
que também fe matárão, coube a cada hum feu pedacinho, & o que levou a pelle ficou de melhor partido.
Ao outro dia chegámos ás povoaçoens da deieiada
fartura, aonde logo nos vierac vender muytas cabra*
vacas, & bolos taõ grandes como queyjos deFramengos,
& tanto milho, que depois o não podemos levar todo. Aqui mandou o Capitaõ matar dezoyto cabras, & hüa vaca, &nos couberaõ feis arrateisa cada hum. Também
acodiraõ tantas galinhas, que deraõ huma a cada peífoa,
& foy tanto o comer, que houvéramos de morrer todos
fe nos naÕ dera em camaras. Ao outro dia nos veyo viíitar o Manamuze daquelles lugares
trouxe hum touro
muyto grande de faguate, o qual me mandou oCapitaó
mataífe à efpingarda, para que a ouvi (Tem , porque trazia muyta gente comfigo, & porque tam^ w viffem as
armas, que traziamos; & como viraõ cair o touro morto
atirando-lhe de muyto longe, botou o Rey a fugir de maneyra que foy neceffario mandarlhe dizer, que aquillo
fe fazia por fefta de noselle ter vindo ver, que tornaífe,
íenaõqüe o Capitaõ havia de ir bufcallô. Ouvindo eftas
razões tornou a vir, mas tal, que de negro que era fe tornou branco. O Capitaõ lhe botou ao pefcoço hüa fechadura
Que teve a Nw S.Joaõ Baptifia.
jj
dura de hum efcritorio dourada , & lhe deu hüa aza de
hum caldeyraõ, & foraõ efías peíTas delle bem eftimadas j
&: com boas palavras, &: moítras de agradecimento fe foy,
& nos ficamos repartindo o milho, & bolos, que tinhamos refgatado, que eraõdous grandes montes. E depois
de tomarmos quanto cada hum podia levar, nos fomos»
deyxando ainda algum por fe naõ poder levar mais , &
caminhámos por cima de ferras,pelas ladeyras,das quaes
havia tantas, & tão fermofas povoações, que era huma
fermofura de ver a muy ta quantidade de gado, que delias fahia j & traziaõ-nos ao caminho muyto leyte a vender , o qual era todo azedo por os Cafres o naõ comerem
de^utro modo.
Ào meyo dia fomos affentar o arrayal em hum fref*
co rio, que eftava em hum valle, no qual acodiraõ muitos Cafres, & todos traziaõ que nos vender,da outra banida do qual fizemos o refgate na forma, que coílumavamos apartado das tendas com gente dé guarda, & aqui fe
fez com mais fegurança por acodirem mais Cafres do
que nunca tinhamos vifto, & foy tanta a quántidade deiles , que fe íobiaõ muy tos por cima das arvores fó para
nos verem , principalmente em cima de três , a cujos pès
fe fazia o refgate por ficarmos amparados do Sol, que fa^
zia, que naõ fey como naõ quebràraõ com taõ grande pézo; & por r f*o, que fe podia fazer hum paynel daquela
le iitio, òc concurfo de gente. Aqui eíli vemos atè a tarde , & depois regaílàmos quinze vacas, fk muytos bolos,
com que todos ficámos mais carregados , &: aqui nos fU
cou hu na moça de Breatiz Alvez, & outras quatro peft
foas de empachadas com o muyto comer., das quacs tres
nos tornàraõ acompanhar. E fazendo noífo caminho fomos dormir em huma queymada, ao pèda qual corria h*
iega
$
.
Tratado do naufragto
rego de boa agua, que bailou para nos matar a fede, &
ao outro dia à tarde aífentàmos à vifta de duas povoações , que eflavaõ emhuma ladeyra ,jk os negros delias
nos trouxeraõ a mofirar todas as vacas que neli as havia,
& não nos querendo vender nenhuma, fe nos deu pouco
diífo, porque trazíamos alguas vinte com nofeo. Caminhando outro dia fomos paíTar a calma em huma riheyra, que eítava em huma vargeafínha cuberta de arvores,
debayxo das quaes eíti vemos.
Aqui veyo ter o Cafre, que o Jào nos tinha dito, &
fallando Portuguez nosdiííe: Beyjoas*mãos devoífas
mercês, eu também fou Portuguez > & nos contou como
em huma povoação, que eílava diante por onde havíamos
de paflfar eílava hum Portuguez, que fe chamava Diogo,
& era natural de Saõ Gonçalo de Amarante. Ao que diffe o Capitaõ fe queria vir comjiofco , & elle refpondeo,
que o não haviaõ de deyxar ir os Cafres, porque lhes dava chuva quando faltava, & que era jà velho, & tinha filhos i & rindo-nos do que lhe ouviamos nos diífe , que
elle nos moftraria a fua cafa. Alli refgatamos muytas
galinhas, & bolos, leyte, ôc manteyga crua, & algumas
canas de aífucar. Eíle Cafre nos pedío hum panomantas,
que logo lhe deraõ, & elle ficando contente diífe em voz
alta para onde eftavaõ muytos Cafres com fuas molheres na fua Üngoa: Cafres moradores deít-* T irra trazey
a vender aos Portuguezes, que agora aqui eítaõ, & que
íãõ fenhores do mundo, & do mar , todas as coufas que
tiverdes de comer, nomeando-as por feus nomes, aproveytayvos dos thefouros, que trazem comfigo , olhay
que vem comendo em coufa, que vòs outros trazeis por
joyas nas orelhas, & nos braços, chamando-lhes beftas
pois nao acodiaõ todos depreífa com o que tinhão. De-
Que teve a Nao S.foaõ Baftifta.
j7
pois de termos feyto o refgate > & comido , nos fomos
pondo em ordem para marchar, & antes que o fizeíTemos
nos furtou hum Cafre hü tachofinho, mas nòs pegámos
logo doutro, ao qual deu Thomè Coelho huma cutilada
pela cabeça,
o prendemos, & indo nòs andando nos
mandáraõ o que nos tinha tomado, & logo feguimos noffo caminho , largando o que tínhamos preío , fubindo
hüa ferra, decima da qual fe defcobriaõ muytas aldeas,
entre as quaes eftava hua muyto grande, a qual nos mofe
trou o Cafre, que atraz digo, & nos diíTe : Aquella C i dade he do Portuguez. E indo-nos chegando mais à dita
povoação, na qual vimos huma cafa de quatro aguas de
palha, coufa que não tínhamos vifto em todo tffte cami*
nho, porque as outras todas eraõ mais pequenas, &re«
dondas, infiíHmos com o Cafre o M e chamar, o qual
nos diíTe, que nos não cançafíemos , que naõ havia de
vir,
Fizemos daqui noffo caminho, & com muyta chuva fomos dormir em hum alto, & nefta noy te fe foy o Cafre , que atè entaõ nos tinha acompanhado; & como jà fabia o como vínhamos, voltai aquella mefma noyte por
entre hum mato, que nos ficava nas coílas do arrayal, &
levantando a ponta de huma tenda aonde elle vira guardar hum arcabuz, o apanhou , <k fez iílo com tanta futileza ,que ni ^uem o fentio eftando todos acordados por
caufa da enuva, que havia dous dias naõ ceifava tendonos molhado quanto trazíamos, & pela manhaã achanr
do-íe menos o arcabuz logo entendemos quem o levara.
Querendo nos ir por diante, no lo naõ confentio a continua chuva, &: nos deyxamos ficar mais hum dia, no qual
nos trouxeraõ a refgatar alguns bolos, & cabras, & hum
fennofo touro. E vendo, que fe naõ acabava a chuva, anH
tes
fS
.
Tratada do naufvagk \
v
tes parecia vinha cada vez com mais faria, Caminhámos
o dia feguiute até a tarde, que chegámos a hum rio grand e , junto do qual nos alojamos em parte alta 3 de maney- .
ra que nos ficava perto a lenha,. & a agua, & para nos enxugarmos fizemos grandes fogueyras, que duràraõ toda
a noyte
pondo as vigias cofiumadas no quarto da pri»
ma rendido fendo doze de Fevereyro nos deraõ os Ca«
fres hum aífàlto, tomando-nos por tres partes.. Ao que
acodio toda agente, tomando as efpingardas as quaes eftavão muyto molhadas por haver tres dias, que continuamente chovia, & vendo, que naõ podiaõ fazer obra
com ellas, gritey as meceífem aílim no fogo, como eílava5 para fe defcarregarem da polvora que tiiilião dentro , o que fizera5 todosj & em quanto ifto tardou nos ti«
veraòquafí defalojados donde eftavamos comnotaveis
alaridos, & aíiubios, que parecia o inferno rios mataraò Manoel Alvrez, & hum bombardeyro > que fo chamava fulano Carvalho,os quaes morrerão logo , & nos fe riraõ feíFenta peífoas muy to mal, dos quaes morreo Antonio Borges ao outro dia. Como tivemos as efpingardas
quentes, fomos matando ne" les , & o primeyro que ifto
fez foy hum marinheyro, que fè chamava Manoel Gonçalves , & ifto fe conheceo por atirar a primeyra efpingardada. E como os Cafres, viraò o muytodano, que 1 hes
fazíamos, fugirão , dos quaes ficou grande rafto de fangue, & quiz a Virgem Maria da Conceyçao, que d eyxou
de chover cm quanto pelejamos, que foy efpaço grande,
&z aclarou o luar de maneyra, que foy grande parte para
nosnãodcítruirem.
Todo oreftodaquclla noyte eftivemos poftos em
vigia > & íubimos mais acima o arrayal a parte mais fort e , & ficámos taõ mal tratados, que pouco baftàra para
• ••
nos
i
j
;
j
j|
I
L
];
;
f
j
!
i
1
v
Que tnea Nao S.fóàtB&ptiJla*
fp
lios acabar a todos. Eftes Cafres pelejaõcom melhor moei o do que os outros atraz, porque uíaõ de bumas rodeias à maneyra de adargas de couro de bufaras do mato,
as quaes faõ fortes, & cobrindorfe com ellas atiraõ infinitas azagayas, de que ficou cuberto o arrayal, Sc £òy
tanta a quantidade, que fe acharaõ ao outro dia ,que16
de ferro foraõ quinhentas & trinta, a fora muytaã, que
arrancando-lhe os ferros os efeonderaô para refgatareiti
comelles; as de pào toftado forão tantas, qtie fe naõ poderão contar, & faziaõ tanto dano como as outras. Logo pela manhaã nos entríncheyramos, & íe puzeraõem
cura os fe ridos, que foraõ tantos, que ninguém efcapod
que o naõ foífe, ou de azagayà , ou de pedradas, & fizeraõ-fe as mayore^curas, que eu nunca v i , porque havia
muytos atraVeíTados pelos pey tos de banda a banda, &
pelas coxas, & cabeças quebradas , & nenhu delles morreo, Sc fó com tutanos de vacas eraõ curados. Ao CapitaÕ
Pero de Moraes paífáraõhum braço pelo fangradouro.
