EVANDRO JOSÉ MORELLO
O DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL EM SUA INTERFACE
COM O TRABALHO RURAL ASSALARIADO:
Limites e Desafios
Dissertação apresentada como requisito parcial
para conclusão do curso do Programa de
Mestrado em Direito e Políticas Públicas do
Centro Universitário de Brasília – UNICEUB
Orientador: Prof. Dr. Frederico Augusto Barbosa
da Silva
Brasília
Dezembro de 2008
DEDICATÓRIA
Para a minha esposa, Eliane, com quem tenho partilhado meus sonhos,
angústias e realizações. Agradeço a paciência, a compreensão e o amor.
Para as minhas filhas, Isabelle e Iasmin, que fortalecem a minha vida e
expressam a esperança e a alegria de viver. Sou imensamente grato
pelo carinho e pelos momentos em que me fazem retornar ao
magnífico mundo da infância.
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte de amor e de inspiração, que nos conduz ao caminho da
sabedoria e da retidão.
Aos meus pais, Valdir e Lúcia, por me ensinarem os valores da vida.
Aos meus irmãos, Dernival, Rosângela, Marta e Warley, pelo cultivo
da amizade.
À minha tia, Izaldina, pelo incentivo em estudar.
Aos meus amigos e colegas da CONTAG, pelo convívio de trabalho e
pelo apoio recebido. Muito obrigado a todos.
Ao professor Frederico Augusto Barbosa da Silva, pela paciência e
entusiasmo com que orientou esse trabalho.
RESUMO
Essa pesquisa tem como objetivo analisar o direito de proteção social dos
trabalhadores rurais assalariados a partir das transformações que vem ocorrendo nas relações
de trabalho e de produção no meio rural, onde predomina o trabalho precário e informal que
exclui esses trabalhadores do sistema de Previdência Social brasileiro. A pesquisa foi
desenvolvida por meio do método dedutivo-histórico e analítico, e tem na obra de Robert
Castel a sua principal fundamentação teórica ao abordar a problemática da questão social a
partir do trabalho assalariado. A dissertação está dividida em duas partes, sendo na primeira
analisados os elementos histórico-teóricos que fundamentam os modelos de proteção social
desenvolvidos a partir da intervenção do Estado e que influenciaram na formação e na
estrutura do sistema público de proteção social brasileiro. Na segunda parte, descrevem-se
como as relações de trabalho assalariadas foram se estruturando e se reproduzindo no campo
após o regime escravista, e como a proteção jurídica e social a este tipo de trabalho foi se
desenvolvendo. Em seguida, contextualiza-se a situação dos assalariados rurais na
Previdência Social a partir da Constituição Federal de 1988, tendo em conta a legislação que
rege a matéria em toda a sua complexidade. Nesse sentido, é feita uma abordagem sobre a
participação do assalariado rural no plano de custeio e no plano de benefícios da Previdência,
identificando-se várias questões que dificultam o acesso desse trabalhador à proteção
previdenciária devido ao alto índice de informalidade e à prática do trabalho precário,
caracterizado por relações de trabalho de curta duração. Fazendo-se uma análise sobre os
institutos que regulam os contratos de trabalho na área rural, averigua-se que são enormes os
desafios para garantir maior proteção previdenciária dos assalariados apenas por meio da
relação formal de emprego. Em conclusão, são apresentadas algumas proposições para
discussão, visando ampliar a cobertura previdenciária dos assalariados, tendo por base a
comprovação do trabalho, e não apenas do emprego, como elemento central. Nesse sentido,
afirma-se que uma política previdenciária mais inclusiva não pode estar dissociada do sistema
de Seguridade Social.
PALAVRAS-CHAVE: Proteção Social. Assalariado Rural. Relações de Trabalho. Emprego.
Previdência e Seguridade Social.
ABSTRACT
This research aims to analyze the right to social protection of rural salaried
workers from the transformations which are happening in the working and productive
relationships in rural areas, where predominate the precarious and informal work which
excludes those employees from the Brazilian Social Welfare. The research was conducted by
the deductive historical and analytical method, and was mainly theoretically based on the
Robert Castel works when addressing the problem of social issue from the employment. The
dissertation is divided into two parts, being analyzed in the first the historical and theoretical
factors which substantiate the social protection models developed from the state intervention
and that influenced on the formation and structure of the public system of the Brazilian social
protection. In the second part, it is described how the employment relations have been
structured and reproduced on the field after the end of slavery system, and how the legal and
social protection to this type of work was being developed. Then, it is contextualized the
situation of rural salaried workers in the Social Security from the Federal Constitution of
1988, taking into account the laws which govern the matter in all its complexity. Accordingly,
an approach on the participation of the rural salaried in terms of the Welfare cost and benefit
plans is made, identifying several issues that hinder the access by these workers to the welfare
protection due to the high level of informality and to the practice of precarious works,
characterized by short term working relations. By the analysis over the institutes which
regulate the employment contracts in the rural area, we can deduct that are huge the
challenges to ensure greater welfare protection of employees only through the formal
employment relationship. Concluding, are presented some proposals for discussion, seeking
out the expansion of the welfare coverage of employees, based on the evidence of work, not
just as employment, as a central element. In that sense, it is affirmed that an inclusive welfare
policy cannot be dissociated from the Social Security system.
KEY WORDS: Social Protection. Rural employee. Working relationships. Employment.
Welfare and Social Security.
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................................08
PARTE I FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E TEÓRICOS DO DIREITO À PROTEÇÃO
SOCIAL ................................................................................................................15
1 O desenvolvimento de mecanismos de proteção social ..................................................... 16
1.1 Considerações gerais ................................................................................................. 16
1.2 Os primeiros institutos de proteção social ................................................................ 17
1.3 O Estado e a proteção social ...................................................................................... 21
1.3.1 A assistência pública, a propriedade privada e a emergência de um novo modelo
de proteção................................................................................................................... 21
1.3.2 A técnica securitária como mecanismo de proteção social................................... 26
1.3.3 A seguridade social como novo paradigma de proteção social............................. 31
2 O desenvolvimento dos mecanismos de proteção social no Brasil .................................... 37
PARTE II O DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL CONFIGURADO NO TRABALHO
RURAL ASSALARIADO....................................................................................48
1 Referenciais históricos e teóricos sobre a conformação das relações de trabalho e dos
institutos de proteção social aplicados na área rural ........................................................ 49
1.1 Considerações gerais ................................................................................................. 49
1.2 Regimes de trabalho no meio rural no período pós-escravista .................................... 50
1.3 A estrutura das relações sociais de trabalho no meio rural no período pós 1930 ........ 54
1.4 Reestruturação produtiva e os impactos nas relações de trabalho ............................... 59
1.5 O trabalho rural assalariado em perspectiva............................................................... 63
2 Proteção social e jurídica ao trabalho rural ...................................................................... 68
2.1 Os trabalhadores rurais sob o estigma da exclusão...................................................... 68
2.2 Os primeiros institutos de garantia de direitos sociais aos trabalhadores rurais........... 72
3 Os trabalhadores rurais no contexto da Seguridade Social brasileira ................................. 78
3.1. Os novos parâmetros de proteção social .................................................................... 78
3.2. A proteção social sob dois vieses: natureza da atividade x natureza das relações de
trabalho............................................................................................................................ 81
3.3. Estrutura da previdência rural brasileira..................................................................... 84
3.3.1 Tipificação dos segurados rurais ......................................................................... 84
3.3.1.1 Os segurados especiais....................................................................................84
3.3.1.2 O contribuinte individual rural........................................................................88
3.3.1.3 O empregado rural...........................................................................................88
3.3.2 O financiamento da Previdência Social e as contribuições oriundas da área rural 89
3.3.3 As espécies de benefícios e os critérios de elegibilidade para acesso à proteção
previdenciária............................................................................................................... 94
4 Controvérsias que envolvem o assalariado na Previdência Social ..................................... 99
4.1 Considerações iniciais ............................................................................................... 99
4.2 O empregado e o dilema da sua caracterização como rurícola.................................. 101
4.2.1 Os parâmetros estabelecidos pelo Direito do Trabalho ...................................... 102
4.2.2 A posição da doutrina e da jurisprudência......................................................... 105
4.2.3 Critérios metodológicos para a identificação do empregado rural....................... 111
4.3 Elementos que caracterizam a prestação de trabalho com vínculo empregatício na área
rural ............................................................................................................................... 114
4.3.1 Trabalho prestado por pessoa física ................................................................... 115
4.3.2 Pessoalidade ..................................................................................................... 116
4.3.3 Onerosidade ...................................................................................................... 117
4.3.4 Continuidade ou não-eventualidade ................................................................... 117
4.3.5 Subordinação.................................................................................................... 118
4.4 O assalariado rural e a prestação de trabalho de curta duração: vínculo empregatício ou
trabalho eventual? .......................................................................................................... 121
5 Conflitos e dilemas das regras previdenciárias que demarcam limites da proteção social do
assalariado rural ........................................................................................................... 129
5.1 O dilema da proteção social do assalariado e do agricultor familiar ........................ 129
5.2 A regra transitória de acesso à aposentadoria por idade mediante comprovação da
atividade rural ................................................................................................................ 139
5.2.1 A prorrogação do prazo para de acesso à aposentadoria por idade mediante a
comprovação da atividade rural .................................................................................. 141
5.2.2 Os novos critérios de acesso à aposentadoria .................................................... 144
5.2.3 Perspectivas quanto ao futuro do assalariado rural em alcançar a aposentadoria
por idade .................................................................................................................... 147
6 Proteção previdenciária e formalização do contrato de trabalho na área rural................ 150
6.1 Considerações iniciais ............................................................................................. 150
6.2 Aspectos que influenciam a informalidade do mercado de trabalho rural .................. 153
6.3 Modalidades de contrato de trabalho aplicáveis na área rural ................................... 156
7 A proteção do assalariado rural na perspectiva do contrato de trabalho por pequeno prazo
instituído pela Lei n.º 11.718/2008 ............................................................................... 162
Conclusões..............................................................................................................................174
Referências..............................................................................................................................187
8
Introdução
As diferentes formas de proteção social assumidas pelas sociedades, em
face da miserabilidade e dos infortúnios da vida, podem ser analisadas a partir do contexto
social, econômico, político e cultural no qual historicamente tiveram origem e são resultantes
de consensos sóciopolíticos que mudam conforme a evolução da própria sociedade. Dessa
forma, os mecanismos de proteção social podem assumir diferentes modalidades como o
mutualismo, a assistência, o seguro social e, mais recentemente, a seguridade social, base
sobre a qual se fundou o Estado Social. O predomínio de uma ou outra destas modalidades em
cada sociedade configurou distintos padrões de intervenção estatal no trato das questões
sociais, que se diferenciam em função da maior ou menor justiça e eqüidade dos sistemas
prestadores de serviços sociais.
No Brasil, as desigualdades e injustiças sociais foram forjadas numa
cidadania restrita e com um Estado que historicamente não se responsabilizou com a questão
social. O desenvolvimento das políticas de proteção social enfrentou problemas específicos,
que foram desde às limitações de políticas específicas e emergenciais vinculados a práticas
clientelistas e populistas até se chegar a um sistema de Seguridade Social que congrega as
políticas de saúde, previdência e assistência social, e que mesmo articulado por princípios
constitucionais orientadores de uma política de proteção social universal, eqüitativa e
redistributiva, ainda não se efetivou por completo em nosso meio.
