ALMADA, Francisco Vaz de, sec. XVII TRATADO1:DO SUCESSO QUE TEVE A NAO S. JOAMBAPHISTA: E JORNADA QUE FEZ A GENTE QUE DELLA ESCAPOU, DESDE TRINTA & TRES GRÃOS NO CABO DE BOA ESPERARÁ, ONDE FEZ NAUFRAGIO, ATÉ SOLFALA, VINDO SEMPRE MARCHANDO POR TERRA... / [POR FRANCISCO VAZ DALMA] : — - EM LISBOA: POR PEDRO CRAESBEEC 16 25. 95, [1] p. ; 49 (20 cm.). 32, 2 , 17 A n . 3 (coleção dos Naufragios) TRATADO DO SVCESSO QVE T E V E A N A O S. J O A M BAPTISTA, E jornada que fez a gente que delia eP, capou, deíde trinta & tres grãos no Cabo de Boa Efperança, onde fez Naufrágio, ate Sofala, vindo fempre marchando por terra. %A Diogo Soares Fazenda Secretario da Confelho de Sua da ageflade7c. A ü Z E N T E A o Padre Manoel Gomes da Sylveira* Com licença da S. lnquifiçaõ, *r i M I Í III .ulrT • EM Ordinário, •IMHII1I I & • • III •••• LISBOA. Por PedroCraesbecí:Impieífor delRey, anno Sá. • I I Paço: 1- V, h «•*» . • i\ V ,'\ .V * r-% S ?" /'. • t. ti (U: '7 .. . , •\Ji\ "•'„ f " •• ; ' I , J" i,.^ • ' C3 T; rA ' «s «.f H ^ i' Í" Is u s ,' j •rX-W 1 v., • ft o À, '» ' 1 ' • -'•-•s-,f ik^i'-r^MX.^ t" ' •«Wvt. ' .» ' ï A' .. ..fi-1:; . O H «/ : , ?1 1 i M ^Ho^HSâ f«. s X f 1' * ,» VvUkJ A DIOGO SOARES SECRETARIO DO CONCELh da Fa5xr1di.de S. Mageftade,&e. auzenté, ao Padre Manoel Gomes da Silveyra. Smuytos defejos, que tive de bandar a V. M. a relatoria dejiefitcsejfo,me obrigarao afazela em doze dtas% antes que efias Nàts^ue Veos falve, fe partijfm, £ defcudeyme tanto porque me tinha dito o Padre Frey Diogo dos Anjosy quefoy também companheyro, quefazia hum tratado muy co• piofo, contando miudamente todas as particularidades, ^ jornada fuccederao.EpedindolhoeuneJie tempo para mandar o treslado delle a VM, me dtjje, 0 puderafazer por ef* tarfempre doeme, & porque também lhe nao tinhaõ dado tempo as obrigações da Religião.Ejiefoy o reJpeyto>que me moveo a fazer efte>findoajfm q nu dk muyta pena efcrewfyualq*wr carta larga, quanto mau tantas folhas de papel, mayormentt nadfabendoeuo eftylo> com que feifto cofiumafazer. Pelo que pefo a V\ M.que antes que o moftre o veja muy miudamente, * w^and^he o cjlylo, & o mais de çie vir tem necejfidadt, re* Iç ando mi nhnsfaí m amigo. E depoü que ejiiver parê fe ver empublicoy * ; que lhe parecer. Francifco Vaz Dalmada. v,0 â a a ' A O ' ? , vSj'anwoD o ti r» " ? loomm . .r : -i *'•- V•"- D O «»• tf X ,f * il i -, j""í W V V- i •" «,.: h : t.. ..• . ï « . .',' li' Íl ? f-> . . ! oiDfj "0-J5 ^ s p v í i c i-fc * í» *. â O zsmntj ^ rrj^r;" • • y v'x T^Wi ski.v^ittv: /a.ù, vs*\ia v. h ' • fc\ * W.*»' S • \ . *W»V5 •V-,£\«>iv\ K .<4 «. •,.> « íV •«'"> M ' "í ï : ; •v;; - • t • ' . - f A»wA^i ' ""V;'' c . v'iï^i ^ "V •'• 'VU^ í ".Vi • m t^S QftV-^'t!-; « ö^i^v/.ttKU'ft iWth• V. • _ v "tA^ír.Vw^'' v..'-. 1 . "vv- ; V;."wcví t :vi ' ï í. V, / . ». ..V , t^iv.',..; .Ví-.íV. {•;!>«. -HI-..V-. \ :»V) V. » •!<:••-V. *- î 'Vvj -H y,. i ".,.'' < Cv.,1». í, 4 „ -..5 -t n A. y ..,} s li i- \! -Ú "V;, Ö 0 .-j • Pag i I A V F % J Ç 1 0 Da 3SQr í f $ <BaptiJla no Cabo de "Boa &JJ>eratiça no amo de 1622. M o primeyro dia de Março f^i" ^ vinte dous> partimos d? jarra ae Uoa a JNáo Capitai?U 9 de que era Capka-õ mòr Nuno Alvares Botelho, Sc a Náo Sau Joâoj de que era Capitaõ Pero de Moraes Sarmêío,& depois de termos navegado quinze, ou vinte dia? indo-fe vera bomba feacháraõnella quatorze,ou quinz e palmos de agua> & tratando de a efgot. r, não foy pofiivel, porque eraõ pequems a? bombas, que a Náo trazia, por ferem feytas para hum Galeaõ > de maneyra que as desfizeraõ ? & acrefcentáraõ ? & nunca pode íervir mais que híía 5 & com barris fazendo baldes deli es a puzemos em eftado de quatro palmo° fr- "f^r iioíTa viagem com grandrs calmanas acè vinte cinco grãos, que dahi por diante tivemos notáveis frios. A dezafete de Julho nos apartamos d;: Náo Capita^ nc per fe *v»?V vti •> forol: outros dizem» ^' > ^zer os otticiaes. De mim fey dizer a V. iVÍ. conv qi -u perdia tanto em perder a companhia do Capi- j mòr, que toda a noyte vigiey, & que mm. a © vi. Em dezanove de Julho hum Domingo pela manhãs cm trinta & cinco^ ? & meyo largos vimos por noíTa proa du£S Náos Olai; ,:za?, Ja. logo nos fizemos preltes, poiiúo a Náo em armas, o que nos cuftou muyto trabalho p or efiar eirpachada y de ma^cyra que ainda aquella "• " " '" A * tar«* r:v?. Tratado do naufragio te lhe demos duas cargas, & fomos br;ç* ido com eftas duas Náos, entr inchey randono; coai .ardos de li. jberdade0 & foy efte grande rerje ^ P? r Iiei diante matàraõ muy pouca gente ^feh.dc^ ^4iní que nos primeyros doüs diastjtrè hàfõ títAgmos efta diligencia nos matàraõ vinte homês, atèaltui a de quarenta «r ^ " ç grics em éfpaço dedezanõve dias*3 dos quaes fó Jiovv. brigáraõ^om nofco de Sola Sol çàda dia3& riosjpu^ zer&5cem o maismiserável eftadò que fe pode imaginar,; porque; nos quebrár&o o gouropès pelos cabreftos com íbombárdadas5& ò mafíro grande dous covados por cima dos tambores, & o traquctc, & o leme/poftoque era^e* l h o , que tinha fido dé hüa Náo, qüe ern Goa í e desfez, & havia dous unnos, que eftava deytado na praya, & podre, que deita maneyra fe coílumaq haviar as JNaos nefta terra.Digo iíto, porque o naô termos leme foy califa de noffa diftruiçaô,porque vinha elle tal, que fó duas bombardadas baftáraõpara o fazer em pedaços. Enàq foy efta a fàt a ; com que efta Náo par tio de Goa, por? que naõ truuxsmuniçòes, nem polvora baftante pari po* der brigar, trazendo fó dezoyto peças dò artilharia de anuy pequena cala, &: com ferem eftas, brigamos atènos uaõ ficarem mais que d- is hirris de oolvoraA vipt> ovto cartuxos. h ' Vendo-fcque a Náo naô tinlie ar sove nenT\üa, & as cntenas de fobrecellente todas cheas de ^iouracias, que a que tinha menos tinha n o v e ^ a Náo indo-fe ao Lnda com agua, porque nos fundiárâõ a pd ouradas porhuma braça debay xo d'agua ; & o leme r -Mo .quebrou levou duas femeas comíígo, abrin*> os l jracos das cavilhas das mefrrras femeas, de modo que nos hiamos apique m>.úiv: do fem podermos vencer a agua , riem fe ter efperança Que teve a Nao S.JoabBaptifta. xj de remedio úgum dando de noyte, & de dia à bomb^òc gamotes tot gtii^o de peíFoa, tra? áraõ os Religiofos úxs haver algun concc > de modo que fe entretiveíTenvos inimigos,p, a v, ae entretanto viíTemos fe podíamos vencer a agua, tapar alguns buracos. E para iffo me pediraõquizeíle er ler huma das peíToas , que trataffe comosOlandezes bum concerto honrado, fobre e que tive ínguas razões com elles, & diffe , que quriii quena ^ tal concerto* f*^ foíTe lá, & que não erac meus amigo? J tal me aconfelhavaõ, & me iuy me* r na eftant.a, dt o Capitaõ me encarregou , de maneyra, que na5' vi batel a bordo,nem Olandezes, ficando odiado com muy ta ^ente da Náo. Depois pedirão a Luis d* Afônica a Maiiowa Peres quizeffem ir fazer efte contrai o, os quaes foraõ, & as tormentas foraõ taõ grandes, & continuas, que naõ vimos mais a Náo para uuue eftes dous homes foraõ. A outra nos fo; 'guindo íem nos querer abalroar,& madou faber pelo batel fe viramos a outra fua Náo, porq tinha defapparecido delia,& d a muyta agua, que de contino fazianws ^ ando deLparelhauoc,, cx • ,os de todo o remedio, v*yo faber, que c eterminaçaõ o i a nofla , & eftando toda a gente muy miferavel, & <Mct níiada lhe diífemos, que naõ fabianos da "' 10, & com e' U repofta íc ... batel J ^ i., .onde vie eftando nòscada vez mais v. *ot íoidi porque padecíamos as mais nota* r veis toj menti. & frios, que os homês viraõ, chovendo n e \ ' .íuytuü vezes, de maneyra que morrerão miiytoi* çfcravoscom os frios , os quaes nos faziaõ rr.iyta f::3t-: pelo remedio da boi & alijar ao mar , oque tudo fazíamos continurmen & c. ~n trabalho por as tormen9 tas balanço* da Náo não darem lugar a que fe acendeífem os fogões, que era ca^fk defles trabalhos nos íicarem $ . Tratado do naufragto % e m fendo muyto mayores. EfiandoneO^ eftadofizèmoshiia bandolado niaftro da mezen^, &> puzemos m proa 5 & o botalò por goroupes, *, hiamo> para onde o vento nos levava, de maneyra que niuytas /ezes era o vento bom para virmos para terra, & a N áu tomava na voltado mar r que corno não tinha leme, nem governo j cndí va de lè para onde o vento a levava. Ifto tudo aconíeceo andando^mquarenta &: dous grãos, & vinda-nos fem^efeguindoefta derradeira Náo. E hünuoyte íen* dücomeitana volta i o mui4, por fer grande o efcuro, ôc a tormshta, amaynamos a bandola, pedindo à Virgem da Coiiicyçaõíque permitiíTe a Náo tomaffe na volta da terra, ficando apartados da que nos feguia: E aífim focedeo, porque amanhecemos na volta da terra, na qual fomos muytos dias As Náos Olandezas pelo que agora foube^ Tnos nos foraõbufcar na volta do mar atè altura de quarenta & leis graos:là fe deve contar o eftado,em que chegáraõ a Zacotorá. A nos, como tenho dito nos pareceo tinhamos mais remedio apumndonos das Náos pelas coutmuas tormen-" tas, & buracos que de novo fe abriaõ, & por a gente vir toda defmayaia com os trabalhos, 8c além defte ? que digo acudiaõ a hum leme que no convés fe fez , o qual o carpinteyro da viagem meteo em z^b^a ao Ct q em tal altura, & com taes tempos o ia ae m e . ^ 3 fendo a ílim, que muytas vezes deyxaõ as ei .barcayjes de o meter eftando em bahias, & rios com qualquer altc * çaõ do tempo. O Capitaõ Pero de Moraes como naõ era muy experimentado, fuppofto que valente,naõ quiztomar parecer dos officiaes da N | - , ne. das peíToas, que nella hiaõ de mais experiencia, & feguio o de hum vil ^ e r * tinaz , naõ querendo uíar do remedio de efpadellas, que Quetevea NaoS.foào Bápttfta. % foy fcmpre o o;je as Náos coftumáraô faltandolhe leme* E por derrad syro ny^ca efte leme fe pode meter, andando quinze a m a n d o pela p opa,aguardando, que tiveííemos alguma quietaçaõ para o poder meter; & que* brandonos os viradores, com que eftava amarrado o perdemos hüa noyte , & tivemos, que fora mercê de Deos,} porque nos quebrava a N i o com as continuas r que fempre eftava dando. v-l .-• Em quanto Çe^fto fazíc,-- ef^eravámos cada « nói foflfcmos aofundo^ &naõ tinfiamos^á mais efperanças, que da falvaçaõdas almas. Os Reli giolos, que nefta Náo. hiaõ, exhortavaõ as mais peíToas fizeffem penitencia de feus peccados, fazendo prociíToês os mais dos dias>&:< difciplina da qual fenão efcufava pequeno, nem grande,; antes todos aíliftiaõ com muytas lagrimas. E tivemos t o dos neíias miferias, que fora caftigo de Deos apartaremfe as Náos inimigas de nòs; porque tínhamos por couía nunca acontecida vir hüa Náo fem leme r nem vellas de taõ longe em partes taõ tormentofas, a porto flfeüm; N o que fe vio fer manifeftamente milagre da V irgem, comoacima digo. '• Depois que o leme defappareceo fe fízçraõ duás ef-pidellas rcsyto b^mie$(ías dos pedaços dos maffros, 6c gJ/oopçs^."queCcár^»metidos n a N á o , & fe pòdeaífír-; mar yqueí.naõho^vefemedioalgum humano, que fenão ufaífe, que c^vo cada hum tratava de remediar a vida, era o trabalho geral de todos. Feytas às efpadellas como naõ tinhaõbandolas, nem paos de que as pude nem lazer, naóhia a Náo defpedida. Depois deftes remedios todos ficou a Náo aos mares toda desveyta, porque os inimigos desiízeraó amayor parte dos caíHlos,ficando os prègos, .& amadeyra em rachas,efeadeada, & cqmos grandes. B bala a- $.Tratado do naufragto balanços,que a Náo dava cahia a g e n t e ^ fe feria, & por eftc refpeyto fe acabàraò de cc ' ar. Acabando nefta confufaõ, & aperto, em vinte nove de Setembro fomos amanhecer duas legoas da terra em trinta & tres grãos, 6c hum terço, & foy tamanha a alegria em todos como fe fora a barra de Lisboa, naõ imagiiiandbc muyto caminho, que tínhamos para andar, Òc o* trabalhos, que aguardavaõ ao diante, briga da Ná^ nl morrerão i omc. ccxihecidoíf falvo }daõ d* Andrade Caminha, U joaõ de Lucena. Lopo de Soufa, que Deos tenha no C e o , & o Capitaõ Vidanha aíliftiraõ no €onvès, doncfepelejáraõ valerofamente, & ficou Lopo de Soufa ferido com tres dedos menos do pè efquerdo, & o pè quebrado todo, com hüa raxa em hum quadril,outra na barriga, outra no roíto, &c duas na cabeça > & o Capitaõ Vidanha com duas raxas, hüa na cabeça, & outra na barriga. Nocaftello de proa aífiftio Thomè Coelho Dal* meyda, & da tolda do Capitã o aííiftio Rodrigo AíFonfo de Mello; 3c eu nas peças do leme, aonde o inimigo mais frequentava, porque todas as vezes,que vinha dar carga* dava nas primcyras peças, tendo primeyro dado no goroupès por bayxo da v ^ n d a atirando ao leme. Não trato aqui do procedimento, que nefta tr o com} Wv^ tivemos, nem o dano, que os Olanues. ^s i ~cetjjtac , porque efpero, que elles proprios fejaõ os p*egoey ros nefte particular. Aquelle dia não nos pudemos chegar a terra tanto como oeíejavamos para nella furgir, fk defembarcar,mas ao outro pela manhaã ,que foy dia deS. Teronymo amanhecemos mais abayxo, & mnis juntos a terra, o: " t o a Náo naõ tinha governo, tememos, que defvairaífe indofeparaomar.E porque nos pareeeo hüa praya d€ area, Que teve a Nao S.Joab Baptifta. xj & bom defembircadouro ( o que depois conhecemos não fer afíim) furgimos em fete braças com duas ancoras. Mandou logo o Cartão a Rodrigo AíFonfo de Mello com quinze homés arcabuzeyros reconhecer a terra, & tornar bom fitio donde fe defendeífe a defembarcaçaõ > o que elle fez com muyto cuydado como fazia tudo, & nos mandou agua doce , & hervas cheyrofas, com que nos caufou notável alegria. E porque naõ fic;e cafojiotavci acontecido nefta viagem A quero comar a Y. M. o fe* guinte. " Vinha nefta Náo hum homem por nome Manoel Domingues Guardiaõ delia,ao qual o Capitaõ tinha pofto no lugar de Meftre por elle fer morto, Efte fe fez taõ foberbo, mal eníinado, &: livre, que .havia poucas peffoas com quem nãoliouveíTe tido hiftòrias. E como tinha a mayor parte da gente do mar por fí, fe deíavergonhou de maneyra, que fe foy ao Capitaõ, & lhe diíTe: V . M. pela manhaã ha fe de meter no batel com trinta home s, que para iífo tenho éfcolhido, & havemos de levar com nofco toda a pedraria: & faltar em terra daqui a tres legoas onde moftra a carta hum areal, ct havemos de atraveffar eífa Cafraria atè o cabo das Correntes, porque í?jlim iijdo fó trinta peífoas efeoteyras com fuas armas jpòderemos checar aonde digo, & tratar de ir com arrayal de mulheres , & mininos por terras, taõ fragofas, 2c caminhos taõ longe, era fallar no ar.Perode Moraes lhe a-eípondeo naõ havia de fizer tal, que naõ queria que o caftigaíle Deos q conta havia de dar ao mefmo Deos, & aos homés em commeter tal crueldade , & que nab tallaffçt-iô livre. Elie refpondeo, que quer quizefíe, quer Wt/quizeíTe o havia de tomarem braços botar no bat e l DiíTxmulando o Capitaõ vfndo o danado intento que Ba eftc tt Tratado donàufragk efte homem levava,& os muytos trabalhes ,laftimas, 6c perdas que de taõ mao confelho haviaõ de refultar, fe deliberou ao matar, &afíim o fez a,atando-o às facadas o fegündo dia depois deeftar a Náo furta, f e n embargo, que o Meftre andava já de fobre avifo, cuja morte foy fentida de poucos,& feftejadade muytos. r * Depois íè poz em terra o mantimento, & armas neCeifarias, aíndi, nue foy com muyto trabalho inorque era a cofta brava r de a, meyra qu«* todas ar vezes, que o barei ^ .jLCi: Marcava ais u,a c^aía antes que chegaíTe havia de furgir com hua fateyxa pela popa> & h'aVia5 de faltar em w r a tendo maõ nelle, de modo que ficaíFe direyco pofto ás onda« - em tanto que hua vez que não furgiraõ pela popa , fe aioglraò dezoyto peífoas ao de&mbarcar (de hüa fó batelada. Efte foy o refpeyto, porque depois fe não tratou de fazer embarcaçaõ, porque he efta coita taã tormentofa, que fe temeo, que depois de fey ta fe naõ podeífedeytar ao mar. Aos tres de Outubro eftando nòs acabando de defc embarcar as coufasneceífari is para a viagem da terra, & fazendo noífas choupanas, aonde nos pudeffemos recolher dos grandes frios, que naquella paragem faz, o tempo , que aíli podíamos eftar, derac rebate ^s home s , quo eftavaõ de vigia, que vinhaõ negros. Tomámos armas, &. elles fe vieraõ chegando a nòs, dando as azagayas, que traziaõ a feus filhos ,atè que ítcáraõ muyto pegados com nofeo aíFentados em cocaras, tangendo as palmas, & affubianHo mnnfamentede modo que tocbs juntos íiiziaô hum lom concertado, & rnuytas mulheres, qne com elles vinhaõ fe puzeraõ a baiihar. ^ftes negros íaõ mais brancos, que mulatos, homens corpulentos , & fe disforn^a com as unturas de almagra* carvaõ, & cinza, com que ' ' ordi- ' Que teve a Nao S.Jom Baptifta. i -j ordinariamente trazem o rofb pilhado, fendo aífim,que faô bem afigixados. Trouxeraõ de Sagate efta primeyra vez hum boy capado grande, & fermofo, & hum fole de leyte, &; o R ey o aprefentou a Rodrigo AfFonfo de Mel« lo, que enrau fervia de Capitaõ por Pero de Morae s eftar ainda na Náo. As cortefias, que efte Rey fez ao Capitaõ, que digo, foraõ encayxarlhe a barba muy tas vezes* E depois de nòs lhe darmos o retorno do °agafe, que fôraò hüs peuaços de arcos de ferro, & nuns bertangi«, f e foy o Rey ao ooy, <3co manao^ abrit, eftando vi\ ^elc umbigo, & elle com a mòr parte dos que trazia meteraS as mãos nó buxo do boy, que ainda eâavá vivo,& ber*?m* do, & fe untáraõ todos com aquella bofe&r entendemos^ que todas eftas ceremonias faziaõ em f é 5 c final de amizade*, & depois cortáraõ o boy, & nolo entrteáraõ cm quartos, tomando elles para fi o couro > &; as tripas, qu£ logo comerão alli mefmo pofta nas brazas. Em hum mez, & feis dias , que alH eftivemos fe nao pode entender nunca a e í l i gente palavra algüs, porque o feu fallar naó xie como de gente, & par? qualquer coufa, que queriaõ dizerdavao eftralbs com a boca, hum no principio, outro no meyo, & outro no cabo, de modo que fe pôde dizer por eíles: que nem a terra he todahüniai nem a gente quait quaíí, Eiíando já entrincheyradòs em terra, fizemos hua Igreja cubem com velas forrada toda por dentro de cobertores da China borlados de ouiro,& de outras muytaá peças ricas, de modo que toda eftava cofída em „ na qual fe diziaõ tres MiíFás todos os dias, & nos confeífa?iios ,& comungamos todos Ordenou o Capitão Pero de ..v^iaes depois que os home. d j mar difTerãoquefenão podia fazer embarcação,fe queymafíe a Náo por os CaC: .I B % ~ fres X 14 Tratado do naufrapo fres fcnao aproveitarem dos pregos,& nos ficar oreígate caro, & que a pedraria.toda,que na Náo vinha, fe me-, teííe emhüaborçoletanos propriosbifalhos, em que os homês, a quem fe entregou a traziaõ mutrados yôc tudó iffo com papeis autênticos, dizendo, que pois o trabalho de a vir defendendo era de todos, que também parecia razaõ, que o galardão, & provey to , que difto fe tivwTe, ibíTe de todos v cabendo lhe pro rata a cada hum conformeíeus procedimentos, alugar. / Ivc.^e tempo hiá mos 1 ígatando v aras, que comia-í mos, poftò que não erão tantas quantas havíamos mifter> & a* que nos pareciaó boas para trabalho as guardavamos em hum curral de eftacada, que para iíTo fizemos, acoftumando-as a andar com albardas ,que para iíTo fe fí-> ZGvto de alcatifas muyto bem feytas , que não faltarão officiaesna companhia, que íoubeffem efte officio.Eu nefte tempo como cheguey a terra doente de gota, & mal dc loanda,&vi o muyto caminho, que tinha para andar, tratey de fazer fahidas, tomatfdo hua efpingarda a melhor defete que trazia, & me andava à caça, hora para a banda do cabo >*e boa Efperança, hora para eftoutro do cabo das Correntes, que .como fou filho de caçador, & criado na caça, foy me iílo de gofto, & pro ,r eyto, porque ao cabo de hum mez, & feis dias, que neíía terra eftive* mos, fíquey taõ forte, & bem difpofto, que poíTo dizer, que ninguém no arrayal vinha com melhor difpoíiçao que eu. feis de Novembro partimos áéfta terra de trinta & tres gràos em hum arrayal formado,em que hiaõ duzentas fetenta & nove peííW; repartidas em quadro efr tancias, de que erão Capkr.es Rodrigo AíFonfo de lo, Thomè Cpelho Dalmeyda, Antonio Godinho, & Se-; baftiaõ Que teve a Nao S. Joab Baptifta. xj foaftiaõ de Moraes, A companhia de Rodrigo AíFonfo de Mello,& de Sebaftião de Moraes hia na dianteyra, o Capitaõ Pero de Moraes hia no meyo com a bagagê, & mu-í. lheres,&- T> )mè Coelho,& Antonio Godinho vinhaõ na retaguarda. Trazíamos comnofco dezafete boys carregados com mantimentos,& coufas para orefgate neceíTarias^Ôt quatro andores, em os quaes vinhaõ Lopo de Soa* fa,Beatriz Alvrez mulher de Luis d* A r i:*ieca,D JJrfulá mulher ,q"e fov de Dominga 0.fdofo de M e l l o , ^ . váy de Dona Urfula. Elie dia foy de muyta chuva, & como a ronfas naõ hião ainda bem concertadas, andaríamos hüa legoa, & aíTentamonos á borda de hum rio dwagua doce,& tivemos roim noyte por chover íVmpre.Eíla terra he toda cortada de rios de muy boa agua,& tem lenha* mas falta de fruita, & de mantimentos, fendo afíim, que parece tal, que dará tudo o que nella fe femear abundantemente. A gente que nella habita naõ fe fuftenta mais que de marifco,& dehíias raizes como tubaras d* terra, & da caça. Naõ conb^em í nenteyra algüa, nem outro modo de mantimento 5 & aíí n andão bei \ difpoftos, & valentes, & fazem coufas notáveis de forças y &Iigeyrezas, porque tomao a coifo hum touro, & o tem mão fendo slles os mais mo jftruofos animaes de grandes, que fe podem imaginar. Ao outro dia lete de Novembro fomos fazendo noffo caminho fenpre pegado pela praya, & tendo andado obrp de ires legoas, á tarde aíTentamos o arrayaí à borda dehumrioj&puzemos noíFas tendas em redondo,metendo de noytr as vacas no meyo, pondo noíTas poftas de fo .ondas com muytocu\ dado, & vigilância , mas não nos valeo iíTo para que os Cafres deyxaífem de roubar todas o s vacas , ainda que nao foy fnuyt° a feu falvo, por- tí Tratado do naufrágio porque como eftes G tfres fao grandes caçadores, trazem cqníigo feus cães dc cs ca •> ôz como eílas vacas faõ criadas entre elles, & as vigiaõ dos tigres, &: leles,que nefta coftaha', os quaes.caos quando os fentsm ?sdeípertao; com feus ladrldos, & affim andaã fempre juntos, & mifturados com eilas, ainda que animaes brutos, conhecemfe, & fefaztm fe&a. E como as vacas fe hiaõ afaftando da terra onde fe -ao, de.con.tino davaõ berros como fau-i doW.