Aqui eftivemos dous dias ^ em os quaes fez otarpin»
feyro Vicente Efteves hüajanganda a modo de batel, na
qual remavaõ quatro remus. E nefte tempo os próprios
<]ue nos roubáraõ nos vieraõ vender galinhas, & bolos,
& pombe , que hc hum vinho, que fazem de milho, &
nòs diílimülando com elles fazendo que os naõ conhecíamos,, l ^ ^ompravamos o que havíamos miíler. Da
outra banda do rio nos vieraõ também vender o meímo*
pafiando o rio em huns pàos, & emeima de hüas forquilhas , queficavaÕda agua mais altas, aonde traziaõ dependurada a mercadoria. Eftes nos perguntàraõ porque
razaõ lhes matamos tanta gente, & contando-lhes nòs o
que nos tinha acontecido»difíeraõ, que nos paífaíTemos
para a outra banda, porque naquella havia ma gente
H %
que
6,®
\v
jatado
do nàüfragto
.que elles nos enfinàriaõ por onde fe paffava o rio dahi a
tres dias, que eraõ mayores as aguas> & ficava menos a gua j & nos antes diíTo paíTamos na jangada duas peíFoas,
& depois indo nella Rodrigo Affonfo , Antonio Godinho , & o Padre Frey Bento da Ordem de Saõ Francifco*
& outras peííoas, fe virou antes de chegar la, & eftivsraõ
quaíi a f g a d o s , & o Padre largou o habito, que levava
defpido y no qual fe perdeo muy ta pedraria, que era de
jdepofito, que na fua maõ fe fazia de arroz > que fe tinha
comprado»& da vaõ diamantes de penhor, & outros, que
lhe entregàraõ muy tas peííoas, que ficàraõ pelo cami«ího, & outras, que morrerão. E no dia, que os Cafres
tinha Õ dito , paíTamos o rio mais por cima, ao qual puxemos nome , Rio do fangue. Nelle ficàraõ quatro compauheyros, & aqui vimos os primeyros elefantes,hum de
huma banda j & outro de outra. Ao outro dia depois de
paífar mos morreo. o Padre Manoel de Soufa.
Daqui fcmòs marchando dous dias. por dent ro de
duas legoas da praya, nofimdosquaes viemos dar em hu
rio, que parecia alagoa, & í 'nha a bocariapraya, na qual
vimos andar hü elefante com hu filho,& recolhendo -fe a
retaguarda mais tarde encontrou commnytos elefantes,
í>S quaes naõ atentavão em nòs, nem em todaefta jornada nos fízeraõ mal nenhum. E paííando çfte rio pela boca
delle com a agua pela garganta,fomos caminhando fernpre pela praya até chegarmos a outro, que tinha muytos
penedos grandes na boca, aonde naõ pudemos paíTar por
ier muy to alto; &: fobindo hum outeyro íngreme vimos
andar huns Cafres, que nos diíTeraõ nos eniinariaõ a paffagem,, & dando-lhes huns pedacinhos decobre, nos paffaraõosmininos
muy tas peííoas, que vinhãodoentes,
Efía gente daqui por diante he jà melhor,
puzemos**
Que teve a-Não SJoão Baptifta.
61
lhe por nome os Naunetas , por dizerem quando nos en*
contràraõ, N aunetas, que em fua lingoa quer dizer, venhais embora,, à qual corteíia ferefpondia, Alaba , que
quer dizer, & vòs também. Aqui nos venderão muyto
peyxe, & nos ajudavao a levar a carga, que osnoífos negros levavaõ, cantando, & tangendo as palmas.
Fomos daqui dormir na borda da praya x aonde nos
veyo ver o Rey da terra, a que chamaõ Manam uze 5 o
qual era mancebo, & vinha muyto autorizado com tres
collares de lataõ no pefcoço, que he oque naquellas partes fe eftimava mais, & vendo-o o Capitaõ lhe levou hüa
campainha de prata, a qual para elle naõ tinha comparaçaõ fua valia, & tomando a fua roupeta vermelha de e f caria ta, fe chegou aonde o Rey eftava efperando ; fizeraõ fuas corteíias,naõ perdendo o Cafre de feubrio nada,
mas depois que o Capitaõ vio o íèu modo,começou a bolir
com o corpo fazendo tanger a campanhia,ao que todos ficàraõ pafmados, & o Rey £e naõ pode ter que fe não defcompuzeffe, tom ando-a na màõ,& olhando, que era o que
tinha dentro > que a fazia tnnger, & bolindo com ella, Sc
tangendo deu grandes rizadas, Sc nunca em quanto aüi
eíieve tirou os olhos delia. He coufa de notar como eftes
brutos pelo feu modo faõ venerados, Sc como fuas gerâções,& f a m í l i a s faõ unidas,que jà mais perdem feus filhos
os lugares. & Povoações, quede feus pays lhes ficàraõ, fi.
cando ao mayor tudo, ao qual chamão òs outros pay, &
como tal o refpeytão. Caftigaõ cruelmente os ladrões
(fendo-o elles todos) & ufaõ de hu modo de juftiça galante , & he, que fe hum Cafre furta ao outro hum cabrito , ou outra coufa menor, lhe dà o caftigo o dono do ca*
brito com feus, parentes , o que elle quer, & ordinariamente he enterrai© vivo. Aqui nos venderão hü boycar
H 3
$
.
Tratado do naufragto
pado muyto grande,& gordo, aosquaes chamaõ Zcmbe.
Caminhámos mais tres dias por dentro atè que
fomos dar a hum rio grande, cuja paffagem nos enfinaraô os Cafres com moftras de amizade , no qual nos n*
cou hum marinheyro por nome Bernardo Jorge 5 ^ d a qui fomos pela praya dous dias atè chegarmos a outro
rio, que na boca era eftreyto, mas dentro muy largo, E
por irmos ]à faltos de milho eíperamos hum dia, ao qual
acodiraõ tantos Cafres, que cobriam os outey ros trazem
donos muy tas galinhas a vender. Alli vi trazerem aleyjados às coitas pára nos verem. Paffando efte rio ao qual
puzemos nome do lagarto , por vermos andar hum nel*
lé j fomos noflb caminho pôr dentro afaftados da praya
huma legoa , & caminhando íinco dias por entre boa
gente, viemos fair na boca de hum rio , que parecia fe
não paíTaria a vào, & eítando ahi hum dia nos vieraõ a
vender algumas galinhas. Aqui nefta paragem ha infinitos elefantes , & toda a noyte os ouvimos bramir, mas
com os muy tos fogos , que ordinariamente faziamos não
oufaraõ chegar nunca. Os Cafres nos diíferaô, que foffemos mais a dentro, que lâ fe paíTava, & indo, nos eníinàraõ por onde era o vào, & nos ajudàrão a paíTar Nelte
rio efteve Dona Urfula quafi afogada , porque como a
stgtià dava pela barba ,&ella era pequena, fora cobrindo,
& como ella fabia nadar pareceo-lhe pü^efTe romper a
agua, & vendo-fe,que hia pelo rio abayxo, lhe acodiraõ
trabalhofamente. A efte rio puzemos nome, o das Ilhas
por ter algumas por dentro.
Daqui fomos por cima de huns outeyros em buí ca
de milho, de que hiamos faltos,que por naõ irmos carregados o não comprámos nefte rio, & à noyte chegamos
a humas povoações pobres, que nãotinhaõ fenaõ abobaras,
/
Que teve a Nao S.Joao Èaftifia.
ras, & tendo caminhado mais quatro, ou finco dias cisegamos a outro rio que teria huma grande legoa de largo,
&na borda muytos efpeífos caniços >o qual paífamos fempre com a agua pela cintai & por aqui atraz nos foy ficando muyta gente com camaras, & outras enfermidades,
que por fer muyta quantidade me não alembra. Todos
efles males nos fez o milho , porque o comiamos inteyr o , & c r û , & como não éramos acoftumados a efte man- íimento, trazíamos os eílamagos de muytas coufas peço«
nhentas fraquifïïmos , & debilitados. Efte rio nomeyo
fazia húa Ilha,na qual vimos muytos cavai lo s marinhos,
& pondo quafi todo o dia em o paíFar, chegámos à outra
banda à tarde aonde dormimos. E ao outro dia marchámos por huns campos defertos, & nos veyo ao caminho
hum Cafre com huma joya redonda de lataõ botada ao
pefcoço, que lhe cokria todos os pey tos, & nos diíTe, que
foífemos com elle que nos levaria onde havia muy to mãtimento , &: indo-nos guiando nos levou por dentro de
hum rio, aonde dava a agua pelo joelho, todo cheyo de
arvoredo tão a l t o , êctãoefpelTo , que em mais de duas
horas, que fomos por elle,naõ vimos o Sol. Paííado elle,
& andando todo aquelle dia íem parar, por irmos faltos
dè milho, à tarde fomos ter às povoaçoens, &querendoíios prover, não achamos mais que hum mantimento,que
he o mefmo, a ne em Lisboa daõ aos canarios, a que chamão alpifte, & os Cafres amechueyra > & foy efla gente
buícarnos ao caminho fó para nos ver,do que faziaõ muytos efjpantos j &: perguntando-nos qual era a caufa de vir*
mos por terras alheas com molheres, & filhos, & contan*
do-ll io os noífos Cafres torciaõ os dedos como que rodava 6 pragas a quem fora caufa de noífa perdição.
Daqui marchámos por terra chaã povoada de gente
$
.
Tratado do naufragto
miferavel, em quem achámos bom gafalhado , 6c no fim
de dõus dias chegamos a huma povoção, que eÜava perto da praya, na qual achámos algum peyxe, & a gente fe
mofbrou mais compafllva , que toda a outra, porque molheres, 6c meninos fe foraõ à praya atirando muytas pedradas ao mar ,di zendo-lhe c e r t a s palavras como pragas , & virando-lhe as coílas alevantando humas pclles,
com que traziaõ cuberto o trazeyto, lho moflravaõ, que
he entre elles a mayor praga, que ha, 6c faziaõ ifto por
lhes terem contado, que tile fora caufa de nos padecermos tantos trabalhos, 6c de andarmos havia finco mezes
por terras alheas, que he o de que mais fe efpantavaõ,
porque não coftumão afaílarfe donde nafcem dez legoas,
& tem iífo por couíã notável. Daqui metendo-nos pela
terra obra de huma legoa, fomos caminhando por terras
bayxas, areentas, 6c de pouco mantimento, 6c no cabo
de tres dias demos com o rio da pefcaria, no qual achámos muy to peyxe, 6c a gente delle nos fez muyta feftaj
H e eflre rio na boca eftreyto, 6c alto, mas hüa legoa por
dentro he de mais de tres legoas de largo , 6c em bayxa
mar fica em feco.Tem os Cafres nelle infinitos pefqueyros, a que chamão gamboas, feytas de efcadas juntas, nas
quaes entra o peyxe com a enchente ,6c com a vazante fiw
ca em feco. Como a marèfoy vazia de todo , atraveíFamos o rio indo comnofco muy tos Cafres, nue nos ajuda-'
vaõ a levar o que mais nos carregava, indo cantando co
grande alegria.
Fomos efte dia pela praya jantar aborda do mar, 6c
não achando agua doce na terra, de que ficamos rnuy to
triftes ,a fomos achar dentro na agua falgada, 6c era hum
olho de tanta groífura como huma concha, 6c metido no
mar, 6c fahia com tanta fúria, que arrebentava por cima
da
Que teve a Nao S. Jòaõ Btíptifia.