Por certo, vários são os fatores que influenciam no grau de efetividade das
políticas insertas no sistema de Seguridade Social brasileiro e que expõem, em certos casos, a
fragilidade do sistema. Um destes fatores é o trabalho formal - regulado legalmente - tomado
como referência dominante, inclusive para a garantia do direito à proteção previdenciária, já
que o mesmo se apresenta como um suporte fundamental de filiação e de inscrição do
9
indivíduo na estrutura do sistema de proteção vigente. Como é cediço, há uma forte
correlação entre o lugar ocupado na divisão social do trabalho e a participação no sistema de
proteção que cobre os indivíduos diante dos acasos da existência. Onde há uma inserção do
indivíduo no mercado de trabalho, por meio de uma relação de trabalho estável, verifica-se
que, de fato, há uma base sólida de integração e de segurança social. Já o contrário, a não
participação em qualquer área produtiva e a prática do trabalho precário tem efeitos
desestabilizadores e excludentes desastrosos para os que se encontram nessa situação,
compatibilizando os efeitos negativos para produzir a exclusão e a desfiliação do sistema de
proteção. Resulta assim, um processo de vulnerabilidade social circunscrito numa zona
intermediária instável que conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade dos mecanismos
de proteção social e de solidariedade.
No cenário brasileiro essa é uma questão crítica dado o contingente de
pessoas que se encontram socialmente desprotegidas por não
laborarem mediante uma
relação de trabalho formal. De uma população efetivamente ocupada1 na ordem de 89,3
milhões de pessoas, 34 milhões encontram-se no trabalho informal.
Na área rural essa realidade é extremamente marcante no segmento dos
assalariados rurais, que conta com aproximadamente 4,772 milhões2 de trabalhadores na
ativa. Destes, apenas cerca de 1,591 milhão trabalha mediante vínculo de emprego formal e
estável ao passo que os demais 3,181 milhões trabalham na informalidade ou conseguem
algum emprego temporário no decorrer de cada ano. Isso configura um panorama de
1
2
MISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. Boletim Estatístico da Previdência Social. Vol. 12, n.º 10,
Outubro 2007. Cumpre observar que ao nos referirmos ao contingente de pessoas socialmente desprotegidas,
seguimos a metodologia utilizada pelo Ministério da Previdência Social que considera pessoas socialmente
protegidas os contribuintes para o RGPS e RPPS e os segurados especiais da área rural que mesmo sem
contribuição direta para o sistema de proteção social têm direitos assegurados pela regra da comprovação da
atividade rural.
Conforme: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional por
amostra de domicílios 2006.
Disponível
em
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/
condiçãodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais 2006 >. Acesso em 22.05.08.
10
instabilidade social para o qual se requer medidas que possam, senão resolver, ao menos
amenizar a questão da desproteção.
É em face desse panorama que apresentamos como tema dessa dissertação
“O direito à proteção social em sua interface com o trabalho rural assalariado”. O propósito é
analisar os limites e desafios que se colocam para a efetivação do direito à proteção social
para o segmento dos assalariados rurais, considerando as especificidades que demarcam o
trabalho precário e informal no campo. Cabe aqui esclarecer que o nosso foco de análise está
centrado basicamente em uma política do nosso sistema de Seguridade Social: a Previdência
Social.
Nesse sentido, a estrutura dessa pesquisa está dividida em duas partes com
seus respectivos capítulos, sendo desenvolvida por meio do método dedutivo-histórico e
analítico. A primeira parte tem como foco de análise o desenvolvimento de mecanismos de
proteção social e o papel do Estado como propulsor desse direito já que, em pleno século
XXI, convivemos com um intenso debate em torno de modelos distintos de inclusão e de
proteção social. Assim, o alcance do nosso ponto de vista a respeito dos objetivos desse
trabalho nos remete a uma análise - feita no capítulo 1 - sobre os elementos históricos e
teóricos que fundamentam o desenvolvimento dos modelos de proteção social, em especial
daqueles que se configuraram sob a tutela do Estado e que influenciaram na formação e na
estrutura do sistema público de proteção social brasileiro – que é objeto de análise no capítulo
2. A nosso ver, essa análise é essencial até porque o debate sobre a atuação do Estado na
questão social não está superado nas sociedades hodiernas. Como deve o Estado atuar para
garantir proteção social aos seus cidadãos?
A segunda parte da pesquisa, dividida em sete capítulos, tem como questão
problematizadora em que perspectiva deve-se colocar a efetividade do direito de proteção
social para os assalariados rurais no contexto atual. Para uma melhor compreensão dos
11
limites e desafios postos nessa questão procuramos, nos dois capítulos iniciais, trazer à
reflexão as dimensões históricas da formação do mercado de trabalho rural brasileiro e dos
institutos jurídicos de proteção social que foram se concretizando no decorrer do tempo. O
objetivo foi o de projetar as mudanças ocorridas na perspectiva de se compreender a
complexidade das relações de trabalho que envolve os assalariados rurais, e como se processa
o direito a sua proteção social num cenário que sempre demarcou horizontes de um campo de
reivindicações.
As análises feitas demonstram que as relações de trabalho no assalariamento
rural foram se reproduzindo no Brasil de forma precária e informal envoltas no trabalho em
regime de produção para uma economia de subsistência, sendo o direito de proteção social
efetivado a partir da comprovação da atividade de natureza rural e não por meio de uma
contribuição direta para o sistema de proteção. Essa característica marcante, vigente desde os
primeiros institutos de proteção social implantados na área rural, vem sendo mantida por uma
regra transitória que começa agora a dar sinais de esgotamento. Essa, aliás, é uma questão
analisada a partir do capítulo terceiro, que contextualiza a política de proteção social dos
trabalhadores rurais a partir da Constituição Federal de 1988. Neste capítulo, são abordadas as
mudanças introduzidas pelo texto constitucional e a importância de se ter a política de
proteção previdenciária rural vinculada ao sistema de Seguridade Social. No entanto, enfatizase que os novos parâmetros de proteção ao enquadrar os trabalhadores rurais em categorias
distintas rompem, por conseqüência, com a forma de identificação do assalariado rural no
regime de proteção: antes pela natureza da atividade rural; agora pela natureza da relação de
trabalho, empregatícia ou autônoma.
Os impactos dessas mudanças projetam um cenário nebuloso quanto à
possibilidade do assalariado rural alcançar o direito à proteção pelos novos mecanismos
estabelecidos. Isso porque, o alto índice de informalidade também tem nexo com o ciclo das
12
culturas produzidas no campo que demanda um conjunto de atividades de natureza sazonal
reproduzindo, em larga escala, o trabalho assalariado temporário de curta duração. Assim,
surgem controvérsias quanto à natureza desse tipo de trabalho que à luz da legislação vigente
e da jurisprudência dos Tribunais é interpretado ora sob a natureza de vínculo empregatício,
ora sob a natureza de um trabalho eventual/autônomo, o que reflete a dificuldade de
formalização do contrato de trabalho e, por conseqüência, na própria tipificação do
assalariado perante o Regime Geral de Previdência Social. Essa questão foi abordada no
capítulo 4.
Outros dois dilemas trazidos pela legislação previdenciária são identificados
no capítulo 5 e reforçam o panorama desafiador quanto ao futuro do assalariado rural na
Previdência Social. Um, refere-se à permissão legal para o agricultor familiar contratar mãode-obra assalariada por alguns períodos no ano e manter-se no direito de ser protegido pela
regra que o reconhece como um segurado especial. Como se sabe, o segmento da agricultura
familiar contrata mão-de-obra por curtos períodos e o fato da legislação caracterizar o
agricultor como um empregador acabou criando obstáculos à efetivação do direito do
assalariado, que não tem a relação de trabalho formalizada. O outro são as mais recentes
mudanças feitas na legislação previdenciária que praticamente encerram, a partir de 2011, o
tratamento especial de garantia mínima do assalariado rural a uma aposentadoria por idade
pela via da comprovação da atividade rural, independente do trabalho ser prestado sob a
relação de vínculo empregatício ou como trabalho eventual.
Conjugando todas essas questões, analisa-se no capítulo 6 se os institutos de
regulação das relações de trabalho estão adequados para promover maior formalização dos
contratos de trabalho e, por conseqüência, maior inclusão previdenciária dos assalariados
rurais. Procurou-se considerar que as regras jurídicas precisam ter sua validade analisada não
apenas pelo ângulo formal, mas também a partir das realidades sociais, culturais, políticas e
13
econômicas que a cercam, o que permite tomá-las como instrumento potencial para maior ou
menor efetividade do direito de proteção social.
Seguindo essa linha de raciocínio, o sétimo e último capítulo discorre sobre
as possibilidades que se colocam para ampliar a cobertura previdenciária do assalariado rural
por meio do contrato de trabalho rural por pequeno prazo instituído pela Lei n.º 11.718/2008.
Trata-se de uma modalidade contratual com uma configuração bastante específica para ser
aplicada na área rural, mas de conteúdo conflituoso amplamente expressado nos debates que
antecederam a sua aprovação pelo Congresso Nacional. De todo modo, é um instrumento de
regulação importante, mas que está ainda a demonstrar a que veio.
Por fim, é de se enfatizar que essa pesquisa não tem por ambição apontar
uma solução miraculosa à situação-problema averiguada. Entretanto, o tratamento do tema
numa perspectiva histórica permite identificar algumas questões estruturais que dificultam ou
impedem a maior efetividade do direito do assalariado rural à proteção previdenciária se
mantida as condições e as regras atualmente vigentes. Por isso, tomamos a liberdade, em
nossas conclusões, de apresentar para o debate algumas proposições, ainda que incipientes, na
perspectiva de se promover políticas previdenciárias que sejam mais inclusivas, indicando que
o alcance desse objetivo perpassa pelo fortalecimento dos princípios e da estrutura do nosso
sistema de Seguridade Social.
Uma última questão a considerar, é que embora a pesquisa tenha sido focada
sobre um segmento social específico – o assalariado rural -, não se pode olvidar que a
desproteção social, na forma problematizada, atinge milhões de trabalhadores brasileiros em
situação muito semelhante ao panorama apresentado, se levado em conta a informalidade e a
precariedade das relações de trabalho. Nesse sentido, espera-se que essa pesquisa seja um
elemento indutor do debate sobre novos rumos que conduzam ao aprimoramento das políticas
14
públicas pertinentes à proteção social. Até porque, temos a convicção de que é basicamente
por meio do diálogo social que se alcançará o aperfeiçoamento de tais políticas.
15
PARTE I
FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E TEÓRICOS
DO DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL
16
1 O desenvolvimento de mecanismos de proteção social
1.1 Considerações gerais
A história do direito à proteção social pode ser escrita sob vários enfoques,
tomando-se por base a cultura, as leis, a linguagem ou contexto social, econômico e político
de cada época. Sabe-se, no entanto, que aquilo que hoje se faz para proporcionar segurança ao
homem, ressarcir os danos que o infortúnio lhe causa, torná-lo, afinal, capaz de desfrutar uma
existência digna, nada mais é que a concretização de velhos anseios aqui e ali inscritos,
primeiro pelo costume, depois pelo ordenamento jurídico, devido à emergência dos conflitos
sociais gerados nas economias capitalistas e pelas demandas por igualdade gestadas num
contexto de lutas pela democracia.
De certo modo, o temor da insegurança acompanha desde sempre o ser
humano que jamais deixou de mobilizar a sua inteligência a perquirir um meio de se pôr ao
abrigo dos fatos imprevistos, especialmente daqueles que provocam más conseqüências.
Naturalmente, à medida que a civilização avança mais complexas se tornam as atividades
humanas e, com isso, mais sensíveis se tornam os riscos imanentes dessa atividade e da
própria natureza. Por isso, desde a antiguidade até os nossos dias, tem sido recorrente a busca
de mecanismos de defesa e de reparações de natureza econômica desses riscos, que é o
fundamento da subsistência e segurança material de cada ser humano.
