Ano 21 • N° 4 julho/dezembro 2013 ISSN 2238-6807 O futuro não precisa ir para o lixo Desafios da Política Nacional de Resíduos Sólidos Ricardo Abramovay: “Brasil perde R$ 8 bilhões pela precariedade da reciclagem” A situação de catadores e profissionais de limpeza urbana foto: Thinkstock Senac – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial Departamento Nacional Av. Ayrton Senna, 5.555, Barra da Tijuca Rio de Janeiro - RJ - Brasil - 22775-004 www.senac.br Conselho Nacional Antonio Oliveira Santos Presidente Departamento Nacional Sidney Cunha Diretor-geral A revista Senac Ambiental é uma publicação semestral produzida pelo Gerência de Marketing e Comunicação do Senac Nacional. Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Sua reprodução em qualquer outro veículo de comunicação só deve ser feita após consulta aos editores. Contato: [email protected] E xpediente Editor Fausto Rêgo Colaboraram nesta edição Carolina Massote, Francisco Luiz Noel, Gabriel Fonseca, João Roberto Ripper, Luiz Claudio Marigo, Mário Moreira e Verônica Couto Editoração Gerência de Marketing e Comunicação Projeto gráfico e diagramação Cynthia Carvalho Produção gráfica Sandra Amaral Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Senac ambiental / Senac, Departamento Nacional. – n. 1 (1992)- . – Rio de Janeiro : Senac/Departamento Nacional/Gerência de Marketing e Comunicação, 1992- . v. : il. color ; 26 cm. Semestral. Absorveu: Senac e educação ambiental. ISSN 2238-6807. 1. Educação ambiental – Periódicos. 2. Ecologia – Periódicos. 3. Meio ambiente – Periódicos. I. Senac. Departamento Nacional. CDD 574.505 Ficha elaborada pela Gerência de Documentação Técnica do Senac/DN. Uma edição especial Tema da Conferência Nacional do Meio Ambiente, a Política Nacional de Resíduos Sólidos – transformada em lei há três anos, depois de duas décadas de negociações – estabelece princípios e atribui responsabilidades a todos os integrantes da cadeia produtiva de bens de consumo. Os desafios são imensos. Por isso dedicamos ao tema boa parte desta edição. Falamos da Conferência Nacional e do fim dos lixões, analisamos a situação de catadores e profissionais responsáveis pela limpeza urbana, conversamos com Ricardo Abramovay, que é uma das vozes mais conceituadas no debate sobre o problema do lixo. Mas também temos lindas reportagens sobre a pesca artesanal na fronteira Brasil-Uruguai e o espetáculo de rara beleza da floração da piúva, no Pantanal. Boa leitura! foto: Thinkstock E ditorial S umário 6 Capa Entrevista Sólidos desafios Contra a sociedade do desperdício Em sua quarta edição, Conferência Nacional do Meio Ambiente produziu 60 propostas para implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos. 4 Senac Ambiental 12 Professor do Departamento de Economia da USP, Ricardo Abramovay defende a gestão responsável do ciclo de vida dos produtos e o fim da cultura do desperdício. 20 48 Trabalho Comunidades Risco diário Pesca artesanal resiste Profissionais de limpeza urbana enfrentam condições insalubres e convivem com alta taxa de acidentes no trabalho. Modelo de coleta do lixo é o grande responsável. Agronegócio e avanço da monocultura de arroz reduzem espécies de peixe nas lagoas Mirim e dos Patos, na fronteira do Brasil com o Uruguai. 30 Reciclagem Lixo que rende Ao delegar responsabilidades aos produtores de resíduos sólidos, legislação beneficia catadores. Apesar das dificuldades, setores envolvidos com reciclagem são otimistas. 36 Notas 40 Flora Primavera pantaneira Espetáculo raro e que dura apenas alguns dias, floração da piúva é uma das mais espetaculares manifestações da natureza. 58 Educação Ambiental Conhecimento na bagagem Por que jovens brasileiros foram buscar na Austrália especialização em disciplinas relacionadas a meio ambiente e sustentabilidade 68 Ecoturismo Nas águas do Velho Chico Passeio à foz do rio São Francisco é um dos mais bonitos e emocionantes do país. Cenário encanta pela beleza e pela diversidade. 74 Estante Ambiental julho/dezembro 2013 5 foto: thinkstock C apa Sólidos desafios Fim dos lixões em 2014 está mantido. Mas ainda é preciso criar mecanismos para gerar riqueza a partir do que sobra do consumo. Fausto Rêgo Dentro de casa, o lixo se acumula e incomoda. É um estorvo. Quando a lata chega ao limite da capacidade, você retira o saco (de plástico, geralmente) e leva os resíduos, devidamente embalados, para o lado de fora. Vão se juntar a outros saquinhos semelhantes dos seus vizinhos. O lixo ainda incomoda, mas agora um pouco menos, já que está na rua. O caminhão da prefeitura passa e faz a coleta. Pronto, o problema acabou. Acabou? julho/dezembro 2013 7 O lixo nosso de cada dia pode ir para o “lado de fora”, mas permanece – inevitavelmente – dentro do planeta. Por isso, mais do que providenciar uma destinação adequada para os resíduos que geramos, devemos encontrar maneiras de reduzi-los. Nos últimos dez anos, a população brasileira cresceu quase 10%. Nos últimos seis, o lixo produzido no país passou de 213 mil toneladas por dia para 273 mil toneladas por dia. Dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) mostram que o Brasil gerou 64 milhões de toneladas de resíduos em 2012, dos quais 37,5% não tiveram destinação adequada. A Abrelpe estima que seria preciso investir R$ 6,7 bilhões para o país coletar e destinar adequadamente todos os resíduos sólidos que produz. Lixão de Gramacho, no Rio de Janeiro, está hoje desativado. PNRS mantém para 2014 o prazo para o fim dos lixões em todo o país 8 Senac Ambiental O que fazer com os resíduos sólidos é um dos maiores desafios ambientais. No Brasil, após mais de duas décadas de muita negociação, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) foi finalmente aprovada há três anos, na forma da Lei 12.305/2010. Em seu artigo primeiro, a PNRS resume seus objetivos: “disciplinar a gestão integrada e o gerenciamento dos resíduos sólidos, fazendo uso de princípios, objetivos e instrumentos que a viabilizem e atribuindo responsabilidade aos geradores, ao poder público e às pessoas físicas ou jurídicas responsáveis, direta ou indiretamente, pela geração de resíduos sólidos e as que desenvolvam ações relacionadas à gestão de resíduos sólidos.” O texto se fundamenta em três conceitos básicos [mais informações no box]: • gestão integrada (com a coordenação de ações de caráter nacional, estadual, microrregional, intermunicipal e municipal); • responsabilidade compartilhada (que estabelece a divisão de responsabilidades entre todos os setores da sociedade, fomentando a reavaliação de padrões de consumo e a redução de possíveis impactos ambientais); • logística reversa (mecanismo que gera obrigações, especialmente do setor empresarial, quanto ao recolhimento de produtos e embalagens após o consumo, de modo a reassegurar seu reaproveitamento no mesmo ciclo produtivo ou sua inserção em outros ciclos). A PNRS estabeleceu metas para eliminação dos lixões (terrenos onde todo tipo de resíduo é depositado a céu aberto, sem qualquer controle, proteção ao meio ambiente ou preocupação com as normas de saúde pública), determinou a elaboração foto: D’Arcy Norman, sob licença CC Política Nacional de Resíduos Sólidos foto: shutterstock de planos de metas do poder público nos âmbitos nacional, estadual e municipal, bem como a adoção de planos de gerenciamento de resíduos sólidos na iniciativa privada. Além disso, formaliza a inclusão dos catadores de materiais recicláveis ou reutilizáveis nas cadeias de logística reversa e coleta seletiva. Olhando para o futuro próximo, a PNRS é um passo decisivo para que o Brasil cumpra uma das metas do Plano Nacional sobre Mudanças Climáticas, que tem como objetivo reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa: obter um índice de reciclagem de resíduos de 20% já em 2015. Nova riqueza Nos três anos que se seguiram à criação da PNRS, sua implementação progrediu muito lentamente em um país tão grande e complexo como o nosso. A elaboração dos planejamentos regionais ainda não é realidade em todos os estados e se concretizou apenas em aproximadamente 10% dos municípios. É preciso avançar. Um dos autores de Lixo zero – gestão de resíduos sólidos para uma sociedade mais próspera, Ricardo Abramovay, professor da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (e nosso entrevistado nesta edição, veja a partir da página 12), defende a PNRS, mas alerta que, embora previsto na lei e necessário, o fechamento dos lixões (e sua substituição por aterros controlados) é uma medida tímida. Imprescindível mesmo, afirma, é reduzir o que jogamos fora e gerar riqueza a partir daquilo que sobra do consumo. Esse é o mecanismo capaz de desencadear verdadeira transformação. Abramovay considera importante o reconhecimento do trabalho dos catadores, mas acha que as grandes corporações devem ser responsáveis pelos sistemas de coleta e recupera- ção dos resíduos gerados pelo consumo dos produtos que fabricam, assim como já ocorre em países desenvolvidos. Legislação estabelece necessidade de mecanismos para recolhimento de embalagens pós-consumo O sistema de logística reversa tornou-se, após a aprovação da PNRS, obrigatório em algumas cadeias produtivas consideradas prioritárias: descarte de medicamentos; embalagens; óleos lubrificantes e seus resíduos; lâmpadas e aparelhos eletroeletrônicos. Mas há que se resolver a questão dos custos de coleta, destinação e transporte. Hoje o cenário mostra um jogo de empurra. A iniciativa privada reluta em absorver o custo em detrimento de maior rentabilidade. E a população, de maneira geral, rejeita a cobrança da “taxa do lixo”, o que não impede que esse custo seja repassado ao consumidor de forma subliminar, embutido em outros tributos. Desoneração fiscal e concessão de incentivos tributários para viabilizar a implantação da PNRS podem ser a solução, como já destacou recentemente a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em julho, o jornalista especializado em meio ambiente Washington Novaes é categórico: as julho/dezembro 2013 9 indispensáveis transformações demandarão muito esforço. “Não há alternativas a não ser a sujeira, a degradação de áreas urbanas e o desperdício”, vaticinou. foto: shutterstock Conferência A importância desse assunto levou o governo federal a dedicar ao tema a quarta edição da Conferência Nacional do Meio Ambiente, realizada de 24 a 27 de outubro, em Brasília (DF). O processo preparatório envolveu uma extensa mobilização que levou à organização de 643 conferências municipais ou microrregionais (que envolveram, ao todo, 3.652 municí- Três conceitos “A gestão integrada dos resíduos sólidos inclui todas as ações voltadas para a busca de soluções para os resíduos sólidos, incluindo os planos nacional, estaduais, microrregionais, intermunicipais, municipais e os de gerenciamento. Os planos de gestão sob responsabilidade dos entes federados devem tratar de questões como coleta seletiva, reciclagem, inclusão social e participação da sociedade civil durante a elaboração, implementação e monitoramento, estabelecendo meios de controle e fiscalização da sua implementação e operacionalização. A gestão integrada envolve também os resíduos de serviços de saúde, da construção civil, de mineração, de portos, aeroportos e fronteiras, industriais e agrossilvopastoris. A responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos abrange fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, consumidores e titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos. Está relacionada com a não geração, redução, reutilização e reciclagem, conforme o artigo 9º da PNRS – estabelecidos na ordem de prioridade na gestão e no gerenciamento dos resíduos sólidos. Tanto a redução da geração de resíduos sólidos, do desperdício de materiais, da poluição e dos danos ambientais quanto o estímulo ao desenvolvimento de mercados, produção e consumo de produtos derivados de materiais reciclados e recicláveis são objetivos da responsabilidade compartilhada. Isso envolve toda a sociedade na discussão de temas como a reavaliação dos padrões de consumo, reciclagem de materiais, oportunidade de novos negócios com viés socioambiental, ecodesign, diminuição dos impactos ambientais inerentes ao nosso modo de vida e inclusão social. A logística reversa engloba de forma sistêmica diferentes atores sociais na responsabilização da destinação ambientalmente adequada dos resíduos sólidos. Gera obrigações, especialmente do setor empresarial, de realizar o recolhimento de produtos e embalagens pós-consumo, assim como reassegurar seu reaproveitamento no mesmo ciclo produtivo ou garantir sua reinserção em outros ciclos produtivos. De acordo com a PNRS, o sistema de logística reversa tornou-se obrigatório para as seguintes cadeias de produtos: agrotóxicos, seus resíduos e embalagens; pilhas e baterias; pneus; óleos lubrificantes, seus resíduos e embalagens; lâmpadas fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista; produtos eletroeletrônicos e seus componentes. A partir de acordos setoriais firmados entre o poder público e o setor empresarial, os sistemas de logística reversa serão estendidos a produtos comercializados em embalagens plásticas, metálicas ou de vidro, e aos demais produtos e embalagens, considerando, prioritariamente, a viabilidade técnica e econômica da logística reversa, bem como o grau e a extensão do impacto à saúde pública e ao meio ambiente dos resíduos gerados.” Fonte: Texto orientador da Conferência Nacional do Meio Ambiente – Resíduos Sólidos 10 Senac Ambiental Das mais de 3.500 propostas encaminhadas pelas conferências preparatórias, 60 foram aprovadas pela Conferência Nacional, igualmente distribuídas entre os quatro eixos de atuação em que ela foi estruturada. No eixo Produção e Consumo Sustentável, ações voltadas para a produção de alimentos sustentáveis e segurança alimentar. Em Redução dos Impactos Ambientais, ideias sobre coleta seletiva e compostagem orgânica dos resíduos. No eixo Geração de Trabalho, Emprego e Renda, defesa do trabalho decente, destinação de recursos e investimentos em cooperativas de materiais recicláveis e desoneração tributária das cooperativas. Por fim, no eixo Educação Ambiental, capacitação de agentes e professores de educação ambiental e fortalecimento das comissões interinstitucionais de educação ambiental. O documento com todas as propostas está disponível no site www. conferenciameioambiente.gov.br. Lixões Na abertura do encontro, a ministra Izabella Teixeira ratificou agosto de 2014 como prazo para o fim dos lixões. Dirigindo-se aos prefeitos e seus representantes, lembrou a necessidade de cada município apresentar seu plano de ação e foi enfática: “Acabar com os lixões não é apenas cumprir prazos, é transformar os catadores em empreendedores”. Segundo ela, essa categoria deverá ter cada vez mais espaço nas políticas públicas ambientais. Não por acaso, a ideia de desenvolvimento sustentá- foto: Walter Campanato/Agência Brasil pios) e outras em cada unidade da federação, além de conferências livres e um encontro virtual que reuniu mais de 200 mil pessoas de todo o país. O evento nacional foi a maior conferência ambiental já realizada no Brasil, com a participação de 1.130 delegados e representações de governos, empresários e organizações da sociedade civil. vel com inclusão social foi marcante no documento aprovado ao final do encontro. Ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, destacou a atuação dos catadores Há resistência, porém, em boa parte dos municípios, sob a alegação de falta de estrutura e recursos para a instalação de aterros sanitários. A Frente Nacional dos Prefeitos defende a extensão do prazo conforme a realidade de cada município e argumenta que mais de dois terços dos governantes eleitos em 2012 não estavam no cargo quando a lei foi aprovada, responsabilizando as gestões anteriores. A legislação prevê sanções que podem levar à inelegibilidade dos atuais prefeitos. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 50,5% dos municípios brasileiros ainda convivem com os lixões. Esse percentual é muito maior nas regiões Nordeste (89,1%), Norte (84,6%) e Centro-Oeste (72,7%) e consideravelmente menor no Sudeste (18,4%) e no Sul (15,3%). Edição especial Diante da importância e do tamanho dos desafios que a questão do lixo impõe à nossa sociedade, esta edição da revista Senac Ambiental aprofunda a discussão sobre alguns dos principais temas que envolvem a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Acompanhe nas próximas páginas! julho/dezembro 2013 11 E ntrevista Contra a sociedade do “jogar fora” Professor do Departamento de Economia da USP, Ricardo Abramovay defende a responsabilidade compartilhada na gestão de resíduos foto: shutterstock Fausto Rêgo julho/dezembro 2013 13 foto: GST HBK A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) é um passo importante, mas não vai resolver sozinha todos os problemas do país em relação ao lixo que produz. Autor de livros sobre a questão ambiental – e Lixo zero: gestão de resíduos para uma sociedade mais próspera é o mais recente –, o professor Ricardo Abramovay, do Departamento de Economia e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, entende que há princípios éticos que devem permear a PNRS para que o Brasil enfrente a cultura do descarte e do desperdício e passe a gerir de forma responsável o ciclo de vida de seus produtos. Quem suja deve se responsabilizar pelo que faz, ele afirma. Isso inclui os gastos com separação do lixo, coleta, transporte e reaproveitamento. O consumidor, por sua vez, deve compreender que o custo re14 Senac Ambiental sultante das medidas necessárias à gestão adequada dos resíduos sólidos é pago de forma indireta: com preservação dos recursos naturais, cidades mais limpas e maior qualidade de vida. “O desafio mais importante”, anuncia, “é fazer no setor de embalagens, eletrônicos, pilhas e lâmpadas aquilo que já se faz com pneus, baterias automotivas, óleos lubrificantes, embalagens de óleos lubrificantes e embalagens de agrotóxicos: o setor privado (em coordenação com o setor público, claro) organiza e paga pelo recolhimento e pela destinação correta dos remanescentes daquilo que ofereceu ao consumidor”. Senac Ambiental – O prazo para implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos termina em 2014, mas algumas das suas diretrizes ainda permanecem no papel. Ainda é razoável imaginar que a PNRS será integralmente implementada nesse período? Que expectativa podemos ter em relação a isso? Senac Ambiental – E quais os grandes desafios para o Brasil em relação à PNRS? Ricardo Abramovay – O fundamental é que o Brasil deixe de ser uma sociedade do “jogar fora” e se converta em uma sociedade saudável na maneira como gere o ciclo de vida de seus materiais. Este é um princípio ético, um valor subjacente à PNRS. Os remanescentes do consumo devem ser reinseridos e revalorizados por sua nova inserção na vida econômica sob a forma de bens e serviços que agreguem valor aos materiais que até então eram considerados lixo. Isso supõe a responsabilidade compartilhada, como diz a lei. O ponto de partida desta partilha está na revelação de custos socioambientais hoje ocultos. O princípio tem de ser o do poluidor pagador. A empresa que Hoje os lixões e aterros sanitários ainda recebem 40% dos resíduos gerados no país julho/dezembro 2013 foto: Marcello Casal/Agência Brasil Ricardo Abramovay – Seria ilusório imaginar que a gestão dos resíduos sólidos vai mudar da água para o vinho numa certa data. É um processo. O que tem data – e isso provavelmente não será cumprido – é o fim dos lixões, dos aterros controlados, e a generalização dos aterros sanitários. Em 2007, lixões e aterros controlados recebiam 60% dos resíduos brasileiros. Hoje isso baixou para 40%. Os maiores municípios conseguiram avançar na implantação dos aterros sanitários. Para pequenos municípios é mais difícil, pois exige a formação de consórcios que supõem mudar a lógica com a qual se encara o tema. Mas acabar com os lixões não é o mais importante na PNRS. Este é o mínimo dos mínimos para uma sociedade do século 21. Mas nem de longe é o desafio mais importante. 15 16 Senac Ambiental Senac Ambiental – A gestão adequada do lixo implica mudanças no modelo econômico, no estilo de vida e nos padrões de consumo. Isso leva tempo e demanda investimento em educação. Em que é possível avançar em curto e médio prazos? Ricardo Abramovay – Nos países que mais avançaram nessa direção, esse investimento foi feito pelo próprio setor privado. Na política europeia de Ponto Verde [mais informações no box], as empresas pagam campanhas publicitárias interessantes que levam informação precisa ao consumidor sobre o que ele deve fazer com seus resíduos. Dizer que o consumidor não coopera por razões culturais é um equívoco. Se houver informação em campanhas inteligentes e orientação precisa nos próprios produtos, o consumidor tende a ter um comportamento foto: Agência Brasil Galpão de cooperativa de reciclagem no Distrito Federal: gestão adequada do lixo é um dos maiores desafios oferece um produto ao consumidor tem de responder pela organização e pelo pagamento do sistema que vai permitir que esse bem seja devidamente coletado e reaproveitado, transformado em nova fonte de riqueza. Isso vai onerar o consumidor, claro, que passará a pagar por um custo cuja gratuidade, até aqui, se exprimia em destruição de ecossistemas, em cidades sujas, rios e mares poluídos. O desafio mais importante é fazer no setor de embalagens, de eletrônicos, de pilhas e lâmpadas aquilo que já se faz com pneus, baterias automotivas, óleos lubrificantes, embalagens de óleos lubrificantes e embalagens de agrotóxicos: o setor privado (em coordenação com o setor público, claro) organiza e paga pelo recolhimento e pela destinação correta dos remanescentes daquilo que ofereceu ao consumidor. Senac Ambiental – O senhor tem afirmado que a atuação do setor privado é essencial para o sucesso da PNRS. O que impede as grandes empresas de adotar no Brasil práticas de coleta e recuperação de resíduos que já executam em outros países? Custo ambiental: destinação inadequada polui rios e lagoas foto: Luis Sánchez, sob licença CC adequado. Mas o mais importante é a orientação da PNRS de que haja redução, ou seja, de que se produza cada vez menos embalagens. Esta é uma discussão fundamental: sempre que pudermos fazer em casa aquilo que compramos, haverá um ganho social imenso. Muitos produtos, hoje, poderiam ser oferecidos de forma compacta, desde que o consumidor fosse orientado a acrescentar-lhes, por exemplo, água na hora de sua utilização. Reduzir a quantidade de embalagens e conceber um tipo de design que se volte para uma desmontagem e uma reutilização fáceis e economicamente viáveis (no caso dos eletrônicos, isso é fundamental) são desafios que vão exigir muita inovação, mas que podem nos conduzir a uma sociedade melhor na maneira de utilizar os materiais de que depende. Ricardo Abramovay – Os países que estão conseguindo reduzir a produção de resíduos e ampliar a reciclagem obedecem a quatro determinações básicas. Em primeiro lugar, o setor privado arca com os custos da logística reversa. Esperar que o pagamento da reciclagem venha das prefeituras é perpetuar a sociedade do desperdício. Esta foi a conclusão a que chegou uma recém-criada organização norte-americana chamada Recycling Reinvented, que conta com apoio da gigante global Nestlé Waters. Quem julho/dezembro 2013 17 foto: Julio Avanzo, sob licença CC tem de organizar e pagar pela coleta seletiva é o setor privado. A segunda determinação é que se formem organizações públicas e não estatais, sob a direção do setor privado (como já existe no Brasil para pneus, embalagens de agrotóxicos e óleos combustíveis) e que colocam em funcionamento esta logística reversa e fazem as campanhas de informação para os consumidores. A terceira determinação é que o consumidor tem um papel decisivo, não apenas separando os materiais de maneira adequada, mas pagando de forma clara e visível a coleta de seus resíduos. A demagógica abolição da taxa do lixo no Brasil e sua demonização foram perdas importantes para a política pública, pois escondem os custos no imposto territorial e impedem que se beneficiem aqueles que fazem gestão mais adequada. foto: Shutterstock Para Abramovay, a ação dos catadores é fundamental. “Não é admissível que continuemos mandando riqueza para o lixo”, afirma 18 Senac Ambiental Por fim, o Estado tem um papel fundamental em articular toda esta política e estabelecer metas para que ela seja levada adiante. Ricardo Abramovay – O Brasil perde hoje, anualmente, oito bilhões de reais pela precariedade da reciclagem. O objetivo tem de ser lixo zero. Não é admissível, num mundo que caminha para escassez de materiais e onde a economia pressiona a oferta de serviços ecossistêmicos, que continuemos mandando riqueza para o lixo, mesmo que seja para aterros sanitários. Senac Ambiental – Qual o valor da reciclagem no contexto da redução de resíduos, já que ela não contesta a cadeia de consumo? Ricardo Abramovay – Quando os custos da reciclagem começarem de fato a ser pagos pelo setor privado (e, consequentemente, pelos consumidores), as pessoas passarão a se questionar a respeito da maneira como os produtos são embalados. Portanto há um potencial de contestação quanto à cadeia de consumo. Contrariamente a uma imagem comum, o Brasil não é uma sociedade de reciclagem. O papel dos catadores é fundamental, como é fundamental que eles se organizem melhor e seu trabalho seja mais valorizado, o que começa a acontecer. Esta valorização não pode vir apenas do que eles vendem. Ela tem de vir também do serviço ambiental de retirar das ruas produtos que iriam provocar danos imensos. Alguns desses produtos (latinhas, por exemplo) têm valor. Outros, não. Mas é essencial pagar para que estes que têm pouco valor também sejam destinados à reciclagem. foto: Shutterstock Senac Ambiental – Lixo também pode ser fonte de riqueza? De que forma estamos avançando nesse aspecto? Ponto Verde Conforme a legislação europeia sobre gestão de embalagens e seus resíduos, os embaladores e importadores são responsáveis pela destinação adequada, pós-consumo, dos materiais que produzem e comercializam. Dessa forma, ou cuidam autonomamente desse processo ou entregam a tarefa a terceiros devidamente licenciados. Surgiu daí uma iniciativa chamada Ponto Verde, desenvolvida pela organização Packaging Recovery Organisation Europe (PRO Europe), baseada em Bruxelas, na Bélgica. A entidade foi criada em 1995, reunindo um grupo de fabricantes de embalagens que assumiu o compromisso com a coleta seletiva, o reaproveitamento e a reciclagem de seus produtos. A PRO Europe criou a chancela Ponto Verde, que tem status de referência de padronização e qualidade no processo de coleta, separação e reciclagem de embalagens usadas. Os países que aderem ao sistema firmam acordos com empresas certificadas, as quais ficam responsáveis por todo o processo de descarte ou reaproveitamento, e estabelecem metas de reciclagem e destinação adequada. Saiba mais em www.pontoverde.pt e www.pro-e.org. julho/dezembro 2013 19 Tr abalho Risco diário Modelo de coleta de lixo é o grande responsável pela taxa de acidentes envolvendo profissionais de limpeza urbana Francisco Luiz Noel foto: Eduardo Sengès/Comlurb Lixeiro, gari, coletor de lixo, trabalhador da limpeza urbana ou, em palavras ecologicamente corretas, coletor de resíduos sólidos. As denominações variam, assim como as formas de recolhimento do lixo e as condições de segurança e saúde dos brasileiros que atuam na atividade – estimados em 225 mil pessoas pelo Ministério das Cidades. Diariamente, chova ou faça sol, eles coletam mais de 150 mil toneladas de resíduos, que somam volume superior a 55 milhões de toneladas por ano. Mas, apesar da função de utilidade pública, esses trabalhadores nem sempre recebem a devida atenção no debate ambiental, ao contrário dos catadores, associados a temas de apelo popular como a reciclagem e a inclusão social. Prova de que os coletores merecem um olhar mais atento dos governos e da sociedade é a grande ocorrência de acidentes de trabalho na categoria, uma das mais afetadas pelo problema na economia formal. Em 2011, foram 6.588 casos – 18 por dia – registrados na coleta de resíduos não perigosos, de acordo com o Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho (AEAT) lançado no ano passado pelo julho/dezembro 2013 21 foto: Shutterstock Coletores estão entre as categorias com mais altos índices de acidentes de trabalho Ministério da Previdência Social. O AEAT 2011 mostra que a taxa de incidência de acidentes entre os coletores é de 65,66 por mil vínculos previdenciários. É uma das mais altas exposições ao risco no mercado de trabalho, contra média nacional de 18,13 casos por mil trabalhadores. Cortes e perfurações nas mãos, mesmo com uso de luvas, são ocorrências típicas entre os coletores. Eles também sofrem ferimentos em outras partes do corpo, entorses e quedas. Algumas podem levar à morte, como nos casos em que caem do estribo dos caminhões compactadores. No Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Prestação de Serviços de Asseio e Conservação e Limpeza Urbana de São Paulo, o diretor do Departamento de Saúde do Trabalho, João Capana, alerta que o número real de acidentes supera o das estatísticas. “Chega ao dobro, se consideramos as subnotificações, 22 Senac Ambiental os acidentes ocorridos no serviço público e aqueles que não tiveram benefícios da Previdência”, afirma. As mortes no trabalho foram pelo menos três de janeiro a outubro de 2013. Em março, no município paranaense de Ponta Grossa, o coletor Carlos Eduardo Felipe Alves de Souza, 22 anos, morreu atropelado por um compactador da empresa Ponta Grossa Ambiental quando o motorista deu marcha a ré. No mês de junho, em Teresópolis (RJ), Luiz Fernando Pereira Barbosa, 28 anos, da Sellix Ambiental, teve morte instantânea sob o caminhão após a quebra do suporte em que se pendurava. Outro que morreu atropelado pelo compactador, em agosto, em Criciúma (SC), foi Júlio Cesar Líbero, 35 anos, ao escorregar e ser colhido por uma das rodas dianteiras do veiculo, da empresa JC Lopes. Quanto aos cortes e perfurações, grande parte decorre da negligência da população ao acondicionar vidro quebrado, lâminas, agulhas de seringas e outros objetos perfurantes nos sacos plásticos, que se tornaram marca do descarte de lixo no Brasil. “Não é comportamento comum pensar no gari. As pessoas não se preocupam com o fato de que o lixo vai ser movimentado por alguém”, queixa-se na Companhia Municipal de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro (Comlurb) o coordenador especial da Diretoria Técnica e de Logística, Gustavo Puppi. Além de luvas de borracha nitrílica, resistente a perfurações, e uniformes reforçados, a empresa – a maior do país – é das poucas que fornecem borzeguins com palmilhas de metal, para evitar que objetos pontiagudos furem os pés dos garis. Tolerância ao risco Autor de tese de doutorado sobre segurança e saúde dos coletores e perito do Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul, o engenheiro Luiz Carlos Alves da Luz lamenta a tolerância social em relação aos riscos na rotina dos coletores de lixo. “Há uma falsa ideia de que não existem coisas viáveis economicamente que possam ser feitas para que sejam melhoradas as condições de trabalho daqueles que lidam com resíduos sólidos, principalmente na coleta domiciliar. Isso resulta em uma aceitação tácita das condições de labor vividas por eles”, lamenta. Luz, que apresentou a tese em 2011, com dados colhidos em Campo Grande e no município paulista de Penápolis, constatou que 76% dos acidentes com coletores estavam relacionados a cortes ou perfurações – e 7%, provocados por agulhas de