6$
da agua falgada hum palmo de alto, & vazando logo a
maréficou em feco, aonde todos matámos a fede, & fízemos de comer. Caminhámos dous dias fempre pela
prayadas mèdas doouro , que já aqui começavaõ, &na
fim delles liiamos já muyto faltos, & fó corri tres vacas, &
por parte onde íe não achava agua, & aqui nos diffe hum
Cafre, que nos levaria onde nos vendçriaõ muyto milho*
& galinhas, & cabras, & guiando-nos para hum a aberta
que a terra fazia nos deyxou junto de huma grande fonte , & dando recado às povoaçoens nos acodio muyto milho , &: galinhas, & nos vierão ver os Cafres mais princi*
paes com diíferente trajo, què eraõ humas grandes capas
de pelles, que os cobriaõ ate o bico dopè, & elles em f i
rriuyto fizudos, & graves, os quaes pedirão ao noífo Capitão quizeíTe ir fazendo caminho pelas fuas povoações,
que nellas íe poderia prover de mais mantimento, o que
fizemos logo no mefmo dia>& por fer tarde dormimos em,
hum Valle, & no outro feguinte fomos às povoações aonde nos receberão bem, mas não achámos o que elles nos
tinhão dito.
Eftes Cafres me virão matar hum paffaro â efpíngarda , de que fizerão grande efpanto parecendo-lhes fer ,
feyticeria, & aífim fallando huns com outros fe veyo ao'.,
Capitão hiim aleyjado de huma perna, que lhe aleyjàra
hum lagartí\hr/ia muyto tempo,& aílim o moftrava a ferida fer velha, dizendo-lhe, que fe fe atrevia a curallo,
que lhe pagaria m.uyto bem. Ao que o Capitão refpondeo
galantemente, dizendo que aquella ferida havia muyto
tem po que era fey ta 5 & que por iíTo íe não podia curar em
pouco tempo, Sc mais que lhe havia de dar alguma coufa,
com que fizeííe a cura cõ boa vontade, que iem ella não
podia fazer nada. Ao que o Cafre diíTe 3 que era conten«
V':;
•
I
tc$
$
.
Tratado do naufragto
te; 6c mandando bufeai huma bandeja de milho, lho deu,
& o Capitão depois de o tomar difle, que ainda naõ tinha
vontade. O Cafre mandou bufcar mais tres galinhas, 6c
dando-lhas lhe perguntou, fe tinha jà vontade, ao que
refpondeo o Capitão, que fi; 6c o Cafre replicou, que fe
a não tinha, que o não curaíTe, que elle bem fabia, que
o não podia curar bem contra fua vontade. O Capitão o
curou defta mancyra. Tomou huma efeova, que trazia,
que tinha nas coftas hum efpelho pequeno, 6c pondo-lho
diante dos olhos, o Cafre ficou pafmado, 6c chamando
outros, que alli eftavaõ, lhe diííe o Capitaõ, que fe naõ
boliffe ,r>*m fallaífe j 6ceftando quedo depois deter vifto o efpelho , tomou a efeova, 6c eicovou-lhe aonde tinha
a ferida, 6c untando-lha com huma pouca de gordura de
vaca lha atou com hum pedaço dc bertangil, 6c depois de
ífto feyto lhedifie,que dahi a duas luas havia de ficar faò*
que por ler a ferida tão velha nãofarava logo. O Cafre
ficou muyto confiado, 6c lhe diífe, que era pobre, que
poriíío lhe não dava mais. Logo acodiraõ mais aleyjádos, 6c forão curados pelo mefino modo.
Caminhamos ma is dous dias pela praya, 6c chegámos;
no fim delles ao rio de Santa Luzia,aonde fe eílimavão ja
panos, 6c por elles refgatamos milho,3cgalinhas. Nelle
efti vemos hü dia,6c ao outro o paífamos, no qual nos morrerão nove peífoas de frio.He elle rio dc 'Vas legoas de
largo, 6c como a as;ua nos dava por cima dos pey tos, 6c
corria com muy ta fúria, quando o acabamos de paliar, ficamos quaíi mortos. Aqui endoudeceo hum marinheyro
velho , que fe chamava Francifco Dias,, o qual vinha
aleyjado de ambos os braços de duas azagayadas, que os
Cafres atraz ihz tinhão dado. Logo fizemos grandes fogueyras,emque nos aquentamos,6comarinheyro tornou
em
em íi depois de quente. Detivemo-nos aqui atè o outro
dia reigatando muyto milho , bolos, & maffa deameychueyra, que elles coftumaó comer crua, & nos o faziamos também. Refgatamos mais duas vacas, das quaes matey huma àefpingarda.Fomos daqui caminhando fempre
pela praya das mèdas do ouro
com razaõ lhe puzeraõ
efte nome, porque não parecem íenaò mèdas, íèndo de
huma terra de cor de ouro, & tão fina como farinha, mas
dura, & toda cheya de ribeyros de agua, os quaes partem eftas mèdas, & a agua delles he amarela da mefma
corda terra. E pelo que a diante vi nas terras de Cuama,
me parece, que erta deve de ter ouro, por fe parecer com
aquelía da qual fe tira muyto em pò, & ifto me certificou
mais o fer efta pezada. Eftas mèdas eftaõ pegadas com a
praya, & vão em corda por cima, & tem de comprido obra de quarenta legoas.
E marchando por diante paffámos hum rio, no qual
roubáraò os Cafres a hum marinheyro que fe chamava
Antonio Martins por fe afaftar da companhia querendo
comprar alguma coufa, qre o naõ viffem, & indo pela
praya chegamos à outro pequeno, que dava a agua pelo
joelho, & nelle jantamos. E fazendo tomar o Sol ao Piloto , tomou de altura vinte feis gràos largos, o que caufou alegria na gente, porque cuy da vamos eftar mais Ion*
ge.E foube-fe por efta altura eftarmos do rio de Lcurenço Marquez vinte feis legoas , ou pouco mais. Aqui nos
trouxèraõ huma bufara morta a vender, com a qual ficou
a íefta fendo mayor ,8c achámos hum Cafre com hü chapeo na cabeça, & veftido de hum pano, que nos affegurou
fer certo o que o Piloto tinha dito. Também vimos outros
Cafres com panos, & nos diíTeraõ , que em quatro dias
podíamos chegar aolnhaca. Aqui não conhecem rio de
«.
I z
Lou-
6%
Tratadodo ftaitfragifr
Lourenço Marquez , nem cabó das Correntes, feriâõo
Inhaca l que he hum R e y , que eftà em huma Ilha na boca
do rio de Lourenço Marquez, como adiante direy. Nefte
rioíinho,que digo, nos ficou hum menino, que trazíamos
filho de Luis da Fonfeca, & de Breatiz Alvrez, o qual vinha muyto magro,& fe tinha deyxado ficar muy tas vezes
nas povoações atraz, & os Cafres no lotraziaõ ao outro
dia, & como elle tinha já feyto ifto, parecéo-nos vleífa
como das outras vezes.
Marchámos mais quatro dias pela praya, ôc no fim
delles nosfahio ao caminho hum Cafre acompanhado c a
outros feis, o qual era muyto gentilhomem, & vinha bem
concertado com huma cadeya de muy tas. voltas a tiracolo , & hum pano galante cingido, & as mãos cheas de azagayas, que nifto fe efmeraõ mais os graves, E nenhuma
coufa me admirou mais deita gente, deída mais remota,
que he aonde defembarcamos,que efta, que drrey.Tinhaõ
tão pouca noticia de nòs, parecendo-lhe íermos creatuaras nafcidas no mar , que por acenos nos pedirão lhes
moftraííemos o embigo, o que fizerão logo dous mar:*
nheyros, & depois pedirão, que aíFopraífembs, & corna
nos virão fazer ifto, deraõ à cabeça como quem dizia, efsesfaõ gente como nòs. Todos eftes Cafres atè Zofala
faõ circuníídados, naõ íey quem lhes foy là enfinar efta
ceremonia. Eíàe, que atraz digo , era filho do Inhaca
Sangane o verdadcyro Rey , & Senhor da Ilha, que efta
Bo rio de Lourenço Marquez, a quem o Inhaca Manganheyra tinha defpojadodelia, & elle vivia na terra firme com íua gente atè veí fe morria eíle tyrano,.. que era
muyto velho, para íè tornar à ília poííc , como adiante
direy. Levou-nos pela terra dentro obra deh uma legos
às fuas povoações > onde nos venderão alguma s cabras,ôs
Que teve a Não S. Jogo
Baptifía.
pedindo-lhe nos levaífe aonde feupay eftava, o dilatou:
hum dia, querendo que lhe compraííemos nas fuás terras alguma coufa,masnòsdefejofos de chegar detivemonos alli pouco, & começando a fazer noiíb caminho,ven^r
do elle, que por nenhum modo nos queríamos deter, no
lo mandou moflrar. No qual caminho vimos huma cafa
grande de palha ,& antes que a ella chegaífemos mujías
figuras fem roíto, a modo decaens, & lagartos, & de homens tudo de palha, & perguntando , que era aquilloT
diíTeraõ-me, que alli morava hum Cafre, que dava aguá
quando faltava nas fementeyras : todo o feu govcrn© faõ
feytiçarias.
Fomos jantar debayxo de hü arvoredo , no qual no^
trouxeraõ a vender muyto mel em favos, & veyo ter cõnofco hum Cafre ,.que fallava Portugiiez, que trazia ha
recado do Inhaca Sangane pay do Cafre , que atraz nos
fica. Foy a vifta defte Çafre para nòs novas de muy ta alegria , porque nos defenganamos com elle, & tivemos por
certo fer aíllm o que nos tinhao dito, Deu feu recado, 6
qual era, que nos mandava dizer eífe Inhaca, que nos foffemos logo para onde elle e^ava , que nos não faltaria
nada , & nos daria embarcação para paliarmos o rio da
outra banda, & faria tudo o que quizeífemos, & na© fé
fiando o Capitaõ de tudo ifto, lhe mandou là hum Portugiiez, pelo qual lhe enviou hum prefente de coufas de
cobre, o qual foy, & fallando com elle, & com muytos
Cafres ,.que ahieftavão íè veyo, & trouxe ao Capitão hü»
cacho de figos, os quaes feftejámos por fer fruta da índia
boa. Eftc homem diífe, que o Rey parecia bom homem,
& que não tinha força , com que nos pudeíFe fazer mal^êí
que effova efperando por nòs, & que diziaò os feus, que
a l i vinhão todos os annos muytos Portuguezcs, E para
•
^S
'
310S
.v-
fò
Tratado do naufrágio
tios fazer ir mais deprefla nos mandou hum marinheyro
de Moçambique , quealli tinha ficado de huma embarcação , que os annos paífados alli tinha ido. Com ifto nos
fomos, &: tendo andado obra de huma legoa pela borda
de huma alagoa, chegamos onde e í k Rey eiiava, que era
em hum a1 to entre dous pequenos outeyros,& como era
já noyte naõ nos fallou, & mandou pelos Teus nos moffraffem hum lugar apegado com fuas povoações, onde
a (Tentámos as tendas, & ao outro dia o foy o Capitão ver,
& lhe lançou hüa cadeya douro com hum habito de Chrif»
tôao pefcoço, & lhe deu duas farafas, panos, que as molheres na 7ndia veftem, & faõ de eflima. Elie tomou ifto
com muyto íizo , &fallando poucas palavras, diíTe , que
fenaõ agaftafle, que havia de ir das fuas terras muyto
contente, porque elle não tinha mayor bem, que fer amigo dos Portuguezes, & com ifto fe veyo o Capitaõ. Efte
negro he grande pefToa,& foy fempre leal aos Portugueses. Ao outro dia rios veyo ver, & mandou trazer cabras*
& carneyros, & muytas galinhas ,&amechueyra; & dilatando-o não nos mandar íoilrar huma embarcaçam,
qüe dizia tinha, nos viemos direytos à praya, & caminhando por ella dous dias, demos no rio de Lourenço
Marquez de nòs taõ defejado, afeis uias de Abril de
feis centos & vinte tres, o qual nos não appareceo fenaõ
quando entrámos por elle dentro, porque efta Ilha, que
atraz diíTe , fica muyto perto de terra firme da banda do
Cabo de boa Efperança, & aílim quando vinhamos caminhando nos parecia tudo terra firme.