São, portanto, nas fórmulas de proteção sucessivamente adotadas no
decorrer da história, cujas raízes remontam épocas muito remotas, que encontramos os
fundamentos dos atuais institutos de proteção social que asseguram o amparo do homem
quando atingido pelo infortúnio, e que servem de inspiração à própria evolução do direito.
Bobbio já observara que “os direitos dos homens, por mais fundamentais que sejam, são
direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em
17
defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de
uma vez e nem de uma vez por todas.”3
Daí a importância de se tomar como referência a evolução histórica do
direito e dos mecanismos de proteção social para que se possa vislumbrar, numa sociedade
democrática, a crença nos institutos de proteção social alinhados aos princípios da
solidariedade e da universalidade como forma de enfrentar os infortúnios da vida, promover
maior coesão social e superar uma visão estritamente individualista do modo de viver em
sociedade.
1.2 Os primeiros institutos de proteção social
A vida em sociedade, cujo advento está na percepção dos indivíduos sobre
as benesses que teriam ao se agruparem para viver, traz ínsita a idéia de proteção social
amparada no postulado prévio sobre a necessidade individual de segurança. Essa noção fez
com que se projetasse nas sociedades modernas um arcabouço coletivo-estatal para assegurar
aos indivíduos condições mínimas de sobrevivência, cuja evolução gradativa permitiu que se
chegasse ao fornecimento de bens e serviços de forma a propiciar maior bem-estar social.
Na gênese da estrutura protetiva encontram-se mecanismos marginais e
fragmentários de auxílio à orfandade e à miséria, cujo sistema de regras vincula os membros
de um grupo dentro de um espaço territorial a partir de seu pertencimento familiar, da
vizinhança, do trabalho, mediante uma rede de interdependência que não demanda a mediação
de instituições específicas. É o que Robert Castel4 denomina de “sociedade sem social” regida
pelas regulações de uma “sociabilidade primária”5. O indivíduo está vinculado, desde o seu
3
4
5
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992,
p. 5.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 48.
Ao referir-se a uma “sociedade sem social”, Robert Castel observa que a expressão “social” não deve ser
entendida como a qualificação geral das relações humanas presentes em todas as formas de existência coletiva,
18
nascimento, a uma rede de obrigações estabelecida por regras ancestrais impostas de um
modo sintético e diretamente normativo, reproduzindo a ordem da tradição e do costume que
permitem a transmissão das aprendizagens e a reprodução da existência social. Assim, a
proteção ao órfão, ao inválido ou ao indigente ocorre por força de uma solidariedade natural,
que tem na família e na comunidade de grupos a sua base de sustentação. Essa estrutura
fechada de proteção constituiu, por exemplo, a organização social dominante na sociedade
feudal, cuja estabilidade era assegurada por dois vetores principais de interdependência: “as
relações horizontais presentes no seio da comunidade rural e as relações verticais da sujeição
senhorial”6. A unidade do sistema era composta por famílias da mesma linhagem unidas
diante das exigências militares e econômicas para a manutenção do poder.
Outro mecanismo de proteção social também conhecido desde a antiguidade
é o mutualismo, cuja principal característica é a ajuda recíproca entre as pessoas vinculadas a
um mesmo grupo ou instituição, sendo exemplos desse sistema as associações de ajuda mútua
presentes na antiga Grécia e na antiga Roma7; as corporações de ofícios e as guildas
germânicas e anglo-saxônicas8 que se organizaram na Idade Média atuando na defesa dos
interesses comuns de seus membros.
6
7
8
mas sim como uma configuração específica de práticas não encontradas em todas as coletividades humanas. Já
a expressão “sociabilidade primária”, explica o autor, opõe-se à sociabilidade secundária que é uma
sociabilidade construída a partir da participação em grupos supondo uma especialização das atividades e das
mediações institucionais.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 50.
Tem-se conhecimento de que uma das primeiras associações de ajuda mútua na antiga Grécia, conhecida como
“énaroi”, cobrava contribuições regulares de seus associados e concedia empréstimos sem juros aos mesmos
quando se vissem colhidos por qualquer adversidade. Na Roma antiga, existiam as associações conhecidas
como “collegia” ou “sodalitia”, que, mediante contribuições de seus associados, tinham por escopo assegurar
as despesas dos funerais dos sócios (ASSIS, Armando de Oliveira. Compêndio de Seguro Social. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas – serviços de publicações, 1963, p. 55).
As guildas germânicas e anglo-saxônicas agrupavam-se em três categorias: religiosas e sociais; de artesãos; e
de mercadores, que buscavam a defesa dos interesses comuns dessas organizações, sendo que algumas delas
incluíam em suas finalidades a assistência em caso de doença e a cobertura das despesas de funeral.
(CABANELLAS DE TORRES e ZAMORA y CASTILLO. Tratado de Política Laboral y Social. Tomo I, p.
235 – apud: ROCHA, Daniel Machado da. O Direito Fundamental à Previdência Social. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2004, p. 23).
19
No período em que surge o fenômeno dos Estados Nacionais laicos9 e
soberanos do mundo ocidental e a noção de indivíduo como sujeito dotado de direitos, a
proteção às necessidades sociais efetiva-se por intermédio das “irmandades de socorro”, que
conferia a seus membros direito subjetivo de obter um quadro mais amplo de auxílios que ia
além da doença e funeral, chegando aos casos de velhice e invalidez. Posteriormente,
surgiram os montepios subvencionados pelo Estado que asseguravam a proteção apenas a
determinados grupos de profissionais, como militares e funcionários das oficinas reais.10
Desse modo, a pertença dos indivíduos a essas organizações de profissionais (corporações de
ofício, guildas, irmandades) decorria da necessidade de garantir proteção e segurança em face
das contínuas guerras e dos riscos de epidemias e de fome a que estavam submetidos.
Não se pode falar, portanto, que nas sociedades pré-modernas há
reciprocidade de direitos e deveres de um ser humano em relação ao outro em sentido
universal. Isso porque, a relação pela qual os direitos e deveres são determinados tem como
ponto de partida a posição que o indivíduo ocupa dentro de uma estrutura social escalonada.
“Cada grupo tem seu próprio código de honra, gerado a partir das necessidades e aspirações
particulares, que determinam os deveres no interior do grupo”11. Não se compartilha entre os
membros dos vários grupos sociais os males e as misérias da espécie humana. As obrigações
mútuas e a consideração de um ser humano pelo outro como semelhante só ocorrem entre as
pessoas de um mesmo grupo ou estamento. Tocqueville expõe essa relação entre as pessoas e
entre as diferentes classes da seguinte forma:
Num povo aristocrático, cada casta tem suas opiniões, seus sentimentos,
seus direitos, seus costumes, sua existência à parte. Assim, os homens que a
9
Com o processo de laicização, que se iniciou a partir do enfraquecimento da estrutura feudal, a ordem social
desvincula-se do plano religioso e passa a ser entendida como ordem humana. O projeto político passa a ser
visto como fenômeno histórico não divino e os valores de deslocam do imobilismo inerente à terra para o
movimento inerente ao capital.
10
PASTOR, José Manoel Almansa. Derecho de la Seguridad Social. 7 ed. Madrid: Tecnos, 1991, p. 86-87.
11
BARZOTTO, Luis Fernando. Os direitos humanos como direitos subjetivos: da dogmática jurídica à ética. In:
Os desafios dos direitos sociais. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul. n. 56 – set./dez. 2005.
Cláudio Ari Mello (coordenador). Porto Alegre: Livraria do advogado, 2005, p. 59.
20
compõem não se parecem com todos os outros; não têm a mesma maneira de
pensar nem de sentir, e mal crêem fazer parte da mesma humanidade.12
.....................................................................
(...) as diferentes classes são como vastos recintos, de onde não se pode sair
e onde não se poderia entrar. As classes não se comunicam entre si; mas no
interior de cada uma delas os homens convivem forçosamente todos os dias.
Ainda que naturalmente não se agradem, a convivência geral de uma mesma
condição os aproxima.13
Vigora assim, em tais sociedades hierárquicas, a idéia de que os seres
humanos tende a ser, por natureza, desiguais, não havendo o reconhecimento de uma proteção
comum a ser partilhada entre os membros dos vários grupos sociais. O princípio do socorro,
do auxílio mútuo é regido por uma “ética particularista da fraternidade”14 fundada em direitos
igualitários apenas no interior desses grupos. Não se pode esquecer, no entanto, que a
estrutura do sistema econômico desses grupos sociais, conforme assinala Karl Polanyi15,
sustentava-se nos princípios de reciprocidade e de redistribuição fundados nos costumes, na
lei e na religião. Havia uma convergência de preceitos que induziam o indivíduo a cumprir
regras de comportamento.
Mesmo aquelas organizações que asseguravam algum tipo de proteção
vinculada ao caráter de mutualidade, como ainda não tinham incorporado os pressupostos
técnicos e jurídicos do seguro, não ofereciam nenhuma garantia de que poderiam atender seus
filiados em um momento de grave necessidade social.
12
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. Livro II. Trad. Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 204.
13
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. Livro II. Trad. Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 268.
14
A expressão “ética particularista da fraternidade” é usada por Luis Fernando Barzotto tomando-se por base o
pensamento de Max Weber sobre a ética da fraternidade da comunidade de vizinhança e as experiências
sociais e crenças religiosas presentes no pensamento de São Tomás de Aquino. Tal expressão advém da
concepção de ética presente nas sociedades pré-modernas e que fundamenta a relação de direitos e deveres
entre as pessoas pertencentes a um mesmo grupo social. Para o autor, a ética particularista da fraternidade
inviabiliza a idéia de direitos universais como os direitos humanos vez que estes se fundam numa ética
universalista da fraternidade. Ver: BARZOTTO, Luis Fernando. Os direitos humanos como direitos
subjetivos: da dogmática jurídica à ética. In: Os desafios dos direitos sociais. Revista do Ministério Público
do Rio Grande do Sul. n. 56 – set./dez. 2005. Cláudio Ari Mello (coordenador). Porto Alegre: Livraria do
advogado, 2005, p. 58 a 66.
15
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Trad. Fanny Wrobel. 2. Edição. Rio
de Janeiro: Campus, 2000, p. 75.
21
1.3 O Estado e a proteção social
1.3.1 A assistência pública, a propriedade privada e a emergência de um novo
modelo de proteção
Na marcha evolutiva dos mecanismos de proteção social dos indivíduos, a
assistência social aparece como medida de ordem pública em algumas legislações nacionais a
partir do século XVI, sendo uma prestação de socorro aos mais necessitados em face da
ameaça da fome e da miséria que assolava grandes grupos de excluídos.
Sob a atuação do Estado Absolutista, países como Alemanha (no ano de
1530) e França (no ano de 1556) instituíram leis regulando a assistência aos desvalidos, sendo
que essas políticas posteriormente se estenderam para outros países europeus, como a
Inglaterra (no ano de 1601), onde a intervenção estatal na assistência aos pobres desenvolvese de forma mais ampla com a famosa Poor Law.16 Segundo Eric J. Hobsbawm, esse modo de
atuação do Estado nas sociedades pré-industriais era reflexo do risco que os governantes e
autoridades políticas corriam em perder sua legitimidade caso não prestassem socorro aos
desvalidos, posto que houvesse em tais sociedades o reconhecimento em favor das pessoas
de “uma prerrogativa moral legítima a certos elementos básicos essenciais da vida”.17
Impregnada do sentimento de caridade inspirado pela doutrina cristã, essa
forma de amparo era um meio de proteger os desafortunados da sociedade do avanço
avassalador do mercado. Porém, bem lembra Feijó Coimbra18, não se afirmara ainda na
consciência dos cidadãos a compreensão de que seria imprescindível a adoção de um sistema
respaldado em normas jurídicas, consagrando a assistência como direito subjetivo. Em tais
16
Conforme Venturi (1994, p. 47), a Poor Law determinava a nomeação, em cada paróquia, de dois ou mais
“overseers of the poor” encarregados de recolher fundos de todos os que estivessem em condições de
contribuir, destinados: a) para viabilizar a obtenção de emprego para as crianças pobres por meio da
aprendizagem que poderia ser obrigatória até os 24 anos para os varões e até os 21 anos para as mulheres; b) o
ensinamento do trabalho para os pobres que não tinham nenhuma especialização; c) ao atendimento dos
inválidos em geral. Ver: VENTURI, Augusto. Los fundamentos científicos de la seguridad social.
