LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO DA POESIA PORTUGUESA RECENTE
A FACA NÃO CORTA O FOGO1
Graça Videira Lopes (FCSH-UNL)
No seu uso mais corrente, a tradicional afirmação de que Portugal é um país de
poetas não augura nada de bom. Na verdade, é este um lugar-comum que, entendendo a
poesia como devaneio inconsequente, serve de munição irónica aos discursos “realistas”
sobre o estado da nação, em qualquer dos inumeráveis exercícios de auto-flagelação que
constituem, com o futebol, o desporto nacional por excelência. Mas, no particular, às
vezes há surpresas: o sucesso de vendas que constituiu a recente edição de A faca não
corta o fogo – súmula e inédita, o último livro de Herberto Helder (com data de
Setembro de 2008), esgotada em poucos dias, será talvez uma dessas surpresas.
Surpresa, em primeiro lugar, porque tal coisa raramente acontece com um livro de
poesia2; e em segundo lugar porque Herberto Helder não é, nem de longe nem de perto,
um poeta fácil. Sejamos ou não um país de poetas – agora no sentido do apreço por uma
arte que em outras paragens parece cada vez mais marginal – o certo é que este
acolhimento público ao livro de Herberto Helder é, não só culturalmente reconfortante,
como inteiramente justo: A faca não corta o fogo é, na verdade, e passe a expressão, um
Herberto Helder vintage, ou seja, uma notável “súmula e inédita” de um dos nomes
maiores da poesia portuguesa contemporânea. O facto de continuar activo, no melhor
sentido da palavra, isto é, de a sua voz, sendo perfeitamente reconhecível, continuar a
surpreender-nos, será talvez a melhor prova de que a arrumação, hoje muito comum, por
gerações ou mesmo por décadas (anos 80, anos 90) é, nestas matérias de renovação
literária, muito falível e enganadora. E assim, se a idade não é um posto, o mais avisado
será mesmo entendermos que são múltiplos os caminhos que segue a poesia portuguesa
1
Publicado em Por s’entender bem a letra. Homenagem a Stephen Reckert, Imprensa Nacional - Casa da
Moeda, Lisboa, 2011, pp. 209-218.
2
Mesmo que, como se indica nas páginas finais, a tiragem tenha sido de 3000 exemplares (muito longe,
pois, dos milhares que tira um romance best-seller – e não falo apenas dos descartáveis), são números que
ultrapassam largamente os hábitos editoriais em poesia, onde edições de 300 ou 500 exemplares não são
raras.
neste início do século XXI, todas as “gerações” confundidas. No que se segue farei,
pois, um exercício de leitura, necessariamente breve e simplificado, de um desses
caminhos da poesia mais recente, exactamente o que A faca não corta o fogo nos
convida a percorrer.
À primeira vista, e antes do mais, dir-se-ia que este novo livro de Herberto
Helder só em parte é novo. Na verdade, ele reúne 1) um conjunto de textos já
publicados em livros anteriores – a “súmula”; 2) uma parte final inédita, exactamente A
faca não corta o fogo. Se esta estrutura é aqui talvez mais elíptica (não há índice ou
qualquer outra explicação prévia, a origem dos textos sendo indicada apenas num breve
parêntesis final, após cada secção), deve dizer-se que o próprio processo não é novo:
desde, pelo menos, o Ofício Cantante, de 1967, primeira antologia pessoal, passando
pelas duas edições (diferentes) da Poesia Toda (1973 e 1981) e terminando na ainda
mais recente nova edição do Ofício Cantante (2009), que a edição do seu trabalho é
labiríntica, com sucessivos cortes, reagrupamentos e acrescentos da matéria poética
anterior. O leitor desprevenido poderá ficar perplexo ou mesmo um pouco perdido. Na
verdade, Herberto Helder já se explicou, numa outra “antologia” de 2004, cujo título, de
tão claro, dispensa comentários: Ou o Poema contínuo. Levando, pois, à letra (e à
prática da letra) a conhecida afirmação de que um poeta escreve sempre o mesmo
poema (“a vida inteira para fundar um poema,/ a pulso,/ um só” – como se repete na
p.203 de A faca não corta o fogo), Herberto continuamente faz do antigo novo – ou
seja, numa técnica muito próxima da usada na pintura contemporânea, faz colagens, no
melhor sentido do termo. E, como na pintura, o resultado, longe de ser o mesmo é, de
facto, sempre outro. Literariamente falando, é um gesto radical – mas radical sobretudo
porque este é também um gesto que, de certa forma, contraria subtil mas decididamente
a voz encantatória que no poema se apresenta com uma “aura” muito próxima do
discurso do sagrado. Não o é, como estas sucessivas manipulações do já dito ou escrito
obliquamente o confirmam. Ou antes, se algo do registo do sagrado permanece neste
discurso, é apenas na forma desconstruída e fragmentária da modernidade (a que sabe,
por exemplo, “que Deus funciona na sua glória electrónica”, p.159). Em primeiro
lugar.