Tanto que entramos dentro obra de hum quarto de
legoa 9 puzemos noífas tendas, & atirámos tres, ou quatro efpingardadas, & fendo de noyte fizemos noíTos fogos 3 & todos com o Padre Frey Diogo dos Anjos Capucho,
Que teve a Nao $. Jom Baptifia.
7*
cho, & com o Padre Frey Bento demos graças a Deos de
nos trazer aonde nosconheciaõ
vinhaô embarcações
de Moçambique. Ao outro dia vimos duas almadias com
negros , que fallavào muyto bem Portuguez, com o que
ficámos muyto mais contentes, porque atèalli naõ tinhamos vifto aímadia nenhuma, nem embarcaçaõ. O Capi-t
taõ mandou vifítar o Rey da Ilha, que era o Inhaca Man-»
ganheyra, que atraz jàdiíTe, pedindo-lhe nos mandafie
dizer fe tinha embarcaçaõ 5 em que pudeffemos ir para
Moçambique ,& íe tinha mantimentos, com que nos püdeíTemos fuftentar hum mez que alli podíamos eílar, atè
concertar embarcaçaõ, em que nos foffemos ^k pnífrternos à outra banda para podermos ir a tempo conveniente
que achaffemos embarcaçaõ de Moçambique» Ao que o
Inhaca refpondeo + que foífemos para l à , que de tudo nos
haviaria, mandando-nos tres embarcações pequenas para paífarmos à Ilha, o que logo fizemos. E tanto que toda
a gente efteve nella, marchámos com a ordem, que trazíamos ate a povoaçaõ onde o Rey eftava r a qual era de
cafas grandes todas com fcaas pátios de paos altos,de modo que logo part ciaõ cafas de homem bellicoío, Eftava
aífentado em huma efíeyra cuberto com híía capa deperpetuana de cor de canella, que parecia Ingreza, & cont
hum chapeo na cabeça, & em vendo o Capitaõ fe alevantou, mas naõ fe bolio, & lhe deu hpm grande abraço. O
Capitaõ lhe tirou a capa, com que eftava cuberto, ficando nii, & o cobriocom outra de capichuela preta, & lhe
deytou aopefcoço huma cadeyí; de prata, que foy do contrameftre Manoel Alvres , com o apito , que fôy pelíi,
que elle muytoefíímou. He eile negro muyto velho ao
-que parecia
gordo, fendo affim ,que em toda a Cafraria naõ vi Cafre que foífe alcatruzado* ijem gordo/enap
$
.
Tratado do naufragto
todos direytos, & enxutos. Mandoú-nos que puzeíFemos
noíTas tendas junto das povoações, & ao outro dia nos acódíriaõa vender muytopeyxe,galinhas, & amechueyra , & alguns carneyros ; & o Rey veyo ver o Capitaõ, &
Ilie foy moítrar as embarcações, que tinha, as quaes eraõ
pequenas , & eftavaõ todas quebradas, & como os noiíos
carpimeyros as viraõ, differaõ, que naõ eraõ capazes
para mais, que para nos paffar à outra banda do rio, que
eraõ dahi a fete legoas , nem tinhaõ hombros fobre que
fepudeíTem fazer mayores embarcações , & que fe naõ
feaviàmos de eíperar por embarcaçam de Moçambique, a
qud naõ pedia vir fenaõ no Março do anno feguinte,que
pèdiíTe ao Inhaca mandaíTe concertar as embarca coe ns
depreíTa, porque os Cafres faÕ muy to vagarofos 3 ao que
ò Capitaõ refpondeo: Parece-me bem paCemos à outra
banda, iremos marchando ate Inhabane , que nos fica
perto, & podemos gaftar, ao mais, hum mez no caminho;
& naõ ficarmos hum anno aqui efperando na terra defte
Cafre , que he hum traydor, que matou ha dous annos
aqui hum Clérigo, & tres Portuguezes, poios roubar, &;
por efta razaõ naõ tem \ m d o aqui pangayo ha tantos
tempos, nem virá taõ cedo, & o mefmo nos irá fazendo
a nòs pelo tempo em diante poucos a poucos. Tudo iífo
lhe tinha contado o outro Inhaca da outra banda, & af~
fim tinha acontecido. E ditas eftas palavras fefoy ao Inhaca , & lhe pedi o mandaíTe concertar as embarcaçoens,
porque eflava reíoluto a fe ir, & naõ efperar pelas de
Moçambique, as quaes tiWia dous annos, que naõ tinhaõ
alli vindo polo gafalhado, que os tempos atraz lhes fizera,& que o anno vindouro pôde fer naõ vieíTem também.
Ao que lhe refpondeo o Inhaca, que era verdade matada o Clérigo, & os Portuguezes, mas foy, porque elles
Que teve a Nao S. João Raptifla.
7j
lhe matàraõ feü irmão > & que fe nós naõ queríamos fiar
delle, que nos fofíemos pára huma Ilha , que eftá logo
ahi pegado, a qual fe paffava a pè em bayxamar, que alli
tínhamos^agua, & que nos mandaria fazer para cada dous
Portuguezé^ hua gamboa > & teríamos o mantimento, que
lios baftaffejque alli tinhão inveroado por muytas vezes
Por tuguezes,& que nunca fequeyxáraõ delle íenac agora. DiíTe mais ,que elle nos daria dez Cafres íeus, que
man laífe com elles dous Portuguezesa Inhabane dar recado como eftavamos alli efperándo , para que vieíTem
embarcações, ao que replicou o Capitaõ que lhe importava chegar deprefTa. 1 ornou-lhe a dizer o Cafre , que
lhe requeria não íizeffe tal viagem porque o haviao de
matar os Moerangas aííim como fizeraõ à gente de Nu^
no Velho Pereyra, que não coube na embarcaçaõ, & que
eraõ terras rnuyto doentias, & que elle tinha asfuas caías cheyas de marfim, 6c ambre, & fe os Portuguezes lho
não compraíFem , naõ tinha elle remedio, pelo que lhe
convinha fazemos muytos mimos, & naõ nos efcandalizar, que lhe deflemos credito.
Nao quiz o Capitaõ íeiao irfe, & aílim lho diííe5ro~
gando-lhe mandafíe concertar as embarcações, &: defpedindo-fe delle, nos viemos efíar na Ilha,que tenho dito,
que eftá obra de huma legoa dalli, na qual eftivemos em
quanto as embarcações íe concertàraõ, que foy atè dezoy to de Abril.Aqui nos quizemos ficar Rodrigo AíFcnío, & eu, & nos fomos ao Capitaõ dando-lhe conta diíFo,
& que nos não atrevíamos a marc har mais por terra, que
dalli iríamos quando vieííe pangayo. O Capitão nos levou por defconfiança, dizendo, que fe efpantava de querermos arripiar a carreyra quando éramos a fua -guedelha P que por fe dizer Jiavia ladrões adiante, o naõlbavia-.
K
mos
/
cV:'v TvMüâo^MttffittgtQrva&JX
•
mos i&âeyxa* ** fâqm quando detòdo afizcffemòs ynos
havia de fazer bum protefto, & parece, que adivinhava^
efte fidalgo. Com eftas razões nos embarcámos com a
mais companhia em quatro embarcações ,asquaesnão
puderao levar toda a gente de huma vez > foy neceffa-:.
rio voltar outra. E efte d i a , que partimos^ chegámos á
meya noyte á outra banda a huma Ilha, que dentro 110
snefmo rio eftá, na qual faltámos em terraôcnellá dor~
mimos o que reftava da noyte.
o
T l
i
Ao outrodia Jlodrigo Affonfo de Mello, que já vinha doente, arnanheceo muyto mal , mas ainda faliava
bem, & confeíTando-fe veyo a morrer noutra Ilha ., donde viemos a outra noyte. E aífirmo a v. m. que não pudéramos ter coufa, que nos caufaíTè mais fentimento, & a
mim me coube a mayor parte como feu fervidor, porque
além de fer tão grande cavalleyro, era hum Anjo de na*
íureza, poíTo dizer, que elle era caufa de todos os trabalhos padecidos nos ferem fáceis depaíTar, porque era
o primeyro, que hia bufcar a lenha ^ &a aguá às coíbas,
& fe metia no mar primeyròque todos bufcar o marifco,
& quando os outros vi ao huma pefToa de tanta qualidade
fazer ifto, dava-lhe animo p ira fazerem o mefmo,& naõ
defcorçoavão. Aqui nefta Ilha o enterrámos ao outro dia
pela manhaã, ôt lhe puzemos hum finalnacova.: Daqui
fomos,por humfyraçodefte rio fer a outra Ilha de hü ne»
gro, que fe chama Melbomba, aonde defembarcámos,&
çfperamos atè que as embarcações tornárão com o refto
da gente, que nos ficav na Ilha do Inhaca, que foy atè
fetede Mayo. N o qual *empo adoecemos todospor íèr a
terra má,8c tarnbem porque nos? metemos eni muyto comer cru , & morrerão o Padre Frey Bento, Manoel da
Sylva Alfanja, Pafcoal Henriques bombardey ro, AnI.
tonio
Que tmzmNím S:paÔ Bâftifta.
ff
tonto Luis marinheyrõ
Joa5 Gtumeté. ChdgòuãüUtra gente, da quái vinha também doente á mayor parte*
£c eraõ mortas oy to peíToas das que deyxàmos comellas»
que por não lhe faber os nomes os não digo àcfüi. Neíté
Ilha deyxàmos por efíarem muytódoefttes, & nos nâo
poderem acompanhar Antonio Gocíinho'dé Lracerda^aí-par Dias deípeníeyro , Franciícò da Coíta murMieyro,
0
& hum criado do íGapitaô.- • - -» ^
PaíTando-hosa terra .firifíe marohámos fèmprè jpélà
praya atè chegarmos às terras de hum ReyquechamaG
Qmmanhifa, que h e o mais pòdèrofo , que neftas partes
hà, o qual a treze dias deílè mefmo mez rios vèyo ver ao
caminho onde eílavamos aguardando? con\ uIéc~íTcr alguma gente j & como algu/peyoràvã V â deyxàmos com
eJfte Rey j que nos moftroübom animo, & ordiriariamen*
t e , quando a eftas partes vem embarcação, na fua terrá
tem a mayor feytoria.Pedio-nos foíTemos por d entro,que
era melhor gente, & nos avifoti , qtíe peló caminho que
levavaniòs nos haviáõ de roubai, &matar a todos. E corno o Capitaõ nunca tomou confclhô doutrem , &fe governava ÍQ por fua cabeçí , não acertou èm muytas couí a s , & com fer efte, vinha tão unido com a gente do mar,
que não fazia coufa i que lhes não pareceíTe bem, ainda
que foífe em caíligo, que nelles proprios fizeííe, por ef~
te refpeyto fenão remediou iftò,& porque òâ homens nobres erão poucos.