>Ícno.«.|íiar£v d\d/ayKdo os Cafres botar os. cães-, dentro coin grades-aílobios, & gritas, as vacas como os íentiraõ íaltái a5 por cima das tendas fugindo com caca aètras.Fomos apoz ellas;brigando com os Cafres,aos; quaes lhes matamos o íilho do Rey, & muylos de fua cõ* panhia, & ellei> nos ferirão tres hòmês. • Eftediafoy para nòs muyto trifte, porque nos levá* raõ as vacas em que trazia mos todo o mantimento, & el* las per íi o eraò também.Trazíamos em noffa companhia hum Cafre, que veyo ter com nofeo onde deíembarcamos, natural das Ilhas de Argoxa, ao qual fomente ,entendiao os noTos Cafres, < t vinha prelo, porque como: nos tinha p^omettido vir enfínando os caminhos , & depois, o não fazer, foy neceffario trazelo afiim> Eíle nos; diíFe, que dali a vinte dias de caminho Cafre acharia-, mos vacas, que vinhão a fer dous mêzes do nof&> caminho, & que tudo atè là era defertò, como depois achamos, & ainda muy to mais do que elle nos affirmou. Fomos fazendo noíTo caminho em ordem, comendo cada b«im daqui ao qiie podia trazer ás coftasj alem das armas, & refgate,que com todos fe reparti o , de modo que vinha cada peflfoa muy carregada, k erão os orvalhos tartos,que ordinariamente vínhamos molhados todos atè ò m^yo. dia, que o Solos derretia, mis ifto era para nòs 'crabalho Que teve a Nm S. JoaoBaptifla. t? % íiiave a refpeyto das chuvas, que 'r ordinariamente nos perfeguiaõ, & de outras miferias, & apertos mayores,em que nos vimos ao diante> & em que muytos acabárao a vida. • •/.,; ,. A vinte hum defte mez pouc o mais , ou menos, de* çendo hüa ferra altiílima,chegamos a hum rio, que paíFamos em efpaço dedous dias, & foy o primeyro que pairamos com jangadas, ao qual puzemos rçpmédo Almifçre, por o Capitaõ mandar dcy>**•• nelle rodo o que ^ B m panhia vinha por deícarregar os hoiúes« q< 0 traziaõ. E ^minhandodousdias por ferras altiíTimas de pedra, d^mos em huma pray a toda chea de pedra folta, & em hum rio, quepaífamos com huma jangada, que fizemos * & da outra banda delleachamoshuns Cafres caçadores, os quaes nos venderão hüa pouca de carne de cavallo mariliho, que foy para nòs grande alento, & a efte rio puzemos nome,o dos Camarões por nelle nos venderem muytos. Dali fomos caminhando por hüa íerra acima atè voltarmos á praya de oedra íolta que nos euftava muy to tra» balho o caminhar por ella. Aqui aconteceo hüa coufa laflimofajôc nosmofírou o tempo hüa grande crueldade,& foy, que vindo na companhia hüa moça^nha branca filha de hum velho Portuguez, que nos morreo na Náo, o qual era homem rico, £c a levava para a meter Freyra em Portugal, indo caminhando em'hum andor enfraquecèraõ os que por partido dedous mil cruzados a levavaõ; & como ella alli não tinha mais que hum irmaõ moçofinho, que pudeíTe manifeftar ao Capino a grande crueldade, que era deyxar J-üa moça donzela,6c fermofa Cm hum deferto aos tigres, & lecoá, fe naõ teve a compayxuo, que em^taõ notável cafo fe devias ainda que o Capitaõ fez algumas diligenC v cias Tratado do naufvcgh cias tomando o ando' h eoftas, fazendo-c a€ím todas as peíToas nobres ,que iiiaõ m companhia, por ver Ce com eile exemplo o queriaó fazer algüas das outras, prometendo-lhes muyto mayor partido do que&ntes fe lhes dava.Com tudo naõ houve alguém, que o quizeíTe fazer, nem realmente podíamos pela muyta fome,que entaõ pa- • deciamos. t ov ella atè o outro dia caminhando a pèenco* #ada em dous no. \es, & como vinha muvto fraca o naã po^l çvzer ícnaócommuv^ v *gar, fr afluo a trouxemos atè que tilar-" pode mais dárpafíb, ik fe começou a cr >evxar,& laílimai^pois era taòdefgraçada, & qn r«- 5 ' jüs peccados, que aonde hia tanta gente, & fe le vava<* quatro andoru, naô houveífe quem levaífe o feu por nenhum dinheyro, fendo aíílm que era o mais leve que hia na companhia, por ella Ter muyto magra, & pequenina* & outras palavras laftimofas ,cue dizia com muyto fen* timento.Pedio ConfiffaÕ, & depois de afazer diíFe em voz -litade modo que foy ouvida: Padre Frey Bernardo» m fico muyto confolada, •; ie De os ha de haver mifericordia com.a üinha alma, que pois elk. íoy fervido, que em taõ pequena idade padeceíTe tantas miíems,&: trabalhos, permitindo medeyxem em hum deferto aos tigres, & leões fem haver quem dííTo tenha ompayxaõ>. ha de? permittir, que feja tudo para minha falvaçao. E dizendo eftas palavras iedeytou no chaò cobrmdo-fe cum huma faya de tafeta preto, que trazia veftida, & d. quando em quando indo paííando agente defcobria a cabeç?? , & dizia : Ah Portuguezes cruéis, que vos raõ compadeceis de hüa moça donzella Portugueza conr "òs, & a deyxais para fer mantimento de ^nimaesj noííb Senior vos le ve a yoíTas cafas. Eu que v u.aa de tras de todos conioley ao irmão, que com ellaficava>& lhe pedi andaífe por diante«,. Que teve- a Nm S/foaõ Bapifta. tp te•, o que elle naõ queria fazera? ítes mandou dizer ao Capitaõ, que queria ficar com fua irmaá, o qual me aviíou, que por nenhum cafo confentiíTe t a l , & que o trouxeífe comigo, como fiz vindo-o çonfolando> mas fua dor foy de man^/rà, que dahi a poucos dias fe ficou também, Ve/a Y.M. que coufa tanto para laíHmar, de mim fey dizer, que eftes,& outros efpecfcaculos femelhantes me dayap mayor pena,que as fomes, & trabalho^, que padecia. Fazendo aífim noífo camir 10 tçus dias, vi jmoster ahum riu, oqaai^ziahaa puiyade area, & neiltf ^..os algum marifco,que foy de nòs nr\y feftejàjo pelas :a v eis fomes, que hiamos padecendo. Aqui efperarnos hüa tarde que acaba (Te de vazar para podermos paíTcuv mas a tardança foy mayor do que ciiydav-nos, & como a gente vinha taõ faminta, puzeraõ-fe a comer todos híías favas, que pela borda do rio fe achavaõ, as quaes nos puzeraõ á morte, & íe naõ fora a muy ta pedra vazar , que trazíamos, não efcapara peífoa alguma. E com ifto fer affim, cada hora nos punha *ieíle mefmo perigo í* grande fome, para re^Svio da qual comia todo genero de herva,Òc fruta, que achavamos & naõ era ua tia*;: o conhecer o mal, que nos faziaõ para dey xar de as comer. N o meyo deííes apertos nos foy de grande proveyto muy ta quantidade de fígueyras bravas que nefta terra achamor, com os t ilos das quaes, & com muyta ortiga fomos paííando miiytos dias. Nefte rio eftivemos dous dias çfperando tornafíemos do grande accidente, que tivemos , u. partinclonos daqui nosvieraõ feguindo a reta* guarda hüs poucos de Cafres, os quaes nos tinhaõ furtado dous calaeyi oes , & porque nòs lhe naõ demos o cafti* go, cj: w íeu atrevimento merecia.vierao a fazer taõ pour co cafo denòs ,que nos vinhaõ tirando com paos toíkC 2 àos% no Tratado do naufv agio dos, mas pagaraò logo íua dema fiada oufadia, porque o carpinteyro da viagem que mais perto fe achou, lhe tirou com a efpingarda, & quebrou os braços a hum , & 6 atraveíTou pelos pey tos. Os quaes vendo o iFiiyto danov que hüa í o arma das noíTas ihes fazia, deyt* . ao a fugii* & nos viemos fazendo noíTa viagem. Forao apertando as fomes tanto com nofco,qne nos obrigáraõa cogier immundicias , que o mar botava tora, que eraõ alforrecási & m'ja vinagre, & era tal a neceíllda de, qüe quem tinha alguma coufa decomer a naõ dava, ainda que \ l\l; perecci Lüü; amigo, ou parente. È«t em torlas eftas rieceífidades (feja Deos bemdito ) pafíuy melhor, que>mi^y tos , porque me poíTo gavar, que trazia a melhor efpingarda da companhia, & que era o que melhor tirava,& aíftm nunca me faltou caça»pouca,ou tiiuyt a , poílo que me cuftava muyto trabalho bufcala, <k achala, por efta terra fer muy deferta de aves, & ánimáes, de maneyra que nunca houve occafi^õ, que pudeífe matar anknal grande: & do que .matava partia com quem me parecia , Sc o demais efjondia-o quenâõ foubeíTem parte dellc 5nazs que os matalotes, & tudo era neceííaria pelos odiós, malquerenças, & perigos, que dahi podiafra fucceder. Caminhamos aííim mais algüs dias atè chegarmos á hum rio, em que havia muytos caranguejos, & por chover infinita agua o não pudemos paíTar, & ao outro dia pela manhaã aconteceo hum notável cafo, & foy: Que nas terras atras tinha o dito ao Capitaõ Pero de Moraes, que hum Sebaftiaõ de Moraes Capitaõ de hum a eflanck> que fe dizia fer feu parente, tratava com a gente de que era Capitão, de que a mn vor parte era5 mance bos Y;val aeaftumados, adiantarfe com ella,& tomamos, a pedraria, apar- Que teve a ISiãã S. Joao Bapufia. 11 apartando-íe de nòs, dando por rr z a õ , que queria6 andar mais depreífa. Ao que Pero de Moraes acudiologo, & com muyto fegredo abrio a borfoleta, & tirou delia os oy to bifa lhos 5 em que vinha refumida toda os meteo em Mim aircige, o qual entregou ao carpinteyro da viagem Vicente Eííeves, de que elle muyto c o n f i a v a d e n tro na borfoleta 5 em que a dita pedraria vir.ha 5 meteo pedras, que podiaõ pefara quantidade ^ que delia tinha tirado, & iitotudo fez com tanto fegredo muyto poucas peííoas ofiT&iaõ.E neiíe rio, em oue efra vamos, por as fomes ferem notáveis, & andarmos todós esfaimaüinimos j aconteceo na tenda do carpinteyro, que tenho dito, verem os íeus negros andar demain hüm alforge^ que feu amo naõ fiava de ninguém, & pareceolhes, que feria arroz ,& ajuntando-fe com os do Capitaõ, determináraõabrilode noyte, comofizeraõ,, tirando-íhehum dos ditos bifalhos, parecendolhes era cada hum hüa medida de arroz, porque affim o coftumavamos trazer repartido em atadozinhos de medida cada hum.Tirado f o ra o bifalho foraõ-no abrir aoAato, & vende que era pedraria, temendo, que os enforcaííem pelo finco jfugiraõ Cornelia. Pela manhaã vio o carpinteyro o alforge rafgadò* foyfe logo ter com o Capitaõ* dando gritos, & dizendo, que era roubada a pedraria. E como nelíà vinha noíTa remedio, tomámos as armas, & fomos muyto depreffa à tenda do Capitaõ Sebaíliaõ de Moraes, & vimos a borfòleta chea, & fechada com os cadeados, que dantes tinha, & julgamos fer nid© por zombaria. O Capitaõ Pero de Moraes muyto aga fiado nos conteu a hiUoria, que atras tenho dito, dizendo-nos, que aílinaõ vinha pedraria & moftrandonos aonde eftava, vimos o furto, ^iie fe tinha € 5. £e.y~ %% \Tratado do nau fragh fey to, tk tendo por ct rto o que o carpinteyro lhe tinha contado, fem mais vereficar confa algüa íl- foy à tenda de Çebaftiaõ deMoraes>& o mandou prender,amarrandolhe as mãos atras, &juntamente a quatro homês de íua companhia , a hum dos quaes deu cruéis - - tormentos eílando cego da payxaõ, fen Jo aílim, que eftavaõ os pobres homês innoccntes do que lhe tinhaõ levantado.Efte fecha-» Hiava Joaõ Curvalho , ao qual lhe deraô rijos tratos. O pobrè homem chamava pela Virgem Maria da Concey' p õ lhe acudiíFe, a qual permituo, que"neíte mefmo tempo fe íoübe quem tinha furtado a pedraria , que íè fe n^o ctefcobrira tão depreíTa tinha o Capitaõ ordenado á t os mandar enforcar. Como feconheceo a innocencia cios quatro homfe», os mandou foltar, ficando prefo o feu Capitaõ Sebafliaõ de Moraes. E logo chamou o Capitaò os mais príncipaes homcsj queaili vinhaõ, os quaes eraõ Rodrigo AfFonfo de Mel* lo, o»Capitaõ Gregorio de Vidanha,Thomè Coelho Dal* meyda / Vicente Lobo de Se^ueyra > Antonio Godinho, & eu, & a cida hum de no; per fi fo nes moftrou hum libelío,.qp contra Sebaftiaó. ue Moraes tinha fey to , no qual fe dizia, que era homem inquieto, & revoltofo, cabeça de rancho, amotinador,& que fe temia,que elle foffecaufa denoíTaxleftruiçaõ, &que fizelfc com os homens tfefua parcialidade divifaõ, Stfe foíFe roubando-nos geando o arrayal enfraquecido lem aquelles homens de , armas, que eraõ da melhor gente, que havia, & com outras palavras criminofas defta.qualidade , dfocndonos, que para quietação do arrayal era necefíario matar cfte homem, pois de fúa vida podiaÕ refultár muytos trabalhos , & com fua morte ficavaõ evitados todos, pedindo a eftas peffoas votaffem fobre a materia > as quaes votá- Que tem a Nao & João Bupifla. %J raõ o que lhes pareceo, & chegando a eu haver de votar, propondo-mè elle a caufa, lhe diífe, que eu naõ era Desembargador para fentencear a ninguém á morte>& ques fe eile o queria mandar matar lhe armafíe outro cara milho. Elie nk refpondeoeftas palavras: Que direis àqüillo fe o eu tenho afrontado ? Caleyme, & elle fe foy á cabana de Lopo de Soufa a eommunicar o nego jio , ieytos huns papeis >o mandou degolar, fem a iffo lhe poder valer ninguém, nem fe <5 ube jaufa bafíante para eftâ morte deyxar de fer eílranhada , antes fe teve i grande crueldade, mayormente em tempo ,que haviamesmifter coihpanheyros,& fendo aquelle de boa dii"poíiçaõ5& ma"cebo. Fomos fazendo noíTo caminho por cites defertos$ fubindu, & decendo cerras muyto fagofas, paíFandc* muytos rios todos cheyos de cavallos marinhos, & notáveis animaes. Aqui matamos hum Cafre, que atras diffe tinhamos achado onde defembarcamos, que dizia fer der Angoxa. Efte nos promette^ pelo que lhe là demos de; vir com noíco, & nos eníinar o caminho , St porque nos quiz fugir por muytas vezes,, o trazíamos pi cio, & temendo nòs diffefíe aos Cafres algüs defcuydos, que em nòs havia, & como as noíFas efpingardas naõ faziaõobra pelo tempo de chuva, o que ellè ordinariamente vinha perguntando aos noíFos negros, & via muytas vezes quererem-nas jpifparar , & o naõ poderem fazer por virem molhadas, alem do que muytas vezes nos dizia hüa couíà, & depois outra em contrario, & por todas eftas caufas ferefolveraõ a ^ t a l o . Continuamos noíTa viagem atè quinze de Dezembro pouco mais, ou menos, & chegamos a hum rio, aojade vínhamos já taõ mortos de fone que vendiam m arrayaí os- *4 Tratado do naufragio qs Grumetes, & marinheyros a medida de arroz por cento & ciacoenta pardaos, & chegou a valer* cento & oytenta, & houve pefToas, que gaftaraõ nifta mais de quatro mil pardaos, das quaes foy huma Dona IXrfula para feu fnftento, & de feus filhos, & outra Beatriz Alvrez. E vínhamos muy triftes por nos ir faltando muy ta gente,& laenhüa de doença por fer a terra fadia. Aqui meaconteceo hüa hiíloria, que por fer a V. M. tenho confiança para a coi itar, & porque também foy nõtoria a todos. Antes que deceíTemos a efte rio encima na ferra diííe o Capitaõ, que foíTe eu com quinze homes arcabuzeyros obra de huma legoa por cima ver íè deícobria dgüa povoaçaõ, por q eraõ já limites donde o Cafre lios tinha dito acharíamos vacas,& indo eu obra demeya legoa na volta, que fazia o rio em huma vargea, vi efíar hüa povoaçaõ de quinze cafas de palha, & por naõ caufar efpanto aos Cafres mandey feis homens foífem ver fe havia algum modo de mantimento, que nos vendeíTem,ao que elles fe efcufáraõ dizendo , que aquella povoaçaõ moftrava ter muyta gente, a ficavamos longe para os poder focorrer. Com o que eu enfadado depois de ter razões com elles, efcolhi os melhores quatro arcabuzeyros, que alü eftavaõ, que eraõ Joaõ ítibeyro, Cypriano Dias, Franciícò Luis, & o defpeníèyro3& eu com elles, & nos tomos pela ferra abayxo paífar hum valle,que entre nos, & a povoaçaõ dos negros eftava, no qual havia hum rio cheyo untaõ com a maré; paífamolo com a agua pelo peícoco, &, chegamos á porta dacerc?* pedimos-lhe iiü$ vendeffetn algua couía de comer fa^ndo-lhe por a* cenos, metendo a ma5 na boca* que por inadvertência, 5c efquecimento naõ levamos l í n g u a , que lhes diíTeífe a que hiamos,nema pedimos ao Capitaõ , porqoe eftes Cafresi F Que teve a Nao $$omMptifia. 21 jáentendiaõ aos noíTos ,que da índia traziamos. Elles como nos viraÕ veftidos, & brancos pafmáraõ, & as mulheres, & mininosderaõ grandes gritos, chamando genté da outra povoaçaõ, que eftava no mato.E os .maridos,què comellas eílavaõ nos foraõ íeguindo,& atirando còpaos toílados. Vendo eu o danò,que nos podia o fazer, mandey a Joaò Ribeyro, que atirafle com ofeu arcabuz, o que logo fez, & naõ tomando fogo dentro fe aífanháraõmais os Cafres ,&tiveraõ por feyticeria o acencjerfe fogo. E vifto o perigo, em que eftavamos pu«.& efpingarda no rofto, & matey tres de hum fó tiro por atirar fempre com hum pelouro, & tres feytos em dados. Caufáraõ eíks mortes grande efpanto, & paráraõ os ostros com o furor, com que vinhaõ. Torney a carregar a efpingarda, & viemos muy to de v a g a r q u a n d o chegamos ao braço do rio, que a tras digo, o achámos quaíi vazio, & nelle hüa gamboa com dous còvos muy to grandes cheyos de tainhas , os quaes abrimos , & nifto deceraõ os outros companheyros como ouvirão o e&ouro da efpingarda, & nos carregamos defte peyxe, que em tal tempo foy hü grande foccorro 5 mas vínhamos temerofos do que nos tinha fuccedido, a rt fpeyto do Capitaõnos haver encomendad o , que nos fofreffemos, & nos naõ defcompuzeífemos com os Cafres, porque tinha para íi, que ficaria hüa guerra alevantada por toda a Cafraria, & feria caufa de noífa deftruição, O que foy pelo contrario, porque daqui por diante, & depois que foy forçado matálos em algüas partes , logo das meímas povoações nos vinhaõ pedir algua çoufa para a rnuÜ^r, ou filho do morto. . Chegando á prefença do Capitaõ lhe fiz hum fermoíb prefente de tainhas^que elJ j fefícjou muy to, & depois deeftar contente com a vifta de coufa taõ defejada, & D para $ . Tratado do naufragto paraeftimar cm meyo de tantas fomes , ! he contamos o que nos fuccedera,o que elle fentio muyto, & naõ duvido, que fe defte cafo refultàra algum mal, que me cuílara caro, porque fe caftigava muy rigurofameme toda a defordem. Neíle meímo dia como o Capitaõ chegou abayxo ao rio, vio-fehum Cafre , & tomando falia delle, diffe que dali por diante havia vacas, & algumas fementeyras, & logo pedio a Rodrigo Aífonfo de Mello foífe comvntehomês deícobrir o que havia» & o negro foy com elie, & depois lhes diffe, que fe recolheífem, que era tarde, & que ao outrodia viria, & os levaria aonde lhes rinha dito o que logo fez Rodrigo AíFonfo, & fazendo caminho peta povoaçao aonde tinhamos mortos os tres ne* gros, os achou ainda por enterrar, & lhos moftráraõ com muyto medo,& tremendo, do que Rodrigo Affonfo ficou efpantado,porque naô fabia do que acontecèra,& lhe dif» feraõ, que os mortos tiveraõ a culpa, porque começara© a guerra prinieyro, & que )i o tinhaõ feyto faber ao fèu Rey, & lhes deraõ do que duhaõem fua fementeyra,que eraô aboboras de carneyro, & patecas verdes. Rodrigo Aífonfo Jhes deu dous pedacinhos de cobre,que he a melhor veniaga deitas partes, & veyc-fe recolhendo. Ao outrodia tornou avir orr^frrj Cafre,&foyRo* drigo Affonfo com elie, & andou làhnm dia, & hüa noyt e , & caminhado mais avante encontrou o filho do Rey, que os Cafres diztaõ, com cem Cafres de guerra bem armados todos com fuas zagayas de ferro em hum valle, os quaes vinhaõ vifitar onoífo Capitaõ, & traziaô o mais fermofoboy, que nunca vi,fem cornc , h fizeraõ Sagua* tedelleao C a p i t a õ , a o outro dia nos troureraõ mah quatro vacas, que nos venderão, di zendo, que fe quizeí« femefperar mais oyto dias >nos trariaõ a "vender quan; " tas Que teve a Nào S.foaõ Bapti/la. i? tas qúizeíTemo?, & quando naõ que efperaíTemosatè ò outro dia, que nos venderiaõ vinte vacas, o que fizemos, mas elles naõ vieraõ. E porque nos hia enfraquecendo a gente, principalmente os que traziaõ os andores, & fe acabava a comida , êc eftavamos quedos, êc também pelo qup o Cafre nos tinha dito entendemos,que feria já a terra farta, determinamos de ir por diante, & ao outro dia fomos dormir a bua alagoa, a qual naõ tinha raãs,do que ficamos inuy to fentidos. As fomes eraõ já intoleráveis^c fe comia já no arrayal todo o