Em segundo lugar, as marcas dessa modernidade inscrevem-se ainda numa
poesia que é ao mesmo tempo uma poética, ou seja, num discurso perfeitamente
consciente de si próprio, que simultaneamente vê o mundo e o acto de o escrever. E que,
por isto mesmo, continuamente se comenta, antecipando as reflexões que o leitor
poderia fazer. O melhor será mesmo, portanto, deixarmos que A faca não corta o fogo
se defina: como um “canto jubilatório” (p.113), no qual o poeta faz “com as mãos
estilísticas um invento fora e dentro dos estados naturais” (p.177), cuja “única técnica é
o truque repetido de escrever entre o agraz e o lírico” (p.194). Donde resulta “a fria
alegria intrínseca de uma língua” (p.176) ou “isso que às vezes me confere o sagrado”
(p.185), mas um sagrado cuja raiz não é transcendente mas está em “quem sem
magnificência nenhuma (…) me sopra na boca/ o vulgo, o pouco o inesperado”. Com
efeito.
N’A faca não corta o fogo, e detendo-nos apenas neste último aspecto, essa
matriz inventiva que é o uso comum e popular da língua, exemplificada no próprio
título (retirado de um provérbio grego, como nos é dito), ou no uso disperso de
expressões populares e do calão, vai mesmo até ao efectivamente inesperado território
do português do Brasil, nos fragmentos que, numa espécie de diálogo lírico (masculino
e feminino), põem em cena a voz erótica de uma “menininha”, cujo “jeito” o poema
transcreve em formas e modos linguísticos característicos e perfeitamente reconhecíveis
pelo falante português comum. E não será essa, aliás, a menor das surpresas que nos
reserva a “inédita” do livro. Repare-se, no entanto, que se a matriz é popular, ela é tudo
menos primária – ou seja, no caso, o poeta não imita ou mima aqui o “brasileiro”,
trabalha profusamente a língua a partir dessa matriz. Porque convém não esquecer que
este é sempre, com efeito, e de forma marcada, um discurso culto: bastaria, por
exemplo, a citação do conhecido refrão de D. Dinis, “ai deus e u é?”, introduzido a
meio de uma destas sequências (p.143), e sinalizando, para quem saiba ler, a
consciência de se estar usando uma voz feminina lírica (de se estar retomando uma
tradição poética cuja raiz remonta às cantigas de amigo dos poetas medievais) para nos
comprovar isso mesmo.
De resto, citações oblíquas como esta aparecem ciclicamente ao longo das várias
sequências do poema. Algumas outras também medievais, como o “edoi lelia doura”
(p.135), refrão de uma cantiga de amigo de Pedro Eanes Solaz (Eu, velida, nom
dormia), e que Herberto Helder já usou como título de uma antologia de poemas
alheios, ou como o verso inicial de uma das mais notáveis cantigas provençais, da
autoria de Raimbaut d’Aurenga, “Ar resplan la flors enversa” (“e então resplande a flor
inversa”, na versão portuguesa do verso, que também integra essa sequência, p.149).