Aqui ficou Dona Ur fula dom hum filho mais velho,
que fe chamava Antonio de Mello , & íicàraò com ella
JaquesHenriques, &dous gr Ginetes y&Thuma negra de
Thomè Coelho. Efta Dona levarâõ em hum andor, que
íizeraó de panos, com o filho nos braços, que era grande
íaílima de ver huma tolher moça 5 fer m o í a , mais alva,êc:
,'K-a'
•• • •', loura,'
v^F^^M^À
natffragh
loura f que hum a Framènga» molher de huma peífoa taô
honrada como foy Domingos Çardofode Mello Ouvidor
gerai do crime no Eftado da índia, tão rico, em poder de
Cafres chorando muytas lagrimas.E por nos parecer,que
não çfcaparia, lhe trouxemos o filho mais pequeno com
Bofco, oque foy coufa ,que mais lhe acrefceiitou o íentimento. O Rey a levou çomfigo, dizendo lhe não faltaria nada, & o Capitão lhe prometeo de lhe dar hum basr
de fato polo bom tratamentoque lhefizeíFe, & pelas
maispeífoas. ;•:..-••....,
v ••
"
Tanto que o Rey fé fòy nos par timos, indo caminhando pela praya fempre, Jà nefte tempo o Ca pi taõ hia
d o e ^ ç ^ q u a l levavaõem hum andor,atè chegarmos a
hum rio ,que chamaõAdoengr es, que foy a dezafeisido
propr io mez, no qual o Capi tão .vendo o efíado, emque
eftava , que muytas vezes não fallavaa proprio,:ordenou
de eleger com parecer de todos huma peífoa, que tiveíTô
merecimentos, & partes, para poder fearernfeu lugar,
£c mandando chamar a todos, lhes diffe, que elle jà-não
hiacapaz para os poder gr rernar, que viffem ellesapefi
foa , que alli hia, que melhor o piilefíe fazer pois bem
conheciaõ a todos 3 & apara que preftava cada hum, que
em fuas mãos punha efta.eleyção, porque depois fenaõ
queyxaiTem dille , &que depois de todos votarem votaria elle , os qua$s vptaçido em miim, dizendo fuas virtudes , diíTe o Capitão quecíTe era também o fêu voto, Sc
mandando-me chamar Pero de!Moraes, me diffe como
aquelle povome tinha eleytopor Capitão>k que efFe fo»
raoTeu voto tamhem, qiw efperavaem Deós» que eu os
govcrnaíFecom mais prudência do que elle atè entam o
tinha feyto,que.comopeífoa dè fora tinha fabidò nè que
lhes dava moleüia. Eu refpondi, que havia de trabalhar
fe o podia ir imitado»
E
QiieteveaNáo S. $oao Bãftifta.
7?
E logo me fuy para a minha tenda, levando comigo
a mayor parte da gente, aos quaes diífe, que aceytàra
aquelle lugar fó com zelo de nos irmos confervando, &c
para que emnenhum tempo fe pudeífem queyxar de mim»
efcolhia feis peífoas as mais principaes, que alli hiarn*
fem o parecer das quaes não faria coufa de coníideraçãoj
pareceo iftoa todos bem. por o Capitaõ Pero de Moraes
o não tomar nunca de ninguém em matéria algüa. As pefíoas > que para iflo efcolhi foy o Padre Frey Diogo dos
Anjos,Thomè Coelho de Almeyda fidalgo, Antonio Ferrão da Cunha fidalgo, Vicente Lobo de Sequeyra fidalgo , André Velho Freyre, & o Piloto.Depois de ifto feyt o , veyo o Efcrivaodo arrayal com eflas feis peiioás, &
me requererão da parte delRey, dizendo, que a pedraria , que vinha na borfoleta, vinha arrifcada, por quanto
os Cafres havia tres dias nos perfeguiaò, & que a trazia
hum homem occupado fó com d i a , que podia aconteceu
a diante, aonde nos tinhaô dito eílavaõ Cafres muyto belicofos, desbaratarem-nos, & tomarnolatodapor ir junta em modo, q*ie fazia, tamanho volume, & que liiamos
arrifcados a iíío por ir a gente toda doente, & naô poderem c6 asefpingardas, & a polvora não ter força nenhüa
por fe ter molhado muy tas vezes, que mandaffe abrir a
boríoleta, na qual vinhão fete bifalhos muyto bem mutrados, que os repartiíFé pelas peífoas,que mepareceíTe*
cobrando de cada-huma feu conhecimento, em que confeífaífem levar em feu poder o dito bifalho com tantas
mutras de lacre-, & com taes armas, & que em nenhum
tempo pudeífe a peífoa, que a le vaíTe (em caio que a fakvaífe) requerer mais falvaçãodelle, que aquella que lhe
coubeííe, repartindo-fe por todos conforme os merecimentos, de cada hum , & que iílo fe fazia para bem de to*
78
Trai ado do, naufrágio
dos, & para melhor fe poder falvar. E^como ifío pareceo
bem à mais da gente, & era o melhor remédio que podia
ter emcafo que tiveffemos huma deíaventura, mandey
vir a borfoleta, & perante todos a mande y abrir , & aos
fetebifalhos , que dentro yinhão, os mandey cada hum
forrar de couro, &: fazendo os conhecimentos, os entreguey às peífoas feguintes : Thomè Coelho de A l m e y d r ? , ,
Vicente Lobo de Sequeyra, André V e l h o Freyre, o Piloto, Vicente Eíleves Meftre carpinteyro, J oaõ Rodrigues , & eu, & feytos os conhecimentos, & mais papeis de
entrega, fe depofitarão em minha maò.
Havia já dous dias que alli efta vamos, onde nos fí^
cáiáu u es companheyros, hum déliés bombardeyro, &
dous grumetes,&: os Cafres nos naõ traziaõ a vender cou^
fa alguma, aiites nos faziaõ todo o mal que podiaõ , naõ
nos querendo moftrar por onde o rio fe paífava 5 pêlo que
eu mandey a hum negro noiTo fofTe apalpando com hum
pào na maõ por onde era a paífagem, & paira o fazer com
melhor vontade, lhe dey numa cadeya de ouro, porqiiè
elles não eraõ alli noffos cativos, & porque naõ fugiifem
para os da terra, era nece Jario trazermolos contentes,
oqúe fez logo, andando para huma parte, &c para a outra,
ate que acertou com o vào, & pondo néUe balizas, fomos
paíFando com a agua pela barba,& como tínhamos entrado naterra dos ladroens trabalhamos caminhar o mais
que pudeíTemos, & áílim o fizemos, indo continuâmes
te brigando com elles, o que jà a gente fazia com muyto
traMho por virmos doí ntes , & com poucas forças pelos
tfiahtimentos ferem poi? -os, &: os Cafres no los naõ que-»
rérem vender. Affim fomos atè o rio dó ouro, o qual h l
muyto caudelofo, & largo, & vem com tanta fúria, que
achámos ántes que a elle chegaífemos mais de oyto le.
goas,
Que teve a Nao S.Joao Baptifta.
79
goas, arvores grándiílimas arrancadas pelo pè em tanta
quantidade, queenchiaõ asprayas, que mtiytas vezes
naô podíamos paííar com ellas, &logo entendemos haver alli perto; algum rio grande. He fenhor de toda efta
paragem hum negro muy to velho, ao qual chamaõ Hinhampuna. E ficámos muy to defconfolados com a viíla
defte rio pela impoflibilidade , que viamos na paífagem,
mas naõ tardou muy to tempo, vimos vir por elle abayxo duas almadias, com cuja vifta ficámos com menos re»
ceyos, & chamando-as a nòs, lhes mandey dizer íè nos
queriaõ paííar, ao que refponderaõ ,que fi, que viriaõ ao
outro dia com mais almadias para o poderem fazer, &
mandando-lhe dar hum pedaço de bertangil p*-ia uua íepoíla, fe foraõ.
E efperando nòs por elles pela manhaã, os homens
que eftavaõ de pofta viraò vir da noífa mefma banda mais
de duzentos Cafres muy to bem armados cõ muy tas azagayas, &: frechas, &: foraó os primeyros, que com eftas
armas vimos, logo fiz pôr a todos em ordem, & defparar
algüas efpingardas. yieraõ-fe elles chegando todos juntos trazendo o fru Rey no meyo, o qual vinha veílido à
Portugueza galantemente com humgibam detafecirade
linha, com o forro para fóra , & hum calçam à comprida
com abarguilha para traz, &,hum chapeo na Cabeça y&c
vinha com efte veítido por nos moftrar,que tinha comercio com nofco, & nos fiaífemos delle, mas logo foy conhecido feu defcnho. Trouxe-me de faguate dous ramos
de figos, que lhe cu paguey muyto bem, dando-lhe hum
bertangil. E tratando nos mand >íTe paífar pelas fwas em*
barcaçoes,diífe,q como lhe pagaífemos o faria,íobre o que
nos concertámos por três ber tangi s, & depok de conor*
tados pedio mais dous x ao qual refufando dlífe, que por
elle
A,,
8o
Tratado do natífragio
elie fer velho , & nos ter vindo ver llie dava mais os dous
que pedia. Dahi a hum pouco diííe , que lhe havíamos de
dar mais, & alevantando-me me vim para as tendas, &
mandey eíliveíTem todos com as armas nas mãos ate depois de meyo dia, & vendo, que elles fenaõ hiaõ, lhe
mandey dizer, que os Portuguezes naõ confentiaõ nun~
ca, que junto com elles eftiveíTe outra gente, que lhe mãdava dizer iílo,porque íe hia já fazendo tarde,& denoyte lhe podiao matar alguém da fua companhia com as
iioíTas efpingardas,com que toda a noyte vigiavamos. File mandou dizer, que a ília gente fe hia logo
que elle
fó havia de ficar com quatro Cafres, efperando ate o outro dia vieiTem asalmadias para nos mandar paííar, que
era noíTo amigo.