seringas. As partes do corpo mais atingidas foram mãos, pernas e joelhos. “Ao acondicionar inadequadamente o resíduo perfurante ou cortante, a população torna-se a principal responsável pelos aci- dentes com os coletores”, critica. Quanto ao risco biológico, 65% das enfermidades e dores relatadas pelos trabalhadores se referiam a micoses, sarnas e larva migrans cutânea (o popular bicho geográfico). Em face da vulnerabilidade da categoria frente aos riscos – alguns inerentes à coleta manual –, cresce entre gestores do setor, sindicalistas e estudiosos a defesa da mecanização do recolhimento de lixo nas cidades brasileiras, a exemplo do que é feito em muitas da Europa e dos Estados Unidos. Na base do modelo está a coleta em prédios, ruas e comunidades por meio de contêineres, esvaziados mecanicamente nos compactadores, cabendo aos garis a operação do sistema, sem contato com os resíduos. Pioneira na conteinerização semiautomatizada, iniciada no Rio há 15 anos, a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) distribuiu aos cariocas, em 2012, 50 mil desses recipientes. São feitos de plástico e têm capacidade para 240 litros. Outra rota tecnológica que desponta no Brasil é o uso de contêineres metálicos de alta capacidade, erguidos e despejados nos compactadores por dispositivo de carregamento lateral. Adotado em vários locais de Porto Alegre e das cidades gaúchas de Caxias do Sul, Santa Maria, Pelotas, Venâncio Alves e Bagé, o sistema foi lançado no país em 2007 pela empresa chilena Themac, subsidiária de um grupo industrial da Itália. No Rio, 200 desses contêineres, cobertos, com 3,2 mil litros, estão sendo testados pela Comlurb em comunidades de baixa renda. “A conteinerização combina a segurança do trabalhador com a produtividade. É muito mais rápido do que catar saco de lixo no chão e jogar no caminhão”, diz o coordenador Gustavo Pupp, da companhia carioca, que coleta sete mil toneladas de lixo julho/dezembro 2013 23 foto: Shutterstock trabalham os coletores aparece no Diagnóstico do Manejo de Resíduos Sólidos Urbanos 2011, do Ministério das Cidades. Divulgado em junho, como parte do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, o trabalho reúne dados de 2.100 municípios, onde viviam 130 milhões de pessoas – 67,7% da população dos 5.565 municípios brasileiros. Nas áreas urbanas, a coleta de resíduos domiciliares atendia 98,4% dos moradores, tendo na dianteira a Região Sul, com 99,4% de cobertura, e na retaguarda a Norte, com 94,8%. A participação voluntária no Diagnóstico sugere que as 2.100 prefeituras – a maioria, de pequeno porte – possuem níveis mínimos de coleta dos resíduos sólidos e de gestão das informações geradas no serviço. Na média, o volume de lixo domiciliar e público coletado por dia foi de 0,96 quilo por morador urbano, somando 113 mil toneladas diárias no universo pesquisado, correspondentes a 41,5 milhões de toneladas no ano. Projetando o cálculo para as áreas urbanas de todo o país, o Ministério estimou o recolhimento de 151,6 mil toneladas de lixo por dia, totalizando 55,3 milhões de toneladas no ano. Diagnóstico nacional Na coleta dos resíduos nos 2.100 municípios, foram utilizados 16.896 veículos, dos quais 6.513 (38,5%) eram caminhões compactadores. Os basculantes, de carroceria comum e baús somaram 7.412 (43,9%); os tratores com reboque, 1.959 (11,6%); os caminhões poliguindastes, 428 (2,5%); os veículos de tração animal, 413 (2,4%); e as embarcações, 171 (1%). De acordo com o Diagnóstico, as empresas privadas eram proprietárias de 4.579 (70,3%) compactadores, 4.264 (57,5%) outros caminhões e 274 poliguindastes (64%), controlando uma frota de 9.888 (58,5%) veículos de todos os tipos. Na falta de números totalizantes sobre a coleta no país, o retrato mais aproximado da realidade em que No manejo do lixo, segundo o Ministério das Cidades, foram mobilizados 225.532 trabalhadores em todo domiciliar por dia. Em São Paulo, o diretor sindical João Capana, técnico em segurança do trabalho, também defende avanços tecnológicos que dispensem o coletor do manuseio do lixo. “A conteinerização é a melhor saída. Enquanto o trabalho for feito de forma manual, os riscos estarão aí”, adverte. 24 Senac Ambiental Falta de padrões Pelas peculiaridades da profissão, a Federação Nacional dos Trabalhadores em Serviços, Asseio e Conservação, Limpeza Urbana, Ambiental e Áreas Verdes defende que os padrões de segurança e saúde na coleta de lixo tenham norma regulamentadora especial do Ministério do Trabalho e Emprego. A proposta, feita com base em manual de segurança da Comlurb, foi acolhida em setembro pela Comissão Tripartite Paritária Permanente do Ministério, composta por representantes das centrais sindicais, confederações patronais e governo. “Cada lugar do Brasil coleta de uma maneira diferente. Em alguns, ainda usam tração animal; em outros, os trabalhadores são transportados com o lixo em caminhões basculan- tes. Há situações em que os veículos são muito altos para os coletores e as lixeiras também. Propomos uma padronização, pois tudo isso são fatores de acidentes”, explica o sindicalista João Capana, acrescentando adversidades que resultam de problemas de conservação das cidades brasileiras: “Além de ter de correr com o saco de lixo, o gari sofre com as calçada e ruas esburacadas, que provocam entorses e quedas”. A exemplo da maioria das categorias profissionais, a dos coletores tem regras de segurança e saúde espalhadas por várias normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho. A natureza insalubre da profissão é prevista na NR 15; os parâmetros ergonométricos para equipamentos e instalações, na NR 17; as medidas especiais para o trabalho a céu aberto, na NR 21; as condições sanitárias e de conforto nos locais de trabalho, na NR 24; e as precauções obrigatórias para o recolhimento de lixo hospitalar, na NR 32. Na defesa de uma norma específica, sindicatos foto: Shutterstock o Brasil em 2011. A maioria esteve a serviço das empresas privadas: 120.892 (53,6%). Somados os contingentes das companhias particulares e das prefeituras, o Sudeste concentrava 117.104 trabalhadores; o Nordeste, 46.096; o Sul, 30.646; o Centro-Oeste, 17.938; e o Norte, 13.748. julho/dezembro 2013 25 foto: Shutterstock No Brasil, ainda é predominante o acondicionamento em sacos plásticos 26 Senac Ambiental pacionais na coleta em São Paulo. A pesquisa reuniu dados de 2002 a 2010 e subsidiou o Ministério Público do Trabalho (MPT) em inquérito que resultou numa ação civil pública em favor de medidas para melhorar a rotina dos garis paulistanos. Profissão esquecida A incidência do alcoolismo entre os profissionais chamou a atenção da psicóloga da Fundacentro logo nos primeiros contatos, em 1990. “Nos perguntávamos por que os coletores bebem tanto. A questão nos levou a perceber o sofrimento, a invisibilidade, as dores no corpo, a vergonha, a exclusão do trabalhador”, lembra. Tereza começou estudando o significado do trabalho com o lixo. “Eles lidam com aquilo que não tem mais utilidade para os outros, que não tem mais valor. A vida desses trabalhadores denuncia a relação e a associação histórica do lixo com sujeira, pobreza, prostituição e morte.” Um dos fatores associados às condições de trabalho sofríveis no setor é a delegação do serviço a empresas privadas em muitos municípios. “O fato de serem trabalhadores terceirizados faz que a precarização do trabalho e a preocupação com as questões de segurança e saúde deixem muito a desejar”, diz, na capital paulista, a psicóloga Tereza Luiza Ferreira, chefe do Serviço de Sociologia e Psicologia da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro). O sindicalista João Capana observa, porém, que em muitos casos “a terceirização tem se mostrado mais eficiente” para os coletores, comparada ao despreparo e à escassez de recursos de pequenas prefeituras. Em 2011, Tereza montou a exposição fotográfica Coletores de Lixo: Arriscando, Brincando e Limpando, no Centro Técnico Nacional da Fundacentro, no bairro de Pinheiros – endereço elegante por onde os trabalhadores da limpeza urbana só haviam passado antes para recolher o lixo. Formada por 40 painéis legendados com falas dos coletores, a mostra estimulou a reflexão pública sobre seus sentimentos e percepções, marcados por vivências de marginalização social. O conteúdo também resultou numa cartilha sobre a realidade dos coletores e a importância de a população embrulhar em papel os vidros quebrados, agulhas e latas, a fim de evitar acidentes na coleta. Há mais de duas décadas dedicada ao tema, Tereza conta que, nos anos 1990, a abordagem ambiental da coleta dos resíduos sólidos ofuscava completamente a realidade enfrentada pelos profissionais do setor. Um dos estudos de que ela participou foi o levantamento dos riscos ocu- Expressão da desvalorização histórica do trabalho dos coletores foi o episódio em que uma falha técnica no jornal da TV Bandeirantes levou ao ar, em 31 de dezembro de 2009, uma alusão depreciativa do jornalista Boris Casoy a garis que haviam dos coletores invocam o exemplo dos trabalhadores de matadouros e frigoríficos, que contam desde abril com uma NR especial, a 36. desejado feliz ano novo aos telespectadores. “Dois lixeiros desejando felicidades do alto de suas vassouras! O mais baixo na escala do trabalho”, disse o apresentador. Pelo comentário, pelo qual se desculpou depois, Casoy e a emissora foram condenados pela 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a pagar indenização de R$ 21 mil, por danos morais, a um dos coletores ofendidos, Francisco Gabriel de Lima. Discussão judicial As adversidades flagradas pelo MPT entre os coletores paulistanos na década passada incluíam desde a falta de equipamentos de proteção individuai (EPIs), como luvas, uniforme e botas apropriadas, até a realização de refeições em meio ao ambiente de trabalho, passando por jornadas de até 12 horas sem remuneração extra. Como não houve acordo com as empresas em torno de soluções, o Ministério Público não só cobrou providências, mas também pediu ao TRT a punição das concessionárias com a aplicação de multa indenizatória de R$ 10 milhões. fotos: Eduardo Sengès/Comlurb A ação civil pública aberta pelo MPT em São Paulo, no ano de 2010, colocando na berlinda a Prefeitura e as concessionárias Ecourbis Ambiental e Logística Ambiental de São Paulo (Loga), que recolhem as 10 mil toneladas de lixo domiciliar produzidas diariamente na cidade, continua em tramitação no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2° Região. Em outubro, a Prefeitura, as empresas e o Ministério Público examinavam laudo pericial sobre a situação atual da coleta. Partiu das concessionárias a solicitação de nova perícia, sob o argumento de que a ação foi instaurada com base num quadro de segurança e saúde superado pelas empresas. Contêiner de alta capacidade está sendo testado no município do Rio de Janeiro Representante da Ecourbis no Sindicato das Empresas de Limpeza Urjulho/dezembro 2013 27 bana no Estado de São Paulo (Selur), o superintendente de administração da empresa, Adalberto dos Santos Oliveira, afirma que “a realidade mudou muito” nas condições de trabalho dos coletores paulistanos. ”As empresas chegaram à conclusão de que o investimento em ações preventivas é mais produtivo, além de mais barato”, afirma, chamando atenção para o aumento da preocupação com segurança e saúde na gestão das concessionárias. No caso da Ecourbis, Oliveira diz que a empresa tem priorizado 15 itens relacionados à prevenção de acidentes e à promoção da saúde dos coletores e motoristas. Responsável pelo recolhimento do lixo na populosa área sudeste da capital paulista desde 2004, a Ecourbis é uma das gigantes do setor na América do Sul. Criada em 2004 pelo grupo Queiroz Galvão, emprega 2,4 mil trabalhadores em duas grandes bases do serviço de coleta, nos bairros de Itaquera e Campo Limpo. Opera duas estações de transbordo e, no bairro São Mateus, um aterro sanitário que recebe sete mil toneladas diárias de resíduos. De acordo com o superintendente de administração, a concessionária tem sido rigorosa no fornecimento dos recursos materiais para a proteção dos coletores e, ao mesmo tempo, investido em ações lúdicas de conscientização para evitar acidentes na coleta e nos deslocamentos. “O coletor só pode se deslocar até o setor dentro da cabine do caminhão. Se for pego fora do padrão, está sujeito a advertência e até demissão”, assinala Oliveira, para acrescentar que a empresa instalou cintos de segurança adicionais nas cabines, para proteção do trio de coletores de cada veículo. Em parceria com fabricantes, a Ecourbis desenvolveu luvas e calçados especiais de alta resistência, além de fornecer jaquetas de inverno e filtro solar para os 28 Senac Ambiental coletores. Além de recorrer a vídeos para difundir conceitos de segurança, a empresa dinamizou a Semana Interna de Prevenção de Acidentes de Trabalho, criou gincana associada ao tema e lançou o prêmio mensal Acidente Zero, sorteando brindes entre os coletores que não se acidentam. “Eles se dedicam muito para não haver acidentes”, diz o superintendente. No sindicato dos coletores paulistanos, o dirigente João Capana reconhece que as condições de segurança melhoraram e que o tratamento aos trabalhadores foi “mais humanizado”, mas ressalva que os problemas decorrentes da coleta manual permanecem, gerando acidentes e sobrecarregando os coletores. “O modus operandi continua o mesmo, quando a saída para a questão da segurança e da saúde é a conteinerização. O volume de lixo aumentou e o coletor está trabalhando mais. Defendemos a diminuição da carga horária, pois não dá para o trabalhador correr mais de 30 quilômetros por dia subindo e descendo do caminhão”, reclama. Exemplo catarinense Por conta da atuação do MPT, Florianópolis tornou-se exemplo na adoção de soluções para o transporte dos garis. Em 2010, Na condição de ré em ação na Justiça do Trabalho, a Companhia Melhoramentos da Capital (Comcap), vinculada à Prefeitura, firmou termo de ajustamento de conduta (TAC) e descentralizou a logística do serviço, erradicando os riscos que os coletores corriam nos estribos dos caminhões em estradas de alta velocidade. De pé, agarrados em suportes da carroceria, eles se arriscavam em percursos de até 50 quilômetros entre a sede da empresa, no bairro continental do Estreito, e locais como o Costão do Santinho e Rio Vermelho, no norte da ilha. A Comcap ativou três bases regionais de operação, onde os coletores que moram em cada região passaram a tomar os caminhões, deslocando-se no estribo apenas em trajetos de baixa velocidade, de uma rua a outra. “Acabamos com 80% dos riscos que corriam os garis”, salienta o presidente da companhia, Ronaldo Freire. “Investimos na segurança e ainda obtivemos ganho de tempo na operação, embora o grande objetivo tenha sido a proteção do ser humano”. Em trajetos mais longos, os garis viajam em trio na cabine, com o motorista, ou em Kombis. Embora exemplos de respeito a normas de segurança humanizem a rotina dos coletores, perdura o problema de fundo da coleta à brasileira: o modelo manual. “Em nosso país, quando se fala em pequenos geradores de resíduos sólidos, predomina o acondicionamento em sacos plásticos, incluindo as sacolas de supermercados, dispostos na frente de residências ou pontos de comércios para que sejam coletados. Isso dificulta a coleta mecanizada e, devido à pequena distância entre os pontos de coleta, favorece a utilização de veículos com estribos”, salienta o engenheiro Luiz Carlos Alves Luz. Por causa do descarte do lixo em sacos na porta de casas e lojas, o desafio do Brasil é mudar hábitos culturais e modelos de coleta, a fim de livrar dos riscos os coletores de resíduos sólidos. Coleta mecanizada proporciona maior segurança foto: Shutterstock No quesito salário, a Comcap também se destaca, ao lado de Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo. Na capital catarinense, a