Colección Seguridad Social, n.° 12. Madrid: Ministerio del Trabajo y Seguridad Social, 1994. p. 44-47.
17
HOBSBAWM, Eric J. Mundos do trabalho. Tradução de Waldea Barcellos e Sandra Bedran. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2000, p. 428.
18
COIMBRA, J. R. Feijó. Direito previdenciário brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1993,
p. 5.
22
circunstâncias, a ação assistencial pública era desprovida de qualquer compromisso, oscilando
em intensidade e amplitude de acordo com a política de cada governante.
Embora muito distante da concepção atual, a assistência pública aos mais
necessitados é erigida como uma obrigação da sociedade e do Estado a partir da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamada pela Revolução Francesa, em 1789, que
inscreve uma mudança na concepção da proteção social do indivíduo. Tanto é que a
Constituição Francesa de 1793, inspirada pelos princípios contidos na Declaração, prescreve
em seu artigo 21: “Les secours publiques sont une dette sacrée. La société doit la subsistence
aux citoyens malheureux, soit en leur procurant du travail, soit en assurant les moyens
d’existence à ceux qui sont hors d’état de travailler”.19
Feijó Coimbra, manifestando-se sobre a evolução do direito de proteção
social, vê que é entre os princípios da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que
se encontra a pedra fundamental da moderna Seguridade Social.
O objetivo social a enfrentar era, no caso, o mesmo de anteriormente – a
segurança do homem ante os riscos da vida. A diferença, entretanto, residia
em que pela Declaração, o auxílio prometido passava a ser uma dívida da
sociedade, do que decorria, limpidamente, ser proclamado ‘direito do
cidadão’. Reconhecido que fosse tal direito pela legislação, instaurada estaria
a era da seguridade social, pois teria no rol dos direitos do homem,
juridicamente protegidos, o de ser amparado pelo Estado em todas as
situações de necessidade, derivadas de um risco social.20
Entretanto, como adverte Coimbra, aos legisladores e aos juristas do século
XVIII, faltavam condições de empenhar-se a fundo na obra de tornar a assistência pública
uma obrigação do Estado. Tudo o que fosse feito no anseio de amparar o economicamente
débil, com base em uma ação estatal, era visto pelos economistas liberais como aumento da
área de atuação do Estado e criação de despesas públicas, o que demandaria novos encargos
19
"Os socorros públicos são uma dívida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos cidadãos desafortunados,
seja em lhes procurando trabalho, seja em assegurando os meios de existir àqueles que não estão em condição
de trabalhar".
20
COIMBRA, J. R. Feijó. Direito previdenciário brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1993,
p. 6.
23
para cobrir os gastos com as medidas de proteção. “Uma ação dessa índole revelar-se-ia
adversa ao pensamento dominante, de que o Estado deveria eximir-se de intervir na vida
econômica, pois ‘en el mundo econômico, como en el natural, todo marcha
espontaneamente”.21
Com efeito, sob ótica do liberalismo econômico – incompatível com a visão
estreita de um poder soberano ilimitado e arbitrário que atrelava em demasia a expansão
econômica – a assistência pública à pobreza foi tratada como uma questão marginal e um
direito limitado. Acreditava-se que o ócio das pessoas advinha de um vício estimulado pelo
Estado absolutista e que, portanto, teria uma tendência em recuar com o progresso da
civilização baseada no desenvolvimento da divisão do trabalho e na extensão do direito de
propriedade.
Assim, a pedra angular estava em assegurar ao mesmo tempo a proteção
civil dos indivíduos, fundada no Estado de direito, e a proteção social fundada na propriedade
privada.22 John Locke23, um ideólogo do Estado liberal, ao tratar da organização e dos fins da
sociedade política e do governo como forma de superar o estado de natureza, compreende que
a principal finalidade de os homens unirem-se em Estados e submeterem-se a um governo
seria para a preservação de sua propriedade24, algo inalcançável no estado de natureza25.
Segundo Robert Castel, a propriedade sob a ótica lockeana torna-se
21
COIMBRA, J. R. Feijó. Direito previdenciário brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1993,
p. 6.
22
O Estado liberal adotou como premissa ser um Estado de segurança de modo a proteger as pessoas e seus
bens. Com isso, os indivíduos proprietários poderiam proteger-se usando os seus próprios recursos, ou
poderiam fazê-lo pelo aparato legal do próprio Estado protetor da propriedade.
23
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Livro II. In: MORRIS, Clarence (Org.). Os Grandes Filósofos
do Direito. Trad. Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 149.
24
É precisamente na teoria de Locke que o liberalismo, enquanto ideologia de uma sociedade de mercado,
encontra os pressupostos para aplacar a privatização generalizada do território, de modo a dividi-lo em
propriedades privadas. Segundo Rosanvallon, isso se tornara necessário para a constituição de uma sociedade
de mercado, passível de ser realizada somente por um duplo movimento: “a desterritorialização da economia”
mediante a abertura do espaço econômico, e “o fechamento do território jurídico” mediante a privatização da
propriedade (ROSANVALLON, Pierre. O liberalismo econômico: história da idéia de mercado. Trad.
Antônio Penalves Rocha. Bauru-SP: EDUSC, 2002, p. 127). Esse movimento do “fechamento” do território,
iniciado na Inglaterra no século XVIII, representou um remembramento dos openfields, que era um regime de
24
O alicerce de recursos a partir do qual um indivíduo pode existir por si mesmo
e não depender de um patrão ou da caridade de alguém. É a propriedade que
garante a segurança em face das circunstâncias imprevisíveis da existência, da
doença, do acidente e da miséria de quem não pode mais trabalhar. E a partir
do momento em que o indivíduo é chamado a eleger seus representantes no
plano político, é também a propriedade que garante a autonomia do cidadão,
livre, graças a ela, para das suas opiniões e fazer escolhas, não podendo ser
comprado para garantir seu voto, nem intimidado para constituir-se uma
clientela.26
Desse modo, a propriedade passa a ser vista “como instituição social por
excelência, no sentido de que ela cumpre a função essencial de salvaguardar a independência
dos indivíduos e de assegurá-los contra os riscos da vida”.27 Neste contexto, a proteção dos
indivíduos era considerada como algo inseparável da proteção de seus bens. A defesa da
ordem social é fundada na propriedade privada que é tomada como o alicerce para que o
indivíduo possa encontrar as condições de sua independência e se livrar das redes tradicionais
de proteção.
Em tal contexto, a assistência pública era provida para compensar
parcialmente as situações de extrema miseralibilidade. Bobbio (et al)1, fazendo uma análise
ocupação do solo agrícola derivado do regime feudal, explorado por pequenos agricultores autônomos
(yeomen), cujo retalhamento e imbricação das propriedades os obrigavam a uma exploração segundo regras
comunais, ou seja, a realizar uma cultura colaborativa ou solidária da terra, sob o direito eminente do senhor
rural. O objetivo era dar maior significação à propriedade do solo e, conseqüentemente, aumentar a
produtividade agrícola, sobretudo para abastecer o mercado industrial. Em decorrência dessa reestruturação
fundiária e da nova exploração capitalista da terra, logo se percebeu os efeitos econômicos e sociais dessa
transformação. Conforme descreve Fábio Konder Comparato, o que se viu foi a ascensão de uma nova classe
de burgueses e de nobres proprietários de terra; a substituição de uma agricultura de subsistência por uma
agricultura extensiva; e a condenação à miséria a totalidade dos trabalhadores diaristas rurais que, embora não
proprietários, serviam-se das terras comuns para retirar os bens de consumo. (COMPARATO, Fábio Konder.
Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 222).
25
Desde uma perspectiva liberal, a formação do Estado moderno, nas precisas palavras de Rosanvallon, é
“indissociável da constituição de uma sociedade civil indiferenciada, fragmentada, atomizada”, características
estas indispensáveis para a constituição de uma sociedade de mercado. Por isso, o Estado “não se limita a
produzir um território político e jurídico homogêneo, rompendo com a geografia heterogênea do mundo
feudal. Procura territorializar ao seu modo a própria sociedade”. Daí o papel fundamental do Estado
moderno em desestruturar as formas de socialização intermediárias instituídas no regime feudal, constituídas
por comunidades naturais e grupos sociais (clãs familiares, comunidades aldeãs, confrarias, ofícios, etc.), que
eram suficientemente importantes na dimensão protetiva de seus membros. O Estado transforma-se, assim,
numa superestrutura diferenciada de sociabilidade impondo a todos os indivíduos a mesma fraqueza diante de
si. (ROSANVALLON, Pierre. O liberalismo econômico: história da idéia de mercado. Trad. Antônio
Penalves Rocha. Bauru-SP: EDUSC, 2002, p. 137-138).
26
CASTEL, Robert. A insegurança social: o que é ser protegido?. Tradução de Lúcia M. Endlich Orth. Rio de
Janeiro: Vozes, 2005, p. 18.
27
CASTEL, Robert. A insegurança social: o que é ser protegido?. Tradução de Lúcia M. Endlich Orth. Rio de
Janeiro: Vozes, 2005, p. 22.
25
comparativa sobre o modo como a questão social foi abordada pelos Estados liberais logo
após o início da Revolução Industrial, observa:
(...) foram precisamente os Estados patrimoniais mais distantes das formas
de legitimação legal-racional que foram mais além nas formas de defesa do
bem-estar dos súditos, enquanto que, nas sociedades em que se ia
consolidando a Revolução Industrial, as normas de defesa das populações
mais fracas surgiam como barreiras medievais opostas à livre iniciativa. (...)
a assistência constitui-se um desvio imoral do princípio ‘a cada um segundo
os seus merecimentos.28
Contudo, o postulado liberal da não intervenção estatal na ordem econômica
e social aos poucos foi perdendo consistência, na medida em que as garantias dos direitos
civis e políticos e a livre concorrência se mostraram insuficientes para harmonizar os conflitos
de interesses entre aqueles que concentravam a propriedade e a renda e a classe trabalhadora
que se encontrava em situação de miséria e marginalizada.
Com as transformações do modelo de produção econômica, decorrente da
Revolução Industrial, a classe trabalhadora tornara-se vulnerável aos modos de produção
capitalista. O trabalho retribuído por uma remuneração próxima de uma renda mínima, sem
regulação alguma, era motivo de submissão dos trabalhadores às condições análogas a dos
escravos, não existindo qualquer garantia de proteção ao indivíduo, seja na relação
empregado-empregador, seja na questão relativa aos riscos da atividade laborativa para o caso
de eventual perda ou redução da capacidade de trabalho29. Isso estimulou convulsões sociais30
que eclodiram a partir do início do século XIX e abalaram a estabilidade do tecido social de
vários países, compelindo o Estado a abandonar a postura de neutralidade e de mero
espectador da atividade econômica e social de forma a restabelecer um equilíbrio mínimo nas
28
BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. Carmen C.
Varriale ... (et al). 3. Edição. Brasília: UNB, 1991, p. 416.