; Tanto que vi efta gente fe hia, mandey atirar duas
efpingardadas cõ pelouro por cima delles, os quaes ouvindo zunir os pelouros, deytaraõ-fe no chaõ, & mandamô faber que era aqui 11o, que elles naõ queriaõ brigas
com nofcoj ao que lhe mandey dizer que fora hum deíaf*
tre, que defearregando duas efpingardas acertaraõ de
paíTar por là os pelouros, & lííim fe foraõ,ficando o Rey,
como digo, & nòs toda a noyte com muyta vigia, Sj: como
fe acabavaõ os quartos, atiravamos efpingardadas. E pela manhaã vendo elle como tínhamos eftado todjí a rioy«
t e , & que não podiaõ fazer o que deféjavaõ fení feu rifco, fe toy dnfpedindo-fe de mim, dizendo, que logo mãdava dous Cafres para fe concertarem comigo fobre a
paíTagem, que o que elles fizeíTem havia por bem feyí o,
& aífim o fez mandando os dous Cafres, com os quaes me
concertey em oyto bertangis, que lhes naõ foraõ dados
íenaõ depois de nos terem paífado. Aqui nos morrerão
quatro companheyror,. £ ikãs. paíTagem determinaraõ
Quete^eaNao
S.Joao
i e lios affaltear defta maneyra: mandàraõ dizer aòs Cafres da outra banda,que depois que ametade da gente foffe paífada, deffem là nella, que o mefmo fariaõ de cá,
& para poderem fazer iífo como o Cafre defejava,
trouxeraõ quatro almadias peqienrs , & determinàraõ
paíTar huma, & huma , mas eu que conheci feu intento^
inandey amarrar as almadias duas & duas juntas para poder caber mais gente nellas, & mandey meter ametade
da melhor gente dentro com ordem que tanto que là foffem,tomaííem hü lugar alto,que de cà fe via, aonde fe fizeífem fortes em quanto paífava a demais, ôcque tornaffem em cada duas almadias duas peíToas com fuasefoingardas, para que nos naõ fugiíTem. E em quanto iíto fe
fazia ficámos com as efpingardas nas mãos, & murriões
acefos , de modo que nunca lhe dêmos lugar para fazerem coufa alguma , êc foy de grande acèrdoanandar andar os dous homens nas almadias em quanto le fazia efta
paíFagem, porque em nos dividindo logo éramos perdidos» E no fim paíTey eu com oy to companheyros f & então, me contárão os Cafrer da almadiatoda fua determinação , dizendo-me, que dalli por diante viíTemos como
hiamoSí, porque era aquella terra dos mais màos que ha*'
via em toda a Cufraria, que fó por nos roubarem o que
levávamos veflido , nos matariaõ, & que eraõ muytos*
agradecendo-lhe o avifo, lhe dey hum pedaço de bertang i l , & me fuy caminhando com toda a preffa poílivel.
Tanto que fouberaõ, que éramos paíTados, vieraõ
bufcarnos muytosCafres, com jue vínhamos todo o dia
pelejando, & a gente vinha def orçoada por nos ferirei^
de longe com fuas frechas, que müytas vezes naõ víamos
quem nos fazia mal, por no? atirarem do mato, & nos viphamos pela prava
eraõ poucos os homens ? que fou-
JL
•y
"
\
beffem
beífem atirar com as efpíngardas. E temendo lios defc
truiffem vendo-nos taô fracos, meembofquey de.dia, fazendo caminhar toda a noyte pela borda do mar, porqua
aJli efpraya muyto a maré, & ficava-nos longe o mato,&
aílim ficámos caminhando; na bayxamar.de noyte , para
que a enchente apagaífe o raíloque faziamos na area. E
vefpora do Efpirito Santo de noyte indo caminhando vimos eflar muytos fogos na praya , aos quaes furtamos o
corpo j caminhando bem junto com ornar, & muyto calados paffamos fem fermos viftos délles,
apreffandonos andando ate o quarto da lua, nos metemos no mato,
& alll eftivemos com vigias atèque foy noyte, & a maré
©fteve mçya vazia , Sc- começámos a marchar todos em
ordem* & tendo andado meyo quarto da modorra vimos?
eftar a diante muytos fogos,os quaes tomavaõ defda bordada a gnaatèo mato,para que lhes naõpudeíTemos efcapar, & chegando perto, nos mandou dizer o Mocaranga!
Muquulo, que era o Rey de toda aquella paragem, que*
nãopaíFaífemos denoyte pelas fuás terras, que naõ eracoftume , & que naõ queria brigar com nofeo. Eü Ihel
mandey dizer, que os Pòrtuguezes naõ haviaõ mifter li-'
cença de ninguém para poderem paffar portoda-a parte:?
mandou* me dizer ,que viíTe o que fazia, que naõ fizeííe
guerra, que todos os Pòrtuguezes, que pdr iálli paííivaõ,:
lhe davaõ a fua curva, como o faziaõ em outras partes. El
a efte recado começàraõ todos os da companhia com grã- ;
des.vozes dizendo, que por dous bertangis, que lhes po*.
diamos dardos queriam;'tar a, todos, naõ eftàiido nenhilí
para poder pelejar.
•
r!
Vendo eu eftes clamores charney as peíFoàsque'
atraz diífe, para que juntos píFentaíTemos o que melhor1
ms pareceSe 3 aas-quaes diffe, cpie me parçcia acertado
Que teve a NaoS. Jom Baptifta.
pâfíar pelejando de noyte com eftes Cafres, porque naS
poderiao enxergar as faltas, com que vínhamos
que
as efpingardas de noyte caufaVaõ mais horror, & quando
nos aconteceífe mà fortuna poderíamos mais a noíTo falvo efcapar a pedraria , & que í é âguardavamos , que fof*
fe manhaã, como elles pediaõ , poderia vir mais gente
da que alíieftava
verem-nos fracos, &: defcorçoados.
A ifto me refponderaõ, que élles vinhão taesyque de dia
naõpelejavaõ, quefariaõ denoyte , & que querendo ei*
•fazelo, haviaõ to de brigar dez , ou doze homens ^ que
cinhaõ vergonha , & os outros todos haviaõ de fugir j, ,8c
que pôde fer contentando-fe com o que lhes oocíiamoar
dar fefoífem, & nòs ficavamos ferimos pormos neílerifco. Ao que iniiftindo eu empaíTarmos, diífe por muytafc
vezes , que feno rio do fangue os Cafres virão a pouca»
gente, que pelejava , que nos houveraõ de matar a todos,'
mas a noyte encobrindo ifto, cuydavão pelejarem todos
por eífe refpeyto fugirão; & Deos fabe quantos foraõ
os que defenderão efta noyte que digo. Elles me refponderaõ , que me naõ canfaífe /que não convinha paliarmos
de noyte , & eíie era o parecer de todos. E como vi efta
vontade na mélhor gente, diffe, que elles eraõ teftemunhas como o fícar era contra meu parecer,& que diífo mê
haviaõ de paífar os papeis que me foffem neceífarios: parece que me adivinhava o coração o que depois fuccedeo.
Como vi que havia de ficar atè pela manhaã, bufquey ornais forte lugar que alli havia em hum alto ,
mandando fazer muytas fogueyras tomey todos os bifalhos ,& mandey-os enterrar em. fegredo,& em cima donde elles eftavaõ mandey fazer hüa grande fogueyra, eftando o reftante da noyte todos com as armas nas mãós
Cem ninguém dormir» Evirídoa manhaã veyo omeímo
•1» Í .
R e y , com o qual me concertey em nove ber tangi s, StÜuá
roupeta de,efcarlata, & depois pedio mais hümas peças
de prata das cabeçadas,de hum cavallo, que também lhas
dèmosv, Sc foy pedindo mais de maneyra que lhe dey tudo:
o qae pedio ,&.moftranda eftar fatisfeytoferdefpêdio de
nos com moftras de amizade, Depois de elle fer ido, &
não aparecer ninguém mandey tirar os. bifalhos, Sc os?
torney entregar a quem os trazia,* & indo marchando pe la praya nos íahiraõ do mato mais de mil Cafres, & dando-nos humaffalto na retaguarda ,que fó pelejou, adeffearatàraõ logo deyxando todos os que nella vinhão muyto mal feridosjôc defpidos fem lhe ficar coufà nenhuma,
cõ que pudeíFem cobrir fuás vergonhas. E a demais gente como vio eftè.disbarate fugiraõ para o mato íèm pode*
xem efconder nada, porque logo foraõ fobre elles, & os
defpiraõ, fendo aíllm, que fe elles,pelejàraÕ naõ noshoiK
veraõ de desbaratar, & foraõ atirando as fuas efpingardadas entretanto carregávamos nòs as noíías, & aíllm pelejáramos
como nòs os foramos matando elles fereti»
airaõ, como fizeraõ outros mais valentes, com que muy>
jtas:VGZQS brigámos.
Vendo-me eu nü, &: ferida com finco frechadas pe*
netrantes, huma na fonte direyta, outra nos peytos pou
onde me fahia o íblegooutra que me atraveífava os lombos, daqualouriney fangue doze dias, & de que na o pude tirar o ferro , & outra na coxa efquerda, de que também não tirey o ferro, & outra na perna direyta, que me
eftava- vazando em langue, determiney meterme pela
terra dentro com eftes ladrões parame curar em ver fc
me queriaõ dar alguma coufa para mecubrir, ellando*
comefte penfamento me mandou dizer Thomè Coelho,
, que n a o f e haviaõ de iridalli íem mim 3 que.
• r .
"
* ""' " 7 " " *
" """ f o í f c
Que teve q Nao S. Joàõ Êàptifia.
8 jí
foffemos aílim caminhando, quejà Inhambane devia eftar perto. Ao quefcefpondi,quenaõ eílava para nada, que
íbíTem elles
os ajudaíTe Deos, & pedi a humarinheyr o , quechamavao o Tavares que também eílava ferido«
em huma perna, que quizeífe vir comigo> que nos tornaríamos, fe Deos nos dèífe faude, que não podia fer, que
aquelles Cafres não tiveíTem compayxaõ de nos ver rílim:
élle o fez de mà vontade, & nòs fomos detraz delles hüagrande legoa, de maneyra que eu jà não podia comigo,&
alli n'um defcampado fe ajuntàraõ todos com os furtos,,
que nos roubarão, o Rey conhecedo-me me mandou tirar as frechas, k curar com hü.azeyte, que làtenvaqus;
clumao mafura,
depois de curado me deraô hum gibam velho fem mangas A d o mantimento,que nos tinha®,
roubado me deraõ hü pouco. Alli repartiraõ todas-as riquezas que traziaô, fazendo mais cafo de hü trapo, qu&
de precioíiílimos diamantes T os quaes tornou^ todos para
ü o Rey por lhe dizerem dous Cafrinhos noífos, "que - já.
com elles eílavaõ, que aquillo era.a melhor còufa, que.
havia, que por cada hum lhe haviaõ de dar humbertangil.E como fízeraò eílarepr ttição, fe foraõ,&;ficandofós.
nos tornámos à praya para ver fe podíamos encontrar al^
guns dos companheyros
trazendo hum murram acefo
para fazermos fogo de noyte, & tendo jà-andado hum
pouco,ouvimos de dentro do mato hüs aíTubios, & virando vimos dous negros veííidos , os quaes conhecemos logo ferem noííos , & fallando com elles nos diíTeraÓ ,que
fifperaíTemos,q hiam chamar João Rodrigues de Leaõ,que
íicava no matto, & vindo logo me abraçou, & diíTe, quo
a elle o nao roubárão por fe efconder bem, &: defpindo
afua roupeta ma deu, & me difíe ,que alli trazia o bifal h o j q u e e u i h e entregara inteyro, que viíTeo^ue queria
* j
' "~ ""
" "
L j
a
Tratado âo nàufragm
que íízeíFe delle, Eu lhe refpondi, que pois elle o íbu«*
bera guardar tam bem, que o trouxe fie atè Inhambane,
& que alli fe determinaria o que havíamos de fazer, &
aílim viemos caminhando de noyte, porque de dia nos
naõdeyxavaõ efíes malditos Cafres eííes fracos trapos q,
trazíamos. Também veyo ter com nofcohum noffo companheyro Francez, que fe chamava Salamaõ, aoqual feftejey eu bem para me fangrar, porque naõ me podia bulir com fangue pizado das feridas, o que fez logo cõ hua
lanceta, que trazia.