remuneração do coletor iniciante soma R$ 2 mil mensais, contados salários, adicional de insalubridade, gratificações e benefícios como vales-refeição e transporte. Dos 394 garis, 205 atuam na coleta convencional, 55 na seletiva e os demais em outros serviços. No contingente, em que 129 completaram o ensino médio e 37 têm esse nível incompleto,123 trabalhadores possuem de dez a 20 anos de casa e 117 têm pelo menos cinco anos. Caso raro no setor em todo o país, sete garis exercem postos de chefia – entre eles, Lidnei Machado Rodrigues, gerente do Departamento de Coleta de Resíduos Sólidos. julho/dezembro 2013 29 foto: Shutterstock R eciclagem Lixo que rende Política delega responsabilidades aos produtores de resíduos sólidos e beneficia catadores Carolina Massote A geração de lixo é uma preocupação recorrente nos grandes centros urbanos. A gestão do enorme volume de resíduos é um velho e conhecido problema, que, no caso do Brasil, ainda parece longe de uma solução. No estado do Rio de Janeiro, com 92 municípios, existem apenas 11 aterros controlados, que recebem o lixo de 16 municípios1. O prejuízo fica não somente para as gerações futuras, mas também para as atuais, como afirma a professora Katia Dantas, da Engenharia Ambiental da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que usa o exemplo do deslizamente de terra no Morro do Bumba, no município de Niterói, há três anos, para alertar sobre o perigo do acúmulo de gás metano. “Poucas pessoas sabem por que não se deve ocupar um aterro”, diz. Katia coordena o programa Recicla CT, no Centro Tecnológico da UFRJ, e ressalta que a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que foi discutida durante 19 anos, é um avanço significativo na gestão da reciclagem no país. Para a professora, o resumo 1 Fonte: bit.ly/lixorj julho/dezembro 2013 31 de toda a questão da reciclagem reside no inciso VII do artigo 3º da lei: a destinação final ambientalmente adequada. Ela aponta a causa da demora para a aprovação da lei: fotos: Carolina Massote “Na PNRS, fica estabelecida a responsabilidade de cada parte na gestão de resíduos sólidos. Assim, as empresas que lucram com a geração de lixo têm a obrigação de contribuir com a logística reversa”. A logística reversa, de acordo com o site do Ministério do Meio Ambiente, constitui “instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação”. Sancionada em 2010, a PNRS estabeleceu também uma hierarquia para a gestão de resíduos sólidos. Assim, há uma ordem de prioridade no seu reaproveitamento: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos. Lançado em 2007, o Recicla CT possibilitou a existência de um centro 32 Senac Ambiental de triagem dentro da universidade, para onde todo o lixo coletado é levado. A vantagem é grande, já que se poupam viagens de caminhão com o grande volume de material produzido semanalmente. A Fundação Coordenação de Projetos, Pesquisas e Estudos Tecnológicos (Coppetec), da UFRJ, contratou dois catadores de lixo para auxiliar no processo de triagem. Um deles é Mônica Auxiliadora, que trabalhou como catadora durante seis anos e desde 2010, com carteira assinada, ocupa o cargo de agente ambiental – embora o nome desse posto ainda não esteja no quadro oficial da instituição. Antes de ser contratada pela fundação, Mônica atuava em grandes eventos. Ela explica que, nessas ocasiões, por exemplo, empresas que atuam com a reciclagem costumam contratar cooperativas de catadores para deixar os locais limpos. Em geral, a prefeitura não participa de nenhuma etapa no processo de limpeza desses espaços. Mônica estima que um turno de quatro a seis horas renda aos catadores cerca de R$ 100, além de R$ 130 para o catador líder. Segundo ela, materiais de polipropileno, como as latinhas de alumínio, são os mais procurados pelos catadores de lixo, em detrimento de outros tipos de materiais, como o poliestireno, muito usado para fabricar garrafas e sacos plásticos. “O poliestireno rende pouco, por isso ninguém está comprando a tonelada. Isso resulta em um prejuízo enorme para o meio ambiente”. A professora Katia Dantas completa: “Em outros países, pode-se cometer o erro de pensar que o Brasil recicla muito, porque 98% das latinhas de alumínio são recicladas. Os grandes recicladores, como a Alemanha e a Holanda, reciclam 60% do seu mateiral. É simples amassar e carregar as latinhas, além do lucro que elas dão. Mas esse percentual não se repete com os outros materiais”. Cooperativas fortalecem profissão A UFRJ obedece ao Decreto 5.940, que institui a separação dos resíduos recicláveis descartados por órgãos da Administração Pública Federal, direta ou indiretamente, na fonte geradora, bem como sua destinação a associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis. O transporte é financiado pela Prefeitura. Assim, o material segue dali, semanalmente, para a Cooperativa Popular Amigos do Meio Ambiente (Coopama). Localizada no bairro da Maria da Graça, no subúrbio do Rio, a Coopama foi fundada em 2003 e conta com 63 catadores, que organizam o material que chega diariamente ao local. A média diária de lixo recebido é de oito toneladas. O diretor administrativo, Luiz Carlos Fernandes, conta que, além das instituições públicas, o material chega de residências, condomínios e empresas. “A maior dificuldade que temos hoje é com o transporte”, afirma. “O material é muito, mas contamos com apenas um caminhão. Às vezes temos de recorrer ao aluguel de transporte. Embora algumas empresas e moradores colaborem trazendo o material, nós temos de buscá-lo na maior parte das vezes.” O diretor também diz que alguns lugares não fazem a coleta seletiva antes de enviar o material para a Coopama. Por isso a contaminação do material e o lixo orgânico são também fatores negativos e um risco para a realização do trabalho dos catadores. A Cooperativa recebe material eletrônico e faz o chamado “desmanche”, separando plástico e metal. O destino final são empresas que trabalham com reciclagem. As consequências da implantação da lei já foram sentidas em alguns julho/dezembro 2013 33 34 Senac Ambiental setores de profissionais que lidam com a coleta de lixo. O Movimento Nacional dos Recicladores de Materiais Recicláveis (MNCR), por exemplo, aponta mudanças significativas após a sanção da PNRS, como a preocupação com a inclusão socioprodutiva de catadores de materiais recicláveis, estabelecendo parcerias formais com as cooperativas e associações da classe. “A vida dos catadores de lixo, definitivamente, melhorou nos últimos anos”, afirma Nilza Soares, técnica em Pesquisa Ambiental e consultora da Coopama. “Hoje, no município do Rio de Janeiro, existem 18 a 20 cooperativas que contratam catadores que vieram do Jardim Gramacho [onde, até bem pouco tempo atrás, funcionava um lixão]. Eles ganham melhor agora”. No entanto, apesar dos avanços obtidos com a lei, ainda há muito a ser feito. Ainda de acordo com o MNCR, a legislação abre uma brecha que desvirtua seus princípios: a possibilidade de adoção de incineradores de lixo como destino final. A incineração, de acordo com a assessoria do movimento, é uma tecnologia incompatível com a reciclagem, pois compete diretamente com os programas de recuperação e necessita de um investimento altíssimo durante a contrução dos equipamentos e em toda sua vida útil em manutenção e prevenção de acidentes. Além disso, o processo prejudica a saúde, pois produz gases que causam câncer. Nilza afirma que, embora a classe ainda não tenha alcançado o patamar ideal, ela caminha para isso. “Até a implantação da PNRS e do decreto 5.940, as leis que diziam algo a respeito do catador eram basicamente aquelas sobre saneamento básico”, diz. “É de interesse do Governo Federal que essas pessoas saiam da categoria abaixo da linha da pobreza, e ele tem demonstrado grande preocupação em relação à classe”. A técnica destaca que os catadores têm participado de debates, e a sociedade vem pressionando cada vez mais as instituições para que elas cumpram seu papel e ajudem na reciclagem do lixo produzido. Nilza, porém, também aponta problemas: “Embora a Companhia Municipal de Limpeza Urbana, hoje, esteja destinando diretamente resíduos para as cooperativas, a empresa ainda não faz coleta seletiva. Então, muitas vezes, o lixo orgânico chega junto com o lixo reciclável e o contamina.” Apesar do atraso, os setores envolvidos com a reciclagem expressam otimismo após a implantação da PNRS. “A política é uma referência da legislação para a organização dos municípios. A competência é deles. Agora é esperar para que saia do papel e vire prática”, afirma a professora Katia Dantas. fotos: Carolina Massote De acordo com Nilza, a maior parte dos municípios brasileiros não fez o plano de estabelecimento – e aqueles que já o providenciaram não o fizeram de maneira clara. “Não existe ainda um sistema de coleta eficiente no Rio de Janeiro. Por enquanto, apenas alguns bairros da Zona Sul e da Zona Norte fazem coleta seletiva.” O Instituto Estadual do Ambiente (Inea) também promove ações para fomentar a reciclagem. O Programa Coleta Seletiva Solidária atua capacitando gestores públicos para a implantação de programas municipais de coleta. Também mantém linhas de ação voltadas para órgãos públicos e catadores. O Inea é um órgão executivo da Secretaria do Ambiente do Estado do Rio de Janeiro que mantém vários projetos e programas de melhoria à gestão de resíduos nos municípios. Como forma de fortalecimento desses projetos e programas, tendo como base a Política Nacional de Resíduos Sólidos, foi lançado em setembro o Pacto pela Reciclagem, reunindo, além do Coleta Seletiva Solidária, mais seis programas que promovem iniciativas relacionadas à reciclagem. De acordo com a assessoria do órgão, o programa oferece assessoria a 65 municípios do estado. Vinte deles chegaram a implantar os seus programas municipais de coleta seletiva solidária. Nessas cidades, o material reciclável é coletado por intermédio do serviço municipal e doado às cooperativas de catadores. julho/dezembro 2013 35 N otas fotos: Shutterstock COP-19: acordo frustrante Concentração recorde de CO2 Mais uma Conferência das Nações Unidas sobre o Clima – a COP-19, realizada em Varsóvia, na Polônia, no final de novembro – terminou sem grandes razões para entusiasmo. O encontro foi marcado por uma atitude radical das organizações da sociedade civil, que abandonaram o evento antes do fim, em protesto contra o rumo das negociações. Houve acordo em torno da criação de um mecanismo de perdas e danos para auxiliar as nações mais vulneráveis a eventuais consequências de eventos provocados pelas mudanças climáticas, como furacões e inundações. Também foi estabelecido um fundo mundial para Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação das florestas, o REDD, de modo que os países que preservarem suas áreas verdes sejam recompensados financeiramente. De qualquer forma, foi estabelecido um roteiro para um possível acordo sobre redução de emissões de carbono na próxima Cúpula, marcada para daqui a dois anos, em Paris, na França. Mas os 195 países participantes preferiam adotar o termo “contribuições”, em vez de “compromissos”, ao se referir às propostas que apresentarão em 2015. Mais informações em bit.ly/copvarsovia. Em relatório divulgado no final de setembro, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), formado por especialistas vinculados à Organização das Nações Unidas (ONU), alertou para a concentração recorde de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera. As consequências, cada vez mais, tendem a ser o aumento do nível dos oceanos e maior incidência de eventos climáticos extremos, como secas, nevascas, grandes tempestades e furacões. Nível do mar em alta A revelação de que o aumento do nível do mar, neste século, tem sido o dobro da média registrada no século passado é mais um dado a confirmar os efeitos preocupantes das mudanças climáticas no planeta. A média de elevação atual é recorde: 3,2 milímetros por ano, de acordo com a Organização Meteorológica Mundial, que divulgou a notícia em novembro, durante a COP-19 (mais informações sobre o evento na nota “COP-19: acordo frustrante”). As consequências são piores para as cidades litorâneas, que tornam-se ainda mais vulneráveis a grandes tempestades e tufões. A organização apontou ainda que as temperaturas também estão igualmente elevadas. Este ano já é o sétimo mais quente da história desde o início das medições, em 1850, considerando apenas os primeiros nove meses de 2013. Neste período, temperaturas recordes foram aferidas em países como Austrália, China, Coreia do Sul e Japão. 36 Senac Ambiental Este é o quinto relatório divulgado pelo IPCC desde 1990. Os cientistas – entre os quais estão alguns brasileiros – buscam chamar a atenção de governos e da sociedade global para a grande ameaça provocada pela ação humana com as emissões resultantes da queima de combustíveis fósseis. O diagnóstico aponta para um aumento de pelo menos 1,5oC na temperatura média do planeta até o final deste século. N otas Contaminação: os dez mais Um dos dez locais mais poluídos do mundo fica na América do Sul: é o rio Matanza-Riachuelo, na Argentina, contaminado pelos resíduos lançados por cerca de 5 mil indústrias. A lista, divulgada no início de novembro, inclui ainda países como Rússia, Indonésia, Bangladesh e Gana. O levantamento foi feito pelo Blacksmith Institute, organização que se dedica a projetos de despoluição em países em desenvolvimento e está baseada em Nova York, nos Estados Unidos. De acordo com a entidade, a contaminação ambiental põe em risco a saúde de aproximadamente 200 milhões de pessoas em todo o planeta. Veja a lista dos dez lugares mais poluídos (divulgada em ordem alfabética de país) e, entre parênteses, as substâncias nocivas encontradas: Rio Matanza-Riachuelo, Argentina (compostos orgânicos voláteis, em especial o tolueno) Hazaribagh, Bangladesh (cromo) Lixão Agrobloshie, Gana (chumbo, cãdmio e mercúrio) Rio Citarum, Indonésia (chumbo, cádmio, cromo e pesticidas) Kalimantan, Indonésia (cádmio e mercúrio) Delta do rio Níger, Nigéria (petróleo) Dzershinsk, Rússia (sarin, chumbo, fenóis e subprodutos tóxicos) Norilsk, Rússia (metais pesados) Chernobyl, Ucrânia (radionuclídeos) Kabwe, Zâmbia (chumbo) Menos automóveis em Barcelona Incentivar caminhadas, estimular o uso de bicicletas e do transporte coletivo é o caminho para reduzir em 30% a quantidade de veículos nas ruas de Barcelona nos próximos cinco anos. O município está desenvolvendo um plano de mobilidade urbana com medidas específicas para cada tipo de transporte. O estopim dessa iniciativa foi a multa de cerca de meio milhão de euros aplicada pela Comissão Europeia por não cumprimento da norma de qualidade do ar. A ideia é incentivar a carona solidária, desenvolver um sistema que torne a passagem mais barata para quem usar ônibus com mais frequência, criar vias exclusivas para os coletivos, ampliar calçadas e ciclovias, além de integrar o uso de bicicletas com o transporte público. julho/dezembro 2013 37 N otas Copa motiva investimento em parques nacionais foto: Pedro Spoladore, sob licença CC O Governo Federal promete investir R$ 10,4 milhões para obras de emergência em 16 parques nacionais, com o objetivo de atrair mais turistas e oferecer conforto aos visitantes, aproveitando o período da Copa do Mundo de futebol, em 2014. A iniciativa é resultado de uma parceria entre os ministérios do Meio Ambiente e do Turismo. Entre as unidades de conservação contempladas estão o arquipélago de Fernando de Noronha (PE), o Parque Nacional da Tijuca (RJ), o Parque Nacional do Iguaçu (PR), a Chapada dos Veadeiros (GO), o Parque Nacional de Brasília (DF) e a Chapada dos Guimarães (MT) . Para o ministro do Turismo, Gastão Vieira, esse investimento deve aumentar a competitividade do turismo brasileiro. “Nesse primeiro momento, é um banho de loja, uma tentativa de dar mais conforto ao