caõ, que fe podia matar, o qual he muyto bom comer ( fallando fora de fomes) porque eu muytas vezes tinha vaca, & fe havia caõ gordo, a deyxava pelo comer, & aílim o faziaõ muytas pefíoas. Os homes que traziaõ os andores fe efeufavaõ já de os trazer, por naõ poderem, & querendo o Capitaõ forçar algüs a iffo , fugio nefta paragem hum marinheyro para os Cafres, que fe chamava o Rezaõ. Indo caminhando hüs poucos de dias chegamos a hum rio, aonde da banda do Cabo num alto eftava huma povoaçaó de pefeadores, & nos aíTentamos o arrayal da outra banda. Elles nos troi xeraõ a vender hüa pouca de niaíTa fey ta de hüas feme^ites mais miúdas que moftarda, de hüas hervas, que npegaõ no fato * a qual fabia muyto bem a quem delia podia alcançar algüa coufa. Aqui fe puzeraõ todos os homens , que traziaõ os andores em hum corpo, dizendo, que fe nenhuma peífoa do arrayal podia dar paliada com fome, & fícavaõ muytos mortos, que fariaõ elles, que naziaõ os andores às coílas , que bem os podiaõ mandar aí,atar, quenaõ haviaõdepaffar dalli com elles ainda que lhes deffem por iffo os thefouros do mundo, Sc que parece bailava haver mais de mez,& meyo,que os traziaõ, fubindo, & deceudo ferras , que elles perdoaD 2 vaõ %$ ,Tratada'dó mufr ágio vaÕ tudo o que fe lhes tinha promettido pelo trabalho ^tras paífado, 6c ifto com grandes clamores lagrimas» Ao que acudiraõ os Religiofos, dizendo ao Capitaõ, que ellenap podia forçar a ninguém a tomarem trabalhos mortaes, & que já nos tinha fugido hum para os Cafres,& que eftes pobres homês parecia já cada hum huma Semelhança da morte. O Capitaõ ajuntou a todos 3 & em voá alta mandou lançar hum pregão, dizendo, que fe houveífe quatro homês, que por preço de oyto mil cruzados: quizeflem levar Lopo de Souía ás coitas, & outro ít a qualquer das mulheres > que nos ditos andores vinhaõ, que logo os depoíitaria namaõ dé cada hum pro rataco* mo lhe coubeíTe, ao qual pregaõ ninguém fahio. Nefte lugar fuccederaõ por meus peccados as ma«* yores crueldades, & os mais laftimofos efpe£taculos,quc já mais aconteceraõ, nem fe podem imaginar, porque a eftas mulheres, que vinhaõ nos andores fe lhes pergún* tou fe nos podiaõ acompanhar parfeu pò, porque doutra tnaneyranaõ podia fer > & a feu refpeyto tínhamos vin*3o taõ vagarofamerite, & c Cravamos mu y átrazados do caminho, & era morta muyta gente fó de fome,Ôenaõ havia quem por preço algum os quizeffe trazer ás cofias, & que por evitar males mayores, & por parecer de hu- Religiofo Theologo fe tinha ordenado de fe naõ efperar pos? ninguém, quenaõ pudeíFe andar, porque nos hiamoscõfumindo, que as que tiveíTem faude para o poder fazek fe deliberarem ate o outro dia, & as que haviaõ de ficar* asdeyxariaõ em companhia de muytas pefíbas, que no arrayal vinhaõ fracas, 5c doentes, na povoaçaõ ck pefcadoress que defronte de nòs eftava. Julgue V.M.agora,qu© nova. podia efta fer para Breatiz Alvrez, que trazia alli quatrofilhos*tres delles criadas , & para Dona Uifulâ„ - • que Que teve a NãóS. Joab Baptifla, tf- que trazia tres filhinhos, o mais vdho de onze annos, & íua mãy vèlha, que de força havia de ficar , fendo-lhe já morto íeu marido, & feu pay, naõ tratando de Lopo de Soufa fidalgo taõ honrado, & taõ valente, & como tal tinha brigado na Náo, de que ainda trazia as feridas abertas, & vinha doente de camaras, na qual dor ,6c fentimentome coube a mim mayor parte, por fermos ambos do hüa criaçaõ em Lisboa, & fermos de hum tempo no ferviço da índia. * ,r Toda efta noy te fe paífou em puras lagrimas, 6c gemidos, defpedindo-fe os quehiaò dos que haviaõ de ficary & foy a mais compaíliva coufa, que já maisfevio, que todas as vezes, que iíto me lembra naõ poffo ter aslagriinas. Ao outro dia pela manhaã fe foube, qüe ficava Breatiz Alvrez com dous filhos dos tres machos que tinha, £chüa filha deidade de dous annos linda creatura, 6c o filho mais pequeno lhe tomamos, ainda que contra fua vontade,por naõ ficar alli hüa geraçaõ toda; 6c a mãy de Dona Urfula Maria Colaça, & Lopo de Soufa, 6c tres, ou quatro peffoas muyto fracas, que nos naõ podiaõ acompanhados quaes fe confeíTáraõ todos com grande dor, 6c lagrimas, que realmente parecia huma coufa cruel naã nos deyxarmos ficar com ellas,antes que vermos tal deípedida. Por hüa parte fe via Breatiz Alvres mulher delicada, 6c mimofa com hüa minina de dous annos no colla de hüa Cafra, que com ella ficou, a qual naõ quiz nunca largar, com hum filhinho de cinco annos, 6c outro de de* zafete; o qual mofirou grandiífrmo animo , 6c amor, fazendo a maís honrada coufa quenaquelle efíado puderam fazer peíFoa: algüa,&.foy, que.a mãy lhe diíTe por muytas vezes, que elta ficava meya morta , porque o íeu mal an-íigo do ligado a tinha entrado muyto, que poucos haviaa V, D 3 ' de V** $ . Tratado do naufragto de íer feus dias de vida, ainda que ficára entre regalos,& que íeu pay hia com huma Nao daquellas,que brigara com nofeo , & podia fer morto ,que era moço que nos acompanhaíTe, & todos os Religiofos apertárão com elle, dando-lhe muy tas razões, dizendo-lhe, que naõ fó arrifcava o corpo, mas que também arrifeava a alma por ficar em terra de infiéis, aonde lhe podiaõ entrar os feus máos coftumes, & ceremonias. Ao que refpondeo com muy bõ animo, me noífo Senhor haveria mifericordia de fua alma, & que atègóra os tivera por feus amigos, & agora os ficava tendo em diíFerente conta, Seque razaõ podia elle dar depois aos homês , deyxando fua mãy cm poder de Cafres barbaros. Por outra parte fe via Dona Urfula defpedir da mãy,que ficava: julgue V.M as laftimas,que fe diriaõ hüa á outra, & as que nos caufariaõ. De Lopo de Soufa fe foraõ todos defpedir vendo elle, que eu o não fazia, mandou, que foífe o andor,que o levava , & paífaíTe pela tenda onde eu eftava , & me diífe efías palavras em voz alta, 6c com muy to animo: Eya fenhor Fracifco Vaz d'Almada não fois o amigo, com que me criey iiaefcola,&naIndia andamosfempre juntos como me não fallais agora ? Veja V.M. qual eu ficaria vendo hum fidalgo, de quem era particular íervidor naqueHe eftado. Levanteyme, & abraceyo, diíTe-lhe: Confeífo a V. M.de mim efta fraqueza, porque naõ tive animo para ver a peíToa, que eu tanto amava em tal eftado; que me perdoaífe, fe niífo o ofíendera. Elle, que atè então teve o roíto enxuto não pode ter as lagrimas,òc diífe aos q o trajzião, que andaífem, &; querendo eu acompanhalo atè a povoação dos Cafres donde elle havia de ficar, o não quiz confentir, &: tapando com a mão os olhos me diífe; Ficayvos embora amigo, & alembrayvos da minba alma, levan- Que tem a Nao S.Joaõ Baptifta. 31 levandovos Deos a terra onde o pòíTais fazer. Confeífo, que foy eüa a mayor dor, & fentimento , que nunca atè pntaotive. O Capitão lhe deucoufasde refgate, como erão muy tos pedaços de cobre^ & de latão, que hecoufa, que aqui vai mais que tudo, & dous caldeyrões. Aqui ficarão dons homens cfcondidamente, que fe chamavão Gafpar Fixa, & Pedro de Duenhas. Partimonos muy lafÜmados fazendo noífo caminho por íerras altas, & fomos albergar aquella noyte à borda de hum rio, aonde achamos algus carangueginhus pequenos, que não foy pequeno bem paranòs ao outro dia continuamos o caminho, & aíFentamos o arrayal á noy t e em hum rio frefco ^ao longo do qual por c l k acima havia tres, 011 quatro povoações *ás quaes mandamos faber por hum Cafre lingua fe havia vacas, ou quem deífe razão delias, & nòs entretanto fomos esfaymados ahuma ponte de pedra, que a praya fazia, ao mar i f c o , & cortar figueyras bravas para comer. Vindo-nos recolhendo á nóyte às tendas, que deyxamus armadas, muy contentes por trazermos muy tas figueyras cortadas oara comermos, achamos por nova , que viera a lingua, & trouxera dous negros comfigo,que dizíão, que lhe delTem dous homés, & hum pedaço de cobre, que elle os levaria aonde houvefíè vacas,& que levaífem cobre, que elles as trarião pela manhaa , o que o Capitão fez com muy ta alegria mandado Fru&uofo d* Andrade, & Gafpar Dias,os quaes levavão o que os Cafres pedião, & nòs ficamos muy alvoroçados efper ando nos trouxeífem muy to bom recado, porque delle dependia a vida de todos. Quiz Deos, que ao outro dia às dez horas vierao os homens muy alegres , trazendonos hua vaca , & dando-nos por novas virão muy tas povoações toda, com vacas.. Logo fe mandou ma- $ . Tratado do naufragto matar a vaca, & partir , & fe comeo aífada, da qual coftumavamos naò deytar fora mais que a boíla groífa , porque a mais miúda, & as unhas , & o miolo dos cornos, ôc couro tudo fe comia. E naõ fe efpante V. M. difta, porque quem comia todos os negros, & brancos, que morria õ3 mais fácil lhe ficava efte manjar. Logo nos fomos em bufca das aldeas levando por guias os Cafres, que com os dous Portuguezes, que trouxeraõ a vaca tinhaõ vindo, & não podendo chegar lâ aquelle dia poílo que andamos muyto, dormimos aquella iioyte em hum valle ,que tinha feno mais alto que huma lança, & ao outro dia pela manhaã levantamonos cedo,& caminhando por hüa ladeyra acima terra bem aííombrada , encontramos alguns negros aos quaes perguntamos pelas povoações, & nos diíferaõ , que fe caminharemos bem, como o Sol empinaíTe chegaríamos lá. E como hiamos defejofos, & neceííitados , íuppoflo que fracos, nos puzemos ao caminho fubindofempre, & chegamos á tarde acima de hüa ferra,da qual vimos a mais fermofa cou. ía, que a vifta entaõ podia defejar, porque fe defcobriaõ dali muytos valles todos coi tados de rios, & £ rras mais pequenas,pelas quaes fe viaõ infinitas povoaçoens todas cheas de vacas, & fementeyras, com a qual vifta decemos á ferra muy contentes, & nos vinhaõ trazendo ao caminho vafos de leyte a vender, & vacas, as quaes lhe naõ compramos alli, & lhes diíTemos, que paffando hum rio, que aparecia do cume, em hüa ferra pequena, havíamos de aíTentar o arrayal, & eílar tres, ou quatro dias, pelo que falaíFem huns com outros, para que quem tivefíe âl* g^macoufa de comer, &aquizefíe vender por aquelle dinheyro, que eraõ pedaços de cobre, & lataõ, fe fotfem ter com nofço. Paliando o rio chegamos ao Sol poílo á para- Que teve a Nüo S.Joaõ Baptifta. 3 j paragem que digo, & pondo noíTa? tendas em ôrdem^ mandou o Capitaõ a Antonio Borges » que tinha a feu carrego comprar todas as coufas de comt r , conv quatro homes de efpingarda de guarda a faixados do arrayal, para que os negros íe não mífturaííem com nofco (coftume, que íempre nefta viagem fe guardou inviolavelmente.) È para que V.M. fayba que vinhamos com boa ordem, digo, que traziamos todo o refgate,& coufas com que fe comprava de comer repartido entre nòs, trazendo o ho* mem, que menos arma trazia, mayor quantidade,de maneyra que naõ havia peffoa nenhuma, que ficafle izenta deites trabalhos. E todas as coufas por pequenas que foifem vinhaõ aílentadas emhü livro por receyta, asquaes defpendiaefte Antonio Borges como feytor, & comprador, que era, & fe algüa outra peíToa queria comprar algüa coufa, era caftigado muy rigurofamente, ainda que foíTe com coufa, que trouxeííe efêondida 5 & ifto fe fazia por evitar a alteraçaõ do preço, que os muy tos compradores coftumaõ fazer. Efte homem dava conta ao Capitaõ com efcrivaõdo que defpendia , & iftofe guardou em vida do Capitaõ, & depois de lhe eu fucceder atè o fim, como ao diante fe dirá. Ainda nefte dia fe refgatáraõ quatro vacas, entre as quaes vinha hum grande touro, que o Capitaõ mepedio mataífe á efpingarda, porque eftavaõ infinitos negros juntos, para lhe moftrar a força, & poder das armas que traziamos. E andando efte touro com as vacas comendo entre ellas, para fazer mayor efpanto, lhes diíTe, que fe afaftafíem todos, & que aquillo lho dizia, porq lhes naõ fizeíTe mal aquella arma. Elles fazendo poucocafo, fe üeyxáraõ ficar, & eu me fuy chegando ao touro obra de trinta paffos, dando hum grito alevantou a cabeça, a fia tr. Que teve a Nao S.Joaõ Bapiifta. 3 j paragem que digo , & pondo nofias tendas em ordem, mandou o Capitaõ a Antonio Borges , que tinha a feu carrego comprar todas as coufas de comt r , com quatro homês de efpingarda de guarda afafiados do arrayal, para que os negros fe não mifturaííem com nofco (coftume, quefempre nefta viagem fe guardou inviolavelmente.) E para que V. M. fayba que vinhamos com boa ordem, digo, que traziamos todo o refgate,& coufas com que fe comprava de comer repartido entre nòs, trazendo o ho* mem, que menos arma trazia, mayor quantidade,de maneyra que naõ havia peffoa nenhuma, que íicaíTe izenta deites trabalhos. E todas as coufas por pequenas que fof. fem vinhaõ aííentadas em hü livro por receyta, as quaes defpendia efte Antonio Borges como feytor, & comprador, que era, & fe algüa outra peíToa queria comprar algüa coufa, era caftigado muy rigurofamente, ainda que foíTe com coufa, que trouxeíTe eícondida j & ifto fe fazia por evitar a alteraçaõ do preço, que os muy tos compradores coftumaõ fazer. Efte homem dava conta ao Capitaõ com efcrivaõ do que defpendia , &: iíto fe guardou em vida do Capitaõ, & depois de lhe eu fucceder atè o fim, como ao diante fe dirá. Ainda nefte dia fe refgatáraõ quatro vacas, entre as quaes vinha hum grande touro, que o Capitaõ me pedio mataíTe á efpingarda, porque eftavaõ infinitos negros juntos, para lhe moftrar a força, & poder das armas que traziamos. E andando efte touro com as vacas comendo entre ellas, para fazer mayor efpanto, lhes diíTe, que fe Íifaílaííem todos que aquillo lho dizia, porq lhes naõ fizeíTe mal aquella arma. Elles fazendo pouco cafo, fe ileyxáraõ ficar, & eu me fuy chegando ao touro obra de trinta paffos, ác dando hum grito alevantou a cabeça, a / E» qual . U f 'Lgfr v..- ;; A V / 34 Tratado dònaufrágio : qual tinha bayxa pprandar comendo, lhe dey Com Á pelouro na tefta caindo logo morto. E venao os Cafres o eífeyto, que fez a efpingarda botáraõ a fugir, & depois o Capitaõ os mandou chamar, os quaes vieraõ muy temerofos, & ficàraõ ainda muy to mais depois que viraõ ò boy morto, & que metèra5 o dedo pelo buraco do pelouro 3 que na tefta tinha. Todas eftas quatro vacas fe íiiatá* raõefte dia, & fe repartiraô igualmente por toda a gente como femnre fe fazia por peííbas, que para iífo havia ff paradas; & ao outro dia fe refgatáraõ dez ,ou doze, & ie matáraõ outras quatro, cabendo a cada peífoa de quatro vacas tres arrateis, a fora o couro, & tripas, porque tudo fe repartia. Quiz aqui o Capitaõ dar efta fartura à gente para ver fe tornavamos a tomar forças, & difpoíiçaõ* matando todos os dias, que aqui eftivemos quatro vacas. Mas foy efta fartura caufa de nos daré camaras a refpeytode comermos a carne mea crua , & afiim ficamos com pouca mais melhoria da que trouxemos, que realmente nos caufava efpantò ver, que morriamos r>or naõ comer, & que o muy to também nos matava. Aqui nos trouxeraõ também a vender muy to Ir yte, & hüas frutas da cor, & fabor de cerejas, mas mais compridas. Efta foy a paragem, em que fe ^efgatou mayor quantidade de vacas juntas, que em toda a jornada, porque a~ lèm de treze, que fe matárao em quanto aqui eftivemos, que foraõ íinco dias, levamos com nofco outras tantas, no fim dos quaes nos fomos caminhando por huma ferra alta, & muy comprida, aonde nos traziaõ muytos cabaços de leyte a vender, & das frutas, que tenho di to,& alojamos no meyo de hua ferra rodeada de povoações toda> cheas de gado, & fementeyra, Sc hum rio pelo pè. Ao outro dia acudindo negros com vacaspara vender lhe com » pra- W f Que teve a Na o S. Joaõ Báptifta. 3f pramos dez 4 ,ou onze. A q u i aconteceo mandâr oCapitaõ enforcar hüa negra por furtar hüa pequena de carne* que naõ pezariameyo arratel ( demafiada crueldade.) E ao outro diâ acabamos de fubir aquella ferra, que era muyto alta, em bufca de huma povoaçao, aonde vivia o Rey de todo aquelle Concam, à qual chegamos à tarde, & era a mayor que atè entaõ tinhamos viíto. O Rey. qua era cego veyo vifítar áoCapitaõ, & lhe trouxe deSagua«? te hum pouco de milho em hum cabaço,o qual, ainda que velho era bem difpofto. E he coufa para notar, que fendo barbarosfemconhecimento da verdade ,faõ taõgraves,^ taõ refpeytados de feus vafíallos,que o não fey encarecer, elles os governão, & caftigão, de modo que os tem quietos, & obedientes. Tem fuas leys,&: caftigão os adultérios galantemente defta maneyra, íe hüa mulher faz adultério a feu marido, & lho prova comteílemunhas, a manda matar, & ao adultero juntamente fe o podem apanhar ; com as mulheres do qual cafa o aggravado. Quando fe querem cafar, o Rey he o que faz o concerto, de maneyra que fenão pôde fazer cafamento fem elle nomear a mulher. E tem por coftume, que os filhos íendo de dez annos os botão para o mato, & fe veftem dc humas folhas de arvore como palmeyra, da cintura para bayxo, & fe untao com cinza ficando cayados, os qüaes fe ajuntaõ todos, & não chegaõ a povoado, porque lá abs matos lhes leva5 as mãys de comer. Eftes tem por ofiicio bailarem nos cafamentos, & feftas, que elles coftumaõ fizerj aos quaes pagaõ com vacas, & bezerros, & com ca*, bras aonde as haï & depois que nefte oíficio a junta qualquer délies très,ou quatro cabeças de gado,& he de idade cie dezoyto annos para cima, vay o pay, ou a mãy ao feu Rey, & ihe diz que tem hum filho de idade conveniez E 2 te, Tratado do naufragio t e , o qual tem por feu braço ganhado tantg s cabeças de gado o dito pay, ou mãy o quer ajudar , dando-lhe mais algüa coufa, & lhe pede o queyra cafar. ElRey lhe diz: Ide a tal parte, & dizey a fulano, que traga cá fua filha, & em vindo os concerta no dote, que o marido he obrigado dar ao fogro, & fempre o Rey neftes concertos coftuma ficar com as mãos untadas. Iílo he o que íe ufa atè Unhaca Manganheyra , que he o rio de Lourenço Marquez. Depois de o Capitão fer viíitado deite R e y , como era mayor que todos os que atè então tínhamos vifto, determinoulhe dar de Saguate hüa grande peífa, a qual foy hum caftiçal de latão pequeno com hum prego prefo na fundo, com o qual ficava tangendo como campainha, & muyto bem limpo, atado com hum cordão de retròz lho lançou ao pefcoço, ao que o Rey fez grande feita, &os feus ficarão efpantados de ver coufa tão excellente. Dali fios fomos ao outro dia continuando noífo caminho atè junto de hum rio o mayor que atè entaõ tínhamos vifto, acima do qual dormimos,& ao outro dia caminhámos pel o meyo de ferras muyto altas, que por junto delleefta» vão, com propoíitade ver fe lhe podíamos achar vaò, ou parte em que foífe eftrey t o , &que correífe com menos íuria para o podermos pafFar com jangada. Levavamos em noíTa companhia vinte vacas,& fuppofto que matávamos cada dia hííá > & cabia acadapeffoa hum arratel, padecíamos grandiíTimas fomes. E por fer o rio muyto largo caminhámos poi cima de hüa ferra por caminhos muyto íngremes, & arrifeados por ficarem caindo encima do rio dous dias atè chegarmos a hüa vargea, por cima da qual ficavaõ algüas aldeas ,em que determinávamos comprar vacas. Os negros fe embofeáraõ Que teve a Nao S, Joaõ Bàpufta. 37 pela borda dc rio, aonde de força havíamos demandar buícar agua, & nos furtáraõ dous caldeyrões, que para ella ferviaõ, mas pagárão o atrevimento » porque dt pois de lhe termos comprado duas vacas, vendo que não trazião mais a vender, & vindo hum negro com hüas canas de milho para vender, asquaes cofíumavamos comprar para comer ,por ferem doces, me mandou o Capitaõ lhe atirafíe á efpingarda, o que logo fíz, pafFando-o pelos peytos com hum pelouro, & aífim botou a pela ferra acima. Aqui mandou o Capitão enforcar hum noífo Cafre por nos fugir duas vezes. Tendo caminhado mais dous dias pela ferra ao longo do rio, chegámos a húa parte onde nos pareceo mais eftreyto rio. Aqui mandou o Capitão hü mulato feu,que nadava muyto bem, a ver fe podia paíTar o rio, o qual fe afogou logo em fe lançando, por fer grande corrente de agua, & ir em redemoinho. Como vimos , que a água vinha com tanta força, determinámos de ir mais acima, & ao outro dia fomos caminhando por hüas ferras bem affombradas,por ferem cheas dc povoações, & ao meyo dia aífentamos o arrayal. E depois continuando noífo caminho com o propoíito, que tenho dito, paffamos por huma povoação, que efta va em hum alto, & ao paíTar delia nos trouxerão a vender muyta quantidade das frutas que atras diíTe, as quaes nos vendião por agulhetas de atacas. Vindo dt trás da retaguarda dous grumetes fracos eom fuas eípingardas ás coftas, como os virão taes,& que vinhão afaftados de nòs lhes fahirão da povoação huns poucos de negros, & lhes tomarão as efpingardas. Ao que acudirão Thomè Coelho, & eu , & outros foldados ,que na retaguarda vinhão, &: lhe entrámos a j ovoaçíio, matando todo genero de peíToa, que nella achámos, & toE % mando A 3? : Tratado do naufrágio mando quatorze novilhos,que dentro efhvaõprefos, os trouxemos com nofco, & viemos aíTentar o arrayal abayxo defta aldea, da outra banda de hum rioftnho pegado com outras aldeas, fempre com muyta ordem , & vigilância. Ao outro dia pela manhaã nos mandáraõ dous negros velho?, a compor , & fazer amizades, ao que o Capitão fs moftrou muy to aggravado, dizendo , que vindo elle feu caminho fem fazer mal a alguém o roubáraõ, & que prorprr*' de vingar toda a injuria, que nifto fe lhe tinha feyto. Elles deraõ fuas razões, dizendo, que lhe matara mos muyta gente ; & em fim de razões, nos trouxeraõâs efpingardas, & nos pagáraõ de compoftção duas vaquinhas, & pelas azagayas, que lhes tinhamos tomado nos deraõ outras duas , & nos lhes entregamos nove bezerros dos quatorze, que lhes tinhamos tomado, porque os finco matámos aquella noyte, & deícendido a m i m , & a meu matalote nos coube hum, de que partimos com os amigos. A' tarde nos trouxeraõ outras duáâ vacas, & hum touro, que lhes comprámos i ôc por fer o touro muyto bravo, mandou o Capitão o mataífem às catanadas, ao que fe defendeo elle de maneyrarque o não puderaõ matar, antes elle deuhüa revolta teza ao Capitão, & a três, ou quatro peíToas, pelo que me pedio ornataíTeá efpingarda, o qual antes que eu o m e t t e me deü hua grande eftropiada, lançandome a efpingarda por hi àlem ; & alevantandome logo lhe atirey, 8c o paíTey pelas efpadoas caindo logo morto por hua ribaneyra abayaco, encima da qual me punha todas as veies que fe ofíeTeciaó íemelhantes occafioens, &feraalvitre para mim, -porque por cada touro que matava á efpingarda , me davãohuma mão, que naquelle eftado não era pequeno •bem* - .