E caminhando quatro dias pela praya fomos paífar;
hum rio com agua pelo pefcoço fria como neve, a qual
me tratou bem mal. Aqui achámos a mayor parte da noíía gente, os quaes eftavao contentes, por os Cafres lhe
darem de comer logo, 8c veyo ter comigo André Velho
Freyre, &: diíTe como falvàra o bifálhò, que eu lhe entre-?
gàra, que mandava, que íizeífe delle. Ao qual lhe diífe,
que o trouxeífe a Inhambane , & que alli fe ordenaria o
que melhor pareceífe. E aílim fomos caminhando pelas
terras do Zavala hum cheque, ouregulànoífo amigo, atè
darmos com hum Cafre velb i de hum R e y , ao qual chamaõ Aquerudo, o qual tanto que nos vio fenaõ quiz apartar de nòs dizendo-me, que havíamos de ir pelas ter«
tras dofeu Rey, & que nos não faltaria nenhuma coufa, ôc
aílimfoy depois que o encontrámos atè, nos pôr e m l nhambane. Aquelle dia nos fez caminhar muyto para
chegarmos aonde efte Rey eílava, & chegando de noyte
tios fez muyta fefta, mandando-nos dar todo o neceffario, em quanto alli eftivcmos, & nos matou huma vaca,
& me vinha ver todas as noytes tres vezes, trazendo-me
fempre coufas de comer
dizendo, que nos naõ agaffaffemos> que jàefl^vamos emterrade Portuguczes, 6c
Que tevê a Nao S. João Baptifta.
87
que ellè o era comonos , que não tinha mais differènça
que íer negro* Aqui nos teve quatro dias, &: no fim deiles nos veyo acompanhando hum dia de caminho,& dan-,
do-me dous dentes de marfim ,fe foy, àc deyxou feu filho
mais velho para ir com nofco atè Inhambane, & o velho
que atraz diffe , os quaes nos foraõ dando de comer por
todo o caminho atè que lá chegamos, nb ofoya dezano ve de Junho,aonde fomos bem recebidos,& aquella noyte nos não faltou de comer, & ao outro dia me veyo v e r
© Piloto, juntamente com o Padre Frey Diogo, osquaeshavia doíis dias tinhaõ chegado à outra banda do rio com
a de mais gente, que nos faltava, os quaes m e d i r ã o , ,
que o Innhapata, & Matarima, dous Reys, que là havia,
eftavaõ efperandò por mim para repartirem em minha,
prefença todas as pefFoas, quedaquella banda eftavaõ,ficando eu de lhe pagar todos os gaftos, que niífo fe fizeffem. Eu os feítejey, & lhes diíFe, que ainda hontem chegara, que parecia razaõ accommodar primeyro os que
eftavaò da banda do Chamba, que era aonde eu eílava,:
&: que depois paíTaria là a fazer o que me tinhaõ dito.
Logo no mefmo dia veyo ter comigo hum negroClmflão, que alli vivia , ao qual chamavao André, que
fer; i d e lingoá-àquelles Heys quando alli vinhão Portu3,üe me levou para fuacafâ, & nella eftiveatè;
7?y' ^'hyy,;ífthnwbane.Ao outro dia me veyo ver o Rey,,
r i ú tmb^ ôxto^ r;>;iAior;oc.i*tratey cia accommodaragentv por caias u w - o í - "V «o m a * í s > \ t i v e f í e m , & elle*
lhe paréc^oiítohiin , rw
. que aquelle dianão'
:
podia íer 3 porque era m.. Ai
•••• dalos chamar-, qüé
ao outro dia viria c e d o & c
dos j aílim ó fez,,
&depois de os ter-ahi todos l <0 <!ilè •• qr* havia dé pagar"*
o&gaftos ^ qus aquella gente izd.fr , r * lhe, queeu:os»
"
m
Tratado donaufraçU
pagaria, & elle rindo-fe me refpondeo , que naõ havia
em mim,, com que pudeíTe comprar hum frango, por eftar ainda defpido , como íehaviaõ elles de confiar ; ao
que refpondi, que mais valia a palavra de hu Portuguez,
que todas as riquezas dos C a f r e s , n o fim de muytas palavras;, qne houve de parte a parte , que he o de que fe
mais prezaõ, mefez prometter de lhe pagar tudo o que
com elles gaftaíTe, & o Rey diífe, que ficava por meu fiador. E logo reparti os Portuguezes, fegund© me dizia
efte negro Chriítaõ, & chamando-os por feu nome ms<
dizia : A efte Cafre pôde v. m. dar algum homem grave,
pornne hebom negro , & rico
ailimficàraõ accommodados todos os da banda do Chamba, que fica da parte
do cabo das Correntes,& paífando-me à outra banda,onde me fizeraõ muy ta fefta, fiz o mefmo.
He efte rio fermofíífimo, tem de largo meya 1 egoa3
& da. banda do Camba bem furgidouro para embarcações
de atè trezentas toneladas, fica no meyo a mayor parte
em feco debayxamar,aonde ha muytomarifco, de que os
Cafres fe aproveytaõ,, a tarra em fi he muy to fádia , & a,
mais farta, & ,barata, quejá maisfe vio,abundantiílÍma
de mantimentos, como he milho,ameychueyra, jugos,
que faõ como grãos, mungo, gergelim, mel, manteyga,
muy to fermofos boys,, dos quaes vai cada hum por mayor
que fejadous bertangis, muytas cabras, &: carneyros, o
peyxe he o melhor que comi em toda a índia, & tão barato , que he çfpanto, porque dam por hum bertangil,
ou motava de contas, que ainda vai menos, cem tainhas
muy to grandes. Os maios todos faõ cheyos de laranjas,
i t limões, tçm.muy ta madeyra,deque fe podem fazer em«
fcarcaçoens.
As ventagas j que hàna terra faõ muytoambre, &
Que teve a Nao S.Joao Baptifta.
%
marfim, alli tem ido muytas vezes os Qlandezes, & fegundo me diíTc o Matatima, que he hum dos Reys, defe.
jàvaõ ter alli comercio, & que os mais dos annos paffandopor alli, mandavaõ os bateis a terra refgatar laranjas,
& vacas, & que depois que lhes tomárão hum batel matando-lhe a gente, não os mandavaõ a terra , mas que
os Cafres hiaõ âs Náos. Muyto receyo fenhoreem eixes
inimigos eíle porto, pelo que fey de algüa gente delle, q
aqui naõ digo por me naõ alargar, & porque fey fenaõ
ha de remediar ifto, por mais que efcreva. Aqui eftive
muyto mimofo deftes Cafres, principalmente dos Reys,
& antes que me foífe morrerão fete peíToas,entendo que
foy de muyto comer, porque vinhamos muyto fracos, &
debilitados,& depois com a fartura naõ reparárão no que
lhes podia fucceder, & foraõ os feguintes , Thomè Coelho de Almeyda, Vicente Efteves, João Gomes, Joaõ
Gonçalves o Balono, o Condeftable, &. Bras Gonçalves.
Vendo que havia dous aímos, que alli naõ vinha
embarcaçaõ, & que corria rifconaõ vir aquella monção,
me difíe o Motepe, que he o negro, que fervia de lingoa,
que como paífaíTem tres mezes, &: os Cafres naõ vifiem
donde lhes podeífemos pagar os gaftos, que a gente tinha
feyto , que a mim fe haviaõ de tornar todos, que foífe a
Zofala,que como eu era taõ conhecido,não faltaria quem
me empreftafíe quatro bares de fato, com que vieífe refgatar aquella gente, & que elle fallaria com os Reys,
dizendo-lh?s, que indo eu a Zofala faria vir logo embarcaçaõ cõ roupa para pagar os gaftos dos Portuguezes. Éu
cííava entaõ muyto doente, & di^e-lhe^ue me naõ atrevia , porque havia de morrer logo no caminho, E indo-fe
ter com o Padre Frey Diogo lhe contou o que paffava, o
qual me pedio muy encarecidamente, quizeífe fazer èfM
ta
$.Tratado do naufragto
to jornada, que não houveííe medo de morrer no caminho , que quem hia a coufa de tanto ferviço de Deos, elie
teria cuydado particular de o guardar. Eu difFe, que faria o que me pedia,que foífe o Motepe fallar com os Reys
para me darem negros que me acompanhamento que fez
logo, & elles rindo-fe, diíTeraõ, que menãohavia de ir
de fua terra,porque eu era o penhor de toda aquella gente. Com tudo là lhes deu tantas razões efte negro , que
o acabou com elles, dando-lhes huns panos que para iífo
me empreftou, os quaes lhes paguey tres vezes dobrados. E tendo licença ordeney de levar hum companheyro Portuguez comigo pelo que podia acontecer, & efte
foy u mais bem defpofto, que havia na companhia, & fe
chamava Antonio Martinz, & depois de os Reys me darem vinte negros para me acompanharem, me defpedi de
todos com muytas lagrimas, os quaes eftavaõ muy defconfiados de eu tornar por elles, dizendo, que de Zofala me iria para minha caía , & que elles alli morreriaõ.
Ouvindoeu ifto, tome y. as mãos do Padre Frey Diogo,6c
beyjando-as,üz hü voto folemnea Deos em alta voz, em
o qual prometti a vir bufcalc ;,fe a mortemo não atalha f~
fe, & com ifto ficárão mais quietos
eu me parti a dous
de Junhocoma companhia, que tenho dito>,fícando a pedraria enterrada em hum cabaço , da qual labiaraos
peffoas, que a trouxèraõ, & o Padre Frey Diogo.
E tendo andado aquelle dia todo fomos paíFar hum
rio, &dormindo daoutra banda,fe vieraõ ajuntar mais
Cafres à companhia carregados com marfim, & ambre
para venderem em Zofala, & aüim o foraõ fazendo por
todas as terras a diante, de mnneyra que cheguey a levar
com!feo mais de cem Cafres,& faziaõ ifto pelo refpeyto?l
^ue por aqui fe tem a hum Portuguez. Por todo efte caminho-
Que teve a Na o S.JoaoBãptifla*
91
minho fuy muy bem agafalhado, & o que mais pena me
dava neíla jornada, era a detença , que me faziaõ ter os
régulos, que por aqui hà, que ainda que efla gente efteja
mais perto de nos, que a do Cabo de boa Efperança,fazem
maisefpanto quando vem hum Portuguez. E depois de
ter andado quinze dias ,fuy ter à povoaçaõ de outro regulo mayor, que os que tinha vifto, ao qual chamam O
Inhame, & tinha vinte molheres, & querendo-me eu ir
logo ao outro dia, o naõ quiz elle confentir,dizendo-me,
que tinha feus parentes longe dalli, & que os tinha mandado chamar para me verem, porque nunca por alli tinha paíTado Portuguez algum,& affim parecia pela muyta gente que concorria a verme, os quaes davaõ muy tos
gritos , &: alaridos, fazendo feita ; & fe me naõ importara chegar de prcíTa a Zofala, não me fahia ifto em perda,
pelas muy tas coufas,que me traziaõ, de que toda a com*
panhia comia, & ainda fobejàva muy to, que depois levàraõ para os caminhos onde naõ havia povoações.