turista. Tivemos quase sete milhões de visitantes nos parques nacionais. Precisamos nos preparar para tratar o turista bem”, explicou. Chapada dos Guimarães 38 Senac Ambiental Malária: 3,4 bilhões ainda vivem em áreas de risco O Relatório Mundial sobre a Malária 2013, divulgado em dezembro pela Organização Mundial da Saúde (OMS), registra avanços significativos no combate à doença e estima que, com o aumento das medidas de prevenção e controle, 3,3 milhões de vidas teriam sido salvas desde 2000. Em 2012, porém, cerca de 207 milhões de casos foram diagnosticados, com aproximadamente 627 mil mortes – das quais a maioria é de crianças com idade inferior a 5 anos. De acordo com o documento, quase 3,4 bilhões de pessoas ainda vivem em áreas de risco, em especial na África e no sudeste asiático. Sobre o Brasil, o relatório faz a previsão de que o país – hoje responsável por 52% dos casos da doença e 59% das mortes registradas no continente americano – conseguirá reduzir em 75% os casos de malária até 2015. A OMS anunciou que está desenvolvendo uma estratégia global para o controle e a erradicação da malária a ser adotada no período de 2016 a 2025. O fundo global para controle da doença passou de 100 milhões de dólares, em 2000, para dois bilhões de dólares, em 2012. N otas O Brasil assume em fevereiro a presidência do grupo C-40, que reúne prefeitos de algumas das principais metrópoles mundiais para discutir e propor medidas capazes de combater as mudanças climáticas. A escolha foi anunciada em novembro: o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, será o sucessor do prefeito de Nova York, Michael Bloomberg. A transmissão do cargo ocorre durante a próxima reunião do grupo, a ser realizada em Joanesburgo, na África do Sul. Durante a Rio+20, o C-40 anunciou o compromisso de reduzir em 1,3 bilhão de toneladas suas emissões de gases do efeito estufa até 2030, o que talvez tenha sido a principal notícia de toda a conferência. O prefeito do Rio vai liderar gestores de 58 cidades que compartilham conhecimento e ex- foto: C-40 Cities Brasil assume presidência do C-40 Michael Bloomberg e Eduardo Paes periências em busca de modelos mais sustentáveis. Apenas três cidades brasileiras fazem parte dessa composição – além do Rio, São Paulo e Curitiba estão no grupo. Segundo Paes, chegar à presidência da C-40 é uma oportunidade fan- tástica. “O Rio é a primeira cidade de um país em desenvolvimento do hemisfério sul a assumir a presidência do C-40. Cada vez mais, as cidades assumem um protagonismo maior. O processo de intercâmbio entre elas é fundamental”, afirmou. julho/dezembro 2013 39 Flor a Primavera pantaneira Espetáculo raro e que dura apenas alguns dias, floração da piúva é uma das mais espetaculares manifestações da natureza Texto e fotos: Luiz Claudio Marigo O Pantanal Mato-grossense é mundialmente conhecido por sua riqueza faunística, que atrai turistas de todo o mundo. Essa grande planície inundável de 160 mil quilômetros quadrados abriga cerca de 130 espécies de mamíferos, 550 de aves, 180 de répteis e 50 de anfíbios. Devido a suas paisagens abertas, que permitem boa visibilidade, e à grande quantidade de indivíduos de cada espécie, essa profusão de animais é facilmente observada a qualquer hora do dia. Mesmo à noite, durante as “focagens” – excursões em caminhões abertos para observação da fauna noturna –, é possível avistar vários animais. Uma viagem de Porto Jofre a Poconé pela rodovia Transpantaneira durante a madrugada, quando a estrada está praticamente deserta, pode proporcionar a observação de uma onça-pintada, alguns cachorros-do-mato, um mão-pelada, um tapiti (o coelhinho selvagem brasileiro) ou uma anta, por exemplo. A fama do Pantanal como um lugar privilegiado para observação de fauna é merecida, mas parcial, injusta com suas paisagens e sua flora, que são subestimadas e relegadas a um plano menor. julho/dezembro 2013 41 restas de ipês-amarelos, Tabebuia aurea) e os piuvais (florestas de ipês -rosa, Tabebuia ipe). A flora pantaneira exibe pelo menos 3.500 espécies de plantas e diversas paisagens: rios, baías (lagoas) com aguapés e as vitórias-régias características do Pantanal –Victoria cruziana (não a mesma espécie da Amazônia), corixos, campos abertos, capões de mata e florestas ao longo dos rios, matas secas parecendo caatingas, carandazais (formações de palmeiras-carandá, Copernicia alba, muito semelhantes aos carnaubais da Caatinga), babaçuais, cambarazais (florestas de cambarás, Vochysia divergens), paratudais (flo42 Senac Ambiental Na planície do Pantanal, a lua cheia nasce no horizonte, como quando a avistamos surgindo no mar. Nesses dias, ela desponta no leste, em oposição ao pôr-do-sol. A paisagem ainda recebe a luz do sol quando a lua surge, redonda e enorme, entre as árvores esparsas nos campos naturais de capim-mimoso, a forrageira nativa da região. As árvores preservadas pelo fazendeiro tradicional são as piúvas, como são localmente chamados os ipês-rosas. Onde predomina o capim-mimoso, o fazendeiro do Pantanal não introduziu o capim braquiária, de origem africana. Para aumentar as pastagens, eliminou as matas e deixou o capim-mimoso expandir-se. Mas nas pastagens pantaneiras o homem evitou derrubar as piúvas. Segundo Harri Lorenzi, em seu livro Árvores Brasileiras, volume 3, a piúva é uma árvore de grande porte, a mais alta do Pantanal, crescendo até 30 metros de altura. Tem tronco reto e cilíndrico, com diâmetro entre 50 centímetros e um metro e quarenta e de casca grossa, pardacenta, com fissuras longitudinais. “É uma espécie característica e exclusiva das florestas ripárias do Pantanal Mato-grossense, onde é frequente e abundante”. A piúva impressiona pela bela arquitetura de sua exuberante copa, com galhos fortes e longos que se espalham em todas as direções. É uma planta que gosta de sol e água e, embora sendo vegetação primária, encontrada no meio das matas que crescem ao longo dos rios, “tem a capacidade de regeneração em áreas abertas”. Essa característica da piúva torna-a a espécie dominante dos campos do Pantanal, e sua espetacular floração, quando deixa cair todas as folhas e cobre-se de flores cor-de-rosa em formação densa, torna-a uma espécie extremamente ornamental para o paisagismo. A paisagem pantaneira dos piuvais quase poderia ser considerada uma obra de paisagismo. É uma paisagem construída, formada pelos hábitos conservacionistas do pantaneiro, mas sem a intenção explícita de criar um cenário para o ser humano, – sem um design ou um plano para formar aquele visual. Ela acontece assim, simplesmente. Quase 83% da área do Pantanal permanece em excelentes condições de conservação. Isto se deve muito mais à dificuldade de modificar uma região que é inundada periodicamente e à sua aptidão para a pecuária extensiva, que não exigiu a formação de pastagens artificiais – fato logo percebido pelo fazendeiro do Pantanal, no início da ocupação desse bioma. A paisagem das piúvas escreve a história do Pantanal, sua colonização e cultura. Segundo André Thuronyi, fazendeiro e dono da pousada Araras Eco Lodge, na rodovia Transpantaneira, o ipê-rosa é uma madeira de lei e, como a aroeira (Myracrodruon urundeuva), era utilizado para a construção de currais, pontes, mourões de cerca, casas e mobiliário. O pantaneiro evita derrubar as piúvas, pois preza pela conservação de seus recursos naturais. “A aroeira teve seu corte proibido, mas o ipê ainda pode ser utilizado pelas fazendas para uso próprio, embora não comercialmente. E quando o fazendeiro manda passar o trator nos campos para abrir mais pastagens, ele orienta o tratorista para poupar os brotos de piúvas que nascem espontaneamente, pois vai precisar delas mais tarde.” Não há nenhuma intenção estética, nenhum projeto artístico de paisagismo, apenas uma visão utilitária. Mas isso é conservação da natureza – conservação dos recursos naturais para futura utilização econômica. Quem poderia prever que iria resultar em tanta beleza? Tuiuiús (acima) constroem ninhos gigantescos em piúvas, cujas flores servem de alimento para os bugios Ao ver uma piúva toda coberta de flores – e só de flores –, a tendência do observador é ajoelhar-se em adoração a tanta beleza e majestade. No entanto, somente em alguns anos, e durante alguns dias apenas, num período de duas semanas no máximo, julho/dezembro 2013 43 A grandiosidade da piúva fica nítida na foto acima, comparando-a com a figura do homem ao seu lado centenas de piúvas vestem a planície pantaneira de rosa. É uma das mais espetaculares manifestações da natureza brasileira. É possível que a floração simultânea das piúvas seja uma resposta das árvores ao estresse hídrico a que são submetidas durante a secura prolongada. Um comportamento semelhante ao das plantas do Cerrado, que florescem após os incêndios periódicos da região, também na estiagem. Nessa época, levanta-se uma poeira fina, que paira sobre o Pantanal, e as matas perdem suas folhas, assumindo um aspecto pardacento ou acinzentado. Nas formações de mata seca, encontradas ao longo da rodovia Transpantaneira, destacamse cactos e bromélias espinhentas, lembrando as vegetações do Chaco paraguaio e da Caatinga nordestina. Mas em poucos dias a paisagem modifica-se com a brotação das flores das piúvas. Irrompe a primavera pantaneira. A floração das piúvas coincide com a época de nidificação das aves no Pantanal. Como se o intenso man- 44 Senac Ambiental to cor-de-rosa que cobre a planície saudasse, com a cor da maternidade, a renovação da vida. Se há ninhos pendentes em seus galhos, as piúvas adornam esses ninhos com buquês de várias flores juntas, em forma de corneta, que parecem anunciar a glória da temporada. É o que acontece com os ninhos pendentes dos graveteiros, aves da mesma família do joão-de-barro. Os ornitólogos Dalci Maurício Miranda de Oliveira e Roberto Brandão Cavalcanti, num estudo em três épocas consecutivas de reprodução de tuiuiús no Pantanal de Poconé, entre 1995 e 1997, assinalaram que, ao longo da rodovia Transpantaneira, os casais de tuiuiús usaram 13 diferentes espécies de árvores para construir seus gigantescos ninhos, mas 78% deles estavam em forquilhas de piúvas. E sob as grandes construções feitas pelos tuiuiús geralmente encontram-se os lares de vários casais de caturritas, o único representante da família das araras, papagaios e periquitos que constroem seus próprios ninhos. Todos os outros psitacídeos utilizam ocos de árvores ou cavidades em rochas, barrancos ou cupinzeiros para nidificar. As araras-azuis-grandes não aninham nas piúvas, que não apresentam ocos favoráveis a seus ninhos, mas chamam a atenção do observador quando pousam em seus galhos e contrastam o azul-cobalto de sua plumagem com as flores cor-de-rosa. Uma pousada especializada em turismo de observação de aves na Transpantaneira instalou ninhos artificiais de caixas de madeira para atrair a nidificação das araras-azuis-grandes em piúvas, pois em seus limites não existem as espécies que proporcionam ocos apropriados para elas aninharem. As araras aceitaram esses ninhos e agora deslumbram os turistas com sua presença, pois são aves que logo se acostumam com a proximidade dos homens, quando não ameaçadas ou perturbadas. Vários animais alimentam-se das flores das piúvas. Diversos insetos apícolas procuram o néctar das flores para produzir mel, assim como diversas espécies de beija-flores, que necessitam de alimentação de forte teor energético. Papagaiosverdadeiros, papagaios-galegos e diversos periquitos comem as flores. Também próximo à rodovia Transpantaneira observam-se diversas espécies de cracídeos – de uma família de aves parecidas com seus parentes distantes, os faisões asiáticos – em bandos, comendo as flores das piúvas. Principalmente na beira dos rios, são aracuãs-do-pantanal, jacusde-barriga-castanha, cujubis e jacutingas-de-garganta-azul. É tão intensa a predação das flores das piúvas por essas aves, impedindo a formação dos frutos, que alguns ornitólogos afirmam que as populações das piúvas são afetadas pela ação dessas aves. Mas não são apenas as aves que se alimentam das flores das piúvas. Também os bugios regalam-se com suas flores, aproveitando o sabor adocicado de seu néctar. E quando as flores caem das árvores, são os cervos-do-pantanal, os veadoscampeiros e mateiros, o gado e os cavalos-pantaneiros que vêm se regalar com as flores no solo. Urutau camuflado Até o homem come piúvas! Não as flores, mas a casca das árvores. O pantaneiro acredita que, fervida, a casca combate o câncer e o extrato da entrecasca é depurativo, bactericida e bom para o estômago. O cerne contém lapachol (ou ipeína), que supostamente inibe tumores e alivia a dor. Caminhando nas matas e nos campos do Pantanal, ou descendo os rios em canoas com motor de popa, é possível observar aves de todas as espécies sobre as piúvas floridas. Nas matas, o urutau, um mestre do disfarce, ave noturna de cerca de 50 centímetros de comprimento, passa os dias pousado em segura camuflagem sobre os galhos de piúvas, com as quais sua plumagem se confunde perfeitamente. Na beira dos rios, biguatingas, gaviões de diversas espécies e bandos de biguás fazem das piúvas seus lugares de pouso. Novateiro As piúvas são um símbolo do Pantanal, mas não são as únicas árvores capazes de transformar sua paisagem. Também os ipês-amarelos, os paratudos (Tabebuia aurea), formam grandes conjuntos – os paratudais – que se cobrem de amarelo durante as floradas, que ocorrem mais ou menos na mesma época das piúvas. São um pouco menores do que elas, atingindo até 20 metros de altura, e mais delgados. Sua madeira é também menos resistente que a das piúvas. Em sua utilização medicinal, serve para tudo (daí seu nome): desde a cura de verminoses até problemas estomacais, diabetes, febres e inflamações. julho/dezembro 2013 45 Jacutingas-de-garganta-azul De julho a setembro, antes das piúvas e dos paratudos florescerem, os cambarás (Vochysia divergens) pintam as margens dos rios de amarelo. São milhares de árvores em formação compacta. Sobrevoando o Pantanal, as florestas parecem um tapete verde e amarelo. Os cambarás não perdem as folhas durante a floração e suas inflorescências crescem verticalmente na copa. O efeito, para quem observa as árvores do alto, como num sobrevoo, é de uma delicada textura. A espécie é endêmica das várzeas da bacia dos rios Paraguai e Araguaia. Na mesma época, a primavera pantaneira brinda o visitante com outras florações. Árvores isoladas nas pastagens, de copa alta e estreita com até 18 metros de altura, os louros-brancos (Cordia glabrata), ou louros-pretos, ou claraíbas, apresentam pequenas flores totalmente brancas, formando floradas compactas, que duram várias semanas. Abrem suas flores na mesma época que as piú- 46 Senac Ambiental vas e, como elas, sua floração acontece também depois que as árvores deixam cair todas as folhas, o que provoca forte impacto visual. Nas matas ciliares ou em terrenos bem alagados ao longo dos rios, a canafístula (Albizia inundata), ou biguazeiro, ou timbó-branco, de cinco a oito metros de altura, mostra flores delicadas, esbranquiçadas, de beleza sutil. Já o novateiro, ou paude-novato (Triplaris brasiliana), é uma planta dioica: as flores masculinas e as femininas apresentam-se em indivíduos diferentes. As árvores com flores femininas são exuberantes e apresentam grandes cachos compactos de flores vermelhas, que contrastam com o verde da vegetação ribeirinha. O conjunto dessas inflorescências é extremanente decorativo. As flores masculinas são mais discretas, amareladas e menores. No interior do tronco oco do paude-novato vivem formigas, o que lhe empresta outros nomes populares: pau-formiga e formigueiro. “Pau-de- novato” indica que a pessoa inexperiente que encostar na árvore sofrerá com o ataque das formigas. Ao lado dos novateiros, também em terrenos alagados na beira dos rios, as abobreiras (Erythrina fusca), ou suinãs, ou açacuranas, exibem suas flores