Em ambos os casos, trata-se de enigmáticos versos medievais, voluntariamente
enigmáticos já na época, diga-se, o primeiro sendo muito provavelmente a transcrição
de um verso árabe (talvez “e a noite roda”, em tradução), o segundo sendo uma
magnífica alusão à neve, mas numa cantiga que é o exemplo perfeito do trobar clus, a
modalidade provençal do canto assumidamente obscuro e hermético (que se opõe ao
canto directo, o trobar plan) e de que Raimbaut d’Aurenga é um dos iniciadores. Como
já acontecia na cantiga de Pedro Eanes Solaz, cujo refrão, em termos poéticos, funciona
perfeitamente, independentemente de sabermos ou não a sua “tradução”, ou mesmo na
cantiga de Raimbaut d’Aurenga, magnífico “brinquedo” linguístico por si mesmo,
também n’A faca não corta o fogo o poema não obriga a que o leitor saiba tudo isto
(dizendo até, numa outra sequência posterior, “ó stor não me foda com essa de história
literária”, p.173”) – mas, se o souber, é um facto que a leitura ganha uma outra
dimensão, a que vem de se perceber que, para além da sua dimensão encantatória, o
poema, este poema, é também uma “luz inteligente sobre o mundo” (p.175). De facto, e
independentemente do seu valor poético intrínseco, que vêm fazer aqui estes mui
específicos poemas medievais senão sinalizar, também explicitamente, uma tradição, a
do trobar clus, obscuro, do grande canto provençal, na qual este canto contemporâneo
se revê? Se não é uma poesia fácil a de Herberto Helder, como dizíamos, o poeta sabe
isso mesmo (“sou obscuro, adivinha-me”, como se diz na p.184) e reivindica
obliquamente as suas raízes: uma parte delas, através de Raimbaut d’Aurenga e dos
trovadores galego-portugueses que o retomam, remonta, pois, a uma linhagem antiga,
onde a poesia, trabalhando conscientemente na e com a língua, se quer também já um
invento fora e dentro dos estados naturais.
De resto, e retomando a questão das múltiplas citações que Herberto Helder
dissemina ao longo do seu poema, não são apenas os poetas medievais os convocados.
Camões, pelo menos cinco vezes (o Camões lírico das canções e de “Sôbolos rios”,
pgs.143, 148, 164, 177 e 191) ou Antero de Quental (“Na mão de Deus, na sua mão
direita”, p.183), só para citar os mais descodificáveis, fornecem igualmente alguma das
“arcaicas/ matérias, melancolias, memórias, magnificências” (p.181) que o poema
recupera e integra (Camões) ou discute (como é o caso de Antero) (muito curiosamente
ou talvez não, Pessoa não parece ser convocado nunca).
Ou o Poema contínuo, pois, mas agora numa outra dimensão: a de que, se o
novo se faz do antigo, deveremos entender esse processo não apenas em termos pessoais
(pela manipulação da sua obra anterior), mas igualmente em termos colectivos. O que
nos diz Herberto Helder através destas citações é que, de facto, a criação poética tem
tanto de talento individual como de recriação a partir dos grandes textos anteriores
(“unha de rapina”, escreve-se na p.149, imediatamente antes da referência à “flor
inversa”), ou seja, que nenhum poeta cria a partir do nada, antes se insere na longa
cadeia dos que o precederam (“avança, retrocede, apaga”, ainda no mesmo fragmento),
quer o explicite (como aqui), ou quer o oculte. E assim, em termos humanamente
colectivos, o poeta é apenas um elo dessa cadeia infinita, a do Poema (com maiúscula)
que continuamente se recria e renova. Renovando e recriando, ao mesmo tempo, a
língua que é a sua.