•Dali Que teve a Nao S. João Bápfijla. 39 ; - Dali fómòs á borda do rio y & nos puzemos junto a e!3e encima de húa ferra , lugar forte , que efcolhemos para eíperar aiè que vazaífe com menos fúria, o que nao fez.por efpaço de vinte finco dias pouco mais, ou menos, que fo.y os que gaitámos neile contorno, andando fempre ao longo do rio; no qual tempo nos açonteçerap as çoufas feguintes ; Dia de Natal pela manbaã mandou oCaplfaô a Thomè Coelho Dalmeyda com vinte homens fubiffe bua ierra muy alta, que fe eftendia fempre a© longo do rio, & çaminhaffe finco, ou feis legoas pot ^ À vifta do rio, & viííe fe por là podia haver aigüa paífagem. E de* pois de andar por là dous dias, fe veyo, dizendo, que não achava melhor paragem para fe poder paííar ,quealli ondeeftavamos, que aguardaíTemos fe acabafíem as chuvas» & que logo o rio havia de correr com menos fúria,» trazendopQUcaagua,&: a (fim o fizemos. Aqui mandou o Capitão enforcar dous negrinhos hum de Thomè Coelho , & outro de Dona Urfula fó por furtarem huns peda^ cinhos de carne, fèndo aífim.,que o mais velho naõ chegava a doze anhos, dos quaes fe teve muy ta laftima, & fe eítranhou rarita crueldade; ^ A eíte rio puzemos o nome dá fome, porque nelíe padecemos as mpyores que tivemos em toda a viage m. È por ver fe havia remedio para fe pafTar,prometteo o Capitão cem d azados á qualquer dás peíToas, qü0 o paíTafíe da outra banda, levando com figo hüà linha de pefcar para poder paíTar outra mais grofTa,que pudeffe ter huma jangada em que paftaíTemos como já tinham os feyto noutro rio atras, & como ninguém o fizeíTe, fe offereceo hum meu negro por nome Agoílinho fem nenhum interéíTè vO qual o fez com facilidade por fer grande r a d a d c r j jnas depois de paííar a linha a qaebrou a grande correnteza agua* Trat adi do naufrágio água, cm que claramen fe vio, que fe não poderia paf~ far como queríamos fei. > dahi a alguns dias i nos quaes nos fomos entretendo, pondonos á vifta de hüas povoações por ver fe nos queriaõ vender algüas vacas,o que fizeraò mais por temor, que vontade por lhas irmos comprar dentro ás mefmas povoaçoens já defefperados para que quando no las não quizeffem vender, lhas tomaremos por força. Aqui indo eu a hüa povoaçaò em companhia de Antonio Gouinrio depois de termos comprado duas , ou ires Vacas, vendo que não havia^mais que fazer me vim para o arrayal, que à vifta de nòs eflava. E depois de ter andado hum pedaço virey para tras, & vendo que não vinhaõ ainda os companheyros, me aíTentey á fua vifta, efperando, elles vieffem,ficandomenas coftas hum feno muy to alto, por entre o qual veyo hum Cafre muy acachado, & fe abraçou comigo por detrás, pegandome na efpingarda com huma mão pelo couce, & outra na ponta, ficando eu entre elle, & a efpingarda, andando hum grande efpaço ás lutas comigo, E acordeyme , que trazia hüa faca , & a Jirranquey chamando por nc Ha Senhora da Conceyção, porque me vi fem alento nenhum, por ter o Cafré muyta força, & lhe fuy dando com a faca atè que me largou a efpingarda , a qual meti logo no rofto, & indo para a difparar cahi no chaò de fraqueza, & lhe hao pude atirar, fe não quando jáhla longe, & ainda aífim o tratey mal, ôc depois lhe apanhey afuacapa depelles, que trazia embrulhada no braço, & a deyxou com a preíTa. Todos eftes Cafres ufaõ de capas, que lhe daõ por bayxo do quadril de pelles muy bem adobadas de animaes pequenos de fermofo pelo, & íegundo a qualidade do Cafre fe veltemeom melhores pelles huns que outros, & nifto tem muy- Que teve a Nfa S. jfoaõ Baptifta. 41 íDuytoponto 5 & não trazem mais veftido, que eftas capas, Sc hüa pelle mais galante, com que cobrem as vergonhas , & eu vi a hum Cafre grave huma capa toda de Marras Zebelinas,& perguntando-lhe onde havia aquelles animaes, diíTe, que pela terra dentro havia tanta quantidade delies,que todos em geral fe veíliaõ de fuás pelles. Também achey no cháo duas azagayas , & hum páoíinho de groífura de hum dedo, & de dous palmos meyo de comprido,forrado do meyo por diaritecom hum rabo de búzio, o qual pàocoftümaõ trazer quahemtoda a Cafraria atè o rio deLourenço Marquez, & não coflumaò fallar íem o trazerem, porque todas as fuas praticas faõ apontando com eite páo na mão, a que c hamão fua boca, & fazendo efgares, & meneos. Os companheyros vinhão chegando, & vendo o que me acontecera apreffarão o paíTo cuydando íicára eu maltratado do fucceífo, & nos viemos todos ao arrayal, o que eftava efperando por nòs com muyto alvoroço pelas vacas, que eftavao vendo lhes trazíamos. E fiando nòs nefte mefmo pofta,dahi a dons dias chegou hum negro dos noífos, que tinha ficado na companhia de Lopo de Soufa, ao q u J fe foy o Capitão, & íem ninguém lhe dizer nada,pegando nelle lhe diífe: O s cão, quem matou os Pprtuguezes ? confeíTa-o íenão hey te dc mandar enforcar logo; o negro ficou trefpaífado,& diífe, que elie não era culpado em taes mortes , nem nenhum dos noífos, que com elle ficáraõ. Pafmamos de o Ca pitão fazer aquella pergunta f m faber nova alguma da dita gente, & lhe perguntámos quem lhe diífera tal nova, ao que refpondeo, que havia dous dias, que andava fc mpre com a imaginação naquella gente } & quefempreo cora« ção lhe diífera', que os negi os, que com elles ficarão os F tinhão Tratado 4&. naufragfo tinhao mortos, & por iffo fizera a tal pergunta. Diííe mais efte negro, qus os Cafres da terra matárão em huma noyte a Gaípar Fixa , & a Pedro de Duenhas, & ao íbbrínho do contrameftre Manoel Alvrez, por lhes tomarem bum caldeyrão, 3c que os noíTos negros íeus companheyros ficàrão em outra povoaçaõ mais abayxo aparta* dos dos portuguezes, E perguntando-lhe como £ cava Lopo de Soufa, diife, que quando de lá partira havia rres.dias vQueettava fem falia, & fem duvida morreria noderra^e)^oqueovio, fcque Breatiz Alvrez mulher de Luis d'Aftonfeca ficava muyto doente feyta lazara, de maneyra que fe nãopoJia bolir , & as outras peííbas muyto mortas de fome, que por não terem forças para podetámandar ,nãqvierão c o m e l l e , & f e m duvida ferião todas mortas, QÇapitao o mandou olhar àchando-lhe peífas de ouro, & diamantes , que conhecerão fer dos Portuguezes, que là fícàraõ, mandou tiveflem tento nelle, com fundamento de o mandar matar de noyte , o que elle não aguardou, porque d abi a pouco efpaço vimos virdous moços de fua companhia, & como elle os conheceffe temendo defcobr' (Tem a verdade fogio, & os dous que digo em chegando for ao logo prezos»& dandolhe tratos confeíTárâo o feguinte, dizendo, que depois de nos apartados de Lopo de Soufa, dahi a tres dias chegou àquelle mefmo lugar hum Rey Cafre,o qual trazia quarenta vacas, & difle» que era o que atras tinha promettido vir com ellas ao Capitão, pelo qual perguntára j & di-. zendo-lhecomo era partido , & que eí^ivera efperando por elle, & como vira, que não viera no tempo *que promettenufe fora: Refpõdeo elle,que por caufa das enchentes de hüs rios não pudera vir mais cedo , & perguntou fenos poderia ainda encontrar, ao qual diíferaõ, qne naõ3 Que teve a Nào S.Joao Bapiifta. 43 mo,porhavermuytos dias que éramos partidos,mas que aiii ficarão dous ranchos de gente íua,hum de Portuguczes,& outro de negros, & que tinhaõ dinheyro com que lhes podiaõ comprar alguas vacas. Refpondeò, que folgava muy to, porque para iífo as trazia de taõ longe logo os Portuguezes compráraõ tres vacas , & os negros quatro, & pedirão ao Rey, que íe naõ foffe com as que lhe ficavaõ, que depois daquellas comidas lhe comprariaõ mais. Ao que refpondeo, que por alli não haver boa paftos dava hüa volta,& tornaria dalli a féis, ou fetc dia* com ellas para lhes vender as que houveífemmifter.NeHe tempo foy o rancho dos Portuguezes comendo as quê tinhaõ comprado, & faltandolhes fe foy Gafpar Fixa a* bayxo a outra povoaçaõ aonde eílava o outro dos noffos negros que ainda tinhaõ duas vacas vivas, 5c lhes p o diomatafTemhua daquellas vacas,& lhes emprefbffem ametade, que logo em tornando os Cafres comprariaõ com que fa tis fazer, o que elles fizeraõ logo corn facili^ dade, matando hüa delias, & dando-lhe o que pedia. Dahi a dous dias vieraõ os Caf es, & fe proverão todos de vacas, Sc querendo os negros lhes pagaífem o que tinhaõ empreitado, lho foraõ pedir em hum dia, em que os Portuguezes tinhaõ morto hüa vaquinha muyto pequena : & rc fpondeo-Jhe Qafmr Fixa,que elles tinhaõ morto o que viaõ, q por ier pequeno quinhão,a refpeyto do que elite lhe tinhão dado, lho não da vão, mas que efperaffem dous dias, que era o tempo em que elles a podiaõ comcr# Sc que logo lhes dariaõ ametade da mayor que alli tiiihaõ: d i fie rã o os negros, que a mataffem logo, & lhes pagaífem ; ao que Gafpar Fixa replicou, que entaõ lhes ficaria a carne perdendo-fe, Sz vendo, que não fe aquietavão com eftas razões 3 agafíado com repofta taõ defaF 2 ver- $ . Tratado do naufragto vergcmhada, & atrevida, deu hüa bofetada em hum negro Chingalà que era a cabeça dos outros chamando-lhe ca5, & outros roins nomes,, &ellesfe foraõ. E fazendo Gafpar Fixa, & os outros companheyros pouco cafo do a-» contecido , eftando denoyte dormindo na fua povoação vieraõ os noffos negros com algumas azagayas, que pelo caminho tinhaõ tomado aos Cafres, que vínhamos matado áefpingàrda, & mandando hü diante pedir lume paraque lhe abriíFem a porta, a qual lhe abriraõ, naõ fe lembrando ao q^c lhes podia acontecer , & entrando todos juntos matáraõ quantos na cafa de palha eíravão, tirando Lopo de Soufa,que eftava no eftado, que tenho dito, & os mortos faô os que já atras nomeey.Também deraõ por novas que Breatiz Alvrez ficava no mefmo efrado,que o outro tinha contado. Diíferaõ também mais eftes dous negros, que ellcs íe não acháraó em tal obra, & que a cabeça deftas maldades era já morto, que o matara o negro, que primeyro tinha chegado, o qual era já fugido. Ficámos fentidiíTimos com tal nova, vendo, que fó nos faltava levantarem-fe os noffos negros contra nòs, & demos todos graças a Deoj, pedindo-lhe mífericordia. O Capitaõ os mandou logo enforcar aquelle dia,os quaes naõ chegáraõ a pela manhaa a eftama força , por caufa das muytas fomes, que entaõ padecíamos , & foraõ comidos efeondidamente dos negros da noífo arrayal, & de quem o naõ era também , o que fe dilíimulava, & f n a õ fazia cafo diífo/E eu vi muytas vezes de noyte pelo arrayal muytas efpetadas de carne, que cheyravao excel» lentiílimamente a carne de porco , de maneyra que alevantandome á vigia, me drífe Gregorio de Vidanha meu cõpanheyro^que viífé que carne era aquella.que os noííos moços eftavaõ afíando, que cheyrava muyto bem. Fuy ver ? Que teve a Náo S. Joab Baftifta. 4 j ver, & perguntando-o a hum dos moços, me refpondeoj que ic queria comer, que era coufa excellente,& que punha muyta força, conhecendo eu que era carne humana me fuy, & diíllmuley com elles. Por aqui pôde V. 1VÍ. ver, a que miferias foy Deos fervido , que chegaremos* tudo por meus peccados* Dahi a dous dias eftando nòs nefte mefmo lugar, mandou o Capitão enforcar hum mancebo Portuguez criado do contrameftre por o acharem refgatando coufas de comer com hum pedaço de arco de ferro que tinha tomado do alforge do Sotapiloto, & também por ter fugido para os Cafres, fendo moço forte, & que podia fer de utilidade á companhia, que realmente em meyo de tantas miferias nos acabavão de coníumir eftes exceíTos de crueldades, fem embargo, quehe neceífario ufar delias quem houver de governar homens do mar , mas não por modo taõ demaílado. Efte pobre pedia o mandaíTem enterrar por naõ fer comido, mas não lhe valeo feu peditorio, porque, dando lugar ao poderem fazer os moífos, que anda vã o muy to fracos, & mortos de fome, o mandou 0 Capitão lançar no mato , od quaes tiveraõ bom cuydado de lhe darem a fepultura, que coftumavaõ dar aos ou* tros,quemorriao, Logo ao outro dia mandou o Capitaõ a tres peffoas paíTaíTem ene deíaventurado rio, que tanto nos cuftou a fua paflagem, &que andafíem da outra banda, vendo que terra era, & fe havia vacas, & viíTem fe os negros tinhão noticia de nòs, o que íkeraõcom muy to cuydado,& vindo dahi a dous dias muyto contentes pedirão alviçaras ao Capitão, & perguntando elle a João Ribeyro que era oprincipal, fe queria huma peça que valeííe trezentos cruzados,, refpondeo, que não, que antes queria que lhe F 3, fizeí- $ . Tratado do naufragto fizeíFe merce de lhe dar todos os coraçõt s das vacas , que dahi por diante fe mataffem no arrayal, pa radie,& para o calafate feu companheyro, o q o Capitão lhe concedeo. V e j a V . M . q u a õ pouco feeftimava entaõtudo por preciofo que foífe, a refpeyto do comer. Depois q fe lhe fez eÜe prometimento, difíe, q da outra banda do rio dahi a quatro lego as havia muytas povoações todas com muytas vacas, &: que a gente delias parecia boa, que eftavnõ defejofos que míMemos para nos vender, m do feu gado, & que lhe fizeraõ bom gafalhado.Eíla foy para nòs muyto grande nova por naõ termos atè entaõ fabido coufa al~ gua do que lá havia, Sc também porque guardavamos algüas vacas para levar para a outra banda para as irmos comendo quando là as naõ houveífe, & com eftes temores fazíamos efta provifaõ, que nos cuftava muyto, porque por effa caufa comiamos muy to menos. Com eftas novas fomos chegando ao rio, paíTando pela povoação aonde atraz diífe lhes mataramos muytas peíToas, & achamos os -negros de todo aquelle Concam portos em armas,que nos perfeguiaõ a retaguarda , indo paíTando , com muytas azagayadas, & pedradas, mas quiz Deos nos naõ fez mal nenhuma de quantas atiraraõ. JNelle achamos a jangada, que fizemos a primeyra vez, que alli efti vemos cuydando nos dêííe Inaar de o paíTar a corrente das aguas, & como achámos eíte * >3t*elho nos foy fácil a paíTagem,antes da qual tivemos huma fartura por matarmos as vacas, que já diífe poupavamos para a outra banda, fuppofto nos haverem promettido, que là as havia. Pafíado o rio, em que puzemos dous dias, fomos caminhando por huma ferra acima muy to Íngreme > que julgáraõ fer de altura mais de tres legoas, porque começando de andar por ellas ás onze horas não chegamos ao cume Que teve a Nao h. Joao Baptijlã. 47 cume fenaõ á noyte fechada; aonde fícámôs jdecendo por hum modo de valie, em que achamos agua, m as naõ f y poíllvel fazeríe de comer, por fer já muy to tarde. E ao. outro dia em amanhecendo caminhamos em bufca das povoações, às quaes chegámos ao meyo dia. Os Cafres, delias íe chegàraõ a nòs com tres touros muyto grandes, velhos, porque eftes nos coftumavão vender tanto, que não preftavaõ para fazer filhos, outras vaca* de£* te teor 5 com tudo havíamos, que nos faziaõ muy ta mercê. E porque ainda lhes não tínhamos moftvado a eftes negros o para que preftavão noíTas armas, me mandou o Capitão tirar á efpingarda a hum dos touros, que lhes ti* nhamos comprado , o que fiz, &: elles vendo-o morto fizera o os efpantos coftumados. Aqui efti vemos efta tarde comendo-o, & efperando nos trouxeíTem mais a vender vendo que o naõ faziaõ, nos fomos caminhando pela manhaã, & elles nos vierão feguindo a retaguarda ao decer da ferra > na qual por fer muy to Íngreme, nos puderaõfazer muytodano,de queDeosnos livrou. Seguindo noífo caminho fomos por entre aldeas atè o meyo dia, & jantámos por cima de hum rio, ao qual lugar nos troux rão a vender dous b o y s ^ hum delles por fer bravo fe matou á efpingarda, de que jantámos. Fomos dormir aquella noyte por cima de tres povoações, que fi~ cavãoem h\ .a laaeyra j & tomando falia da gente deite nos differao, que dahi a quatro dias não havíamos de a~ char povoações, & que fe queríamos vacas , que cfperaffemox dous dias, aoquerefpondemos» queftaõ podíamos efperaryque fe quizeíTem vendelas vieífem pela manhaã, porq nos havíamos de partir logo em amanhecendo, como fizemos. E tendo andado hum pedaço da manhaã nos fahirao ao encontro hüs poucos de Cafres bem aimados $ . Tratado do naufragto de azagayas cuydando nos fizeílem algü aífalto, os quaes nos venderão hüa vaca muyto brava, depois de cobrarem o porque a venderão, fugirão, &: a vaca fez o meímo. Mas nòs lançámos maõ de hum dos Cafres, & amarrado o trouxemos hum pouco com nofco para ver fe nos tra* ziaõ a vaca, que nos havião levado, o que fizeraõ logo, vindo juntamente hum Cafre muy to grande, defculpando o furto, que os feus Cafres nos pretendiaõ fazer. Continuando noífa viagem por ferras menos montuofas afaftados da praya tres, ou quatro legoas, chegámos a hüa ribeyra muyto fermofa, tm a qual nos trouxeraõ a vender muy tas frutas do tamanho, & feyçaõde frutas novas,mas fem caroços, as quaes tinhamos já atras comido, mas alli em mais quantidade. Depois conhecendo^fe o grande mal, que eítas frutas continuamente nos faziaõ, trabalhou o Capitaõ muyto pelo evitar, mandando lançar pregões com penas rigurofas, o que nunca pode fazer pelas grandes fomes que padecíamos. Aqui achámos hum Jáo da perdição de Nuno Velho Pereyra,o qual era já muyto velho, & fallava mal, & com muytas lagri • mas beijou os Crucifixos, qus trazíamos, & fazendo o final da Cruz. ConfeíTo a V.M. que foy para mim notável alegria ver em terras tão remotas,& entre gente tão barbara hum homem, que conhecia a Deos, & os inítrumentos, & figuras da payxão de Chrifto. Eíte woy contou como Nuno Velho fe perdera em hüa praya abayxo,que ferá jornada de hum dia: & porque elle ficára muyto maltratado dos olhos, 5c com as pernas feridas, fe deyxára logo alli ficar, Advertionos de muytas coufas, que com os Cafres havíamos de ufar, dizendonos, que dahi a quatro dias de caminho acharíamos hum negro Malavar,que também tinha efeapado da própria perdiçaõ,& dahi a no.ve, Que teve a Nao S. Joao BàptiJla. 