alaranjadas, mas mantêm as folhas – ao contrário de outros mulungus, espécies do gênero Erythrina. Ao longo dos rios Paraguai e Cuiabá, na altura da Estação Ecológica Taiamã e do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, as abobreiras oferecem um espetáculo que rivalizaria com as piúvas, embora ocorram em formações distintas. As paisagens do Pantanal ainda são pouco conhecidas pelos turistas, sejam estrangeiros ou brasileiros. A abundância da fauna tende a nos cegar para a beleza das paisagens e da flora. Ou talvez não tenhamos educado nossa sensibilidade para perceber e compreender a paisagem. Começamos a publicar guias de identificação de aves, de répteis, de mamíferos, mas não temos ainda a preocupação de relacionar, visual e pictoricamente, esses grupos de animais com o ambiente em que vivem. Araras azuis Em última análise: deveríamos observar os atores, mas também o palco de suas performances. Piúvas ao pôr-do-sol julho/dezembro 2013 47 C omunidades Pescadores artesanais resistem Agronegócio e avanço da monocultura de arroz reduzem espécies de peixe nas lagoas Mirim e dos Patos, na fronteira com o Uruguai Texto e fotos: João Roberto Ripper julho/dezembro 2013 49 Gauchinho e sua esposa, Cleci, pescam juntos. Ela diz que o barco também é a casa deles Quando venta muito no município de Lagoa Mirim, “vai dar mar”, dizem os pescadores da colônia Z16, na Vila do Porto, município de Santa Vitória do Palmar, no Rio Grande do Sul. Mesmo que ainda seja inverno, eles saem para pescar. Algumas vezes, é impossível, e aí o jeito é esperar o dia seguinte e curtir a família ou consertar redes e barcos. O porto tem apenas uma avenida, a Getúlio Vargas, e três ou quatro ruas, a maioria com casas bem coloridas e de muro baixo. Cerca de 90 pescadores artesanais vivem nessa comunidade de Lagoa Mirim, na fronteira entre o Brasil e o Uruguai, a 20 quilômetros do arroio Chuí. Binacional, a Lagoa Mirim é cercada por quatro municípios brasileiros: Rio Grande, Santa Vitória do Palmar, 50 Senac Ambiental Arroio Grande e Jaguarão. Cada um deles com pelo menos dois distritos. Alguns são pequenas comunidades. Os pescadores sabem que não é fácil sobreviver de pesca na Lagoa Mirim, a maior lagoa de água doce do Brasil. Os mais antigos contam que, em poucas décadas, sumiram da Lagoa, pelo menos, cinco espécies de peixe. A competição também é muito grande, pois são seis mil trabalhadores que vivem da pesca artesanal nas lagoas dos Patos e Mirim. Além disso, a lavoura de arroz é ávida consumidora e poluidora das águas. A resistência dos pescadores às transformações socioambientais só consegue manter as comunidades na atividade pesqueira porque existe um sentimento de bem-querer e de pertencimento ao território e à profissão. Esse afeto é evidente no uso medicinal de plantas e peixes, no domínio de técnicas e sistemas de manejo da pesca, nas crenças religiosas e nas tradições culturais. É claro que também nas histórias, muitas histórias. Afinal de contas, nenhum lugar ou pessoa tem apenas uma história. Lá, na divisa entre os dois países, as atividades de pesca artesanal e agricultura de subsistência são comuns a centenas de pescadores-agricultores, homens e mulheres. A natureza mistura banhado, Mata Atlântica, praias e dunas. Em harmonia com essa natureza, vivem os ribeirinhos, que retiram da lagoa o sustento de suas famílias. Eles guardam uma grande sabedoria sobre a vida das águas e nas águas. Por exemplo, que peixe-rei filhote, assim que é pescado, deve voltar pra água; que gordura de jacaré pode ser usada no tratamento de doenças respiratórias; que cabeça de peixe fervida é remédio pra enxaqueca; que banha de lagarto é boa contra dores reumáticas e que óleo de capivara é bom para o câncer. A maioria dos pescadores artesanais aprendeu sua profissão com seus pais ou familiares próximos. São histórias passadas de avô para neto há centenas de anos que garantem a existência dessa cultura ribeirinha. É no exemplo e nas histórias contadas que se forma a consciência ambiental do pescador. Na luta diária pela sobrevivência, o pescador artesanal vai acumulando uma fantástica sabedoria das coisas da terra, do céu e da água. A relação com a natureza é fundamental para a vida e para a sua própria identidade. Hoje, ela faz parte do sistema ecológico da região, representando a dimensão do ser humano no grande ciclo da vida, na imensidão da maior lagoa de água doce do Brasil. É de pai pra filho. A criança, muitas vezes, vai cedo pescar ou assistir ao trabalho dos pais, observando a arte de estender a rede e depois colher. Os filhos estão acostumados com barco e rede e veem a mãe tratar dos peixes, muitas vezes dentro da embarcação. O Rio Grande do Sul ocupa o quarto lugar entre os estados produtores de pesca artesanal, atividade que, no Brasil, ainda é grande, com cerca de 12 mil pescadores licenciados pelo Ministério da Pesca e Aquicultura. Os pescadores respeitam a piracema, período em que os peixes de- sovam, também conhecido como época de defeso, que se estende de novembro ao fim de janeiro. Em fevereiro, a pesca é novamente liberada, mas em Santa Isabel só se volta a pescar depois da festa da padroeira, Nossa Senhora dos Navegantes, comemorada no dia 2 de fevereiro. Mara Alice, que começou a pescar aos 15 anos e precisou parar para cuidar da filha doente Incentivo Como contrapartida por ficarem três meses sem trabalho, o Governo Federal concedeu aos pescadores o benefício de um seguro-desemprego no valor de um salário mínimo por mês. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foi expandido em 1999 aos pescadores artesanais, facilitando o crédito para a compra de artefatos de pesca, motores e embarcações. Personagens, lendas e histórias Nas localidades do estado onde vivem comunidades pesqueiras existem muitas histórias, e algumas viram mitos ou lendas. Uma delas é a da maldição do padre, que, para alguns, serve como explicação para a escassez de peixes e os alagamentos sofridos todos os anos na Vila de Santa Isabel, município de Arroio Grande, às margens da Lagoa Mirim. Diz a lenda que, depois que o padre julho/dezembro 2013 51 foi assassinado na igreja da localidade, a fartura de peixes começou a diminuir e as enchentes se tornaram mais frequentes. Segundo o pescador Gauchinho, um dos líderes da comunidade, é necessário que, além de uma consciência social e ecológica, se tenha fé no próprio trabalho, pois “quem pesca sem convicção não tira peixe”. Gauchinho, cujo nome é Vorni dos Santos da Silva, tem 55 anos e pesca em companhia de sua esposa, Cleci Machado da Silva, de 48. Muitas vezes, voltam com o barco cheio e muita traíra. Nas férias escolares, quem os acompanha é a filha, Marcelly Machado da Silva, 11 anos. Eles pescam e, na volta, Cleci já vem limpando o peixe. É comum irem num dia e voltarem no outro; por isso, segundo a pescadora, o barco é também a casa deles. Gauchinho e sua companheira procuram mais os banhados da lagoa para pescar. Além de ser a maior lagoa de água doce do país, a Lagoa Mirim é tam- bém a segunda maior da América Latina. Os mais velhos, mestres na arte da pesca, afirmam que em poucas décadas desapareceram, pelo menos, cinco espécies de peixe. Conforme conta Gauchinho, isto aconteceu principalmente devido à construção, em 1977, da Barragem de São Gonçalo, entre a Lagoa dos Patos e a Lagoa Mirim, impedindo, desde então, que a água salgada escoasse para a lagoa. Pescadores reclamam que algumas espécies de peixes já desapareceram da região “São as lavouras de arroz que se beneficiam da dessalinização das águas. Elas consomem cerca de 12 milhões de litros por hectare plantado”, conta. Segundo ele, “quase todo mundo planta com a água da Mirim, e muito banhado foi reduzido a arroz. De 15 anos pra cá, terminaram os mananciais”, denuncia Gauchinho. Entre a capital, Porto Alegre, e o município de Arroio Grande fica a Estação Ecológica do Taim, onde jacarés, capivaras e outros animais podem ser vistos de um lado e de outro da julho/dezembro 2013 53 pista. A unidade de conservação ganhou o título de Reserva da Biosfera pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e é conhecida como ponto de pouso e nidificação (construção de ninhos) de aves migratórias vindas das regiões ártica e antártica. A estação é um viveiro natural de animais e vegetais da região Sul. As espécies mais comuns de peixe na Lagoa Mirim são o jundiá, o pintado, o trairão, a viola, a corvina, o cascudo e o peixe-rei. O mais desejado de todos é a traíra, que tem, aproximadamente, 40 centímetros. Considerada o peixe mais valioso, dela se extraem os miúdos, tidos como uma iguaria saborosa. A bochecha do peixe é comercializada pela cooperativa de pescadores para as cidades ao redor, mas não chega ao interior do estado ou à capital. Um dos pratos típicos da culinária local, feito com molho de tomate e creme de leite, é o estrogonofe de bochecha de traíra, servido quente, com arroz e batata. Nos meses de agosto e setembro, o vento na Lagoa Mirim, no sul do Rio Grande do Sul, pode chegar a 100 quilômetros por horas. O peixe fica gelado e, mesmo tendo caído na rede, não estraga rápido. Com isso, o pescador ganha 72 horas para colher o que pescou. Assim, em dias de ventania, os pescadores mais experientes aconselham a esperar em casa e acessar a internet para saber se, no dia seguinte, o vento vai amenizar. No verão, isso não acontece. Quem não colher rápido perde o peixe. Na vila dos pescadores, enquanto aguardam uma calmaria, os profissionais consertam redes e barcos, limpam peixes e fazem outros biscates para completar a renda. A lagoa anda baixa, reclamam vários pescadores, alegando que as águas andam paradas e há pouco oxigênio 54 Senac Ambiental para os peixes. A traíra, que sempre se reproduzia nos banhados de encosta, aos poucos vai perdendo seu lugar de desova por causa da grande quantidade de canais artificiais produzidos pelos monocultores de arroz. Na comunidade do Porto, em Santa Vitória do Palmar, Evanilda Rolim Termezana, de 63 anos, é uma das lideranças da comunidade. Hoje aposentada, Dona Nina, como é conhecida, é filha de pais pescadores. “Comecei a pescar com 23 anos e assim fui até 2002, quando peguei uma forte bursite e me aposentei por invalidez. Hoje trabalho com ervas medicinais e ajudo os pescadores, atendendo gratuitamente”, conta. Nina relata que, em certa época, cuidou de um senhor conhecido na região por Castelhano. “Ele tinha o pé condenado e já havia marcado para amputar no hospital, quando me chamaram. Higienizei seu pé e, todos os dias, colocava ervas medicinais. Ele ficou bom!”, diz ela, com alegria. Para a líder e cuidadora dos pescadores, a comunidade precisava ter apoio para poder estender a pirace- ma por um ano, a fim de recuperar os peixes. “Essa barragem aí às vezes amola a gente, porque diminui a água da lagoa. Os granjeiros, com suas bombas, sugam a água, os mananciais estão diminuindo”, reclama. Muito prestativa, Dona Nina adora receber visitas, abre sua casa e acolhe as pessoas. “Sempre fui assim, desde mais nova. Talvez por isso tenha sido a primeira presidente da Associação de Pescadores de Santa Vitória, em 2000”, conta. Outra personagem importante é Mara Alice Rodrigues, de 50 anos, exemplo de garra e coragem para toda a comunidade. Ela, que começou a pescar com 15 anos, tem sete filhos naturais e um adotivo. Precisou abandonar a pesca para cuidar da filha Lilian Rodrigues, que sofreu um acidente e foi escalpelada pelo motor de um barco. “Não posso deixa-la só. É um cuidado intenso, e tenho de me dedicar também ao filho dela, pois depois do acidente o marido foi embora e desde então vivemos com o salário mínimo que o governo dá para minha filha, com o bolsa-família e com biscates de fazer algumas redes”. Por causa de um coágulo no cérebro, os médicos Comunidade de Porto, em Santa Vitória do Palmar, quer estender a piracema por um ano julho/dezembro 2013 55 não garantem que a filha viva muito tempo. “Mas vou ficando perto dela, porque, mesmo nesse estado, é uma alegria vê-la viva e ver crescendo sadio meu neto Jordano, de 12 anos. Ganhei mais um filho, filho-neto”, diz. “No início, minha filha vivia de sonda e mamadeira e não andava. Hoje, já anda. O acidente afetou o cérebro dela, que chegou a ser dada como morta, diz Maria Alice, que conta com um grande aliado: Cocota, seu papagaio. Mais depoimentos Com 71 anos, Natálio Almada pesca desde os seis. Não teve filhos, mas adotou uma menina que hoje está grande. Nascido e criado em Santa Vitória, Natálio se aposentou aos 65 anos. “Pesquei de rede, de caico, de tudo que é jeito. Agora crio minha horta, faz cinco anos que não pesco mais. Pescava com meu irmão, que também se aposentou e está com 72 anos. Pesca entra no coração da gente e nunca mais esquecemos. É uma vida dentro da nossa vida”, comenta, saudoso. Cristiano Lopes Brum tem 40 anos e várias vezes é acompanhado na pesca por sua mulher, Maria Jandira Correia Borges, de 30 anos. Para eles, os meses de inverno são os mais difíceis para a pesca, por causa do frio intenso na região. Ele explica que no Uruguai tem mais peixe porque ainda há muito banhado para os animais se criarem, ao passo que no lado brasileiro o prejuízo é maior devido ao crescimento dos granjeiros produtores de arroz, que estão construindo canais e desviando água da lagoa. Comunidade de Santa Isabel, em Arroio Grande 56 Senac Ambiental “Se desse uma boa chuva, os peixes apareceriam, mas, com a falta de chuva e as granjas puxando a água, tem dia que o peixe nem aparece. Está tudo mudando, até o clima, e o peixe diminuindo. Outro dia a gente pegou só três jundiás e umas poucas tainhas”, explica. Seu depoimento é reforçado por outro pescador, Rudinei Lopes Brum, irmão de Cristiano, de 42 anos. “Hoje temos pouco peixe e não existem mais todos os tipos de peixe de antes, pois a lagoa não está permitindo, o banhado diminuiu muito a reprodução.” Ele também admite que o fenômeno ocorre por causa dos granjeiros. Segundo afirma, é comum, na época da colheita, encontrar vários peixes mortos nos banhados de arroz – traíra e peixes miúdos. “Antigamente eu colocava dez redes e recolhia cem quilos de peixe. Hoje, minha mulher e eu colocamos 40 redes pra colher, no máximo, 20 quilos”, lamenta. Para Rudinei, a situação é tão grave que o pescador até vive melhor na época da piracema, com o salário mínimo que recebe do governo. Pescador mais antigo na Colônia Nossa Senhora dos Navegantes (conhecida como Z16), Lobão Orival dos Santos, em atividade há 37 anos, conta que tirou seu documento como pescador aos 16 anos, mas aprendeu a pescar com os pais, quando garoto. Ele explica que a colônia tem 179 sócios cadastrados. Mais de 60, porém, devem à associação, que engloba várias comunidades – nove em Vila Anselmo, dez na Vila Cariri, sete na Vila Manoel, 12 na Vila Machado, 90 em Vila do Porto e Vila Hermenegildo e de 10 a 15 que pescam no mar. Para o tesoureiro da associação, a Barragem de Pelotas poderia apresentar um nível mais fechado, que levantaria a água na Lagoa Mirim e também nos banhados. Quando Lobão começou a pescar, existiam arroios naturais e muito mais banhados onde as espécies podiam se reproduzir. Hoje, porém, o pescador observa que os banhados são escassos e existem inúmeros canais artificiais que desviam água. “Tudo isso fez nossa lagoa ficar alta, e ela está sempre derramando água para o oceano. Na costa da Lagoa, na área do porto, tudo era banhado. Nas cheias, a gente viajava entre seis e sete horas dentro dos banhados. Isso acontecia até 15 anos atrás. Hoje, passa jipe por lá. A gente pescava até 400 quilos de jundiá. Hoje, nem o sarandi. Onde era o banhado tem três grandes cortes de água desviada pelos canais dos granjeiros. Além desses problemas, o mais grave é que a lagoa, aos poucos, vai sendo aterrada”, lamenta. Lobão conta ainda que dunas de areia se formavam nos lagos. Com os canais, as dunas foram sugadas, desmanchadas pela água da