29
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZARI, João Batista. Manual de direito previdenciário. 7. ed. São
Paulo: LTr, 2006, p. 34.
30
Diversas foram as convulsões sociais ocorridas no século XIX e que levaram os governantes dos Estados a um
novo despertar para a regulação da vida econômica e da proteção social. Cita-se o movimento cartista, na
Inglaterra; as revoluções de 1848 e 1871, na França; a revolução de 1848, na Alemanha. (Conforme:
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZARI, João Batista. Manual de direito previdenciário. 7. ed. São
Paulo: LTr, 2006, p. 38).
26
relações sociais. Como bem observa Paulo Bonavides, o liberalismo, “na estreiteza de sua
formulação habitual, não pôde resolver o problema essencial de ordem econômica das vastas
camadas proletárias da sociedade, e por isso entrou irremediavelmente em crise”31.
Emerge assim, uma nova postura do Estado buscando compatibilizar o
sistema capitalista como forma de produção e concretização de um mínimo de bem-estar
social geral, abrindo novos rumos para a construção de uma concepção do direito de proteção
social.
Costuma-se referir à publicação da Encíclica Papal “Rerum Novarum” (do
pontificado de Leão XIII), de 15 de maio de 1991, como um marco importante na formação
dessa nova concepção, que consagra ser dever do Estado intervir na proteção dos direitos de
todos os cidadãos, sobretudo dos mais fracos32. Outras doutrinas políticas e sociais também
influenciaram nessa formação, como o solidarismo e o socialismo de Estado, que por modos
diferentes destacaram a insuficiência das liberdades individuais para a promoção real do
desenvolvimento e da personalidade humana, mediante um nível de vida no qual ficasse
assegurado um mínimo existencial33.
1.3.2 A técnica securitária como mecanismo de proteção social
Muito utilizada no período mercantil para garantir bens e mercadorias,
especialmente no transporte marítimo, a técnica do seguro começou a despertar o interesse
para ser aplicada às pessoas a partir da Revolução Industrial. Como bem observa Pierre
Rosanvallon34, a técnica do seguro surge em meio a outros dois modelos preexistentes que
fundamentam o vínculo social: o contrato, na qual o vínculo social decorre de uma instituição
31
BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 184.
MORAES FILHO, Evaristo de; MORAES, Antônio Carlos de. Introdução ao Direito do Trabalho. 6. ed.
São Paulo: LTr, 1993, p. 62.
33
ROCHA, Daniel Machado da. O Direito Fundamental à Previdência Social. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004, p. 30.
34
ROSANVALLON, Pierre. A nova questão social: Repensando o Estado Providência. Brasília: Instituto
Teotônio Vilela. 1998, p. 32.
32
27
voluntária e artificial e resulta de uma confrontação política; e o mercado, que se ergue como
concorrente do contrato e funciona como uma “mão–invisível” para associar economicamente
os indivíduos; já o seguro, surge como uma espécie de “mão-invisível” agindo em torno da
solidariedade.
O seguro veio atualizar um modelo de solidariedade, mesmo que as pessoas
que o contratam não estejam conscientes disso. Dissociando a obrigação legal da
responsabilidade individual, o seguro social pode levar em conta a socialização dos interesses,
consequência da solidariedade que une as diferentes partes do corpo social. Isso ocorre a tal
ponto que um trabalhador não paga um seguro para ser solidário com os demais cotistas, mas
o é. Tanto que seu interesse depende do interesse dos outros membros que compõem o quadro
de assegurados e vice-versa.
Com efeito, após a Revolução Francesa, um dos principais problemas no
campo social estava em adequar o princípio da responsabilidade individual (cada indivíduo é
senhor de sua vida e deve responsabilizar-se por ela) ao princípio da solidariedade (a
sociedade tem uma dívida para com os seus membros). Tratava-se de articular um direito com
uma conduta, o que não ocorria de forma espontânea. No início, pensou-se que pelo princípio
da responsabilidade individual a limitação do direito à assistência pública pudesse ser
claramente identificada na vida social. No entanto, com a evolução da industrialização, foram
ficando evidentes os limites de um sistema de regulação social pela via do princípio da
responsabilidade individual, de forma que em determinado momento tornou-se difícil
discernir, no campo da responsabilidade, o que devia ser imputado ao indivíduo e o que
dependia de outros fatores35. Ademais, o pauperismo tornou-se um fato social maciço a ponto
35
Com a complexidade crescente dos processos produtivos a partir do século XIX, a questão dos acidentes de
trabalho tornou-se um fato social que demandava outros princípios, que não fosse o da responsabilidade direta
do indivíduo para determinar quem deveria reparar o dano.
28
de haver dificuldade em distinguir entre um indivíduo vítima de um infortúnio e o ocioso
imprudente.
Essas questões foram determinantes para que, em meados do século XIX, se
introduzisse no campo da proteção social um modelo de sociedade securitária calcada na
noção objetiva do risco e não mais na noção subjetiva da conduta do indivíduo, procurando,
assim, superar os paradoxos decorrentes de uma visão de responsabilidade puramente
individualista. Segundo Rosanvallon36, isso permitiu que as políticas sociais fossem
apreendidas sem qualquer necessidade de recorrer a uma problemática jurídica e moral, o que
levou os liberais a perceberem que as tarefas de redução das incertezas, vistas outrora da
perspectiva do Estado protetor, poderiam ser operadas de modo quase técnico por
mecanismos securitários, e que a instauração de um sistema de seguro lhes permitiria conjurar
o espectro do socialismo. Desde então, na medida em que foi sendo universalizado por força
de uma obrigação37, o seguro social tornou-se uma espécie de “transformador moral e social”
funcionando sob o controle do Estado, produzindo a segurança e a solidariedade que a
sociedade necessita. A vida social tornou-se, pelo menos como tendência, assimilável a certos
números de riscos mais ou menos prováveis e calculáveis, dada à previsibilidade de que
ocorram em algum momento.
Bobbio (et. al.) nos lembra que as leis aprovadas por Otto Von Bismarck na
Alemanha, entre 1883 e 188938, representam “a primeira intervenção orgânica do Estado em
defesa do proletariado industrial mediante o sistema de seguro obrigatório contra os
36
ROSANVALLON, Pierre. A nova questão social: Repensando o Estado Providência. Brasília: Instituto
Teotônio Vilela. 1998, p. 36.
37
A obrigatoriedade que vincula os indivíduos ao sistema securitário está na exigência de contrapartida
contributiva incidente sobre determinado valor da remuneração auferida em face do trabalho exercido, que é
utilizada no financiamento do sistema e, por conseqüência, para assegurar o direito a determinados benefícios
em face dos riscos existentes.
38
Bismarck instituiu inicialmente o seguro-doença (em 1883), posteriormente ampliado com a proteção por
acidentes de trabalho (em 1884) e seguros de velhice e invalidez (em 1889).
29
infortúnios do trabalho, as doenças de invalidez e as dificuldades da velhice”39. No entanto,
longe de tornar-se uma ruptura em relação à situação anterior, o seguro obrigatório nasce
como um novo paradigma para gerenciar os antagonismos sociais da sociedade industrial,
cuja implantação e extensão vai depender de condições sócio-históricas complexas nas
diversas sociedades capitalistas. Feijó Coimbra explica que esse mecanismo de medida
protetiva foi aceito por outras nações, só que com diferentes feições: “a autoritária e
obrigatória, na Alemanha, na Áustria e em outros países; a de inteira liberdade, sem
intervenção estatal, na Inglaterra e nos Estados Unidos; e a corrente intermediária da lei
francesa”40.
No sentido que lhe empresta Robert Castel, o seguro social marca uma
profunda mudança na relação entre “a propriedade e o trabalho”, ou seja, sua inserção
promove a primeira grande mudança em direção à “sociedade salarial” moderna em que a
identidade social passa a se basear mais no trabalho assalariado do que na propriedade41. Com
efeito, até então, o modo de resolução da questão social, como exposto, era visto apenas pelo
acesso à propriedade privada considerada sinônimo de segurança e como instituição social
capaz de livrar os cidadãos das privações da vida. Ser proprietário significa ter segurança. A
instituição do seguro veio exatamente se justapor à propriedade privada constituindo o que
Castel denomina de “propriedade social”42. Foi o instrumento adequado para promover a
liberdade e a igualdade preconizada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789, sem atingir as propriedades territoriais e industriais, dispensando assim, num primeiro
momento, a partilha das fortunas e a edição de leis de reforma agrária. E ainda, permitiu aos
39
BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Tradução de
Carmen C. Varriale... (et al). 3. Edição. Brasília: UNB, 1991, p. 416.
40
COIMBRA, J. R. Feijó. Direito previdenciário brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1993,
p. 13.
41
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 386.
42
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 387.
30
cidadãos que dispunham apenas de sua força de trabalho para sobreviver que continuassem
fora da propriedade privada sem ficar privado do direito de proteção social.
O advento do seguro sanciona, assim, o reconhecimento do caráter
irreversível da estratificação social nas sociedades modernas e o fato de que
possa ser fundada na divisão do trabalho e não mais apenas sobre a
propriedade. Inversamente, os adversários do seguro obrigatório defendem a
hegemonia do modelo do proprietário independente, da propriedade como
fundamento exclusivo da dignidade social e da seguridade.43
A técnica do seguro tornou-se, portanto, um meio de repatriar boa parte dos
cidadãos assalariados deixados à margem da sociedade pela industrialização, dado o risco que
seria para a sociedade industrial consentir que o progresso fosse construído sobre estruturas
marcadas pela vulnerabilidade social. Tornou-se também um modo de inscrever o beneficiário
numa ordem de direito diferente daquele promovido pelas proteções próximas da assistência e
das tutelas de proteção decorrentes do pertencimento a determinado quadro territorial, a
fidelidade a um patrão ou a relações do tipo clientelista. Como bem observa Castel, o seguro
obrigatório rompe com a vinculação secular da proteção personalizada, “instaurando uma
associação inédita da seguridade e da mobilidade”44 de modo a permitir que a
desterritorialização do trabalhador não significasse a sua desfiliação do sistema de proteção.
Com isso, abriu-se o precedente necessário à maior racionalização do mercado de trabalho,
exigências tanto da flexibilidade para o desenvolvimento industrial quanto do interesse do
próprio trabalhador que passou a circular no espaço territorial sem perder o vínculo com o
sistema protetivo, agora vinculado a uma ordem jurídica de caráter universal45.
Só após a Primeira Guerra Mundial o seguro social ganha contornos de uma
política de proteção social que se universaliza46. Seu conceito foi inserido na Constituição
43
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 403.
44
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 408.
45
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 408.
46
Na sua concepção originária, o seguro social trouxe como princípios basilares a obrigatoriedade da
vinculação, a contribuição de empregadores e trabalhadores e o papel regulador do Estado.
31
Mexicana de 1917; na Constituição de Weimar de 1919; no Tratado de Versalhes em 1919; e,
nas Convenções da OIT- Organização Internacional do Trabalho que, desde a sua criação em
1919, passou a estabelecer o seguro social como instrumento fundamental de proteção dos
trabalhadores e de suas famílias contra certos riscos sociais. Conforme aponta Marshall47, os
mecanismos securitários que foram iniciados timidamente sob a ótica privada e destinados a
reduzidas categorias profissionais espalharam-se no final do século XIX e início do século
XX para diversos países.