Daqui a alguns dias fuy ter com outro regulo, que
eftá defronte das Ilhas do Bazanito,que chamaõ Ofanha,
o qual me fez o mefmo. L dahi atraveífey hum rio, que
em baxamar fica em feco, & tem de largo mais de tres legoas pafíado elle fiz o caminho fempre pelapraya atè
vefpora de Santiago, que cheguey a Molomono que faõ
jà terras de hum mulato por nome Luis Pereyra , o qual
vive em Zofala, '& he a mais venerada peíToa, que neftas
partes hà. Antes que chegaíTe à povoação foube como
nella eftavaõ dons filhos íeus, aos quaes mandey hum efcrito, que trazia feyto para mandar a Zofala antes que
là chegaíTe hüa legoa, cm que dava conta de como vinha,
& pedia me fizeííem efmola de me mandar po*- amor de
Deos huma camiza,&: huns calções para poder ir diante
M 2
delles
w
$.Tratado do naufragto
delles com minhas vergonhas cubertas; 6c dando-lhes o
dcrito , me mandâraõ o que pedia, 6c huma capa, com
que fuy cuberto, & elles me vieraõefperar aocaminho,
onde os abracey com muytas lagrimas, 6c porque eu vinha fem femelhança de creatura, me fizeraõ deytar em
hum efquife j 6c pedindo-lhe me fízeffem mercê querer
mandar quatro Cafres feus com hua rede, em que ^u tinha vindo em bufca do meu companheyro, que me ficava
atraz muyto mal duas legoas, o fizeraõ logo, 6c ao outro
dia me fizeraõ concertar hü luzio para nelle paífar a Zofala. Atèqui me morrerão dezafete Cafres por a terra fer
muyto chea de alagoas fedorentas, 6c eu, & meu companheyro e(lavamos muyto mal ,6c embarcando-nos fomos
dormir áquella noyte a Quelvame também terras deLuis
Pereyra , aonde me matàraõ hum carneyro, 6c fizeraõ
muy ta feíla.
Ao outro dia à tarde vinte oyto de Julho fomos a
Zofala, 6c como os cafad^s, 2c Luis Pereyra viraõ vir a
embarcacaõ pelo rio acima foraõ aborda dellc, aonde os
Cafres com muyto grandes gritos diííeraõ: Muzungos;,
anuzungos ,6c faltando log dentro me vieraõ abraçar,6c,
eu que apenas podia andar, fuy com elles fazer oraçam
à Igreja aonde pedi mandaíTem trazer o meu companheyro , que vinha tal, que depois de chegar pedio oonfifíaõ,
6c confeífando-íe deu a alma a Deos, 6c alli o enterráraõ
logo , ficando eu defconfoladiíltmo. Dalli me mandou
levar Luis Pereyra para humas cafas1, aonde me mandou
dar todo o neceiTario atè que Dom Luis Lobo veyo, que
era Capitaõ da dita fortaleza, 6c como eu eílava já muyto mal, me levou para caía onde eílive ungido; 6c depois
de eftar alguns dias convalecente, lhe pedi me quizeífe
fazer aiercè empreílar ouro, com. que pudeífe comprar
qua-
Que teve a Nh S. João Baptifta.
93
quatro bares de fato, & que lhe daria todos os ganhos, q
elie quizeiTe, & obrigaria todas as fazendas que fabia tinha na índia ,s & que alem de não arrifcar nada, me fazia
muyto grande mercê
efmola aos homens que em Inhambane eftavaõ, que como era morto Nuno da Cunha,
que era o Capitaõ daquellas partes, & havia pouco fato»
não havia de ir là pangayo, & elles ficariaõ parecendo;
Elie me diííe faria tudo o que lhe pedia com obrigar minhas fazendas, como logo fiz.
E porque a difpofição, em que eftava, lhe naõ parecia capaz para tanto trabalho, me requererão não fizeffe tal viagem, leni br ando-me qual era o eftado em que
eivava, & as muytas mercês, que Deos me tinha feyto em
me livrar donde tantos acabàraõ, & pois eflava em terra
de Chriftãos, que me deyxaífe ficar, que hü homem era
mais obrigado a fí, que a outrem ninguém. Ao que eu diff e , que nunca Deos quizeífe, que perigos da vida foífem
parte para deyxar de fazer o cue tinha de obrigação, que
era ir bufcar meus companhsyros. E vendo elles efla de*
liberação,fe na5 canfáraô mais em me fazerem eftas lembranças, & comprando hum luzio grande a Luis Pereyra
por cento & vinte metiquaes , meti os quatro bares de
roupa, que tinha comprado , & levandocomigo hücompanheyro Portuguez cafado na própria fortaleza, me
parti paralnhambane a quinze de Agoílo, & pela detença , que fiz em Quelvame cheguey com muytas tormen?
tas milagrofamente por cima de Inhambane dez legoas,
& cuydando não tínhamos ainda là chegado, queria&os
Ma lemos ir por diante, & como cu conhecia a terra por
haver pouco que por ella tinha paífado, diífe, que nos ficava atraz, & fazendo para là noífo caminho wmos dahi
a.tres horas a Ilha, que na boca tem, & indo entrando pe,
M 3.
lo
p4
Tratado do naufrágio
lo rio acima chegámos à tarde a Inhambanejonde me vieraõ coios receber com muytas lagrimas dizendo, que
a mim fe me devia tudo, & que eu os vinha tirar do cati.
veyro de Faraó, & que os Cafres já lhes não queriaõ dar
de comer , & os dey tavão fóra de íuas cafas, & que íe tardara mais dez dias morrerão todos fem nenhuma duvida:
mas duro5; muy to pouco eíte conhecimento, porque depois que gaíiey em os refgatar tres bares de fato, deípendendo, & pagando em particular quanto tinhaõ ga fira do,
tratando de querer ir com hum bar, que me fícàva,às terras do Qiievendo para dahi refgatar toda apedraria, &
peíTas ricas que nos tinhão roubado, para quefeus donos
me pagaífem conforme iilo merecia, porque tanto que
cheguey a Inhambane, mandey hum prefentea efte Rey
Que vendo que foy o que depois de roubados nos trouxe
a Inhambane, dando-nos de comer, como jà tenho contado , o qual era dous panos de pate, & meya corja de bertangis, em agradecimento do que por nòs tinha feyto, o
qual ficou taõ grande, que logo mandando ajuntar toda
a fua gente, matando muytas vacas para celebrar co fef- tas a taõ grande honra. Ef 3 me mandou dizer, que ficava éfperando por mim para ir comigo onde nos roubárao
a refgatar tudo quanto nos ha vi aõ tomado. Equerendome eu fazer preftes para a jornada, deyxando a todos livres , & com roupa para poderem comer largamente em
quanto eu là eftiveffe, me encontràraõ efta ida, fazendo
queyxa aos Reys de Inhambane, dizendo, que para que
coníentiaõ irme eu , levando tanta roupa fóra dasfuas
terras,devendo ficar toda onde nos agafalhàraõ: os quaes
como ouvirão ifto, me mandárão dizer ,que por nenhüa
via me b ,via de bolir dalli, fenaõ para Zofala, que empregatfe a roupa,que me ficava em as mercadorias da ter*
ra,
Que teve a } "ao S.Joao Baptifta*
9j
ta 5 que erao ambre, & marfim, & logo determinarão de
me roubar o que tinha, minando-me hüa noy te a cafa.
Vendo eu , que todos quantos hiam na companhia erão contra mim >defiíti da ida, que pretendia fazer , 6c mandey dizer ao
Quevendo, que não podia ir là, que quizefie mandar bum recado aonde eftavão os furtos»que vieíTem , que eu os refgatarja, £c
que mandaâe feu filho com elles. Refpondeo-me, que me detivefle >que dalli a tempo de quinze dias v*riaó todos com o feu fi»
l h o , & que para iíTo hia elle mefmo là ter com elles. E tanto que
eftes ho aens foub; rão, que eu havia de efperar pelos negros, íè •:
forão todos à u iharcação, em que tinha vindo , & a botarão ao
mar, & antes que fofíe monção me fizerão embarcar à força,.porque atè o Padre era contra mim. E fazendo-me dar à veíla, tornámos a arribar por ler fora de monção, 6c aqui 11a cofta fer muyto tormento fa» Depois tornando a fahir fora, nos deu tão grande
vento do mar , que nos fez dar à cofta doze legoas de Inhambane,
donde atè Mc ionone fornos marchando, 6c dahi em almadias atè
chegar a Zofala. Veja voíía mercê a paga, que me derão de os eu
ir a bufear com meu dinheyro, que ic os não quizera trazer de Inhambane, 6c empregara là a roup? > que com elles gaftey, em
ambre, fem duvida, que trouxerr mais de quinze mil cruzados,
por fer muyto ,, 6c haver dous annos , que não tinha ido roupa a
cite porto. E realmente, que me maravilho todas as vezes que
imagino,, que houve taes homensnòmundo » que permiítiUeiTi
viefle hum eftranho a reígnta - o que havíamos trazido á culta de
tantos,. 6c tão grandes trabalhos, 6c padecendo tão excxffivas fo-.
mes, como já tenhe dito, antes que eu, que os vim fer vindo a todos , fem exceptuar nenhum, 6c por quem derramtfy muy to fangue > Sc a quem,elles tinhaõ tanta obrigação. Seja Dcos louvada
com tudo: mas eítirnàra ficara tudo iíto em. memoria , para que
daqui por diante vi flem , 6c attentaíiem os homens por quem deviaõ arrifear fuas vidas, 6c perder fuas fazendar.
Deita fortaleza de Zofala nosfomos para Moçambique com
mcii">s quatro companheyios- noílbs dos que aqui tínhamos chegado Antonio Sigala, que matàraô cm Zofala, Pero de Von es
marinbeyro, que íe aufentou por hum furto, que tinha íc^ ,kr\ hü
Grumete, que ficou cafado,6c Fru&uofo de Aadrade, que cahio
no
*
«
Tratado do naufrágio
110 mar na barra deita fortaleza, 6c chegamos a Moçambique as
peílbas feguintes : o Padre Frey Diogo dos Anjos, Antonio Ferrão da Cunha, Vicente Lobo de Sequeyra, André Velho Freyre , & também o Piloto Domingos Fernandes, & o Sotapiloto
Fran:ifco Alvrez, Miguel Correa efcrivaõ , Pero Diniz tanoeyr@, João Rodrigues de Leaõ, João Ribeyro de Lucen Joaó Rodrigues carpinteyro, Manod Gonçalves, Joio Carvalho, João
Tavares t Antonio Gonçalves , Mànoel Gonçalves Belem ç Sebaftiaô Rodrigues, Diogo de Azevedo, Salamam Frances, Ventura de Mcfquita, Fru&uofo Coelho, hum Grumete, que chamaõ o Candalatu, Domingos Salgado, Belchior -Rodrigues,João
Coelho, Alvaro Luis, & Luis Moreno.
Defembarcando cm terra fomos todos em p roei fia õ a noílà
Senhora do B iluarte, levando hüa Cruz de pào diante, cantando
todos as Ladainhas com muy ta devaçáo.E depois de darmos graças a Deos pelas muy tas mercês, que nos tinha feyto de nos trazer a terra de Chriftãos, fez o Padre Frey Diogo hüa devota pratica , trazendo-nos à'memoria os muytos trabalhos , de que Deos
nos tinha livrado, & lembratido~nos a muyta obrigaçaõ, que tínhamos todos de fazermos d^lli por diante vida exemplar. Daqui
fe foraõ todos bufear embarcado para fe virem para Goa.
%
LAUS
D E Os
Download

E JORNADA QUE FEZ A GENTE QUE DELLA ESCA