lagoa. “Hoje, sumiram muitos tipos de peixe”, constata. A vida dura e cheia de incertezas leva os pescadores a desejarem um futuro melhor para os filhos. Por isso valorizam muito a escola. Cristiano e Maria Jandira têm dois filhos – Jéssica, de 15 anos, e André, de 12. O casal se esforça muito pra que os dois sigam nos estudos. “Eles têm de estudar. Às vezes é bravo deixar os dois sozinhos para irmos trabalhar. Colocamos redes em 15 locais diferentes. Pescador não tem dia nem hora, tem é que pescar.” A maioria dos pescadores aprendeu o ofício com os pais ou familiares próximos Já o casal Rudinei Lopes Brum e Sílvia Daniello Gomes, 36 anos, tem cinco filhos. Quatro já na escola, além de Larisse, de cinco meses. Natural de Pelotas (RS), Rudinei, que vive há 22 anos em Santa Vitória do Palmar, recorda que já saía para pescar aos cinco anos. “Eu me criei pescando, mas quero que meus filhos sejam criados estudando”. julho/dezembro 2013 57 imagem: Shutterstock E ducação A mbiental Conhecimento na bagagem Por que jovens brasileiros buscam na Austrália especialização em disciplinas relacionadas ao meio ambiente Gabriel Fonseca O que leva um universitário a sair do Brasil para estudar disciplinas relacionadas ao meio ambiente? E por que a Austrália é um dos destinos preferidos? Interessados em aprimorar o inglês e em aprofundar sua formação cursando uma pós-graduação, jovens brasileiros não desanimam diante da distância, do preço das passagens e do alto custo de vida e estão cada vez mais elegendo a terra dos cangurus como seu lar temporário. A Austrália é o segundo melhor país do mundo para viver, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 2011 da Organização das Nações Unidas. Perde apenas para a Noruega. O IDH considera não apenas dados econômicos, mas também a expectativa de vida, a saúde e as condições de vida das populações. Segundo o governo australiano, o belo país de proporções continentais situado na Oceania, a mais de 13 mil quilômetros daqui, é a terceira nação de língua inglesa mais popular entre aqueles que buscam educação julho/dezembro 2013 59 fora de sua terra natal. E o Brasil figura entre os dez países com mais estudantes na Austrália. de São Paulo (USP), um projeto de colaboração entre a Universidade do Estado de São Paulo (Unesp) de São Vicente, o Instituto Oceanográfico, a USP e o Procam. Ao terminar o mestrado, Fabiana sentiu vontade de aprimorar o inglês e continuar seus estudos ambientais. E não pensou duas vezes: “Queria estudar onde pudesse manter meu estilo de vida e minhas atividades esportivas. Pratico surfe, e a Austrália é uma das mecas desse esporte. Também não considerei outro país, pois eu tinha o objetivo de estudar com alguns pesquisadores que viviam em Sydney, como Tony Underwood e Ross Coleman, entre outros.” Outro fatorchave para a decisão foi que os estudantes podem trabalhar legalmente 20 horas semanais no país, o que não ocorre nos Estados Unidos, por exemplo. As saudades de casa, da família e dos amigos, as dificuldades de adaptação e as diferenças culturais não desanimam os jovens, que se valem do fato de ser uma nação multiétnica, que recebe gente de todos os continentes. Fabiana e os animais marinhos Uma das linhas de pesquisa mais fortes na Austrália é a que envolve o meio ambiente e as tecnologias verdes. Foi justamente o campo em que Fabiana Moreira desenvolveu sua pesquisa quando cursou doutorado em Ecologia Marinha na Universidade de Sydney (USYD). Fundada em 1850, a USYD está entre as oito mais produtivas em termos de pesquisa no país. Localizada no coração da maior cidade do país e capital do estado de Nova Gales do Sul, abriga quase 50 mil alunos de 120 países. Fabiana formou-se em Biologia Marinha na Universidade Santa Cecília, em Santos, litoral de São Paulo. Depois, fez um mestrado pelo Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental (Procam) da Universidade foto: Fabiana Moreira, arquivo pessoal Fabiana Moreira usa o barco da universidade para fazer coletas na baía de Sydney Segundo Fabiana, o processo seletivo para a bolsa na USYD foi longo e burocrático. Ela precisou fazer uma extensiva prova de inglês acadêmico e também teve avaliado todo seu histórico escolar da graduação, do mestrado e de publicações científicas. Todos os documentos tiveram de ser traduzidos para o inglês por tradutor juramentado. Para organizar e enviar a documentação, a pesquisadora contou com o auxílio gratuito de uma agência paga por universidades australianas para auxiliar candidatos a cursos no país. 60 Senac Ambiental A dedicação de Fabiana deu frutos. Ela ganhou uma bolsa financiada pela USYD que cobria todas as mensalidades. Além disso, ainda contava com um auxílio de cerca de 500 dólares por semana. O dinheiro era suficiente para cobrir as despesas da vida simples que ela levava em Sydney. Já no segundo ano de PhD, Fabiana começou a trabalhar como tutora no curso de graduação em Ciências Biológicas na própria USYD. Com o dinheiro extra, conseguiu comprar um carro e fez uma poupança. julho/dezembro 2013 61 foto: Fabiana Moreira, arquivo pessoal 62 Senac Ambiental Fabiana trabalhou pesado em campo durante três anos e meio. Debaixo de sol ou chuva, frio ou calor, ela pegava o pequeno barco da universidade para fazer coletas semanais em meio à movimentada Baía de Sydney. Recolhia pequenos animais e amostras de água para fazer uma análise aprofundada no laboratório da universidade. Apos o término do curso, a saudade da família falou mais alto e a pesquisadora decidiu voltar ao Brasil com o marido. E começou, então, um pósdoutorado no Instituto Oceanográfico da USP. Ela ressalta a importância dos estudos na Austrália: “A pesquisa, lá, possibilitou meu aperfeiçoamento em desenhos experimentais para a avaliação de impactos ambientais. Esse conhecimento é fundamental para desenvolver projetos voltados para o uso sustentável dos recursos naturais, que podem ter diversos focos. Na Austrália, o projeto era relacionado ao impacto do uso da água do mar para resfriar e aquecer prédios comerciais e residenciais costeiros. Agora desenvolvo um projeto relacionado ao monitoramento de resíduos sólidos e plásticos na costa brasileira.” foto: Gabriel Fonseca A Universidade de Sydney: primeira a ser fundada no país e uma das melhores até hoje O curso que ela fez no laboratório do Centro de Pesquisas de Impactos Ecológicos em Cidades Costeiras teve como objetivo mostrar os impactos de um sistema de refrigeração de ar que diversos prédios usam ao redor da Baía de Sydney e sugerir aprimoramentos para esse sistema. Muitos grandes prédios comerciais, e até residenciais, na cidade, incluindo a famosa Ópera de Sydney, são baseados num sistema de refrigeração que utiliza a circulação da água do mar em canos ao redor do prédio. Funciona da seguinte maneira: a água do mar é sugada da baía e passa por um complexo de canos espalhado por todos os ambientes do prédio. A água do mar tem baixa temperatura e resfria os ambientes por onde passa. O grande problema é que, com a água, o encanamento carrega pequenos animais marinhos, entre eles os moluscos, o que acaba entupindo os canos e prejudicando a refrigeração. Uma das maneiras que as empresas encontraram para resolver a perda de efetividade do sistema de ar-condicionado foi jogar cloro na água para espantar os animais. O cloro é uma substância extremamente poluidora e, ao interagir com a água do mar, forma novos compostos ainda mais contaminantes. foto: Gabriel Fonseca Wander e a diversidade genética dos peixes Quem também pesquisa a preservação do ecossistema marinho é Wander Godinho, que saiu de Fortaleza para estudar na Universidade Macquarie, em Sydney. O objetivo do estudante cearense, mestre em Engenharia de Pesca pela Universidade do Ceará, é avaliar a diversidade genética de populações de peixes de recife. Ele explica por que escolheu a Austrália: “Eu sabia que qualquer bom trabalho realizado com ecologia marinha aqui teria relevância mundial. Também considerei os Estados Unidos, mas os programas de bolsa na Austrália e a possibilidade de trabalhar na Grande Barreira de Corais eram bem interessantes.” Inicialmente, Wander deixou a ensolarada Fortaleza para estudar inglês, mas já tinha em vista fazer contatos com universidades australianas para um possível doutorado. Depois de nove meses estudando inglês em período integral, conseguiu um estágio voluntário na Universidade Macquarie. Voltou, então, ao Brasil e candidatou-se a uma vaga para doutorado na instituição sem ter concluído ainda o mestrado brasileiro. Para sua surpresa, conseguiu o objetivo. “Passei meu primeiro ano na Austrália trabalhando também no meu mestrado para a Universi- dade Federal do Ceará e ainda tive de desenvolver as primeiras atividades do doutorado australiano. Uma loucura!”, diz Wander, recordando o aperto que passou. Outras dificuldades lembradas por Wander foram o idioma, especialmente quando lidava com trâmites burocráticos, e os termos técnicos do mundo da pesquisa – além do frio no inverno. “Estou acostumado com os 300 dias por ano de sol e calor de Fortaleza. Ainda me sinto um pouco desconfortável aqui”, desabafa. O biólogo Wander Godinho na Baía de Chowder, aonde leva seus alunos para atividades educacionais no mar A Universidade Macquarie foi criada em 1964 e tem investido muito em pesquisa. Atualmente, é considerada a nona melhor da Austrália e é cada vez mais disputada pelos estudantes. Ela mantém convênios com mais de 370 instituições de pesquisa e ensino em 53 países. O objetivo da pesquisa de Wander é estudar barreiras biogeográficas ao longo da costa leste australiana e avaliar a diversidade genética de populações de peixes recifais entre parques marinhos no estado de Nova Gales do Sul. “No meu doutorado, abordei um tema ligado à evolução de peixes marinhos e a processos históricos que explicam a distribuição das espécies na Austrália. Meus resultados são importantes por mostrarem a influência das correntes marinhas e da topografia das praias na distribuição dos peixes recifais e o porquê da atual disjulho/dezembro 2013 63 foto: Gabriel Fonseca O químico Felipe Valini trocou Brisbane por Canberra para desenvolver painéis de energia solar mais eficientes tribuição por tamanho das espécies desses peixes nos variados ecossistemas marinhos. Minha pesquisa poderá servir de comparação para o estudo de peixes marinhos pelo mundo e revelar padrões de evolução talvez diferentes do que encontrei para a Austrália.” O estudante tem uma rotina intensa: divide seu tempo entre a preparação dos manuscritos de seu doutorado para serem publicados, o trabalho na universidade como tutor nas disciplinas Evolução & Biodiversidade e Ecologia & Genética, além de trabalhar na Land’s Edge, uma empresa que desenvolve atividades de recreação e educação ao ar livre com estudantes de escolas de Sydney. “Sou contratado como biólogo marinho para simular atividades científicas com os estudantes. Isso envolve mergulho com os alunos em praias locais para que eles possam comparar a relação entre números de ouriços e quantidade de algas e peixes que encontram. Daí eles aprendem a metodologia de trabalho científico e, no final, a gente comenta os resultados. É interessante ver que a maioria dos alunos se mantém focada no trabalho, algo difícil para uma faixa etária que vai de 12 a 15 anos”, explica Wander. O cearense quer ficar por mais algum tempo na Austrália: “Volto ao 64 Senac Ambiental Brasil para a Copa do Mundo em 2014. Mas, por enquanto, desejo desfrutar mais da vida segura que tenho aqui. No entanto, não descarto a possibilidade de desenvolver um pós-doutorado em parceria com universidades brasileiras. Após o doutorado, pretendo continuar na área de educação, com a meta de desenvolver programas de conservação ambiental.” Felipe e a contaminação dos mangues Formado pela Universidade Oswaldo Cruz, o químico e pesquisador Felipe Valini trocou São Paulo pela Austrália para aprimorar o inglês. Em Brisbane, na costa leste, tentou vaga como voluntário no laboratório do Departamento de Geologia da Universidade de Queensland (UQ), uma das melhores do país. Não conseguiu a vaga, mas acabou sendo convidado a participar dos trabalhos de pesquisa. O brasileiro teve de se desdobrar para adquirir um conhecimento que não tinha, mas foi assim que acabou desenvolvendo sua linha de pesquisa em geoquímica. Ao contrário de outros mestrandos, Felipe não achou muito difícil o processo de admissão na UQ. Ele acredita que a paixão por estudar e pelo seu objeto de estudo são primordiais para um bom começo. Além disso, é preciso encontrar um professor que tenha uma linha de pesquisa que o estudante admire e fazer muitos contatos para checar as possibilidades de bolsa de estudos. Nem todos os professores podem oferecer bolsa, algo fundamental para que os estudantes tenham condições financeiras de viver no país. Felipe investigou a contaminação de mangues por metais pesados, problema que atinge a bela Baía de Moreton, na costa leste australiana, Brisbane, onde a pesquisa foi desenvolvida, é a terceira maior cidade do país e uma das regiões de maior crescimento econômico. Os impactos da urbanização acelerada são sentidos com intensidade e os manguezais da baía estavam visivelmente afetados. O mangue é um ecossistema muito delicado e importante para o equilíbrio da cadeia alimentar, um verdadeiro berçário para os animais marinhos. A poluição afeta peixes, caranguejos e, consequentemente, a pesca e o turismo, atividades importantes ao redor da baía. Os resultados encontrados na pesquisa de Felipe bateram de frente com os divulgados anualmente pelas autoridades da região. Felipe alega que estes só incluem dados biológicos e não consideram metais pesados na análise, nem a contaminação do solo. Regiões com muitos metais pesados na água foram consideradas limpas segundo as análises da prefeitura. Os principais responsáveis pela contaminação dos manguezais locais são as refinarias e indústrias instaladas no entorno da baía, sem falar no lançamento na água de produtos domésticos como detergentes e desinfetantes. “A argila do mangue é muito frágil, porque os grãos minúsculos que a formam atraem os metais pesados e se fundem com eles. O mangue funciona como uma esponja”, afirma o pesquisador. O próximo passo de Felipe será publicar os resultados na mídia científica e esperar que a prefeitura se pronuncie sobre possíveis ações para conter a contaminação dos manguezais. Felipe trabalhando em campo na Baía de Moreton, em Brisbane foto: Felipe Valini, arquivo pessoal e muitas outras pelo mundo afora. O estudo foi pioneiro na região. “Fui a primeira pessoa a fazer um mapeamento para verificar quais as localidades com mais altas concentrações de metais pesados. Fiz levantamento em 46 pontos da baía, onde trabalhei muito colhendo amostras de solo e água”, conta o pesquisador. O mestrado de Felipe já rendeu frutos além dos manguezais: ele se mujulho/dezembro 2013 65 dou para a capital do país, Canberra, para trabalhar no desenvolvimento de produtos que vão melhorar a eficiência de painéis de geração de energia solar. “Desenvolvemos novas tecnologias que utilizam novos componentes químicos e vão gerar mais energia com menor preço.” quarie, a mesma de Wander. Todo o processo durou cerca de dez meses e consumiu alguns milhares de dólares. “Você precisa da tradução juramentada de todos os documentos acadêmicos, de cartas de recomendação de pesquisadores e professores com quem tenha trabalhado previamente e exame de proficiência em inglês, além de um projeto de pesquisa definido e do aceite do seu atual orientador”, informa a bióloga. E não se pode esquecer de tirar o visto de estudante. Priscila e as ostras A bióloga Priscila Gonçalves se graduou e fez mestrado em biologia celular na Universidade Federal de Santa Catarina antes de se aventurar pelas terras australianas. Ela se inscreveu no programa Ciências sem Fronteiras, do governo