Como já antes se aludiu, n’A faca não corta o fogo uma parte significativa das
sequências têm “a acerba, funda língua portuguesa,/ língua-mãe, puta de língua” como
matéria (aqui, na p.170, numa sequência que vai, pelo menos, até à p.186). Mesmo que
o poeta pergunte, logo em seguida “Que fazer dela?”, o que ele faz, na verdade, é um
longo e apaixonado hino a essa “língua concêntrica que me criou até ao júbilo e eu
criei contra o poder do mundo” (p.179), e que é “o mais verbal e primeiro de mim
mesmo” (p.182), ou seja, um hino plural à “acerba, funda língua portuguesa”, como se
repete na p.175. “Que é que se apura da língua múltipla:/ paixão verbal do mundo,
ritmo, sentido?”, pergunta (p.170). É, pois, esta dimensão múltipla do Português que
Herberto Helder percorre e põe inovadoramente em obra, de forma mais ou menos
explícita, na “inédita” do livro, através d’“o fôlego rouco [que] irrompe nas pronúncias
bárbaras/ dos nós da língua”. Encontramos esses “nós da língua” (literalmente e em
todos os sentidos) na voz da “menininha puta”, já se viu, como ainda na voz (que nos
chega via um anúncio de jornal) de um travesti brasileiro, que ocupa outra das
sequências: “travesti, brasileiro, dote escandaloso, leio, venha ser minha fêmea”
(p.178). É uma sequência que trabalha, pois, a partir da leitura do anúncio, liricamente o
comentando em várias direcções, mas a partir do que parece ser a sua matriz principal:
“eu fodo, se me dão licença,/ numa língua que vem com sua fúria combustível/ dos
fundos da/ língua portuguesa, só fodo nela”. Esta exigência “monogâmica” do anúncio
(só em Português) recupera-a Herberto Helder para si, tomando-a, ao mesmo tempo,
como ponto de partida para um dos momentos maliciosamente mais divertidos do livro.
E que termina, aliás, agora alargando o anúncio a outros destinatários (nós, os leitores):
“fodam comigo no mistério das línguas/ obrigado”. O “mistério das línguas” – “e sabese tão pouco do que se vê e escuta muito” – é exactamente, para Herberto Helder, a
matéria primordial da poesia, que desse mistério faz canto, sem que o processo seja
exactamente perceptível: “ou outra coisa assim que/ se não sabe nunca,/ e fica escrita”.
Neste sentido, compreende-se que a língua seja “autora” e o poeta “servente”. Note-se,
em anexo, que não é obviamente por acaso que os “nós” brasileiros da língua nos
apareçam no poema nas figuras e nas vozes líricas da prostituta e do travesti – porque,
se o discurso é voluntáriamente obscuro, na sua gramática e na sua sintaxe, ele é
também decididamente contemporâneo e atento ao mundo e aos seus sinais.
Não será, pois, também por acaso que esta sequência lata dos “nós” da língua, de
que temos vindo a falar, termina com uma “resposta a uma carta” (p.182) que, muito
embora Herberto Helder não o explicite, parece ser endereçada, em primeiro lugar e
nesta forma imediata de resposta, à “Carta” de Chico Buarque de Holanda (a conhecida
canção “Tanto mar”, escrita pouco depois do 25 de Abril), mas que, na verdade,
sobretudo glosa ou toma como matéria a também conhecida e notável canção de
Caetano Veloso “Língua” (“Gosto de sentir a minha língua roçar/ a língua de Luís de
Camões”), sequência esta que começa com uma citação directa: “Gloria in excelsis, a
minha língua na tua língua”. Trata-se, na verdade, através da referência oblíqua a estes
dois nomes, de uma homenagem ao colectivo dos poetas da música brasileira. Porque
se, como nos diz Herberto Helder, “poesia, faz tempo que não conheço nenhuma”, é
nesses cantores que, para ele, a língua portuguesa é “mais sucessiva,/ mais falada em
música,/ com mais atenção inspirada, digo/ (…) com mais respiração”. Este louvor aos
cantores populares brasileiros é ainda o louvor da língua múltipla, agora
especificamente retomando Caetano: “a minha língua na tua língua em todos os
sentidos sagrados e profanos”. Ou seja, poesia em Português, pois, mas com “saliva,
muita, e temperatura animal”.