Assim, em meio às crises cíclicas das economias capitalistas, o seguro social
obrigatório desenvolve-se e torna-se um fenômeno da evolução social e demarca a moderna
forma de solidariedade e de inclusão social, estabelecendo um novo relacionamento entre os
homens para superar os paradoxos decorrentes de uma visão puramente individualista da vida
social. Sua consolidação enquanto paradigma de proteção social ocorre com o forte
crescimento econômico e a geração de empregos que marcaram os países desenvolvidos nos
trinta anos que sucederam a II Guerra Mundial, contribuindo para estruturar os sistemas de
seguridade social marcados pela idéia original de conceber de modo coerente um amplo leque
de problemas sociais reunidos na categoria do risco. Ou seja, a incerteza passou a estar
associada aos riscos da existência e a solidariedade passou a ser dada pelo sentido de eqüidade
dos indivíduos perante esses riscos, que assim se dispõem a fazer contribuições para a
formação de um fundo que os ampare nos momentos difíceis.
1.3.3 A seguridade social como novo paradigma de proteção social
Desde a Revolução Industrial e com o avanço do capitalismo os problemas
laborais e econômicos ganharam um significado político central intimamente associado ao
protagonismo do movimento operário, e a denominada “questão social”, no sentido que lhe
47
MARSHAL, Thomas Humprey. Política social. Tradução Meton P. Gadelha. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1967, p. 81.
32
empresta Castel48, tem sido um tema crucial no debate público nos mais diversos países.
Tanto é que a construção de sistemas públicos de proteção social, para fazer frente aos riscos
e vulnerabilidades sociais ante o fenômeno da Revolução Industrial e suas conseqüências,
historicamente procurou responder à emergência dos conflitos sociais gerados nas economias
capitalistas e nas lutas por maior democracia.
Um novo pensar sobre as políticas de proteção social surge com a grande
crise do capitalismo, ocorrida em 1929, ocasionada por uma superprodução do setor industrial
e uma retração no consumo, cujo ápice dessa crise ocorre com a queda da Bolsa de Valores de
Nova York. As tensões sociais criadas pela inflação e pelo desemprego provocaram uma
corrosão nas condições de vida dos trabalhadores. A crise possibilitou o surgimento de sérios
questionamentos teóricos aos postulados da economia liberal clássica fundamentada numa
economia de mercado. A principal crítica incidiu no fato de que o modelo econômico
capitalista vigente não demonstrava uma tendência universal para se estabilizar sob o pleno
emprego49, o que levou a esmaecer a percepção estatal minimalista e, em contrapartida, a
florescer um conceito positivo e substantivo de liberdade a exigir um Estado mais atuante,
desempenhando um papel estratégico no jogo econômico e social, quer pela normatização
quer pela participação positiva. Na exposição de Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan:
Pode-se, preliminarmente, referir que o modelo liberal se consolidou e se
expandiu no séc. XIX, embora os infortúnios que atingiam os segmentos
populares crescessem em conseqüência do próprio desenvolvimento
econômico do liberalismo. No campo das liberdades, já nas suas décadas
finais, um novo componente emerge, a justiça social, e reivindicações
igualitárias transformam as suas faces fazendo emergir o modelo do Estado
do bem-estar ou Welfare State.50
48
A “questão social” vista por Robert Castel, constitui-se numa “aporia fundamental sobre a qual uma sociedade
experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura”. Consiste ainda no modo pelo qual
uma sociedade é constantemente testada na sua capacidade de se organizar e de “existir enquanto um conjunto
ligado por relações de interdependência.”. (CASTEL. Robert. As metamorfoses da questão social: uma
crônica do salário. Trad. de Iraci D. Poleti. Petrópolis, RJ”: Vozes, 1998, p. 30).
49
MATIAS PEREIRA, José. Finanças Públicas: a política orçamentária no Brasil. São Paulo: Atlas, 1999, p.
87-88.
50
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000, p. 56.
33
Caberia, então, ao Estado o papel de atuar sobre a economia para reconduzila ao pleno emprego por meio de aumento dos gastos públicos, investindo nos mais diversos
setores econômicos visando alavancar o processo produtivo ou por outros mecanismos que
viessem a estimular o investimento privado51.
Numa clara demonstração de que o Estado democrático tem o dever de
assegurar a cada cidadão um nível de vida suficientemente digno e proporcionar o bem-estar
social da população numa ordem de alta prioridade, o Governo norte-americano, em 1935, ao
criar a reconhecida "Social Security Act", assume a “responsabilidade pela segurança social
geral”52 com medidas de proteção ao desemprego, políticas assistenciais e um seguro de
velhice e morte para os trabalhadores assalariados. Essa forma de proteção social deu origem
à idéia de Seguridade Social enquanto sistema de proteção social que engloba os seguros
sociais e a assistência social, com estruturas administrativas especializadas na gestão dos
serviços sociais e no auxílio econômico aos necessitados, com o objetivo de defender e
impulsionar o desenvolvimento de toda a população americana, e não apenas dos
trabalhadores53.
A despeito de já existir um sistema de seguridade social, somente houve
irradiação dessas idéias a partir do plano elaborado por Beveridge54, na Inglaterra, no início
da década de 1940, que idealizou um sistema universal de proteção social como forma de
51
Com a crise de 1929, ganha destaque a teoria de John Maynard Keynes que modificou o pensamento
econômico dominante da época ao enxergar o Estado e suas funções como elemento ativo fundamental para o
equilíbrio do sistema econômico capitalista.
52
BARROS Jr., Cássio de Mesquita. Previdência Social Urbana e Rural. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 5
53
ROCHA, Daniel Machado da. O Direito Fundamental à Previdência Social. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004, p. 37.
54
William Beveridge apresentou ao governo britânico dois relatórios (Seguro Social e Serviços Conexos - no
ano 1942 - e Pleno Emprego em uma Sociedade Livre - no ano de 1944) cujas propostas foram no sentido de
se universalizar a proteção social para toda a população. Tais propostas foram implementadas na Inglaterra no
ano de 1946.
34
combater cinco grandes questões de caráter social: a necessidade, a enfermidade, a ignorância,
a miséria e a ociosidade55. Na exposição de Martins,
O Sistema Beveridge tinha por objetivos: (a) unificar os seguros sociais
existentes; (b) estabelecer o princípio da universalidade, para todos os
cidadãos e não apenas aos trabalhadores; (c) igualdade de proteção; (d)
tríplice forma de custeio, porém como predominância do custeio estatal. O
Plano Beveridge era universal e uniforme.56
Destarte, a emergência da Seguridade Social, ancorada na doutrina do
Estado de bem-estar social, traz consigo a superação da ótica securitária e a incorporação de
um conceito ampliado de proteção social, provocando mudanças significativas no âmbito dos
seguros sociais até então predominantes. Nas observações de Vianna, “o impacto real da
ruptura efetuado pelo plano de Beveridge foi o de demarcar um novo ethos para a política
social”57.
Com efeito, as crises econômicas e as Guerras vivenciadas na primeira
metade do Século XX impulsionaram as democracias liberais a repensarem as políticas
sociais, e ostentaram a força impulsora das transformações que fizeram emergir um modelo
de Estado cujas preocupações fossem voltadas à garantia do bem-estar individual e coletivo
da sociedade. Para Vianna, os Estados de bem-estar se estabeleceram devido a uma
“engenharia político-institucional que possibilitou a concretização do clima de solidariedade,
induziu o sentimento de mudança, deu forma ao novo pacto social e revigorou a esfera
pública”.58 Na prática, houve uma redefinição do papel do Estado, e novas bases econômicas,
políticas e ideológicas foram criadas para o provimento público do bem-estar.
Assim, a construção de sistemas estatais de proteção social mais amplos,
que caracterizam o Estado de bem-estar social, reporta-se inicialmente a uma estratégia de
55
ROCHA, Daniel Machado da. O Direito Fundamental à Previdência Social. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004, p. 37.
56
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 31.
57
VIANNA. Maria Lúcia Teixeira Werneck. A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil:
Estratégias de bem-estar e políticas públicas. Rio de Janeiro: Revan: UCAM, IUPERJ, 1998, p. 17.
58
VIANNA. Maria Lúcia Teixeira Werneck. A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil:
Estratégias de bem-estar e políticas públicas. Rio de Janeiro: Revan: UCAM, IUPERJ, 1998, p. 18.
35
enfrentar a temática da desigualdade e de dar resposta à questão social que surge com a
expansão da pobreza e da vulnerabilidade dos indivíduos em face do processo de produção e
de acumulação de riquezas, central no debate político das sociedades modernas. São sistemas
construídos em torno do modelo fordista-keynesiano e das relações de trabalho assalariadas,
assegurando o acesso a subvenções extratrabalho (em caso de doenças, acidentes, invalidez,
idade avançada, etc.) e que se expandem, em especial nos países desenvolvidos, ao garantir
proteção a outras situações de vulnerabilidade da vida social59 fortalecendo, assim, o conceito
de cidadania social. A propósito, esse é um dos preceitos da Declaração Universal dos
Direitos do Homem60, proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948,
erigindo o direito à Seguridade Social61 ao patamar de direito de todos os povos.
Com isso, ao assumir a responsabilidade pela promoção da sociedade e
garantir a proteção social o Estado estabelece uma correspondência entre objetivos
econômicos, objetivos políticos e objetivos sociais, e reconhece, na esfera política, a
ineficácia de outras formas de regulação no trato da questão social - como as que
propugnavam soluções via mercado ou via moralização do povo. Segundo Castel, nesse seu
59
CARDOSO JR., José Celso; JACCOUD, Luciana. Políticas sociais no Brasil: organização, abrangência e
tensões da ação estatal. In: JACOUD, Luciana (organizadora). Questão social e políticas sociais no Brasil
contemporâneo. Brasília:IPEA, 2005, p. 186.
60
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art. 25 prescreve que "todo o homem tem direito a
um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos os serviços sociais indispensáveis, o direito à seguridade social no caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meios de subsistência em
circunstâncias fora de seu controle."
61
Cumpre assinalar, que o sistema de proteção social Alemão (instituído por Bismarck em 1883) e o sistema
Inglês (elaborado por Beveridge em 1942) tornaram-se modelos para diversos países em todo o mundo. Essas
duas concepções, no entanto, se distinguem pelo caráter, pela forma de contribuição e pelo financiamento dos
sistemas de seguridade social. O modelo Bismarckiano caracteriza-se pela contribuição individual como
critério para o aferimento de benefícios. Os que não podem contribuir com o sistema ficam excluídos do
direito a determinados benefícios, como por exemplo, a aposentadoria. Aos que não recebem nenhum tipo de
benefício, seja por não terem tido condições de contribuir ou por não haver outras formas de assistência, resta
o apoio da família e/ou de outras instituições sociais como provedoras da proteção principalmente aos idosos.
Já o modelo Beveridgiano caracteriza-se pelo seu caráter universal não exigindo contribuição individual
anterior para a obtenção de um benefício básico, aferindo o direito ao benefício pela característica definidora
da cidadania, ou seja, o simples fato da pessoa ter nascido ou possuir a cidadania de um determinado país.
Dessa forma, o financiamento não se dá via contribuições individuais, mas por tributos gerais, o que o torna
um modelo de proteção social mais amplo e justo por incorporar mecanismos redistributivos. Não obstante
essa distinção entre esses dois modelos, a grande maioria dos países com sistemas de proteção social mesclam
as características desses dois modelos em seus sistemas, não adotando, portanto, um modelo puro. Esse é o
caso, por exemplo, do Brasil.
36
novo papel o Estado abre espaços de mediações que dá um novo sentido ao “social” sem a
necessidade de “dissolver os conflitos de interesses pelo gerenciamento moral nem subverter
a sociedade pela violência revolucionária, mas negociar compromissos entre posições
diferentes, superar o moralismo dos filantropos e evitar o socialismo dos distributivistas”62.