brasileiro, e conseguiu uma bolsa para estudar no exterior. O programa é uma iniciativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e do Ministério da Educação. “É necessário planejamento financeiro antes mesmo de começar”, recomenda Priscila, que atualmente está no segundo ano do doutorado em Ciências Biológicas. Sem uma bolsa de estudos, os alunos estrangeiros teriam de pagar por ano cerca de 30 mil dólares australianos (aproximadamente 55 mil reais). Com sinal verde após receber a bolsa de estudos, começou a parte mais complicada: organizar os papéis para obter uma vaga no curso de doutorado na Universidade Mac- A Austrália chamou atenção da doutoranda pela crescente preocupação com a conservação de ecossistemas marinhos e pelo alto investimento em pesquisas na área ambiental tanto por parte de instituições governamentais como de empresas e associações privadas vinculadas ao setor. Outros aspectos interessantes, segundo ela, são a qualidade do ensino dos cursos de pós-graduação, o renome dos pesquisadores e a ótima estrutura dos laboratórios. foto: Gabriel Fonseca Priscila Gonçalves estuda os impactos do CO2 em ostras 66 Senac Ambiental O projeto de doutorado da brasileira aborda os impactos de níveis elevados de gás carbônico (CO2) em populações de ostras nativas. Por meio de programas de melhoramento genético, foram selecionadas populações de ostras de rápido crescimento e resistência a enfermidades. Elas também mostraram maior tolerância às condições de alta temperatura e baixo pH (nível de acidez) da água. Isso pode ser resultado de uma adaptação genética às condições ambientais. “Estou comparando os resultados com os efeitos observados em po- pulações selvagens da mesma espécie. As análises estão sendo feitas tanto em nível celular quanto molecular e têm por objetivo investigar a base molecular para uma potencial adaptação às mudanças climáticas. Além disso, também investigamos a resposta de ostras expostas a níveis elevados de CO2 ao longo de três gerações, a fim de observar se os efeitos do baixo pH da água se tornam mais amenos ou mais severos em ostras provenientes do cruzamento de adultos já previamente expostos a essa nova condição”, explica Priscila. Mesmo vinculada à Universidade Macquarie, todos os experimentos e análises da doutoranda estão sendo desenvolvidos no Instituto de Ciência Marinha de Sydney (Sims), na paradisíaca Baía de Chowder – mesmo local aonde Wander leva estudantes para atividades de observação e pesquisa no mar. O Sims tem convênio com cinco das mais importantes universidades de Sydney e os alunos destas instituições podem usar à vontade sua estrutura de laboratórios e tanques para as pesquisas. Priscila afirma que o tipo de pesquisa que desenvolve na Austrália é pouco explorado no Brasil, apesar da grande diversidade marinha do país e da crescente preocupação com a conservação da costa brasileira: “Estudos dessa natureza têm grande importância tanto no nível científico, por causa da adaptação e extinção de espécies marinhas, quanto na ciência aplicada e também na aquicultura. A volta ou não ao Brasil ainda não passa pela cabeça da bióloga. Ela diz que tudo depende de bolsas, financiamentos e oportunidades. “Medidas como o aumento do número de bolsas e da qualidade do ensino das pós-graduações no Brasil, bolsas de estudo com valor compatível aos pós-graduandos em ciência e tecnologia, maior financiamento de projetos de pesquisa, novas ofertas de concursos públicos, além do reconhecimento das atividades científicas e da regulamentação da profissão podem auxiliar no retorno de estudantes que estudam fora ao país”, sugere. A bióloga usa o laboratório do SIMS para analisar o material coletado Os quatro entrevistados desta reportagem são apenas gotas num oceano de profissionais que querem fazer diferença no mundo e contribuir para a construção de um desenvolvimento sustentável. Todos eles concordam que para ter sucesso na carreira acadêmica no exterior é preciso ter muita força de vontade, disposição, competência, paciência, foco e paixão pelo objeto de estudo. “A biologia é tão mágica e tão complexa que cada novo questionamento, cada nova observação se torna motivo de inspiração para novos projetos. E a partir destes surgem novas perguntas e ideias. É um ciclo inspirador que rende muitos frutos.”, garante a apaixonada Priscila. julho/dezembro 2013 67 foto: Shutterstock/Vinicius Tupinamba E coturismo Nas águas do Velho Chico Passeio à foz do rio São Francisco é um dos mais bonitos e emocionantes do país Mário Moreira Quem viaja ao Nordeste a passeio normalmente pensa em se estirar em alguma praia paradisíaca, mas nem só de mar vive a região. Ainda pouco explorado pelos turistas, o passeio à foz do rio São Francisco, divisa natural entre Sergipe e Alagoas, é daqueles que ficam na lembrança para o resto da vida. O programa é um dos muitos tesouros ecoturísticos abundantes no território nacional. Durante aproximadamente três horas, o visitante se deslumbra e se emociona com as belezas e a diversidade do cenário. Para quem visita a região, o mais indicado é hospedar-se na alagoana Penedo, a cerca de 160 quilômetros de Maceió. A cidade fica às margens do São Francisco, e quem chega para conhecê-la não deixa de se admirar com as águas do Velho Chico movendo-se lenta e majestosamente rumo ao Oceano Atlântico, 30 quilômetros mais abaixo. O impacto é ainda maior para quem chega ao cair da tarde, julho/dezembro 2013 69 já que o sol se põe do lado oposto, em terras sergipanas. semelhantes às jangadas, com velas quadradas e coloridas. De Penedo, são 25 quilômetros pela rodovia AL-101 até Piaçabuçu, de onde partem os barcos para a foz do São Francisco. Os hotéis de Penedo costumam reservar o passeio com a cooperativa dos barqueiros do município vizinho. À medida que o barco vai descendo o rio, os coqueiros começam a escassear, dando lugar a vastos manguezais. Aqui e ali, nos intervalos do mangue, em locais de vegetação arbustiva, surgem pequenas cabanas de palha e casebres de pau-a-pique usados por pescadores para se abrigar durante os meses de verão – no inverno, quando chove mais e o rio enche, aquelas margens ficam inundadas. O rio ali é largo, chegando a atingir quatro quilômetros de uma margem à outra. O mais fácil e prático, principalmente para quem está com crianças, é comprar os ingressos para os barcos que abrigam 40 turistas. A tarifa custa R$ 35 por pessoa [valor de setembro], mas é possível contratar embarcações menores e exclusivas, com preços a combinar. Paisagens variadas Uma vez a bordo, é hora de, literalmente, deixar-se levar pelo rio. O barco desliza suavemente e, pouco a pouco, o turista vai descobrindo uma variedade de ecossistemas nos 13 quilômetros percorridos até a foz. É um momento grandioso, em que a placidez do rio contrasta com a força das ondas do Atlântico que vêm em sentido contrário. A maioria das embarcações turísticas estanca cerca de 200 metros antes, já que as condições naturais normalmente não recomendam navegar pela foz. foto: Verônica Couto Os coqueirais predominam nas margens. O passeio de barco percorre 13 quilômetros até a foz Nos primeiros 20 minutos, o que predomina em ambas as margens são os coqueirais típicos do Nordeste. É nesse trecho do São Francisco que se avistam as “borboletas”, pequenas embarcações Mais alguns minutos, já no trecho final, o que passa a predominar são praias e dunas de areia branca. É quando se pode finalmente avistar o encontro do Velho Chico com o mar, depois de mais de 2.800 quilômetros desde a nascente, na Serra da Canastra, em Minas Gerais. 70 Senac Ambiental foto: Verônica Couto Em compensação, há uma parada de cerca de uma hora para banho nas águas mornas do São Francisco, junto ao Pontal do Peba, a parte alagoana da foz. No pontal, além de dunas, há uma lagoa onde também é possível banhar-se. Na faixa de areia entre a lagoa e o rio, barraquinhas vendem comidas típicas e artesanato da região. À direita, próximo ao lado sergipano, as ruínas de um pequeno farol construído em 1876 e já engolido pelas águas testemunham como o mar avançou rio adentro nos últimos 140 anos. Assoreamento Essa imagem, por sinal, faz pensar no impacto que poderá ter sobre o Velho Chico o projeto de transposição das suas águas, cujas obras estão em andamento. O plano prevê a retirada de 1,4% da vazão garantida pela barragem de Sobradinho e sua destinação a 390 municípios do agreste e do sertão nordestino, por meio da construção de dois canais (eixos Norte e Leste) que levarão a água do São Francisco para outros rios da região. A estimativa do governo federal é garantir o abastecimento a 12 milhões de habitantes. Uma das críticas feitas ao projeto é a de que a retirada de parte da água, mesmo em proporção pequena, pode vir a afetar a profundidade do rio e a biodiversidade no Baixo São Francisco, prejudicando a atividade pesqueira na região e a qualidade de vida da população local. Mesmo antes do término das obras de transposição, pescadores de Piaçabuçu já reclamam que a fauna fluvial vem sendo invadida por espécies marinhas. Neste ano, uma expedição composta por pesquisadores de cinco universidades federais do Nordeste comprovou que o assoreamento do São Francisco entre Alagoas e Sergipe já ocasiona a existência de trechos onde é possível caminhar no leito, algo impensável décadas atrás. julho/dezembro 2013 71 fotos: Verônica Couto Penedo Não é somente a vista do rio São Francisco que torna Penedo uma das cidades mais interessantes para serem visitadas em Alagoas. Seu bem preservado centro histórico é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e merece a atenção do turista por pelo menos um dia. Igreja de Nossa Senhora dos Anjos, cuja construção teve início em 1660 72 Senac Ambiental Hoje com cerca de 60 mil habitantes, a vila de Penedo surgiu em meados do século 16, quando o então donatário da Capitania de Pernambuco, Duarte Coelho, buscava um local próximo à foz do São Francisco para demarcar os limites da região e instalar um ponto de apoio para o comércio e também de vigilância contra eventuais incursões fluviais de invasores. Numa curva do rio, encontrou um rochedo elevado, a cerca de 30 metros de altura em relação à margem, e ali instalou o núcleo que daria origem à cidade (“penedo” significa rochedo ou penhasco). Em 1637, os holandeses, que já ocupavam parte do Nordeste, tomaram Penedo e ali construíram um forte, onde se instalaram. O muro externo da fortificação constitui atualmente a parede de um restaurante que oferece uma linda vista do São Francisco. Os portugueses só recuperaram Penedo oito anos depois. Hoje, quem visita a cidade pode admirar diversos prédios históricos. Dentre as igrejas, destacam-se a de Nossa Senhora da Corrente e a de Nossa Senhora dos Anjos. A primeira, erguida em 1765, fica em uma praça no início da avenida que margeia o São Francisco. Em estilo barroco, foi construída para ser a capela particular da família do abolicionista português André de Lemos fotos: Verônica Couto Ribeiro. Além do bonito altar-mor dourado e dos coloridos azulejos que adornam as paredes do interior, a igreja tem uma peculiaridade: na parede junto a um altar lateral, há um esconderijo onde Lemos Ribeiro mantinha escravos fugidos. Na mesma praça localiza-se o Paço Imperial, onde o imperador d. Pedro II ficou hospedado em sua visita à cidade, em 1859. O bonito prédio abriga um museu, com objetos de decoração dos séculos 18 e 19. A Igreja e Convento de Nossa Senhora dos Anjos, restaurada nos últimos anos, começou a ser construída em 1660 e tem fachada típica daquela parte do Nordeste, com adornos de pedra em formato de conchas. Seu interior é ricamente decorado. O claustro do convento também vale a visita. Na parte mais alta da cidade, localiza-se a bonita praça Barão de Penedo, rodeada de construções históricas, como a catedral de Nossa Senhora do Rosário, a Casa de Aposentadoria e o Oratório dos Condenados. Outro prédio interessante é o Teatro Sete de Setembro, inaugurado em 1884 e que abriga espetáculos teatrais e musicais. A fachada contém quatro estátuas representando as deusas gregas da poesia, da pintura, da música e da dança. Para quem se interessa pela história da região, outra dica é a Fundação Casa do Penedo, com bom acervo histórico e iconográfico sobre a vida no Baixo São Francisco. No mais, é sair pelas ruas à procura de belos casarões em estilo colonial. Não será difícil encontrar vários. julho/dezembro 2013 73 E stante A mbiental Meio ambiente & química Pérola de Castro Vasconcellos Senac SP, 2013 144 páginas Mais um volume (o de número 20) da Série Meio Ambiente, esta obra nasceu de uma demanda bastante atual: a discussão do impacto que nossos hábitos de consumo provocam no meio ambiente. Assim, o livro acaba por provocar reflexões muito oportunas acerca da preocupação com a possibilidade de estarmos chegando a uma situação-limite. Em uma análise que compreende a formação da Terra e sua transformação pelo ser humano, a professora Pérola de Castro Vasconcellos nos ensina, com simplicidade e clareza, os processos químicos característicos do planeta em que vivemos e inerentes ao nosso modo de vida. É um livro para todos que se interessam por química e, sobretudo, para os que buscam um estilo de vida sustentável. Ele nos permite compreender os efeitos de nossos maus hábitos, para então modificá-los. Tel.: (11) 2187-4450 www.editorasenacsp.com.br 74 Senac Ambiental Tempestades dos meus netos: mudanças climáticas e as chances de salvar a humanidade James Hansen Senac SP, 2013 368 páginas Os verões cada vez mais quentes, registrados em diversos pontos do globo terrestre, são resultado do aquecimento global? A onda de calor que atingiu a França em 2003, a escassez de chuvas que afetou a Amazônia em 2005 e 2010, as temperaturas extremas registradas em Moscou, na Rússia, também em 2010 e a seca que atingiu os estados norte-americanos do Texas e de Oklahoma em 2011 são consequências desse fenômeno? As variações climáticas que ocorrem na natureza podem ser bastante amplas – e a relação direta entre fenômenos extremos e aquecimento global não é unânime no meio científico –, mas para James Hansen – pesquisador e diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa, um dos cientistas que mais têm alertado os dirigentes políticos sobre o aquecimento da Terra – os impactos da mudança climática já estão sendo sentidos aqui e agora. E pior: revelam-se piores do que ele mesmo já havia previsto anteriormente. Tel.: (11) 2187-4450 www.editorasenacsp.com.br Senac EAD Um mundo novo de oportunidades Descubra novas possibilidades para sua vida profissional com os diversos cursos a distância do Senac. www.ead.senac.br O melhor ensino a distância do país Cursos Livres • Cursos Técnicos • Graduação • Pós-Graduação • Extensão Universitária As novas marcas do Sistema CNC Representação - Sesc - que Senac mudaram. gera resultado Promove o Desenvolvimento Social E foram premiadas. Incentiva o espírito cooperativo Impulsiona a Transformação Nacional O case “Novas marcas CNC - Sesc - Senac, a sinergia da transformação” foi o vencedor nacional na categoria Comunicação de Marca da 39ª edição do Prêmio Aberje. Presentes em todo o País, CNC - Sesc - Senac compõem um dos maiores sistemas sociais do mundo, responsável por um conjunto integrado de ações em prol do desenvolvimento econômico e social. Uma referência no fortalecimento do comércio de bens, serviços e turismo. Essa conquista reconhece a parceria das agências Packaging Brands e Ogilvy Brasil e o esforço coletivo das pessoas que fazem parte do Sistema CNC - Sesc - Senac em inovar na busca de uma nova identidade para representar a transformação. Acesse os nossos sites e saiba mais sobre o nosso posicionamento: www.cnc.org.br www.sesc.com.br www.senac.br O case “Novas marcas CNC-Sesc-Senac, a sinergia da transformação” foi o vencedor nacional na categoria Comunicação de Marca da 39ª edição do Prêmio Aberje.