Porque, e regressando à caracterização da modernidade de A faca não corta o
fogo, uma terceira vertente central que organiza este discurso poético é exactamente
essa “temperatura animal”, isto é, o erotismo que o percorre, em todos os lugares, em
todas as formas e em todas as declinações. É um erotismo que vem expressa e
continuamente da exaltação do corpo, do sexo e do amor (cabelos, ancas, coxas, vulva,
“pénis intenso,/ ânus sombrio”), um fogo de que o canto se faz eco: “fiat cantus! e façase o canto esdrúxulo que regula a terra/ o canto comum-de-dois”. “Macho e fêmea”, ou
mesmo macho e fêmea indistintamente, o poema canta, pois, o bailado dos corpos, a
“carne soberba”, a “maravilha” da “casa ardendo cheia de uma estrêla incalculável”.
Mas erotismo que provém também, de forma mais implícita, da materialidade múltipla
deste canto, da atenção que dá às coisas mínimas do mundo, muitas vezes em simples
sequência enumerativa (“colher, roupa, caneta,/ roupa intensa” ou “frutas, púcaros,
ondas, folhas, dedos”), e que a exclamação “Glória aos objectos!” poderá talvez
condensar. Em aparições ou “alumiações” cíclicas (e que, nalguns casos, se repetem ao
longo do poema à maneira de refrão), lemos, pois, do “resplendor” das frutas (laranja,
pêra); da panela onde, com “legumes, sal, azeite, especiarias, ervas”, se faz “o milagre
quotidiano da transmutação dos corpos”, que é a “ignota, e a obra de comê-la,/ sopa/
superlativa”; das roupas, seu vestir e desvestir (camisas, vestidos, seda, linho); ou
mesmo das banheiras e dos duches (“champô e gel, e em cheio, baptismal, no cabelo/ o
chuveiro de Deus”).
No seu modo discursivo torrencial, excessivo (“um abuso de luz”), caótico
(“porque o mundo é um caos sumptuoso”, p.164), A faca não corta o fogo põe, pois, em
obra uma poesia onde, “ainda que doa o mundo,/ a alegria”, a maravilha, a paixão, a
exultação – o fogo, são os fundamentos do canto. E, neste sentido, poderemos dizer que
este “canto jubilatório” de Herberto Helder se afasta, de forma marcada, de alguns
outros caminhos da poesia portuguesa do século XX, os que à melancolia (e, mais além,
ao saudosismo) vão buscar a sua matriz. Mas isto também Herberto Helder o sabe. E
talvez exactamente por isso, numa sequência que poderíamos talvez aproximar do
registo satírico das cantigas de escárnio e maldizer medievais, inclui no seu poema uma
muito concreta invectiva endereçada a um “sr. dr.” (p.172), que toma como mote uma
autocitação de Photomaton & Vox (transcrita em epígrafe da sequência, mas sem
indicação da origem), onde se assiste a uma tomada de posição do “autor”, nos idos de
1971, contra uma poesia que consistiria em “escrever poemas cheios de honestidades
várias e pequenas digitações gramaticais, com piscadelas várias ao ‘real quotidiano’”,
a que o “autor” responde simplesmente “desculpe, sr. dr., mas:/ merda!”. Muito
visivelmente Herberto Helder estava já então e continua a estar agora num diálogo
concreto com alguns dos seus (e dos nossos) contemporâneos, eventualmente até num
diálogo directo, como as repetidas referências que são feitas ao “reino” talvez indiquem.