Desse modo, o sistema de proteção social sob a tutela do Estado representa,
na visão de Paulo Bonavides, “uma transformação superestrutural por que passou o antigo
Estado liberal”63, conservando, no entanto, sua adesão à estrutura econômica da ordem
capitalista64. Na sugestiva expressão usada por Eric Hobsbawm, esse novo modelo representa
uma “espécie de casamento entre liberalismo econômico e democracia social”65 e reflete a
construção de um novo paradigma para a organização da proteção social, sendo decisiva sua
influência no enfretamento das diversas condições de vulnerabilidade social a que estava
submetida parcela significativa da população.
Em linhas gerais, a maior intervenção do Estado na garantia da proteção
social nos países desenvolvidos ocorre num contexto de afirmação das identidades e
solidariedades nacionais e de fortalecimento dos Estados nacionais e soberanos e representa,
como bem lembra Esping-Andersen, “um esforço de reconstrução econômica, moral e
política”, que permite superar a visão ortodoxa da pura lógica do mercado, para projetar maior
extensão e segurança do emprego com ganhos nos direitos de cidadania sustentados pelas
idéias de “justiça social, solidariedade e universalismo”66.
62
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 345.
63
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 180.
64
Conforme preconiza Bonavides, na medida em que o Estado, em sua essência e substantividade, constitui-se
enquanto poder que se manifesta e se distribui de várias formas no âmbito da estrutura do sistema capitalista,
todas premissas do Estado social acabam por servir aos mais diversos regimes políticos (democracia, fascismo,
nacional-socialismo) cujos programas não impliquem em mudanças fundamentais de certos postulados
econômicos e sociais. (BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 5. ed. Belo Horizonte: Del
Rey, 1993, p. 181.
65
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. tradução Marcos Santarrita. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 265.
66
ESPING-ANDERSEN, Gosta. O futuro do Welfare State na nova ordem mundial. Tradução: Simone
Rossin Pugin. Lua Nova Revista de Cultura e Política. São Paulo, n. 35 (Desigualdades), 1995, p. 73.
37
2 O desenvolvimento dos mecanismos de proteção social no Brasil
Diferente do que ocorreu nos países desenvolvidos, que desenvolveram seus
sistemas de proteção social para enfrentar os problemas sociais decorrentes do processo de
industrialização e de urbanização, no Brasil, a problemática da questão social advém de uma
economia arcaica baseada no latifúndio e no trabalho escravo. Por isso, a intervenção estatal
na organização de um modelo que pudesse garantir um mínimo de proteção social resultará
complexa e só aparecerá de forma um pouco mais estruturada e consistente no início do
século XX, praticamente 100 anos depois de o país ter alcançado a sua independência.
Num escorço histórico bem abreviado, tem-se o registro de que, no passado,
um dos primeiros mecanismos de proteção ocorrera por meio da beneficência, inspirada na
caridade, a exemplo do que fora praticado pela Santa Casa da Misericórdia fundada pelo
Padre José de Anchieta, no século XVI. Em seguida, já no século XVII, aparecem as
mutualidades vinculadas às Irmandades de Ordens Terceiras.
Já a assistência pública aparece pela primeira vez, em nosso ordenamento
jurídico, na Constituição imperial de 1824 (inciso XXXI), e mais tarde na Lei Orgânica dos
Municípios (em 1888)67. Tratava-se, no entanto, de um dever genérico do Estado, de escassa
efetividade, que nascia com a construção de um Estado nacional ideológico e
organizacionalmente influenciado pelo liberalismo da época.
Baseadas em atributos ocupacionais outras medidas de proteção viriam a
surgir a partir do fim do Império em favor apenas de determinados empregados públicos, a
exemplo da Caixa de Socorros para os empregados das estradas de ferro do Estado (Lei n.º
3.397, de 24/11/1888); o Fundo de Pensões do pessoal das oficinas da Imprensa Nacional
67
COIMBRA, J. R. Feijó. Direito previdenciário brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1993,
p. 36-37.
38
(Decreto n.º 10.269, de 20/07/1889); e o Montepio obrigatório dos empregados no Ministério
da Fazenda (Decreto n.º 942-A, de 31/10/1890).
Na primeira Constituição Republicana, de 1891, estabeleceu-se a previsão
de aposentadoria para quem se invalidasse a serviço da nação (art. 75). Entretanto, tal
aposentadoria não exigia qualquer contribuição do beneficiário, sendo a mesma concedida de
forma graciosa pelo Estado.
Seguindo a experiência internacional, em 1923 implanta-se no Brasil a
técnica do seguro social como mecanismo de proteção para os trabalhadores da iniciativa
privada, tendo por referência o modelo bismarckiano do tipo alemão. A doutrina majoritária
considera como marco inicial da Previdência Social a publicação do Decreto-Lei n.º 4.682, de
24 de janeiro de 1923, mais conhecido como Lei Eloy Chaves, que cria a Caixa de
Aposentadoria e Pensão dos Ferroviários mediante contribuições dos trabalhadores, das
empresas e do Estado (este por meio de recursos adicionais de tributação, ou seja, recursos
extraídos da própria sociedade), assegurando benefícios de aposentadoria por velhice,
invalidez e pensão aos dependentes, além da assistência médica. Wanderley Guilherme dos
Santos descreve o modelo instituído da seguinte forma:
A rigor, tratava-se, ainda, de um contrato, mediante o qual a empresa e seus
empregados comprometiam-se a sustentar o empregado atual, no futuro, em
troca de parcela da renda deste, no presente. Não se tratava de um direito de
cidadania, inerente a todos os membros de uma comunidade nacional,
quando não mais em condições de participar do processo de acumulação,
mas de um compromisso a rigor privado entre os membros de uma empresa
e seus proprietários. Ademais, a previdência de que se cuidava cobria apenas
os empregados de uma só e mesma empresa, ou seja, o capítulo moderno da
legislação social brasileira abre-se caracterizado, basicamente, por
estabelecer uma dimensão extra nos contratos de trabalho, um novo tipo de
contrato social, em que as partes contratantes abdicam o escopo do contrato
aos participantes da comunidade mais elementar da sociedade industrial
moderna, isto é, a empresa68.
68
SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro:
Campus, 1979, p. 24.
39
Assim, dá-se início a um modelo de proteção securitária organizado por
categoria sócio-ocupacional de uma mesma empresa, sendo que foi rápida a disseminação do
formato previdenciário estabelecido. Com efeito, em 1932 funcionavam 140 Caixas de
Aposentadorias e Pensões similares à primeira que fora criada com os mesmos fins e o mesmo
esquema de financiamento. Santos observa que nesse período a preocupação do Estado era
“reordenar as relações no processo de acumulação”, enquanto que a questão social era
resolvida, privadamente, pelos empregadores e empregados mediante os acordos de seguro:
“ao Estado incumbia zelar por maior ou melhor justiça no processo de acumulação, enquanto
que às associações privadas competia assegurar os mecanismos compensatórios das
desigualdades criadas por esse mesmo processo”69.
Aos poucos foi se percebendo os inconvenientes do regime de filiação por
empresa. Com a ploriferação das pequenas Caixas de Aposentarias e Pensões – CAPs, poucas
delas mostravam-se viáveis do ponto de vista de seu funcionamento. Ao mesmo tempo,
milhares de trabalhadores permaneciam excluídos da proteção previdenciária. Dá-se, então,
início a uma reestruturação do modelo de proteção vigente.
Dessa maneira, uma inflexão quanto à postura do Estado viria a ocorrer a
partir de 1933, quando foram criados os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs)
englobando toda uma categoria profissional em âmbito nacional70, ficando sob a
responsabilidade do Estado a coordenação da gestão de tais instituições. Na visão de Santos,
69
SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro:
Campus, 1979, p. 31.
70
A primeira instituição de base nacional criada foi o IAPM - Instituto de Aposentadoria e Pensões dos
Marítimos (Decreto 22.872, de 29.06.1933); Posteriormente, foram criados o IAPC – Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Comerciários e o IAPB – Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários,
em 1936; o IPASE – Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado, e o IAPETC - Instituto
de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas, estes em 1938.
40
isso fez com que ficasse sobe a jurisdição do Estado duas ordens de problemas: “o da
acumulação e o da equidade”71.
A Constituição de 1934 veio inaugurar esse novo papel do Estado ao
introduzir no ordenamento constitucional um capítulo sobre a ordem econômica e social, cuja
organização deveria assegurar a todos uma existência digna (art. 115), reconhecendo a
existência dos direitos sociais que competia à União preservar ao mesmo tempo em que
delegava aos poderes públicos a competência para intervir e regular os contratos privados que
se processavam na esfera da produção. Previu-se também a intervenção legislativa para a
fixação de melhores condições de trabalho, tendo em vista a proteção social do trabalhador e
os interesses econômicos do país (art. 121), e ainda, inseriu o sistema tríplice de participação
no custeio da previdência social mediante contribuição igual da União, do empregador e do
empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de
trabalho ou de morte (art. 121, § 1º, alínea “h”).
Contudo, é de se observar que os Institutos de Aposentadorias e Pensões,
embora congregando dentro do regime de proteção toda uma categoria profissional em âmbito
nacional, continuaram reproduzindo os mesmos vícios de exclusão das Caixas de
Aposentadorias e Pensões, já que mantinham um sistema de filiação compulsória sob o
regime de capitalização72, provendo benefícios apenas para os componentes de determinados
segmentos do mercado de trabalho formal urbano. Vianna, ao analisar esse arranjo
institucional dentro do contexto político e econômico da época, observa que os institutos
de um ponto de vista global, representaram a agregação de direitos sociais ao
conjunto de leis trabalhistas implementado por Vargas, como parte de seu
projeto de reorganização do processo acumulativo, para encaminhar
preventivamente o conflito entre capital e trabalho. Em estreita ligação com
a estrutura sindical corporativa montada no mesmo período, a Previdência
71
SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro:
Campus, 1979, p. 31.
72
Num regime financeiro de capitalização as contribuições feitas pelo trabalhador ao longo do tempo vão sendo
capitalizadas e constituem o seu fundo de pensão que vai lhes garantir um benefício no futuro.
41
tornou-se um instrumento de incorporação controlada, definindo que direitos
integravam o pacote de cidadania e quem a ele tinha acesso.73
Com isso, reconhecia-se o direito à proteção apenas aos membros da
comunidade nacional localizados em ocupações regulamentadas pelos preceitos legais, o que
transformava em pré-cidadãos aqueles cujo trabalho não era reconhecido pela lei, como era o
caso dos trabalhadores rurais, autônomos, domésticas, etc. Tal situação retrata bem o que
Santos denominou como “cidadania regulada”74,
que
apenas
reforçava a estrutura de
desigualdades sociais do país.
Durante o período do Estado Novo praticamente não houve avanços na
estrutura da política de proteção social. Em 1945, com a edição do Decreto-Lei n.º 7.526, de
07 de maio, tentou-se uniformizar as normas a respeito dos benefícios e serviços devidos por
cada instituto de classe por meio da criação do Instituto dos Serviços Sociais do Brasil
(ISSB). Entretanto, não se obteve êxito nesse intento, pois com a destituição do Governo
Vargas, em outubro de 1945, o Decreto-Lei não foi regulamentado75.
Nos anos seguintes praticamente nada de significativo ocorre até o golpe
militar de 1964. Apenas uma mudança a ser registrada, foi a promulgação da Lei Orgânica da
Previdência Social (LOPS) - Lei n.º 3.807, de 26 de setembro de 1960 - que ampliou e
uniformizou os benefícios e serviços concedidos a todos os contribuintes dos diversos
Institutos de Aposentadoria e Pensões – IAPs - sem, contudo, mexer na estrutura
administrativa dessas instituições76.