49 v c , ou dez acharíamos hum Cafre por nome Jorge também damefma, & que na própria povoaçaõ onde o Cafre vivia etfava hum Portuguez natural deSaó Gonçalo de Amarantej que fe chamava Diogo, o qual tilava cafado, & com filhos. E porque meu companheyro Gregorio de V.idanka vinha já muyto canfado, determinou de fe ficar com eite Jáo por naõ acertar de lhe fer neceíTario fazelo em algum mato, & deferto, como atras teve feyto por muytas vezes, o que foy para nos defentimento, & perda per fer a peííoa, que atras tenho dito. O Rey defta comarca veyo ver o Capita5 muy authorizado, trazendo hü fermòíb carneyro de finco quartos para lhe comprarem, & peei io por elle mais do quecuftava hüa grande vaca.E vendo nòs o pouco,que nos remediávamos com hum carneyro a refpey to da vaca, que podíamos comprar, com o que por elle pediaõ, diíTemos, que nos mandaíTem vir vacas, que naõ queríamos carneyro, & aííim o fizeraõ trazendo logo tres s & determinando de nos fazer algum engano^ & furto, nos venderão hüa raça, & como tiveraõ avalia delia na maó, botáraÕ a fugir com a vaca. Mas nòs fizemos preza em hum delles, & querendo-o matar, diíTe o Jâo o naõ fizeíTemos, que elle traria logo a váca, òi que c i t e negros nos naõ conheciaõ, & por eííe refpey to fizeraõ iffe, o ic eiie vinha logo com e l l a , pedindonos fe nao defeompuzeffeninguém, o que fez com prefíeza. E vendo quam má gente e r a e í l a , nos fomos logo daqui, •dcyxando Gregorio de Vidanha em cafado proprio Jào* & Ííüíu marinheyro, que íe chamava Francifco Rodrigues Machado em fua companhia, aos quaes demos cou~ í ; as,que alli valiaõ, que elles logo efeonderaõ para comprarem algüa vaca de leyte, ou outra coufa, que os íuf1 G ten- Tratado do naufraga* v íeritaíTe atè vir a novidade do milho, que entaó eftávú verde». PaíTáudo pelo rneyo defta povoaçaõnos viemos fazendo; noíTo çaminho, no. qual; ficou também Cypriano Dias, & à noíTa vifta 9 roubarão. Depois todos os Cafres defta povoaçaõ juntos nos vieraõ com grandes gritas perfeguindo a retaguarda com muytas pedradas, & azagayadas. E vendo o dano,que nos podiaõ fazer por ferem muytos me deyxey ficar com oyto companheyrus,& vin~ do-feelles chegando lhes tirey com a efpingarda, & caindo hum paráraõ todos fazendo roda, &: nos deyxáraõ de perfeguir, cobrando tal medo docftauro da efpingarda, quemuytas vezes vindonos aíllm feguirido ihefahiaõ dous homês com fundas, que para iíTo fizeraõ , & com o eftrallo,queellas davaõfebotavaõ nochaõ. Defde aqui. viemos caminhando por terras muyto faltas de mantimentos, atè que no cabo de quatro dias decendo hüa ferra dêmos em hüa povoaçaõ aonde a vanguarda, que che * gou mais cedo gritou paífanc o a palavra, dizendo eftava alli hum Canarim de Bradès,ao que apreífamos o paífo^êc chegando todos , vimos que era o M alavar que o Jào atras nos tinha dito, o qual fe veyo a nòs com muytas moflras de alegria, dizendo: Venhais embora minha Chriftandade, & que ficaífemos alli, que elle nos negocearia o que houveífemos rnifter, & que aquelles ' , íres jáfabiaõ havia dous dias como vínhamos, & lhe tinhaò dito , que comiamosgente,osqiíaeseftavaõ armados: mas depois ao outro dia conhecendo fer tudo mentira , nos veyo ver © Rey muyto anojado por haver pouco , que feu pay era morto, ôz nos vendeo quatro vacas a rogo do Malávar, o qual nos trouxe a moftrar fuas filhas, que eraò as maià fermofas negras, que alli havia, & perguntando-lhe quã- Que teve a Nao S. Jqoq Baptijla» jr tas mulheres tinha, diíTe que duas r das quais tinha vinte filhos, doze machos, & oyto femeas. Perguntamos-lhc porque fe naõ vinha com nofco pois era Chriftaõ, rei* pondto, que como podia elle trazer vinte filhos comfi* go, & que era cafado com hüa irmaã do Rey, & tinha ga* dos de que vivia, que ainda que elle o quizeífe fa^er , a naõ deyxariaó os parentes de íiias mulheres, nem a nos nos vinha bem trazelios em noíTa companhia, pelo dano, que dahi nos podia vir, que elle que era Chriftaõ, & que Deos fe lembraria defua alma. Pedio-nos humas contas» que logo lhe demos, & beyjandoa Cruz com lagrimas as lançou ao pefcoço. Aqui nos ficáraõ tres moças cafadas com tres Ca-* fres noífos, as duas Cafras, & huma Jaoa. E ao outro dia fazendo noíFo caminho nos veyo acompanhando o Malavar hum grande pedaço, & com muytos abraços, & moíh*asde fentimento nos diffeyque tínhamos muyto caminho para andar cheyo de ferras altiííimas, & fefoy embo? ra. Os Cafres daquella povoaeaõ, que era grande nos naõ fizerãomal nenhum, 3t por iífo lhe chamámos a terra dos amigos. Andámos mais tres dias , em efpaço dos quaes achámos pouca gente, &: nenhuma povoação, no fim deileshum dia à tarde vimos de longe andar hüs poucos de carneyros oaííando, & por fer já tarde não; pafTa* mos dâli .rv > mandámos defcobrir o que ao diante havia para pela manha a nos aproveytarmos do refgate, que vínhamos fazendo. E vindo as peífoas, que tinhaõ ido íaber o que havia, diííeraõ, que por fer tarde naõ viraõ mais que muytos fogos, & em varias partes berrar muyto ga* do, & fendo manhaã, nos fubimos em hüa ferra, &vimos muytas povoações em partes muyto fragofas, & defviadas do rumo, que hlamos feguindo j mas logo veyo a nos» G z hum hum Cafre, & nos difTe, que para todas as partes tinhamos povoações, tirando donde vinhamos,& nos enculcoii huas, que ficavaõ no caminho, que nòs havíamos de fazer. E vindo com nofco vimos em hüa ladeyra duas grandes povoações cheas de muytas vacas, & com alguns carneyros, & nos pareceo eíla gente mais pulida, & farta» Aqui nos venderão hüa vaca, & depois íe queriaõ arrepender de o ter fey to , & conhecendo nòs iíio, lhe atirá* raõ á efpingarda, o que elies fentiraõ, &: ao que a vendeo Ihe deu muy ta pancada hum feu irmaõ mais velho,porque fenaõ aconfelhára com elles. Eftas duas povoações tinhaõ fuas fementeyras de mi lho, & abobaras as quae& nos venderão,8c nos fouberaõ muy to bem . Depois de alli termos jantado fomos dormir por ei* ma de huma povoaçaõ;, aonde nos venderão tres vacas,& aquella foy a primeyra onde vimos hüa galinha, que nos m õ quizeraõ vender JL. caminhando dous dias por entre valles, donde havia muytas fementeyras de milho, que siaõ eftava ainda para fe poder comer, nos vieraõ vender ao caminho algüas galinhas;; & chegando a hüa aldea, aonde nos diíFeraõ eílava o íeu Anguofe., que aílim chamaõ ao Rey naquellas partes ,.refgatàmos nella algumas galinhas, quebaítáraõ para dar a cada duas peíFoas hüa: Aqui nos deyxàmos eftar aquelle diaefperando nos trouxeífem vacas,porque tínhamos já muy ta tfidade delias, &: em fim nos venderão hum pouco de milho velho, & leyte, & duas vacas. E ao outro dia nos fomos decendo a hum rio, ao qual puzemos nome das formigas, por nelle haver tantas, & tão grandes, que nos naõ podíamos valer com ellas^no qual eííi vemos dous dias, & aoterceyro o paliámos em hüa jangada,.que fizemos. Ao primeyra dia de Fevereyro de 623. começámos . a CSf Que tem a Nao S. João Búptifta. 53 a caminhar da outra banda deite rio por hüa ferra altííllmacom immenfa chuva, que nos durou niuytos dias, 5c naquelle mefmo nos fomos alojar ainda de dia emhuma ladeyra pegado a hüas povoações,em que naõ havia maisT que algüas abobaras, 5c poucas galinhas, de que refgatamosalgüa parte. Aqui nos deraõ por novas, que adiante pouco efpaço achariamos muyta fartura, o qué feftejámos muyto por irmos fem coufa alguma de comer, 5c f e nos faltára mais dous dias, acaba ramos todos de fome fe Deos nos naõ focorrera, porque aqui nos ficâraõhumarinheyro, que chamavão Motta, 5c hum Italiano por nome Jofeph PedemaíFole, Sc hum paífageyro, que era manco, 5c o filho de Dona Úrfula, que foy coufa laítimofa, o qual fe chamava Chriíto vão de Mello, & feria de onze annos bem enfínado, 5c entendido, que vinha já taõ mirrado, que naõ parecia fenaõ a figura da morte, fendo-a elle de hum Anjo antes deftes trabalhos .Como viraõ,que ©íte minino nos não podia acompanharT fizeraõ iramay diante, 5c elle ficou atras como coítumavapor naõ poder andar tanto,5c como vio, que nos não podia acompanhar, diífe, que fe queria confeííar, o que f e z , & depois pedia ao Capitaõ pelas chagas de Chrifto lhe mandafíe chamar f ua mãy,que fe queria defpedir delia , ao que o Capitaõt diífe, que naõ podia fer porque hia longe, & o m inino fe* queyxava- « V e n d o : Rafta fenhor que me nega V.M. etta confolacaõ ? Elle dizendo-lhe palavras de amor o foy trazendo pela níaõ até que naõ pode andar mais, 5c ficou como pafmado,& nos nos fomos todos chorando,5c heda crer, que fe a mãy o vira, arrebentara com tam grande: dor , 5c por eííe refpeyío lhe tolheo o Capitaõ, que não viííeamãy. à dous dias de Fevereyro dia de noffa Senhora das L G 3 Cara* $ . Tratado do naufragto Candeas, caminhando deílie pela manhaã fomos jantar a humferm >f) bofque, ao qual atraveflava hum rego de agua. Aqui nos trouxeraõ a vender fete cabras, com as qúaes nos fomos por ver fe podiamos chegar a humas aldeãs onde nos diííeraõ havia muyto mantimento, & como a chuva era muyto grande, não nos deu lugar para andarmos tanto,& fomos dormir aonde nos eftavaõ esperando hüs poucos de Cafres com balayos cheyos de milho , que depois de refgatado fe repartio por todos ., & coube a cada peífoa hum copo de milho,& das feis cabras, que também fe matárão, coube a cada hum feu pedacinho, & o que levou a pelle ficou de melhor partido. Ao outro dia chegámos ás povoaçoens da deieiada fartura, aonde logo nos vierac vender muytas cabra* vacas, & bolos taõ grandes como queyjos deFramengos, & tanto milho, que depois o não podemos levar todo. Aqui mandou o Capitaõ matar dezoyto cabras, & hüa vaca, &nos couberaõ feis arrateisa cada hum. Também acodiraõ tantas galinhas, que deraõ huma a cada peífoa, & foy tanto o comer, que houvéramos de morrer todos fe nos naÕ dera em camaras. Ao outro dia nos veyo viíitar o Manamuze daquelles lugares trouxe hum touro muyto grande de faguate, o qual me mandou oCapitaó mataífe à efpingarda, para que a ouvi (Tem , porque trazia muyta gente comfigo, & porque tam^ w viffem as armas, que traziamos; & como viraõ cair o touro morto atirando-lhe de muyto longe, botou o Rey a fugir de maneyra que foy neceffario mandarlhe dizer, que aquillo fe fazia por fefta de noselle ter vindo ver, que tornaífe, íenaõqüe o Capitaõ havia de ir bufcallô. Ouvindo eftas razões tornou a vir, mas tal, que de negro que era fe tornou branco. O Capitaõ lhe botou ao pefcoço hüa fechadura Que teve a Nw S.Joaõ Baptifia. jj dura de hum efcritorio dourada , & lhe deu hüa aza de hum caldeyraõ, & foraõ efías peíTas delle bem eftimadas j &: com boas palavras, &: moítras de agradecimento fe foy, & nos ficamos repartindo o milho, & bolos, que tinhamos refgatado, que eraõdous grandes montes. E depois de tomarmos quanto cada hum podia levar, nos fomos» deyxando ainda algum por fe naõ poder levar mais , & caminhámos por cima de ferras,pelas ladeyras,das quaes havia tantas, & tão fermofas povoações, que era huma fermofura de ver a muy ta quantidade de gado, que delias fahia j & traziaõ-nos ao caminho muyto leyte a vender , o qual era todo azedo por os Cafres o naõ comerem de^utro modo. Ào meyo dia fomos affentar o arrayal em hum fref* co rio, que eftava em hum valle, no qual acodiraõ muitos Cafres, & todos traziaõ que nos vender,da outra banida do qual fizemos o refgate na forma, que coílumavamos apartado das tendas com gente dé guarda, & aqui fe fez com mais fegurança por acodirem mais Cafres do que nunca tinhamos vifto, & foy tanta a quántidade deiles , que fe íobiaõ muy tos por cima das arvores fó para nos verem , principalmente em cima de três , a cujos pès fe fazia o refgate por ficarmos amparados do Sol, que fa^ zia, que naõ fey como naõ quebràraõ com taõ grande pézo; & por r f*o, que fe podia fazer hum paynel daquela le iitio, òc concurfo de gente. Aqui eíli vemos atè a tarde , & depois regaílàmos quinze vacas, fk muytos bolos, com que todos ficámos mais carregados , &: aqui nos fU cou hu na moça de Breatiz Alvez, & outras quatro peft foas de empachadas com o muyto comer., das quacs tres nos tornàraõ acompanhar. E fazendo noífo caminho fomos dormir em huma queymada, ao pèda qual corria h* iega $ . Tratado do naufragto rego de boa agua, que bailou para nos matar a fede, & ao outro dia à tarde aífentàmos à vifta de duas povoações , que eflavaõ emhuma ladeyra ,jk os negros delias nos trouxeraõ a mofirar todas as vacas que neli as havia, & não nos querendo vender nenhuma, fe nos deu pouco diífo, porque trazíamos alguas vinte com nofeo. Caminhando outro dia fomos paíTar a calma em huma riheyra, que eítava em huma vargeafínha cuberta de arvores, debayxo das quaes eíti vemos. Aqui veyo ter o Cafre, que o Jào nos tinha dito, & fallando Portuguez nosdiííe: Beyjoas*mãos devoífas mercês, eu também fou Portuguez > & nos contou como em huma povoação, que eílava diante por onde havíamos de paflfar eílava hum Portuguez, que fe chamava Diogo, & era natural de Saõ Gonçalo de Amarante. Ao que diffe o Capitaõ fe queria vir comjiofco , & elle refpondeo, que o não haviaõ de deyxar ir os Cafres, porque lhes dava chuva quando faltava, & que era jà velho, & tinha filhos i & rindo-nos do que lhe ouviamos nos diífe , que elle nos moftraria a fua cafa. Alli refgatamos muytas galinhas, & bolos, leyte, ôc manteyga crua, & algumas canas de aífucar. Eíle Cafre nos pedío hum panomantas, que logo lhe deraõ, & elle ficando contente diífe em voz alta para onde eftavaõ muytos Cafres com fuas molheres na fua Üngoa: Cafres moradores deít-* T irra trazey a vender aos Portuguezes, que agora aqui eítaõ, & que íãõ fenhores do mundo, & do mar , todas as coufas que tiverdes de comer, nomeando-as por feus nomes, aproveytayvos dos thefouros, que trazem comfigo , olhay que vem comendo em coufa, que vòs outros trazeis por joyas nas orelhas, & nos braços, chamando-lhes beftas pois nao acodiaõ todos depreífa com o que tinhão. De- Que teve a Nao S.foaõ Baftifta. j7 pois de termos feyto o refgate > & comido , nos fomos pondo em ordem para marchar, & antes que o fizeíTemos nos furtou hum Cafre hü tachofinho, mas nòs pegámos logo doutro, ao qual deu Thomè Coelho huma cutilada pela cabeça, o prendemos, & indo nòs andando nos mandáraõ o que nos tinha tomado, & logo feguimos noffo caminho , largando o que tínhamos preío , fubindo hüa ferra, decima da qual fe defcobriaõ muytas aldeas, entre as quaes eftava hua muyto grande, a qual nos mofe trou o Cafre, que atraz digo, & nos diíTe : Aquella C i dade he do Portuguez. E indo-nos chegando mais à dita povoação, na qual vimos huma cafa de quatro aguas de palha, coufa que não tínhamos vifto em todo tffte cami* nho, porque as outras todas eraõ mais pequenas, &re« dondas, infiíHmos com o Cafre o M e chamar, o qual nos diíTe, que nos não cançafíemos , que naõ havia de vir, Fizemos daqui noffo caminho, & com muyta chuva fomos dormir em hum alto, & nefta noy te fe foy o Cafre , que atè entaõ nos tinha acompanhado; & como jà fabia o como vínhamos, voltai aquella mefma noyte por entre hum mato, que nos ficava nas coílas do arrayal, & levantando a ponta de huma tenda aonde elle vira guardar hum arcabuz, o apanhou , <k fez iílo com tanta futileza ,que ni ^uem o fentio eftando todos acordados por caufa da enuva, que havia dous dias naõ ceifava tendonos molhado quanto trazíamos, & pela manhaã achanr do-íe menos o arcabuz logo entendemos quem o levara. Querendo nos ir por diante, no lo naõ confentio a continua chuva, &: nos deyxamos ficar mais hum dia, no qual nos trouxeraõ a refgatar alguns bolos, & cabras, & hum fennofo touro. E vendo, que fe naõ acabava a chuva, anH tes fS . Tratada do naufvagk \ v tes parecia vinha cada vez com mais faria, Caminhámos o dia feguiute até a tarde, que chegámos a hum rio grand e , junto do qual nos alojamos em parte alta 3 de maney- . ra que nos ficava perto a lenha,. & a agua, & para nos enxugarmos fizemos grandes fogueyras, que duràraõ toda a noyte pondo as vigias cofiumadas no quarto da pri» ma rendido fendo doze de Fevereyro nos deraõ os Ca« fres hum aífàlto, tomando-nos por tres partes.. Ao que acodio toda agente, tomando as efpingardas as quaes eftavão muyto molhadas por haver tres dias, que continuamente chovia, & vendo, que naõ podiaõ fazer obra com ellas, gritey as meceífem aílim no fogo, como eílava5 para fe defcarregarem da polvora que tiiilião dentro , o que fizera5 todosj & em quanto ifto tardou nos ti« veraòquafí defalojados donde eftavamos comnotaveis alaridos, & aíiubios, que parecia o inferno rios mataraò Manoel Alvrez, & hum bombardeyro > que fo chamava fulano Carvalho,os quaes morrerão logo , & nos fe riraõ feíFenta peífoas muy to mal, dos quaes morreo Antonio Borges ao outro dia. Como tivemos as efpingardas quentes, fomos matando ne" les , & o primeyro que ifto fez foy hum marinheyro, que fè chamava Manoel Gonçalves , & ifto fe conheceo por atirar a primeyra efpingardada. E como os Cafres, viraò o muytodano, que 1 hes fazíamos, fugirão , dos quaes ficou grande rafto de fangue, & quiz a Virgem Maria da Conceyçao, que d eyxou de chover cm quanto pelejamos, que foy efpaço grande, &z aclarou o luar de maneyra, que foy grande parte para nosnãodcítruirem. Todo oreftodaquclla noyte eftivemos poftos em vigia > & íubimos mais acima o arrayal a parte mais fort e , & ficámos taõ mal tratados, que pouco baftàra para • •• nos i j ; j j| I L ]; ; f j ! i 1 v Que tnea Nao S.fóàtB&ptiJla* fp lios acabar a todos. Eftes Cafres pelejaõcom melhor moei o do que os outros atraz, porque uíaõ de bumas rodeias à maneyra de adargas de couro de bufaras do mato, as quaes faõ fortes, & cobrindorfe com ellas atiraõ infinitas azagayas, de que ficou cuberto o arrayal, Sc £òy tanta a quantidade, que fe acharaõ ao outro dia ,que16 de ferro foraõ quinhentas & trinta, a fora muytaã, que arrancando-lhe os ferros os efeonderaô para refgatareiti comelles; as de pào toftado forão tantas, qtie fe naõ poderão contar, & faziaõ tanto dano como as outras. Logo pela manhaã nos entríncheyramos, & íe puzeraõem cura os fe ridos, que foraõ tantos, que ninguém efcapod que o naõ foífe, ou de azagayà , ou de pedradas, & fizeraõ-fe as mayore^curas, que eu nunca v i , porque havia muytos atraVeíTados pelos pey tos de banda a banda, & pelas coxas, & cabeças quebradas , & nenhu delles morreo, Sc fó com tutanos de vacas eraõ curados. Ao CapitaÕ Pero de Moraes paífáraõhum braço pelo fangradouro. Aqui eftivemos dous dias ^ em os quaes fez otarpin» feyro Vicente Efteves hüajanganda a modo de batel, na qual remavaõ quatro remus. E nefte tempo os próprios <]ue nos roubáraõ nos vieraõ vender galinhas, & bolos, & pombe , que hc hum vinho, que fazem de milho, & nòs diílimülando com elles fazendo que os naõ conhecíamos,, l ^ ^ompravamos o que havíamos miíler. Da outra banda do rio nos vieraõ também vender o meímo* pafiando o rio em huns pàos, & emeima de hüas forquilhas , queficavaÕda agua mais altas, aonde traziaõ dependurada a mercadoria. Eftes nos perguntàraõ porque razaõ lhes matamos tanta gente, & contando-lhes nòs o que nos tinha acontecido»difíeraõ, que nos paífaíTemos para a outra banda, porque naquella havia ma gente H % que 6,® \v jatado do nàüfragto .que elles nos enfinàriaõ por onde fe paffava o rio dahi a tres dias, que eraõ mayores as aguas> & ficava menos a gua j & nos antes diíTo paíTamos na jangada duas peíFoas, & depois indo nella Rodrigo Affonfo , Antonio Godinho , & o Padre Frey Bento da Ordem de Saõ Francifco* & outras peííoas, fe virou antes de chegar la, & eftivsraõ quaíi a f g a d o s , & o Padre largou o habito, que levava defpido y no qual fe perdeo muy ta pedraria, que era de jdepofito, que na fua maõ fe fazia de arroz > que fe tinha comprado»& da vaõ diamantes de penhor, & outros, que lhe entregàraõ muy tas peííoas, que ficàraõ pelo cami«ího, & outras, que morrerão. E no dia, que os Cafres tinha Õ dito , paíTamos o rio mais por cima, ao qual puxemos nome , Rio do fangue. Nelle ficàraõ quatro compauheyros, & aqui vimos os primeyros elefantes,hum de huma banda j & outro de outra. Ao outro dia depois de paífar mos morreo. o Padre Manoel de Soufa. Daqui fcmòs marchando dous dias. por dent ro de duas legoas da praya, nofimdosquaes viemos dar em hu rio, que parecia alagoa, & í 'nha a bocariapraya, na qual vimos andar hü elefante com hu filho,& recolhendo -fe a retaguarda mais tarde encontrou commnytos elefantes, í>S quaes naõ atentavão em nòs, nem em todaefta jornada nos fízeraõ mal nenhum. E paííando çfte rio pela boca delle com a agua pela garganta,fomos caminhando fernpre pela praya até chegarmos a outro, que tinha muytos penedos grandes na boca, aonde naõ pudemos paíTar por ier muy to alto; &: fobindo hum outeyro íngreme vimos andar huns Cafres, que nos diíTeraõ nos eniinariaõ a paffagem,, & dando-lhes huns pedacinhos decobre, nos paffaraõosmininos muy tas peííoas, que vinhãodoentes, Efía gente daqui por diante he jà melhor, puzemos** Que teve a-Não SJoão Baptifta. 