Mas não é isso o que mais interessa, creio. Ainda que verosimilmente usado em registo
de duplo sentido, este “reino” é sobretudo uma explícita referência às palavras de Cristo
“o meu reino não é deste mundo” e à parábola bíblica, citada mais adiante (p.177), “que
é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha”, aqui adaptada na sequência
“do que uma linha escrita,/ o reino por essa linha lírica em que aprendi a morrer”. O
“reino” onde agora, trinta anos passados, há “não um dr. mas mil drs. de um só reino” é,
pois, muito visivelmente, o mundo mundanal que é também o da literatura
contemporânea, dos críticos, das editoras e dos jornais, da escola e das universidades,
dos estudos, dos congressos e, muito resumidamente, o de uma certa e generalizada
futilidade. “Não sou desse reino”, diz-nos, pois, o poeta, ou, mais especificamente:
“vou-me embora/ quer dizer que falo para outras pessoas, falo em nome de outra
ferida, outra/ dor, outra interpretação do mundo/ outro amor do mundo,/ outro tremor
(…) outro mundo”. Biograficamente, sabemos ao que Herberto Helder alude aqui: à sua
continuada recusa de prémios, entrevistas e outros hábitos “naturais” do mundo literário
e cultural que é o nosso. Como diz esta sequência de A faca não corta o fogo, não tanto
à maneira de justificação, mas, muito claramente, de combate, o seu mundo não é este.
Na verdade, e ainda que por vezes polémica, parece-me esta uma escolha perfeitamente
legítima e coerente até com o obscuro e hermético canto que é o seu. Que o autor se
queira assim “obscuro” e que dele não tenhamos sequer uma fotografia actualizada não
me parece demasiado grave (até porque, como se vê, esta obscuridade biográfica não
impede que cada novo livro seu seja um acontecimento). Mas literariamente, e isso é
que me parece importante sublinhar, esta opção por um voluntário isolamento em
relação ao “reino dos mil drs.” assinala também um outro caminho (“outro louvor, outra
interpretação do mundo”), que muito evidentemente esta poesia, na sua singularidade,
eticamente propõe: o da dedicação e fidelidade exclusivas a uma língua própria e
comum, onde seja possível escrever “a linha que me custa o reino e não passa pela
agulha”. Uma linha na qual o poeta seja capaz de dizer a maravilha do mundo, mesmo
que morra (na matriz camoniana, que se retoma na p.177: “e tu, Canção, se alguém te
perguntasse como não morro,/ responde-lhe que porque/ morro”).
As últimas páginas de A faca não corta o fogo terminam com uma reflexão
sobre a morte. A penúltima sequência (a última, antes de um curto verso final, é uma
curta homenagem “na morte de Mário Cesariny”, a quem pedi emprestado o título
deste texto), essa penúltima sequência inicia-se com os seguintes versos: “li algures que
os gregos antigos não escreviam necrológios,/ quando alguém morria perguntavam
apenas:/ tinha paixão?” . E a pergunta é agora, quando “homens e mulheres perdem a
aura/ na usura,/ na política,/ no comércio,/ na indústria”, se será ainda possível morrerse “gregamente”. É uma pergunta genérica e a poesia que acabámos de ler n’ A faca não
corta o fogo serve exactamente para ela ser publicamente feita. Mas, no que diz respeito
ao seu autor, a resposta à pergunta grega não é difícil: Herberto Helder manifestamente
tem. Até porque, recusando “a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia”, ou “os
cegos e os temperados”, inovando e renovando, sua é a “paixão grega” pelo mundo,
pelas coisas pequenas e grandes do mundo, pela língua contemporânea em que são
ditas. E também pelas escolhas que, não sendo deste reino, o iluminam com a “luz
antiga e moderna” que é sempre a da poesia, no seu melhor.
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