61 lhe por nome os Naunetas , por dizerem quando nos en* contràraõ, N aunetas, que em fua lingoa quer dizer, venhais embora,, à qual corteíia ferefpondia, Alaba , que quer dizer, & vòs também. Aqui nos venderão muyto peyxe, & nos ajudavao a levar a carga, que osnoífos negros levavaõ, cantando, & tangendo as palmas. Fomos daqui dormir na borda da praya x aonde nos veyo ver o Rey da terra, a que chamaõ Manam uze 5 o qual era mancebo, & vinha muyto autorizado com tres collares de lataõ no pefcoço, que he oque naquellas partes fe eftimava mais, & vendo-o o Capitaõ lhe levou hüa campainha de prata, a qual para elle naõ tinha comparaçaõ fua valia, & tomando a fua roupeta vermelha de e f caria ta, fe chegou aonde o Rey eftava efperando ; fizeraõ fuas corteíias,naõ perdendo o Cafre de feubrio nada, mas depois que o Capitaõ vio o íèu modo,começou a bolir com o corpo fazendo tanger a campanhia,ao que todos ficàraõ pafmados, & o Rey £e naõ pode ter que fe não defcompuzeffe, tom ando-a na màõ,& olhando, que era o que tinha dentro > que a fazia tnnger, & bolindo com ella, Sc tangendo deu grandes rizadas, Sc nunca em quanto aüi eíieve tirou os olhos delia. He coufa de notar como eftes brutos pelo feu modo faõ venerados, Sc como fuas gerâções,& f a m í l i a s faõ unidas,que jà mais perdem feus filhos os lugares. & Povoações, quede feus pays lhes ficàraõ, fi. cando ao mayor tudo, ao qual chamão òs outros pay, & como tal o refpeytão. Caftigaõ cruelmente os ladrões (fendo-o elles todos) & ufaõ de hu modo de juftiça galante , & he, que fe hum Cafre furta ao outro hum cabrito , ou outra coufa menor, lhe dà o caftigo o dono do ca* brito com feus, parentes , o que elle quer, & ordinariamente he enterrai© vivo. Aqui nos venderão hü boycar H 3 $ . Tratado do naufragto pado muyto grande,& gordo, aosquaes chamaõ Zcmbe. Caminhámos mais tres dias por dentro atè que fomos dar a hum rio grande, cuja paffagem nos enfinaraô os Cafres com moftras de amizade , no qual nos n* cou hum marinheyro por nome Bernardo Jorge 5 ^ d a qui fomos pela praya dous dias atè chegarmos a outro rio, que na boca era eftreyto, mas dentro muy largo, E por irmos ]à faltos de milho eíperamos hum dia, ao qual acodiraõ tantos Cafres, que cobriam os outey ros trazem donos muy tas galinhas a vender. Alli vi trazerem aleyjados às coitas pára nos verem. Paffando efte rio ao qual puzemos nome do lagarto , por vermos andar hum nel* lé j fomos noflb caminho pôr dentro afaftados da praya huma legoa , & caminhando íinco dias por entre boa gente, viemos fair na boca de hum rio , que parecia fe não paíTaria a vào, & eítando ahi hum dia nos vieraõ a vender algumas galinhas. Aqui nefta paragem ha infinitos elefantes , & toda a noyte os ouvimos bramir, mas com os muy tos fogos , que ordinariamente faziamos não oufaraõ chegar nunca. Os Cafres nos diíferaô, que foffemos mais a dentro, que lâ fe paíTava, & indo, nos eníinàraõ por onde era o vào, & nos ajudàrão a paíTar Nelte rio efteve Dona Urfula quafi afogada , porque como a stgtià dava pela barba ,&ella era pequena, fora cobrindo, & como ella fabia nadar pareceo-lhe pü^efTe romper a agua, & vendo-fe,que hia pelo rio abayxo, lhe acodiraõ trabalhofamente. A efte rio puzemos nome, o das Ilhas por ter algumas por dentro. Daqui fomos por cima de huns outeyros em buí ca de milho, de que hiamos faltos,que por naõ irmos carregados o não comprámos nefte rio, & à noyte chegamos a humas povoações pobres, que nãotinhaõ fenaõ abobaras, / Que teve a Nao S.Joao Èaftifia. ras, & tendo caminhado mais quatro, ou finco dias cisegamos a outro rio que teria huma grande legoa de largo, &na borda muytos efpeífos caniços >o qual paífamos fempre com a agua pela cintai & por aqui atraz nos foy ficando muyta gente com camaras, & outras enfermidades, que por fer muyta quantidade me não alembra. Todos efles males nos fez o milho , porque o comiamos inteyr o , & c r û , & como não éramos acoftumados a efte man- íimento, trazíamos os eílamagos de muytas coufas peço« nhentas fraquifïïmos , & debilitados. Efte rio nomeyo fazia húa Ilha,na qual vimos muytos cavai lo s marinhos, & pondo quafi todo o dia em o paíFar, chegámos à outra banda à tarde aonde dormimos. E ao outro dia marchámos por huns campos defertos, & nos veyo ao caminho hum Cafre com huma joya redonda de lataõ botada ao pefcoço, que lhe cokria todos os pey tos, & nos diíTe, que foífemos com elle que nos levaria onde havia muy to mãtimento , &: indo-nos guiando nos levou por dentro de hum rio, aonde dava a agua pelo joelho, todo cheyo de arvoredo tão a l t o , êctãoefpelTo , que em mais de duas horas, que fomos por elle,naõ vimos o Sol. Paííado elle, & andando todo aquelle dia íem parar, por irmos faltos dè milho, à tarde fomos ter às povoaçoens, &querendoíios prover, não achamos mais que hum mantimento,que he o mefmo, a ne em Lisboa daõ aos canarios, a que chamão alpifte, & os Cafres amechueyra > & foy efla gente buícarnos ao caminho fó para nos ver,do que faziaõ muytos efjpantos j &: perguntando-nos qual era a caufa de vir* mos por terras alheas com molheres, & filhos, & contan* do-ll io os noífos Cafres torciaõ os dedos como que rodava 6 pragas a quem fora caufa de noífa perdição. Daqui marchámos por terra chaã povoada de gente $ . Tratado do naufragto miferavel, em quem achámos bom gafalhado , 6c no fim de dõus dias chegamos a huma povoção, que eÜava perto da praya, na qual achámos algum peyxe, & a gente fe mofbrou mais compafllva , que toda a outra, porque molheres, 6c meninos fe foraõ à praya atirando muytas pedradas ao mar ,di zendo-lhe c e r t a s palavras como pragas , & virando-lhe as coílas alevantando humas pclles, com que traziaõ cuberto o trazeyto, lho moflravaõ, que he entre elles a mayor praga, que ha, 6c faziaõ ifto por lhes terem contado, que tile fora caufa de nos padecermos tantos trabalhos, 6c de andarmos havia finco mezes por terras alheas, que he o de que mais fe efpantavaõ, porque não coftumão afaílarfe donde nafcem dez legoas, & tem iífo por couíã notável. Daqui metendo-nos pela terra obra de huma legoa, fomos caminhando por terras bayxas, areentas, 6c de pouco mantimento, 6c no cabo de tres dias demos com o rio da pefcaria, no qual achámos muy to peyxe, 6c a gente delle nos fez muyta feftaj H e eflre rio na boca eftreyto, 6c alto, mas hüa legoa por dentro he de mais de tres legoas de largo , 6c em bayxa mar fica em feco.Tem os Cafres nelle infinitos pefqueyros, a que chamão gamboas, feytas de efcadas juntas, nas quaes entra o peyxe com a enchente ,6c com a vazante fiw ca em feco. Como a marèfoy vazia de todo , atraveíFamos o rio indo comnofco muy tos Cafres, nue nos ajuda-' vaõ a levar o que mais nos carregava, indo cantando co grande alegria. Fomos efte dia pela praya jantar aborda do mar, 6c não achando agua doce na terra, de que ficamos rnuy to triftes ,a fomos achar dentro na agua falgada, 6c era hum olho de tanta groífura como huma concha, 6c metido no mar, 6c fahia com tanta fúria, que arrebentava por cima da Que teve a Nao S. Jòaõ Btíptifia. 6$ da agua falgada hum palmo de alto, & vazando logo a maréficou em feco, aonde todos matámos a fede, & fízemos de comer. Caminhámos dous dias fempre pela prayadas mèdas doouro , que já aqui começavaõ, &na fim delles liiamos já muyto faltos, & fó corri tres vacas, & por parte onde íe não achava agua, & aqui nos diffe hum Cafre, que nos levaria onde nos vendçriaõ muyto milho* & galinhas, & cabras, & guiando-nos para hum a aberta que a terra fazia nos deyxou junto de huma grande fonte , & dando recado às povoaçoens nos acodio muyto milho , &: galinhas, & nos vierão ver os Cafres mais princi* paes com diíferente trajo, què eraõ humas grandes capas de pelles, que os cobriaõ ate o bico dopè, & elles em f i rriuyto fizudos, & graves, os quaes pedirão ao noífo Capitão quizeíTe ir fazendo caminho pelas fuas povoações, que nellas íe poderia prover de mais mantimento, o que fizemos logo no mefmo dia>& por fer tarde dormimos em, hum Valle, & no outro feguinte fomos às povoações aonde nos receberão bem, mas não achámos o que elles nos tinhão dito. Eftes Cafres me virão matar hum paffaro â efpíngarda , de que fizerão grande efpanto parecendo-lhes fer , feyticeria, & aífim fallando huns com outros fe veyo ao'., Capitão hiim aleyjado de huma perna, que lhe aleyjàra hum lagartí\hr/ia muyto tempo,& aílim o moftrava a ferida fer velha, dizendo-lhe, que fe fe atrevia a curallo, que lhe pagaria m.uyto bem. Ao que o Capitão refpondeo galantemente, dizendo que aquella ferida havia muyto tem po que era fey ta 5 & que por iíTo íe não podia curar em pouco tempo, Sc mais que lhe havia de dar alguma coufa, com que fizeííe a cura cõ boa vontade, que iem ella não podia fazer nada. Ao que o Cafre diíTe 3 que era conten« V':; • I tc$ $ . Tratado do naufragto te; 6c mandando bufeai huma bandeja de milho, lho deu, & o Capitão depois de o tomar difle, que ainda naõ tinha vontade. O Cafre mandou bufcar mais tres galinhas, 6c dando-lhas lhe perguntou, fe tinha jà vontade, ao que refpondeo o Capitão, que fi; 6c o Cafre replicou, que fe a não tinha, que o não curaíTe, que elle bem fabia, que o não podia curar bem contra fua vontade. O Capitão o curou defta mancyra. Tomou huma efeova, que trazia, que tinha nas coftas hum efpelho pequeno, 6c pondo-lho diante dos olhos, o Cafre ficou pafmado, 6c chamando outros, que alli eftavaõ, lhe diííe o Capitaõ, que fe naõ boliffe ,r>*m fallaífe j 6ceftando quedo depois deter vifto o efpelho , tomou a efeova, 6c eicovou-lhe aonde tinha a ferida, 6c untando-lha com huma pouca de gordura de vaca lha atou com hum pedaço dc bertangil, 6c depois de ífto feyto lhedifie,que dahi a duas luas havia de ficar faò* que por ler a ferida tão velha nãofarava logo. O Cafre ficou muyto confiado, 6c lhe diífe, que era pobre, que poriíío lhe não dava mais. Logo acodiraõ mais aleyjádos, 6c forão curados pelo mefino modo. Caminhamos ma is dous dias pela praya, 6c chegámos; no fim delles ao rio de Santa Luzia,aonde fe eílimavão ja panos, 6c por elles refgatamos milho,3cgalinhas. Nelle efti vemos hü dia,6c ao outro o paífamos, no qual nos morrerão nove peífoas de frio.He elle rio dc 'Vas legoas de largo, 6c como a as;ua nos dava por cima dos pey tos, 6c corria com muy ta fúria, quando o acabamos de paliar, ficamos quaíi mortos. Aqui endoudeceo hum marinheyro velho , que fe chamava Francifco Dias,, o qual vinha aleyjado de ambos os braços de duas azagayadas, que os Cafres atraz ihz tinhão dado. Logo fizemos grandes fogueyras,emque nos aquentamos,6comarinheyro tornou em em íi depois de quente. Detivemo-nos aqui atè o outro dia reigatando muyto milho , bolos, & maffa deameychueyra, que elles coftumaó comer crua, & nos o faziamos também. Refgatamos mais duas vacas, das quaes matey huma àefpingarda.Fomos daqui caminhando fempre pela praya das mèdas do ouro com razaõ lhe puzeraõ efte nome, porque não parecem íenaò mèdas, íèndo de huma terra de cor de ouro, & tão fina como farinha, mas dura, & toda cheya de ribeyros de agua, os quaes partem eftas mèdas, & a agua delles he amarela da mefma corda terra. E pelo que a diante vi nas terras de Cuama, me parece, que erta deve de ter ouro, por fe parecer com aquelía da qual fe tira muyto em pò, & ifto me certificou mais o fer efta pezada. Eftas mèdas eftaõ pegadas com a praya, & vão em corda por cima, & tem de comprido obra de quarenta legoas. E marchando por diante paffámos hum rio, no qual roubáraò os Cafres a hum marinheyro que fe chamava Antonio Martins por fe afaftar da companhia querendo comprar alguma coufa, qre o naõ viffem, & indo pela praya chegamos à outro pequeno, que dava a agua pelo joelho, & nelle jantamos. E fazendo tomar o Sol ao Piloto , tomou de altura vinte feis gràos largos, o que caufou alegria na gente, porque cuy da vamos eftar mais Ion* ge.E foube-fe por efta altura eftarmos do rio de Lcurenço Marquez vinte feis legoas , ou pouco mais. Aqui nos trouxèraõ huma bufara morta a vender, com a qual ficou a íefta fendo mayor ,8c achámos hum Cafre com hü chapeo na cabeça, & veftido de hum pano, que nos affegurou fer certo o que o Piloto tinha dito. Também vimos outros Cafres com panos, & nos diíTeraõ , que em quatro dias podíamos chegar aolnhaca. Aqui não conhecem rio de «. I z Lou- 6% Tratadodo ftaitfragifr Lourenço Marquez , nem cabó das Correntes, feriâõo Inhaca l que he hum R e y , que eftà em huma Ilha na boca do rio de Lourenço Marquez, como adiante direy. Nefte rioíinho,que digo, nos ficou hum menino, que trazíamos filho de Luis da Fonfeca, & de Breatiz Alvrez, o qual vinha muyto magro,& fe tinha deyxado ficar muy tas vezes nas povoações atraz, & os Cafres no lotraziaõ ao outro dia, & como elle tinha já feyto ifto, parecéo-nos vleífa como das outras vezes. Marchámos mais quatro dias pela praya, ôc no fim delles nosfahio ao caminho hum Cafre acompanhado c a outros feis, o qual era muyto gentilhomem, & vinha bem concertado com huma cadeya de muy tas. voltas a tiracolo , & hum pano galante cingido, & as mãos cheas de azagayas, que nifto fe efmeraõ mais os graves, E nenhuma coufa me admirou mais deita gente, deída mais remota, que he aonde defembarcamos,que efta, que drrey.Tinhaõ tão pouca noticia de nòs, parecendo-lhe íermos creatuaras nafcidas no mar , que por acenos nos pedirão lhes moftraííemos o embigo, o que fizerão logo dous mar:* nheyros, & depois pedirão, que aíFopraífembs, & corna nos virão fazer ifto, deraõ à cabeça como quem dizia, efsesfaõ gente como nòs. Todos eftes Cafres atè Zofala faõ circuníídados, naõ íey quem lhes foy là enfinar efta ceremonia. Eíàe, que atraz digo , era filho do Inhaca Sangane o verdadcyro Rey , & Senhor da Ilha, que efta Bo rio de Lourenço Marquez, a quem o Inhaca Manganheyra tinha defpojadodelia, & elle vivia na terra firme com íua gente atè veí fe morria eíle tyrano,.. que era muyto velho, para íè tornar à ília poííc , como adiante direy. Levou-nos pela terra dentro obra deh uma legos às fuas povoações > onde nos venderão alguma s cabras,ôs Que teve a Não S. Jogo Baptifía. pedindo-lhe nos levaífe aonde feupay eftava, o dilatou: hum dia, querendo que lhe compraííemos nas fuás terras alguma coufa,masnòsdefejofos de chegar detivemonos alli pouco, & começando a fazer noiíb caminho,ven^r do elle, que por nenhum modo nos queríamos deter, no lo mandou moflrar. No qual caminho vimos huma cafa grande de palha ,& antes que a ella chegaífemos mujías figuras fem roíto, a modo decaens, & lagartos, & de homens tudo de palha, & perguntando , que era aquilloT diíTeraõ-me, que alli morava hum Cafre, que dava aguá quando faltava nas fementeyras : todo o feu govcrn© faõ feytiçarias. Fomos jantar debayxo de hü arvoredo , no qual no^ trouxeraõ a vender muyto mel em favos, & veyo ter cõnofco hum Cafre ,.que fallava Portugiiez, que trazia ha recado do Inhaca Sangane pay do Cafre , que atraz nos fica. Foy a vifta defte Çafre para nòs novas de muy ta alegria , porque nos defenganamos com elle, & tivemos por certo fer aíllm o que nos tinhao dito, Deu feu recado, 6 qual era, que nos mandava dizer eífe Inhaca, que nos foffemos logo para onde elle e^ava , que nos não faltaria nada , & nos daria embarcação para paliarmos o rio da outra banda, & faria tudo o que quizeífemos, & na© fé fiando o Capitaõ de tudo ifto, lhe mandou là hum Portugiiez, pelo qual lhe enviou hum prefente de coufas de cobre, o qual foy, & fallando com elle, & com muytos Cafres ,.que ahieftavão íè veyo, & trouxe ao Capitão hü» cacho de figos, os quaes feftejámos por fer fruta da índia boa. Eftc homem diífe, que o Rey parecia bom homem, & que não tinha força , com que nos pudeíFe fazer mal^êí que effova efperando por nòs, & que diziaò os feus, que a l i vinhão todos os annos muytos Portuguezcs, E para • ^S ' 310S .v- fò Tratado do naufrágio tios fazer ir mais deprefla nos mandou hum marinheyro de Moçambique , quealli tinha ficado de huma embarcação , que os annos paífados alli tinha ido. Com ifto nos fomos, &: tendo andado obra de huma legoa pela borda de huma alagoa, chegamos onde e í k Rey eiiava, que era em hum a1 to entre dous pequenos outeyros,& como era já noyte naõ nos fallou, & mandou pelos Teus nos moffraffem hum lugar apegado com fuas povoações, onde a (Tentámos as tendas, & ao outro dia o foy o Capitão ver, & lhe lançou hüa cadeya douro com hum habito de Chrif» tôao pefcoço, & lhe deu duas farafas, panos, que as molheres na 7ndia veftem, & faõ de eflima. Elie tomou ifto com muyto íizo , &fallando poucas palavras, diíTe , que fenaõ agaftafle, que havia de ir das fuas terras muyto contente, porque elle não tinha mayor bem, que fer amigo dos Portuguezes, & com ifto fe veyo o Capitaõ. Efte negro he grande pefToa,& foy fempre leal aos Portugueses. Ao outro dia rios veyo ver, & mandou trazer cabras* & carneyros, & muytas galinhas ,&amechueyra; & dilatando-o não nos mandar íoilrar huma embarcaçam, qüe dizia tinha, nos viemos direytos à praya, & caminhando por ella dous dias, demos no rio de Lourenço Marquez de nòs taõ defejado, afeis uias de Abril de feis centos & vinte tres, o qual nos não appareceo fenaõ quando entrámos por elle dentro, porque efta Ilha, que atraz diíTe , fica muyto perto de terra firme da banda do Cabo de boa Efperança, & aílim quando vinhamos caminhando nos parecia tudo terra firme. Tanto que entramos dentro obra de hum quarto de legoa 9 puzemos noífas tendas, & atirámos tres, ou quatro efpingardadas, & fendo de noyte fizemos noíTos fogos 3 & todos com o Padre Frey Diogo dos Anjos Capucho, Que teve a Nao $. Jom Baptifia. 7* cho, & com o Padre Frey Bento demos graças a Deos de nos trazer aonde nosconheciaõ vinhaô embarcações de Moçambique. Ao outro dia vimos duas almadias com negros , que fallavào muyto bem Portuguez, com o que ficámos muyto mais contentes, porque atèalli naõ tinhamos vifto aímadia nenhuma, nem embarcaçaõ. O Capi-t taõ mandou vifítar o Rey da Ilha, que era o Inhaca Man-» ganheyra, que atraz jàdiíTe, pedindo-lhe nos mandafie dizer fe tinha embarcaçaõ 5 em que pudeffemos ir para Moçambique ,& íe tinha mantimentos, com que nos püdeíTemos fuftentar hum mez que alli podíamos eílar, atè concertar embarcaçaõ, em que nos foffemos ^k pnífrternos à outra banda para podermos ir a tempo conveniente que achaffemos embarcaçaõ de Moçambique» Ao que o Inhaca refpondeo + que foífemos para l à , que de tudo nos haviaria, mandando-nos tres embarcações pequenas para paífarmos à Ilha, o que logo fizemos. E tanto que toda a gente efteve nella, marchámos com a ordem, que trazíamos ate a povoaçaõ onde o Rey eftava r a qual era de cafas grandes todas com fcaas pátios de paos altos,de modo que logo part ciaõ cafas de homem bellicoío, Eftava aífentado em huma efíeyra cuberto com híía capa deperpetuana de cor de canella, que parecia Ingreza, & cont hum chapeo na cabeça, & em vendo o Capitaõ fe alevantou, mas naõ fe bolio, & lhe deu hpm grande abraço. O Capitaõ lhe tirou a capa, com que eftava cuberto, ficando nii, & o cobriocom outra de capichuela preta, & lhe deytou aopefcoço huma cadeyí; de prata, que foy do contrameftre Manoel Alvres , com o apito , que fôy pelíi, que elle muytoefíímou. He eile negro muyto velho ao -que parecia gordo, fendo affim ,que em toda a Cafraria naõ vi Cafre que foífe alcatruzado* ijem gordo/enap $ . Tratado do naufragto todos direytos, & enxutos. Mandoú-nos que puzeíFemos noíTas tendas junto das povoações, & ao outro dia nos acódíriaõa vender muytopeyxe,galinhas, & amechueyra , & alguns carneyros ; & o Rey veyo ver o Capitaõ, & Ilie foy moítrar as embarcações, que tinha, as quaes eraõ pequenas , & eftavaõ todas quebradas, & como os noiíos carpimeyros as viraõ, differaõ, que naõ eraõ capazes para mais, que para nos paffar à outra banda do rio, que eraõ dahi a fete legoas , nem tinhaõ hombros fobre que fepudeíTem fazer mayores embarcações , & que fe naõ feaviàmos de eíperar por embarcaçam de Moçambique, a qud naõ pedia vir fenaõ no Março do anno feguinte,que pèdiíTe ao Inhaca mandaíTe concertar as embarca coe ns depreíTa, porque os Cafres faÕ muy to vagarofos 3 ao que ò Capitaõ refpondeo: Parece-me bem paCemos à outra banda, iremos marchando ate Inhabane , que nos fica perto, & podemos gaftar, ao mais, hum mez no caminho; & naõ ficarmos hum anno aqui efperando na terra defte Cafre , que he hum traydor, que matou ha dous annos aqui hum Clérigo, & tres Portuguezes, poios roubar, &; por efta razaõ naõ tem \ m d o aqui pangayo ha tantos tempos, nem virá taõ cedo, & o mefmo nos irá fazendo a nòs pelo tempo em diante poucos a poucos. Tudo iífo lhe tinha contado o outro Inhaca da outra banda, & af~ fim tinha acontecido. E ditas eftas palavras fefoy ao Inhaca , & lhe pedi o mandaíTe concertar as embarcaçoens, porque eflava reíoluto a fe ir, & naõ efperar pelas de Moçambique, as quaes tiWia dous annos, que naõ tinhaõ alli vindo polo gafalhado, que os tempos atraz lhes fizera,& que o anno vindouro pôde fer naõ vieíTem também. Ao que lhe refpondeo o Inhaca, que era verdade matada o Clérigo, & os Portuguezes, mas foy, porque elles Que teve a Nao S. João Raptifla. 7j lhe matàraõ feü irmão > & que fe nós naõ queríamos fiar delle, que nos fofíemos pára huma Ilha , que eftá logo ahi pegado, a qual fe paffava a pè em bayxamar, que alli tínhamos^agua, & que nos mandaria fazer para cada dous Portuguezé^ hua gamboa > & teríamos o mantimento, que lios baftaffejque alli tinhão inveroado por muytas vezes Por tuguezes,& que nunca fequeyxáraõ delle íenac agora. DiíTe mais ,que elle nos daria dez Cafres íeus, que man laífe com elles dous Portuguezesa Inhabane dar recado como eftavamos alli efperándo , para que vieíTem embarcações, ao que replicou o Capitaõ que lhe importava chegar deprefTa. 1 ornou-lhe a dizer o Cafre , que lhe requeria não íizeffe tal viagem porque o haviao de matar os Moerangas aííim como fizeraõ à gente de Nu^ no Velho Pereyra, que não coube na embarcaçaõ, & que eraõ terras rnuyto doentias, & que elle tinha asfuas caías cheyas de marfim, 6c ambre, & fe os Portuguezes lho não compraíFem , naõ tinha elle remedio, pelo que lhe convinha fazemos muytos mimos, & naõ nos efcandalizar, que lhe deflemos credito. Nao quiz o Capitaõ íeiao irfe, & aílim lho diííe5ro~ gando-lhe mandafíe concertar as embarcações, &: defpedindo-fe delle, nos viemos efíar na Ilha,que tenho dito, que eftá obra de huma legoa dalli, na qual eftivemos em quanto as embarcações íe concertàraõ, que foy atè dezoy to de Abril.Aqui nos quizemos ficar Rodrigo AíFcnío, & eu, & nos fomos ao Capitaõ dando-lhe conta diíFo, & que nos não atrevíamos a marc har mais por terra, que dalli iríamos quando vieííe pangayo. O Capitão nos levou por defconfiança, dizendo, que fe efpantava de querermos arripiar a carreyra quando éramos a fua -guedelha P que por fe dizer Jiavia ladrões adiante, o naõlbavia-. K mos / cV:'v TvMüâo^MttffittgtQrva&JX • mos i&âeyxa* ** fâqm quando detòdo afizcffemòs ynos havia de fazer bum protefto, & parece, que adivinhava^ efte fidalgo. Com eftas razões nos embarcámos com a mais companhia em quatro embarcações ,asquaesnão puderao levar toda a gente de huma vez > foy neceffa-:. rio voltar outra. E efte d i a , que partimos^ chegámos á meya noyte á outra banda a huma Ilha, que dentro 110 snefmo rio eftá, na qual faltámos em terraôcnellá dor~ mimos o que reftava da noyte. o T l i Ao outrodia Jlodrigo Affonfo de Mello, que já vinha doente, arnanheceo muyto mal , mas ainda faliava bem, & confeíTando-fe veyo a morrer noutra Ilha ., donde viemos a outra noyte. E aífirmo a v. m. que não pudéramos ter coufa, que nos caufaíTè mais fentimento, & a mim me coube a mayor parte como feu fervidor, porque além de fer tão grande cavalleyro, era hum Anjo de na* íureza, poíTo dizer, que elle era caufa de todos os trabalhos padecidos nos ferem fáceis depaíTar, porque era o primeyro, que hia bufcar a lenha ^ &a aguá às coíbas, & fe metia no mar primeyròque todos bufcar o marifco, & quando os outros vi ao huma pefToa de tanta qualidade fazer ifto, dava-lhe animo p ira fazerem o mefmo,& naõ defcorçoavão. Aqui nefta Ilha o enterrámos ao outro dia pela manhaã, ôt lhe puzemos hum finalnacova.: Daqui fomos,por humfyraçodefte rio fer a outra Ilha de hü ne» gro, que fe chama Melbomba, aonde defembarcámos,& çfperamos atè que as embarcações tornárão com o refto da gente, que nos ficav na Ilha do Inhaca, que foy atè fetede Mayo. N o qual *empo adoecemos todospor íèr a terra má,8c tarnbem porque nos? metemos eni muyto comer cru , & morrerão o Padre Frey Bento, Manoel da Sylva Alfanja, Pafcoal Henriques bombardey ro, AnI. tonio Que tmzmNím S:paÔ Bâftifta. ff tonto Luis marinheyrõ Joa5 Gtumeté. ChdgòuãüUtra gente, da quái vinha também doente á mayor parte* £c eraõ mortas oy to peíToas das que deyxàmos comellas» que por não lhe faber os nomes os não digo àcfüi. Neíté Ilha deyxàmos por efíarem muytódoefttes, & nos nâo poderem acompanhar Antonio Gocíinho'dé Lracerda^aí-par Dias deípeníeyro , Franciícò da Coíta murMieyro, 0 & hum criado do íGapitaô.- • - -» ^ PaíTando-hosa terra .firifíe marohámos fèmprè jpélà praya atè chegarmos às terras de hum ReyquechamaG Qmmanhifa, que h e o mais pòdèrofo , que neftas partes hà, o qual a treze dias deílè mefmo mez rios vèyo ver ao caminho onde eílavamos aguardando? con\ uIéc~íTcr alguma gente j & como algu/peyoràvã V â deyxàmos com eJfte Rey j que nos moftroübom animo, & ordiriariamen* t e , quando a eftas partes vem embarcação, na fua terrá tem a mayor feytoria.Pedio-nos foíTemos por d entro,que era melhor gente, & nos avifoti , qtíe peló caminho que levavaniòs nos haviáõ de roubai, &matar a todos. E corno o Capitaõ nunca tomou confclhô doutrem , &fe governava ÍQ por fua cabeçí , não acertou èm muytas couí a s , & com fer efte, vinha tão unido com a gente do mar, que não fazia coufa i que lhes não pareceíTe bem, ainda que foífe em caíligo, que nelles proprios fizeííe, por ef~ te refpeyto fenão remediou iftò,& porque òâ homens nobres erão poucos. Aqui ficou Dona Ur fula dom hum filho mais velho, que fe chamava Antonio de Mello , & íicàraò com ella JaquesHenriques, &dous gr Ginetes y&Thuma negra de Thomè Coelho. Efta Dona levarâõ em hum andor, que íizeraó de panos, com o filho nos braços, que era grande íaílima de ver huma tolher moça 5 fer m o í a , mais alva,êc: ,'K-a' •• • •', loura,' v^F^^M^À natffragh loura f que hum a Framènga» molher de huma peífoa taô honrada como foy Domingos Çardofode Mello Ouvidor gerai do crime no Eftado da índia, tão rico, em poder de Cafres chorando muytas lagrimas.E por nos parecer,que não çfcaparia, lhe trouxemos o filho mais pequeno com Bofco, oque foy coufa ,que mais lhe acrefceiitou o íentimento. O Rey a levou çomfigo, dizendo lhe não faltaria nada, & o Capitão lhe prometeo de lhe dar hum basr de fato polo bom tratamentoque lhefizeíFe, & pelas maispeífoas. ;•:..-••...., v •• " Tanto que o Rey fé fòy nos par timos, indo caminhando pela praya fempre, Jà nefte tempo o Ca pi taõ hia d o e ^ ç ^ q u a l levavaõem hum andor,atè chegarmos a hum rio ,que chamaõAdoengr es, que foy a dezafeisido propr io mez, no qual o Capi tão .vendo o efíado, emque eftava , que muytas vezes não fallavaa proprio,:ordenou de eleger com parecer de todos huma peífoa, que tiveíTô merecimentos, & partes, para poder fearernfeu lugar, £c mandando chamar a todos, lhes diffe, que elle jà-não hiacapaz para os poder gr rernar, que viffem ellesapefi foa , que alli hia, que melhor o piilefíe fazer pois bem conheciaõ a todos 3 & apara que preftava cada hum, que em fuas mãos punha efta.eleyção, porque depois fenaõ queyxaiTem dille , &que depois de todos votarem votaria elle , os qua$s vptaçido em miim, dizendo fuas virtudes , diíTe o Capitão quecíTe era também o fêu voto, Sc mandando-me chamar Pero de!Moraes, me diffe como aquelle povome tinha eleytopor Capitão>k que efFe fo» raoTeu voto tamhem, qiw efperavaem Deós» que eu os govcrnaíFecom mais prudência do que elle atè entam o tinha feyto,que.comopeífoa dè fora tinha fabidò nè que lhes dava moleüia. Eu refpondi, que havia de trabalhar fe o podia ir imitado» E QiieteveaNáo S. $oao Bãftifta. 7? E logo me fuy para a minha tenda, levando comigo a mayor parte da gente, aos quaes diífe, que aceytàra aquelle lugar fó com zelo de nos irmos confervando, &c para que emnenhum tempo fe pudeífem queyxar de mim» efcolhia feis peífoas as mais principaes, que alli hiarn* fem o parecer das quaes não faria coufa de coníideraçãoj pareceo iftoa todos bem. por o Capitaõ Pero de Moraes o não tomar nunca de ninguém em matéria algüa. As pefíoas > que para iflo efcolhi foy o Padre Frey Diogo dos Anjos,Thomè Coelho de Almeyda fidalgo, Antonio Ferrão da Cunha fidalgo, Vicente Lobo de Sequeyra fidalgo , André Velho Freyre, & o Piloto.Depois de ifto feyt o , veyo o Efcrivaodo arrayal com eflas feis peiioás, & me requererão da parte delRey, dizendo, que a pedraria , que vinha na borfoleta, vinha arrifcada, por quanto os Cafres havia tres dias nos perfeguiaò, & que a trazia hum homem occupado fó com d i a , que podia aconteceu a diante, aonde nos tinhaô dito eílavaõ Cafres muyto belicofos, desbaratarem-nos, & tomarnolatodapor ir junta em modo, q*ie fazia, tamanho volume, & que liiamos arrifcados a iíío por ir a gente toda doente, & naô poderem c6 asefpingardas, & a polvora não ter força nenhüa por fe ter molhado muy tas vezes, que mandaffe abrir a boríoleta, na qual vinhão fete bifalhos muyto bem mutrados, que os repartiíFé pelas peífoas,que mepareceíTe* cobrando de cada-huma feu conhecimento, em que confeífaífem levar em feu poder o dito bifalho com tantas mutras de lacre-, & com taes armas, & que em nenhum tempo pudeífe a peífoa, que a le vaíTe (em caio que a fakvaífe) requerer mais falvaçãodelle, que aquella que lhe coubeííe, repartindo-fe por todos conforme os merecimentos, de cada hum , & que iílo fe fazia para bem de to* 78 Trai ado do, naufrágio dos, & para melhor fe poder falvar. E^como ifío pareceo bem à mais da gente, & era o melhor remédio que podia ter emcafo que tiveffemos huma deíaventura, mandey vir a borfoleta, & perante todos a mande y abrir , & aos fetebifalhos , que dentro yinhão, os mandey cada hum forrar de couro, &: fazendo os conhecimentos, os entreguey às peífoas feguintes : Thomè Coelho de A l m e y d r ? , , Vicente Lobo de Sequeyra, André V e l h o Freyre, o Piloto, Vicente Eíleves Meftre carpinteyro, J oaõ Rodrigues , & eu, & feytos os conhecimentos, & mais papeis de entrega, fe depofitarão em minha maò. Havia já dous dias que alli efta vamos, onde nos fí^ cáiáu u es companheyros, hum déliés bombardeyro, & dous grumetes,&: os Cafres nos naõ traziaõ a vender cou^ fa alguma, aiites nos faziaõ todo o mal que podiaõ , naõ nos querendo moftrar por onde o rio fe paífava 5 pêlo que eu mandey a hum negro noiTo fofTe apalpando com hum pào na maõ por onde era a paífagem, & paira o fazer com melhor vontade, lhe dey numa cadeya de ouro, porqiiè elles não eraõ alli noffos cativos, & porque naõ fugiifem para os da terra, era nece Jario trazermolos contentes, oqúe fez logo, andando para huma parte, &c para a outra, ate que acertou com o vào, & pondo néUe balizas, fomos paíFando com a agua pela barba,& como tínhamos entrado naterra dos ladroens trabalhamos caminhar o mais que pudeíTemos, & áílim o fizemos, indo continuâmes te brigando com elles, o que jà a gente fazia com muyto traMho por virmos doí ntes , & com poucas forças pelos tfiahtimentos ferem poi? -os, &: os Cafres no los naõ que-» rérem vender. Affim fomos atè o rio dó ouro, o qual h l muyto caudelofo, & largo, & vem com tanta fúria, que achámos ántes que a elle chegaífemos mais de oyto le. goas, Que teve a Nao S.Joao Baptifta. 79 goas, arvores grándiílimas arrancadas pelo pè em tanta quantidade, queenchiaõ asprayas, que mtiytas vezes naô podíamos paííar com ellas, &logo entendemos haver alli perto; algum rio grande. He fenhor de toda efta paragem hum negro muy to velho, ao qual chamaõ Hinhampuna. E ficámos muy to defconfolados com a viíla defte rio pela impoflibilidade , que viamos na paífagem, mas naõ tardou muy to tempo, vimos vir por elle abayxo duas almadias, com cuja vifta ficámos com menos re» ceyos, & chamando-as a nòs, lhes mandey dizer íè nos queriaõ paííar, ao que refponderaõ ,que fi, que viriaõ ao outro dia com mais almadias para o poderem fazer, & mandando-lhe dar hum pedaço de bertangil p*-ia uua íepoíla, fe foraõ. E efperando nòs por elles pela manhaã, os homens que eftavaõ de pofta viraò vir da noífa mefma banda mais de duzentos Cafres muy to bem armados cõ muy tas azagayas, &: frechas, &: foraó os primeyros, que com eftas armas vimos, logo fiz pôr a todos em ordem, & defparar algüas efpingardas. yieraõ-fe elles chegando todos juntos trazendo o fru Rey no meyo, o qual vinha veílido à Portugueza galantemente com humgibam detafecirade linha, com o forro para fóra , & hum calçam à comprida com abarguilha para traz, &,hum chapeo na Cabeça y&c vinha com efte veítido por nos moftrar,que tinha comercio com nofco, & nos fiaífemos delle, mas logo foy conhecido feu defcnho. Trouxe-me de faguate dous ramos de figos, que lhe cu paguey muyto bem, dando-lhe hum bertangil. E tratando nos mand >íTe paífar pelas fwas em* barcaçoes,diífe,q como lhe pagaífemos o faria,íobre o que nos concertámos por três ber tangi s, & depok de conor* tados pedio mais dous x ao qual refufando dlífe, que por elle A,, 8o Tratado do natífragio elie fer velho , & nos ter vindo ver llie dava mais os dous que pedia. Dahi a hum pouco diííe , que lhe havíamos de dar mais, & alevantando-me me vim para as tendas, & mandey eíliveíTem todos com as armas nas mãos ate depois de meyo dia, & vendo, que elles fenaõ hiaõ, lhe mandey dizer, que os Portuguezes naõ confentiaõ nun~ ca, que junto com elles eftiveíTe outra gente, que lhe mãdava dizer iílo,porque íe hia já fazendo tarde,& denoyte lhe podiao matar alguém da fua companhia com as iioíTas efpingardas,com que toda a noyte vigiavamos. File mandou dizer, que a ília gente fe hia logo que elle fó havia de ficar com quatro Cafres, efperando ate o outro dia vieiTem asalmadias para nos mandar paííar, que era noíTo amigo. ; Tanto que vi efta gente fe hia, mandey atirar duas efpingardadas cõ pelouro por cima delles, os quaes ouvindo zunir os pelouros, deytaraõ-fe no chaõ, & mandamô faber que era aqui 11o, que elles naõ queriaõ brigas com nofcoj ao que lhe mandey dizer que fora hum deíaf* tre, que defearregando duas efpingardas acertaraõ de paíTar por là os pelouros, & lííim fe foraõ,ficando o Rey, como digo, & nòs toda a noyte com muyta vigia, Sj: como fe acabavaõ os quartos, atiravamos efpingardadas. E pela manhaã vendo elle como tínhamos eftado todjí a rioy« t e , & que não podiaõ fazer o que deféjavaõ fení feu rifco, fe toy dnfpedindo-fe de mim, dizendo, que logo mãdava dous Cafres para fe concertarem comigo fobre a paíTagem, que o que elles fizeíTem havia por bem feyí o, & aífim o fez mandando os dous Cafres, com os quaes me concertey em oyto bertangis, que lhes naõ foraõ dados íenaõ depois de nos terem paífado. Aqui nos morrerão quatro companheyror,. £ ikãs. paíTagem determinaraõ Quete^eaNao S.Joao i e lios affaltear defta maneyra: mandàraõ dizer aòs Cafres da outra banda,que depois que ametade da gente foffe paífada, deffem là nella, que o mefmo fariaõ de cá, & para poderem fazer iífo como o Cafre defejava, trouxeraõ quatro almadias peqienrs , & determinàraõ paíTar huma, & huma , mas eu que conheci feu intento^ inandey amarrar as almadias duas & duas juntas para poder caber mais gente nellas, & mandey meter ametade da melhor gente dentro com ordem que tanto que là foffem,tomaííem hü lugar alto,que de cà fe via, aonde fe fizeífem fortes em quanto paífava a demais, ôcque tornaffem em cada duas almadias duas peíToas com fuasefoingardas, para que nos naõ fugiíTem. E em quanto iíto fe fazia ficámos com as efpingardas nas mãos, & murriões acefos , de modo que nunca lhe dêmos lugar para fazerem coufa alguma , êc foy de grande acèrdoanandar andar os dous homens nas almadias em quanto le fazia efta paíFagem, porque em nos dividindo logo éramos perdidos» E no fim paíTey eu com oy to companheyros f & então, me contárão os Cafrer da almadiatoda fua determinação , dizendo-me, que dalli por diante viíTemos como hiamoSí, porque era aquella terra dos mais màos que ha*' via em toda a Cufraria, que fó por nos roubarem o que levávamos veflido , nos matariaõ, & que eraõ muytos* agradecendo-lhe o avifo, lhe dey hum pedaço de bertang i l , & me fuy caminhando com toda a preffa poílivel. Tanto que fouberaõ, que éramos paíTados, vieraõ bufcarnos muytosCafres, com jue vínhamos todo o dia pelejando, & a gente vinha def orçoada por nos ferirei^ de longe com fuas frechas, que müytas vezes naõ víamos quem nos fazia mal, por no? atirarem do mato, & nos viphamos pela prava eraõ poucos os homens ? que fou- JL •y " \ beffem beífem atirar com as efpíngardas. E temendo lios defc truiffem vendo-nos taô fracos, meembofquey de.dia, fazendo caminhar toda a noyte pela borda do mar, porqua aJli efpraya muyto a maré, & ficava-nos longe o mato,& aílim ficámos caminhando; na bayxamar.de noyte , para que a enchente apagaífe o raíloque faziamos na area. E vefpora do Efpirito Santo de noyte indo caminhando vimos eflar muytos fogos na praya , aos quaes furtamos o corpo j caminhando bem junto com ornar, & muyto calados paffamos fem fermos viftos délles, apreffandonos andando ate o quarto da lua, nos metemos no mato, & alll eftivemos com vigias atèque foy noyte, & a maré ©fteve mçya vazia , Sc- começámos a marchar todos em ordem* & tendo andado meyo quarto da modorra vimos? eftar a diante muytos fogos,os quaes tomavaõ defda bordada a gnaatèo mato,para que lhes naõpudeíTemos efcapar, & chegando perto, nos mandou dizer o Mocaranga! Muquulo, que era o Rey de toda aquella paragem, que* nãopaíFaífemos denoyte pelas fuás terras, que naõ eracoftume , & que naõ queria brigar com nofeo. Eü Ihel mandey dizer, que os Pòrtuguezes naõ haviaõ mifter li-' cença de ninguém para poderem paffar portoda-a parte:? mandou* me dizer ,que viíTe o que fazia, que naõ fizeííe guerra, que todos os Pòrtuguezes, que pdr iálli paííivaõ,: lhe davaõ a fua curva, como o faziaõ em outras partes. El a efte recado começàraõ todos os da companhia com grã- ; des.vozes dizendo, que por dous bertangis, que lhes po*. diamos dardos queriam;'tar a, todos, naõ eftàiido nenhilí para poder pelejar. • r! Vendo eu eftes clamores charney as peíFoàsque' atraz diífe, para que juntos píFentaíTemos o que melhor1 ms pareceSe 3 aas-quaes diffe, cpie me parçcia acertado Que teve a NaoS. Jom Baptifta. pâfíar pelejando de noyte com eftes Cafres, porque naS poderiao enxergar as faltas, com que vínhamos que as efpingardas de noyte caufaVaõ mais horror, & quando nos aconteceífe mà fortuna poderíamos mais a noíTo falvo efcapar a pedraria , & que í é âguardavamos , que fof* fe manhaã, como elles pediaõ , poderia vir mais gente da que alíieftava verem-nos fracos, &: defcorçoados. A ifto me refponderaõ, que élles vinhão taesyque de dia naõpelejavaõ, quefariaõ denoyte , & que querendo ei* •fazelo, haviaõ to de brigar dez , ou doze homens ^ que cinhaõ vergonha , & os outros todos haviaõ de fugir j, ,8c que pôde fer contentando-fe com o que lhes oocíiamoar dar fefoífem, & nòs ficavamos ferimos pormos neílerifco. Ao que iniiftindo eu empaíTarmos, diífe por muytafc vezes , que feno rio do fangue os Cafres virão a pouca» gente, que pelejava , que nos houveraõ de matar a todos,' mas a noyte encobrindo ifto, cuydavão pelejarem todos por eífe refpeyto fugirão; & Deos fabe quantos foraõ os que defenderão efta noyte que digo. Elles me refponderaõ , que me naõ canfaífe /que não convinha paliarmos de noyte , & eíie era o parecer de todos. E como vi efta vontade na mélhor gente, diffe, que elles eraõ teftemunhas como o fícar era contra meu parecer,& que diífo mê haviaõ de paífar os papeis que me foffem neceífarios: parece que me adivinhava o coração o que depois fuccedeo. Como vi que havia de ficar atè pela manhaã, bufquey ornais forte lugar que alli havia em hum alto , mandando fazer muytas fogueyras tomey todos os bifalhos ,& mandey-os enterrar em. fegredo,& em cima donde elles eftavaõ mandey fazer hüa grande fogueyra, eftando o reftante da noyte todos com as armas nas mãós Cem ninguém dormir» Evirídoa manhaã veyo omeímo •1» Í . R e y , com o qual me concertey em nove ber tangi s, StÜuá roupeta de,efcarlata, & depois pedio mais hümas peças de prata das cabeçadas,de hum cavallo, que também lhas dèmosv, Sc foy pedindo mais de maneyra que lhe dey tudo: o qae pedio ,&.moftranda eftar fatisfeytoferdefpêdio de nos com moftras de amizade, Depois de elle fer ido, & não aparecer ninguém mandey tirar os. bifalhos, Sc os? torney entregar a quem os trazia,* & indo marchando pe la praya nos íahiraõ do mato mais de mil Cafres, & dando-nos humaffalto na retaguarda ,que fó pelejou, adeffearatàraõ logo deyxando todos os que nella vinhão muyto mal feridosjôc defpidos fem lhe ficar coufà nenhuma, cõ que pudeíFem cobrir fuás vergonhas. E a demais gente como vio eftè.disbarate fugiraõ para o mato íèm pode* xem efconder nada, porque logo foraõ fobre elles, & os defpiraõ, fendo aíllm, que fe elles,pelejàraÕ naõ noshoiK veraõ de desbaratar, & foraõ atirando as fuas efpingardadas entretanto carregávamos nòs as noíías, & aíllm pelejáramos como nòs os foramos matando elles fereti» airaõ, como fizeraõ outros mais valentes, com que muy> jtas:VGZQS brigámos. Vendo-me eu nü, &: ferida com finco frechadas pe* netrantes, huma na fonte direyta, outra nos peytos pou onde me fahia o íblegooutra que me atraveífava os lombos, daqualouriney fangue doze dias, & de que na o pude tirar o ferro , & outra na coxa efquerda, de que também não tirey o ferro, & outra na perna direyta, que me eftava- vazando em langue, determiney meterme pela terra dentro com eftes ladrões parame curar em ver fc me queriaõ dar alguma coufa para mecubrir, ellando* comefte penfamento me mandou dizer Thomè Coelho, , que n a o f e haviaõ de iridalli íem mim 3 que. • r . " * ""' " 7 " " * " """ f o í f c Que teve q Nao S. Joàõ Êàptifia. 8 jí foffemos aílim caminhando, quejà Inhambane devia eftar perto. Ao quefcefpondi,quenaõ eílava para nada, que íbíTem elles os ajudaíTe Deos, & pedi a humarinheyr o , quechamavao o Tavares que também eílava ferido« em huma perna, que quizeífe vir comigo> que nos tornaríamos, fe Deos nos dèífe faude, que não podia fer, que aquelles Cafres não tiveíTem compayxaõ de nos ver rílim: élle o fez de mà vontade, & nòs fomos detraz delles hüagrande legoa, de maneyra que eu jà não podia comigo,& alli n'um defcampado fe ajuntàraõ todos com os furtos,, que nos roubarão, o Rey conhecedo-me me mandou tirar as frechas, k curar com hü.azeyte, que làtenvaqus; clumao mafura, depois de curado me deraô hum gibam velho fem mangas A d o mantimento,que nos tinha®, roubado me deraõ hü pouco. Alli repartiraõ todas-as riquezas que traziaô, fazendo mais cafo de hü trapo, qu& de precioíiílimos diamantes T os quaes tornou^ todos para ü o Rey por lhe dizerem dous Cafrinhos noífos, "que - já. com elles eílavaõ, que aquillo era.a melhor còufa, que. havia, que por cada hum lhe haviaõ de dar humbertangil.E como fízeraò eílarepr ttição, fe foraõ,&;ficandofós. nos tornámos à praya para ver fe podíamos encontrar al^ guns dos companheyros trazendo hum murram acefo para fazermos fogo de noyte, & tendo jà-andado hum pouco,ouvimos de dentro do mato hüs aíTubios, & virando vimos dous negros veííidos , os quaes conhecemos logo ferem noííos , & fallando com elles nos diíTeraÓ ,que fifperaíTemos,q hiam chamar João Rodrigues de Leaõ,que íicava no matto, & vindo logo me abraçou, & diíTe, quo a elle o nao roubárão por fe efconder bem, &: defpindo afua roupeta ma deu, & me difíe ,que alli trazia o bifal h o j q u e e u i h e entregara inteyro, que viíTeo^ue queria * j ' "~ "" " " L j a Tratado âo nàufragm que íízeíFe delle, Eu lhe refpondi, que pois elle o íbu«* bera guardar tam bem, que o trouxe fie atè Inhambane, & que alli fe determinaria o que havíamos de fazer, & aílim viemos caminhando de noyte, porque de dia nos naõdeyxavaõ efíes malditos Cafres eííes fracos trapos q, trazíamos. Também veyo ter com nofcohum noffo companheyro Francez, que fe chamava Salamaõ, aoqual feftejey eu bem para me fangrar, porque naõ me podia bulir com fangue pizado das feridas, o que fez logo cõ hua lanceta, que trazia. E caminhando quatro dias pela praya fomos paífar; hum rio com agua pelo pefcoço fria como neve, a qual me tratou bem mal. Aqui achámos a mayor parte da noíía gente, os quaes eftavao contentes, por os Cafres lhe darem de comer logo, 8c veyo ter comigo André Velho Freyre, &: diíTe como falvàra o bifálhò, que eu lhe entre-? gàra, que mandava, que íizeífe delle. Ao qual lhe diífe, que o trouxeífe a Inhambane , & que alli fe ordenaria o que melhor pareceífe. E aílim fomos caminhando pelas terras do Zavala hum cheque, ouregulànoífo amigo, atè darmos com hum Cafre velb i de hum R e y , ao qual chamaõ Aquerudo, o qual tanto que nos vio fenaõ quiz apartar de nòs dizendo-me, que havíamos de ir pelas ter« tras dofeu Rey, & que nos não faltaria nenhuma coufa, ôc aílimfoy depois que o encontrámos atè, nos pôr e m l nhambane. Aquelle dia nos fez caminhar muyto para chegarmos aonde efte Rey eílava, & chegando de noyte tios fez muyta fefta, mandando-nos dar todo o neceffario, em quanto alli eftivcmos, & nos matou huma vaca, & me vinha ver todas as noytes tres vezes, trazendo-me fempre coufas de comer dizendo, que nos naõ agaffaffemos> que jàefl^vamos emterrade Portuguczes, 6c Que tevê a Nao S. João Baptifta. 87 que ellè o era comonos , que não tinha mais differènça que íer negro* Aqui nos teve quatro dias, &: no fim deiles nos veyo acompanhando hum dia de caminho,& dan-, do-me dous dentes de marfim ,fe foy, àc deyxou feu filho mais velho para ir com nofco atè Inhambane, & o velho que atraz diffe , os quaes nos foraõ dando de comer por todo o caminho atè que lá chegamos, nb ofoya dezano ve de Junho,aonde fomos bem recebidos,& aquella noyte nos não faltou de comer, & ao outro dia me veyo v e r © Piloto, juntamente com o Padre Frey Diogo, osquaeshavia doíis dias tinhaõ chegado à outra banda do rio com a de mais gente, que nos faltava, os quaes m e d i r ã o , , que o Innhapata, & Matarima, dous Reys, que là havia, eftavaõ efperandò por mim para repartirem em minha, prefença todas as pefFoas, quedaquella banda eftavaõ,ficando eu de lhe pagar todos os gaftos, que niífo fe fizeffem. Eu os feítejey, & lhes diíFe, que ainda hontem chegara, que parecia razaõ accommodar primeyro os que eftavaò da banda do Chamba, que era aonde eu eílava,: &: que depois paíTaria là a fazer o que me tinhaõ dito. Logo no mefmo dia veyo ter comigo hum negroClmflão, que alli vivia , ao qual chamavao André, que fer; i d e lingoá-àquelles Heys quando alli vinhão Portu3,üe me levou para fuacafâ, & nella eftiveatè; 7?y' ^'hyy,;ífthnwbane.Ao outro dia me veyo ver o Rey,, r i ú tmb^ ôxto^ r;>;iAior;oc.i*tratey cia accommodaragentv por caias u w - o í - "V «o m a * í s > \ t i v e f í e m , & elle* lhe paréc^oiítohiin , rw . que aquelle dianão' : podia íer 3 porque era m.. Ai •••• dalos chamar-, qüé ao outro dia viria c e d o & c dos j aílim ó fez,, &depois de os ter-ahi todos l <0 <!ilè •• qr* havia dé pagar"* o&gaftos ^ qus aquella gente izd.fr , r * lhe, queeu:os» " m Tratado donaufraçU pagaria, & elle rindo-fe me refpondeo , que naõ havia em mim,, com que pudeíTe comprar hum frango, por eftar ainda defpido , como íehaviaõ elles de confiar ; ao que refpondi, que mais valia a palavra de hu Portuguez, que todas as riquezas dos C a f r e s , n o fim de muytas palavras;, qne houve de parte a parte , que he o de que fe mais prezaõ, mefez prometter de lhe pagar tudo o que com elles gaftaíTe, & o Rey diífe, que ficava por meu fiador. E logo reparti os Portuguezes, fegund© me dizia efte negro Chriítaõ, & chamando-os por feu nome ms< dizia : A efte Cafre pôde v. m. dar algum homem grave, pornne hebom negro , & rico ailimficàraõ accommodados todos os da banda do Chamba, que fica da parte do cabo das Correntes,& paífando-me à outra banda,onde me fizeraõ muy ta fefta, fiz o mefmo. He efte rio fermofíífimo, tem de largo meya 1 egoa3 & da. banda do Camba bem furgidouro para embarcações de atè trezentas toneladas, fica no meyo a mayor parte em feco debayxamar,aonde ha muytomarifco, de que os Cafres fe aproveytaõ,, a tarra em fi he muy to fádia , & a, mais farta, & ,barata, quejá maisfe vio,abundantiílÍma de mantimentos, como he milho,ameychueyra, jugos, que faõ como grãos, mungo, gergelim, mel, manteyga, muy to fermofos boys,, dos quaes vai cada hum por mayor que fejadous bertangis, muytas cabras, &: carneyros, o peyxe he o melhor que comi em toda a índia, & tão barato , que he çfpanto, porque dam por hum bertangil, ou motava de contas, que ainda vai menos, cem tainhas muy to grandes. Os maios todos faõ cheyos de laranjas, i t limões, tçm.muy ta madeyra,deque fe podem fazer em« fcarcaçoens. As ventagas j que hàna terra faõ muytoambre, & Que teve a Nao S.Joao Baptifta. % marfim, alli tem ido muytas vezes os Qlandezes, & fegundo me diíTc o Matatima, que he hum dos Reys, defe. jàvaõ ter alli comercio, & que os mais dos annos paffandopor alli, mandavaõ os bateis a terra refgatar laranjas, & vacas, & que depois que lhes tomárão hum batel matando-lhe a gente, não os mandavaõ a terra , mas que os Cafres hiaõ âs Náos. Muyto receyo fenhoreem eixes inimigos eíle porto, pelo que fey de algüa gente delle, q aqui naõ digo por me naõ alargar, & porque fey fenaõ ha de remediar ifto, por mais que efcreva. Aqui eftive muyto mimofo deftes Cafres, principalmente dos Reys, & antes que me foífe morrerão fete peíToas,entendo que foy de muyto comer, porque vinhamos muyto fracos, & debilitados,& depois com a fartura naõ reparárão no que lhes podia fucceder, & foraõ os feguintes , Thomè Coelho de Almeyda, Vicente Efteves, João Gomes, Joaõ Gonçalves o Balono, o Condeftable, &. Bras Gonçalves. Vendo que havia dous aímos, que alli naõ vinha embarcaçaõ, & que corria rifconaõ vir aquella monção, me difíe o Motepe, que he o negro, que fervia de lingoa, que como paífaíTem tres mezes, &: os Cafres naõ vifiem donde lhes podeífemos pagar os gaftos, que a gente tinha feyto , que a mim fe haviaõ de tornar todos, que foífe a Zofala,que como eu era taõ conhecido,não faltaria quem me empreftafíe quatro bares de fato, com que vieífe refgatar aquella gente, & que elle fallaria com os Reys, dizendo-lh?s, que indo eu a Zofala faria vir logo embarcaçaõ cõ roupa para pagar os gaftos dos Portuguezes. Éu cííava entaõ muyto doente, & di^e-lhe^ue me naõ atrevia , porque havia de morrer logo no caminho, E indo-fe ter com o Padre Frey Diogo lhe contou o que paffava, o qual me pedio muy encarecidamente, quizeífe fazer èfM ta $.Tratado do naufragto to jornada, que não houveííe medo de morrer no caminho , que quem hia a coufa de tanto ferviço de Deos, elie teria cuydado particular de o guardar. Eu difFe, que faria o que me pedia,que foífe o Motepe fallar com os Reys para me darem negros que me acompanhamento que fez logo, & elles rindo-fe, diíTeraõ, que menãohavia de ir de fua terra,porque eu era o penhor de toda aquella gente. Com tudo là lhes deu tantas razões efte negro , que o acabou com elles, dando-lhes huns panos que para iífo me empreftou, os quaes lhes paguey tres vezes dobrados. E tendo licença ordeney de levar hum companheyro Portuguez comigo pelo que podia acontecer, & efte foy u mais bem defpofto, que havia na companhia, & fe chamava Antonio Martinz, & depois de os Reys me darem vinte negros para me acompanharem, me defpedi de todos com muytas lagrimas, os quaes eftavaõ muy defconfiados de eu tornar por elles, dizendo, que de Zofala me iria para minha caía , & que elles alli morreriaõ. Ouvindoeu ifto, tome y. as mãos do Padre Frey Diogo,6c beyjando-as,üz hü voto folemnea Deos em alta voz, em o qual prometti a vir bufcalc ;,fe a mortemo não atalha f~ fe, & com ifto ficárão mais quietos eu me parti a dous de Junhocoma companhia, que tenho dito>,fícando a pedraria enterrada em hum cabaço , da qual labiaraos peffoas, que a trouxèraõ, & o Padre Frey Diogo. E tendo andado aquelle dia todo fomos paíFar hum rio, &dormindo daoutra banda,fe vieraõ ajuntar mais Cafres à companhia carregados com marfim, & ambre para venderem em Zofala, & aüim o foraõ fazendo por todas as terras a diante, de mnneyra que cheguey a levar com!feo mais de cem Cafres,& faziaõ ifto pelo refpeyto?l ^ue por aqui fe tem a hum Portuguez. Por todo efte caminho- Que teve a Na o S.JoaoBãptifla* 91 minho fuy muy bem agafalhado, & o que mais pena me dava neíla jornada, era a detença , que me faziaõ ter os régulos, que por aqui hà, que ainda que efla gente efteja mais perto de nos, que a do Cabo de boa Efperança,fazem maisefpanto quando vem hum Portuguez. E depois de ter andado quinze dias ,fuy ter à povoaçaõ de outro regulo mayor, que os que tinha vifto, ao qual chamam O Inhame, & tinha vinte molheres, & querendo-me eu ir logo ao outro dia, o naõ quiz elle confentir,dizendo-me, que tinha feus parentes longe dalli, & que os tinha mandado chamar para me verem, porque nunca por alli tinha paíTado Portuguez algum,& affim parecia pela muyta gente que concorria a verme, os quaes davaõ muy tos gritos , &: alaridos, fazendo feita ; & fe me naõ importara chegar de prcíTa a Zofala, não me fahia ifto em perda, pelas muy tas coufas,que me traziaõ, de que toda a com* panhia comia, & ainda fobejàva muy to, que depois levàraõ para os caminhos onde naõ havia povoações. Daqui a alguns dias fuy ter com outro regulo, que eftá defronte das Ilhas do Bazanito,que chamaõ Ofanha, o qual me fez o mefmo. L dahi atraveífey hum rio, que em baxamar fica em feco, & tem de largo mais de tres legoas pafíado elle fiz o caminho fempre pelapraya atè vefpora de Santiago, que cheguey a Molomono que faõ jà terras de hum mulato por nome Luis Pereyra , o qual vive em Zofala, '& he a mais venerada peíToa, que neftas partes hà. Antes que chegaíTe à povoação foube como nella eftavaõ dons filhos íeus, aos quaes mandey hum efcrito, que trazia feyto para mandar a Zofala antes que là chegaíTe hüa legoa, cm que dava conta de como vinha, & pedia me fizeííem efmola de me mandar po*- amor de Deos huma camiza,&: huns calções para poder ir diante M 2 delles w $.Tratado do naufragto delles com minhas vergonhas cubertas; 6c dando-lhes o dcrito , me mandâraõ o que pedia, 6c huma capa, com que fuy cuberto, & elles me vieraõefperar aocaminho, onde os abracey com muytas lagrimas, 6c porque eu vinha fem femelhança de creatura, me fizeraõ deytar em hum efquife j 6c pedindo-lhe me fízeffem mercê querer mandar quatro Cafres feus com hua rede, em que ^u tinha vindo em bufca do meu companheyro, que me ficava atraz muyto mal duas legoas, o fizeraõ logo, 6c ao outro dia me fizeraõ concertar hü luzio para nelle paífar a Zofala. Atèqui me morrerão dezafete Cafres por a terra fer muyto chea de alagoas fedorentas, 6c eu, & meu companheyro e(lavamos muyto mal ,6c embarcando-nos fomos dormir áquella noyte a Quelvame também terras deLuis Pereyra , aonde me matàraõ hum carneyro, 6c fizeraõ muy ta feíla. Ao outro dia à tarde vinte oyto de Julho fomos a Zofala, 6c como os cafad^s, 2c Luis Pereyra viraõ vir a embarcacaõ pelo rio acima foraõ aborda dellc, aonde os Cafres com muyto grandes gritos diííeraõ: Muzungos;, anuzungos ,6c faltando log dentro me vieraõ abraçar,6c, eu que apenas podia andar, fuy com elles fazer oraçam à Igreja aonde pedi mandaíTem trazer o meu companheyro , que vinha tal, que depois de chegar pedio oonfifíaõ, 6c confeífando-íe deu a alma a Deos, 6c alli o enterráraõ logo , ficando eu defconfoladiíltmo. Dalli me mandou levar Luis Pereyra para humas cafas1, aonde me mandou dar todo o neceiTario atè que Dom Luis Lobo veyo, que era Capitaõ da dita fortaleza, 6c como eu eílava já muyto mal, me levou para caía onde eílive ungido; 6c depois de eftar alguns dias convalecente, lhe pedi me quizeífe fazer aiercè empreílar ouro, com. que pudeífe comprar qua- Que teve a Nh S. João Baptifta. 93 quatro bares de fato, & que lhe daria todos os ganhos, q elie quizeiTe, & obrigaria todas as fazendas que fabia tinha na índia ,s & que alem de não arrifcar nada, me fazia muyto grande mercê efmola aos homens que em Inhambane eftavaõ, que como era morto Nuno da Cunha, que era o Capitaõ daquellas partes, & havia pouco fato» não havia de ir là pangayo, & elles ficariaõ parecendo; Elie me diííe faria tudo o que lhe pedia com obrigar minhas fazendas, como logo fiz. E porque a difpofição, em que eftava, lhe naõ parecia capaz para tanto trabalho, me requererão não fizeffe tal viagem, leni br ando-me qual era o eftado em que eivava, & as muytas mercês, que Deos me tinha feyto em me livrar donde tantos acabàraõ, & pois eflava em terra de Chriftãos, que me deyxaífe ficar, que hü homem era mais obrigado a fí, que a outrem ninguém. Ao que eu diff e , que nunca Deos quizeífe, que perigos da vida foífem parte para deyxar de fazer o cue tinha de obrigação, que era ir bufcar meus companhsyros. E vendo elles efla de* liberação,fe na5 canfáraô mais em me fazerem eftas lembranças, & comprando hum luzio grande a Luis Pereyra por cento & vinte metiquaes , meti os quatro bares de roupa, que tinha comprado , & levandocomigo hücompanheyro Portuguez cafado na própria fortaleza, me parti paralnhambane a quinze de Agoílo, & pela detença , que fiz em Quelvame cheguey com muytas tormen? tas milagrofamente por cima de Inhambane dez legoas, & cuydando não tínhamos ainda là chegado, queria&os Ma lemos ir por diante, & como cu conhecia a terra por haver pouco que por ella tinha paífado, diífe, que nos ficava atraz, & fazendo para là noífo caminho wmos dahi a.tres horas a Ilha, que na boca tem, & indo entrando pe, M 3. lo p4 Tratado do naufrágio lo rio acima chegámos à tarde a Inhambanejonde me vieraõ coios receber com muytas lagrimas dizendo, que a mim fe me devia tudo, & que eu os vinha tirar do cati. veyro de Faraó, & que os Cafres já lhes não queriaõ dar de comer , & os dey tavão fóra de íuas cafas, & que íe tardara mais dez dias morrerão todos fem nenhuma duvida: mas duro5; muy to pouco eíte conhecimento, porque depois que gaíiey em os refgatar tres bares de fato, deípendendo, & pagando em particular quanto tinhaõ ga fira do, tratando de querer ir com hum bar, que me fícàva,às terras do Qiievendo para dahi refgatar toda apedraria, & peíTas ricas que nos tinhão roubado, para quefeus donos me pagaífem conforme iilo merecia, porque tanto que cheguey a Inhambane, mandey hum prefentea efte Rey Que vendo que foy o que depois de roubados nos trouxe a Inhambane, dando-nos de comer, como jà tenho contado , o qual era dous panos de pate, & meya corja de bertangis, em agradecimento do que por nòs tinha feyto, o qual ficou taõ grande, que logo mandando ajuntar toda a fua gente, matando muytas vacas para celebrar co fef- tas a taõ grande honra. Ef 3 me mandou dizer, que ficava éfperando por mim para ir comigo onde nos roubárao a refgatar tudo quanto nos ha vi aõ tomado. Equerendome eu fazer preftes para a jornada, deyxando a todos livres , & com roupa para poderem comer largamente em quanto eu là eftiveffe, me encontràraõ efta ida, fazendo queyxa aos Reys de Inhambane, dizendo, que para que coníentiaõ irme eu , levando tanta roupa fóra dasfuas terras,devendo ficar toda onde nos agafalhàraõ: os quaes como ouvirão ifto, me mandárão dizer ,que por nenhüa via me b ,via de bolir dalli, fenaõ para Zofala, que empregatfe a roupa,que me ficava em as mercadorias da ter* ra, Que teve a } "ao S.Joao Baptifta* 9j ta 5 que erao ambre, & marfim, & logo determinarão de me roubar o que tinha, minando-me hüa noy te a cafa. Vendo eu , que todos quantos hiam na companhia erão contra mim >defiíti da ida, que pretendia fazer , 6c mandey dizer ao Quevendo, que não podia ir là, que quizefie mandar bum recado aonde eftavão os furtos»que vieíTem , que eu os refgatarja, £c que mandaâe feu filho com elles. Refpondeo-me, que me detivefle >que dalli a tempo de quinze dias v*riaó todos com o feu fi» l h o , & que para iíTo hia elle mefmo là ter com elles. E tanto que eftes ho aens foub; rão, que eu havia de efperar pelos negros, íè •: forão todos à u iharcação, em que tinha vindo , & a botarão ao mar, & antes que fofíe monção me fizerão embarcar à força,.porque atè o Padre era contra mim. E fazendo-me dar à veíla, tornámos a arribar por ler fora de monção, 6c aqui 11a cofta fer muyto tormento fa» Depois tornando a fahir fora, nos deu tão grande vento do mar , que nos fez dar à cofta doze legoas de Inhambane, donde atè Mc ionone fornos marchando, 6c dahi em almadias atè chegar a Zofala. Veja voíía mercê a paga, que me derão de os eu ir a bufear com meu dinheyro, que ic os não quizera trazer de Inhambane, 6c empregara là a roup? > que com elles gaftey, em ambre, fem duvida, que trouxerr mais de quinze mil cruzados, por fer muyto ,, 6c haver dous annos , que não tinha ido roupa a cite porto. E realmente, que me maravilho todas as vezes que imagino,, que houve taes homensnòmundo » que permiítiUeiTi viefle hum eftranho a reígnta - o que havíamos trazido á culta de tantos,. 6c tão grandes trabalhos, 6c padecendo tão excxffivas fo-. mes, como já tenhe dito, antes que eu, que os vim fer vindo a todos , fem exceptuar nenhum, 6c por quem derramtfy muy to fangue > Sc a quem,elles tinhaõ tanta obrigação. Seja Dcos louvada com tudo: mas eítirnàra ficara tudo iíto em. memoria , para que daqui por diante vi flem , 6c attentaíiem os homens por quem deviaõ arrifear fuas vidas, 6c perder fuas fazendar. Deita fortaleza de Zofala nosfomos para Moçambique com mcii">s quatro companheyios- noílbs dos que aqui tínhamos chegado Antonio Sigala, que matàraô cm Zofala, Pero de Von es marinbeyro, que íe aufentou por hum furto, que tinha íc^ ,kr\ hü Grumete, que ficou cafado,6c Fru&uofo de Aadrade, que cahio no * « Tratado do naufrágio 110 mar na barra deita fortaleza, 6c chegamos a Moçambique as peílbas feguintes : o Padre Frey Diogo dos Anjos, Antonio Ferrão da Cunha, Vicente Lobo de Sequeyra, André Velho Freyre , & também o Piloto Domingos Fernandes, & o Sotapiloto Fran:ifco Alvrez, Miguel Correa efcrivaõ , Pero Diniz tanoeyr@, João Rodrigues de Leaõ, João Ribeyro de Lucen Joaó Rodrigues carpinteyro, Manod Gonçalves, Joio Carvalho, João Tavares t Antonio Gonçalves , Mànoel Gonçalves Belem ç Sebaftiaô Rodrigues, Diogo de Azevedo, Salamam Frances, Ventura de Mcfquita, Fru&uofo Coelho, hum Grumete, que chamaõ o Candalatu, Domingos Salgado, Belchior -Rodrigues,João Coelho, Alvaro Luis, & Luis Moreno. Defembarcando cm terra fomos todos em p roei fia õ a noílà Senhora do B iluarte, levando hüa Cruz de pào diante, cantando todos as Ladainhas com muy ta devaçáo.E depois de darmos graças a Deos pelas muy tas mercês, que nos tinha feyto de nos trazer a terra de Chriftãos, fez o Padre Frey Diogo hüa devota pratica , trazendo-nos à'memoria os muytos trabalhos , de que Deos nos tinha livrado, & lembratido~nos a muyta obrigaçaõ, que tínhamos todos de fazermos d^lli por diante vida exemplar. Daqui fe foraõ todos bufear embarcado para fe virem para Goa. % LAUS D E Os