73
A despeito de se manter preservada a segmentada
VIANNA. Maria Lúcia Teixeira Werneck. A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil:
Estratégias de bem-estar e políticas públicas. Rio de Janeiro: Revan: UCAM, IUPERJ, 1998, p. 140.
74
O termo “cidadania regulada” é descrito por Wanderley Guilherme dos Santos como: “o conceito de cidadania
cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação
ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. Em outras
palavras, são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma
das ocupações reconhecidas e definidas em lei.” (SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e justiça: a
política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979, p. 75).
75
ROCHA, Daniel Machado da. O Direito Fundamental à Previdência Social. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004, p. 62.
76
SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro:
Campus, 1979, p. 33.
42
estrutura administrativa do sistema Vianna observa que, com a ampliação dos benefícios e
com o crescimento da população assalariada filiada aos IAPs, houve um abandono do regime
financeiro de capitalização para um regime financeiro de repartição simples77, conforme já
vinha sendo aplicado nos países europeus a partir do Plano Beveridge. Compartilha dessa
mesma idéia Ignácio Godinho Delgado, para quem a LOPS representou
a culminação de um processo de mudança da Previdência Social Brasileira,
que, testada, segundo os postulados da capitalização, com um perfil
marcadamente protecionista, transforma-se ao longo do regime populista,
num sistema regido pelos princípios da repartição simples, com uma
estrutura pródiga de benefícios.78
Já sob o regime político autoritário do governo militar, cria-se, por meio do
Decreto n.º 72, de 21 de novembro de 1966, o Instituto Nacional de Previdência Social
(INPS), unificando todos os institutos existentes, exceto o IPASE - Instituto de Previdência a
Assistência dos Servidores dos Estados. Promovia-se, assim, a unificação políticoadministrativa de todas as agências estatais incumbidas de prover serviços de proteção social,
permitindo a filiação à Previdência de toda a mão-de-obra urbana com carteira assinada,
independente de sua categoria profissional.
Houve também, no contexto do regime militar pós-64, um progressivo
ingresso, ao universo da proteção, daqueles trabalhadores que se encontravam excluídos. Em
1971, pela Lei Complementar n.º 11, cria-se o Prorural/Funrural, que estende aos
trabalhadores do campo o início de uma legislação previdenciária efetiva e o direito a alguns
benefícios previdenciários (como melhor veremos adiante); em 1972, pela Lei n.º 5.859,
estende-se a proteção previdenciária às empregadas domésticas; e, pela Lei 5.890, de 1973,
essa mesma proteção chega aos trabalhadores autônomos. Assim, a cobertura social
77
No regime financeiro de repartição simples os trabalhadores ativos passam a financiar, com suas contribuições
presentes, os benefícios dos inativos e demais serviços. Diferente, portanto, do regime de capitalização em que
as contribuições feitas pelo trabalhador vão constituindo um fundo próprio para garantir um benefício no
futuro.
78
DELGADO, Ignácio Godinho. Previdência social e mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: LTr, 2001,
p. 150.
43
praticamente abrangia a quase todos os trabalhadores, exceto os que se encontravam no
mercado informal de trabalho, isto é, não regidos pela CLT.
A rigor, as medidas de unificação e ampliação do sistema de previdência,
segundo Fernandes79, ocorrem para responder à necessidade de legitimação política dos
governos militares, mas também para atender aos mecanismos de reprodução do trabalho
assalariado e às formas de produção de mais-valia, decorrente do modelo de desenvolvimento
adotado, espelhado no fordismo80.
Para Sônia M. Fleury Teixeira, a intervenção do regime burocráticoautoritário promoveu uma inflexão nos mecanismos de proteção social que seguiu a quatro
ordens de questões: a centralização e concentração do poder nas mãos da tecnocracia,
retirando os trabalhadores do jogo político e da administração das políticas sociais; o aumento
da cobertura mediante a incorporação precária de determinados grupos de trabalhadores; a
criação de fundos e contribuições sociais, como o FGTS, PIS-PASEP, Finsocial, e outros; e a
privatização dos serviços sociais81.
No limiar da década de 1980, com o esgotamento do crescimento
econômico, as questões sociais ressurgem acelerando o processo de exclusão dos
trabalhadores do regime de proteção. As mudanças na área das políticas sociais vieram no
sentido da privatização da assistência médica e do aumento dos fundos privados de
previdência - franqueando ao capital privado o mercado dos seguros - e de um forte processo
79
FERNANDES, Ana Elizabete Simões da Mota. Cultura da crise e seguridade social: um estudo sobre as
tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo: Cortez, 1995, p.43.
80
Segundo Maria E. S. da Mota Fernandes, o modo de produção fordista, após a II Guerra, assimilava um
conjunto de mudanças técnicas necessárias ao restabelecimento do processo de acumulação e ao mesmo tempo
construía uma nova sociabilidade do trabalho assalariado, provocando mudanças nos padrões comportamentais
dos trabalhadores. Por isso, para a autora, o fordismo expressou um projeto muito mais amplo do que criar
modos de organização do trabalho, viabilizadores da reestruturação produtiva. “No bojo de suas práticas, ele
procurou ‘criar uma nova forma de sociedade e um Novo Homem, com as qualidades morais e intelectuais
exigidas por essa nova sociedade’”. (FERNANDES, Ana Elizabete Simões da Mota. Cultura da crise e
seguridade social: um estudo sobre as tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80
e 90. São Paulo: Cortez, 1995, p.41).
81
TEIXEIRA, Sônia M. Fleury,. A seguridade social inconclusa. IN: A era FHC e o Governo Lula: Transição?
Denise Rocha e Maristela Bernardo (org.). Brasília: Inesc, 2004, p. 111.
44
de deteriorização dos serviços sociais e rebaixamento dos benefícios previdenciários. Tratavase, assim, de imprimir um modelo de proteção associando mercantilização e assistência, ou
seja, de privatização da saúde e da previdência, e de difusão da necessidade de ampliação dos
programas de assistência social voltados para a população mais pobre, o que se mostrava,
portanto, coerente com a concepção de Estado mínimo e com a necessidade de reduzir os
impactos sociais dos ajustes econômicos defendidos pelos neoliberais. Para Vianna, isso
marcou um processo de americanização perversa82 do sistema de proteção social brasileiro.
Contudo, é de se reconhecer que a sociedade brasileira também
experimentou, no início dos anos 80, um novo modo de organização por meio da ação sindical
e partidária, e que ao lado de outros movimentos populares de caráter contestatório e
reivindicatório clamavam por mais democracia e por mudanças na ordem econômica social do
país. Isso culminou com uma nova ordem constitucional, em 1988, que representou uma
profunda transformação no padrão de proteção social brasileiro em busca da universalização
da cidadania.
A Constituição de 1988 avançou em relação às formulações legais
anteriores, contemplando um capítulo específico para os direitos sociais dentro do Título
concernente aos Direitos e Garantias Fundamentais, e inovou ao emancipar a Ordem Social da
Ordem Econômica, convertendo aquela em um Título próprio (Título VIII – art. 193), que
passou a congregar, dentre outras políticas, a Seguridade Social concebida como gênero das
82
Vianna demonstra que a americanização da proteção social no Brasil, iniciada no governo militar, teve várias
facetas perversas, pois as medidas adotadas aqui, além de serem inadequadas à realidade nacional, se
desviavam por completo da matriz que lhe servia como fonte inspiradora. Citando o exemplo da saúde, Vianna
aponta a privatização dos serviços da assistência médica que foram implantados sem uma regulação adequada
para o seu funcionamento e com ausência de mecanismos de fiscalização; mostra que, enquanto nos EUA, a
saúde pública era destinada a atender 20% de americanos considerados pobres e 80% ficava aos cuidados do
mercado, no Brasil essa proporção era inversa, ou seja, 20% constituíam demanda do mercado e 80%
dependiam do serviço público. (VIANNA. Maria Lúcia Teixeira Werneck. A americanização (perversa) da
seguridade social no Brasil: Estratégias de bem-estar e políticas públicas. Rio de Janeiro: Revan: UCAM,
IUPERJ, 1998, p. 152).
45
técnicas de proteção, do qual são espécies as políticas de Saúde, Previdência e Assistência
(art. 194)83.
Para Vianna, o texto constitucional de 1988 estabeleceu um sistema de
Seguridade Social bastante avançado que correspondeu, à época, às expectativas criadas em
torno da política social, identificada como um campo singular sobre o qual poderia ser
realizada a intervenção estatal para melhor distribuição de renda84. Já Teixeira, observa que a
nova ordem constitucional significou uma profunda transformação no padrão de proteção
social brasileiro por “romper com as noções de cobertura restrita a setores inseridos no
mercado formal de trabalho e afrouxar os vínculos entre contribuições e benefícios, gerando
mecanismos mais solidários e redistributivos”85.
Além dessas inovações, há que se realçar que a Seguridade Social foi
organizada em torno dos princípios da universalidade da cobertura e do atendimento;
uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços prestados às populações urbanas e
rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade
do valor dos benefícios e serviços; eqüidade na forma de participação no custeio; diversidade
da base de financiamento; e gestão quadripartite, democrática e descentralizada, com
participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do governo em órgãos
colegiados (art. 194 da Constituição Federal/88). Desse modo, a Constituição introduz, tanto
do ponto de vista conceitual quanto do arranjo institucional, inovações na experiência
brasileira de bem-estar, redefinindo benefícios e formas de organização do sistema de
proteção social na perspectiva da cidadania. Na doutrina de Wagner Balera, a Seguridade
83
BRASIL. Constituição da República Federal do Brasil: 1988. 23. ed. Brasília: Câmara dos Deputados,
Coordenações de Publicações, 2004.
84
Embora reconheça os avanços trazidos pelo texto constitucional de 1988, Vianna adverte que o processo de
americanização do sistema público de proteção social no Brasil não foi barrado durante a década de 1990.
(VIANNA. Maria Lúcia Teixeira Werneck. A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil:
Estratégias de bem-estar e políticas públicas. Rio de Janeiro: Revan: UCAM, IUPERJ, 1998,. p. 151).
85
TEIXEIRA, Sônia M. Fleury,. A seguridade social inconclusa. IN: A era FHC e o Governo Lula: Transição?
Denise Rocha e Maristela Bernardo (org.). Brasília: Inesc, 2004, p. 113.
46
Social é, nos dias atuais, “o instrumental de que dispõe o Estado, na Ordem Social para,
mediante duas vias de acesso – a previdenciária (seguro social) e a assistencial (integrada
pelos setores de saúde e de assistência) – e com a cooperação dos atores sociais, resolver a
questão social”86.
Todavia, é de observar que se do ponto de vista dos princípios e das regras
constitucionais estabelecidas o Brasil se equipara aos sistemas de proteção das sociedades
desenvolvidas, o mesmo não se pode dizer quanto às condições objetivas para implementálas, tanto é que milhões de trabalhadores brasileiros encontram-se socialmente desprotegidos.
Nesse aspecto, é preciso lembrar que muito ainda pesa sobre a Seguridade Social a “cultura
política da crise”87, que nas últimas décadas foi sendo disseminada pelo grande capital, e
também pelos governos, para impedir que os preceitos constitucionais em torno do sistema se
materializem e para promover reformas, sobretudo na previdência, que tem conduzido à
fragmentação de suas políticas.
Assim, há uma contínua tentativa de fazer regredir os direitos assegurados
na Constituição argumentando-se que o Estado brasileiro tem gastos sociais excessivos que
impedem o seu maior desenvolvimento. Trata-se de uma visão que polariza a questão
econômica em detrimento da questão social, conferindo centralidade ao ajuste fiscal pela
redução das despesas com as políticas sociais. Como bem lembra Eduardo Fagnani, aos olhos
daqueles que defendem um Estado mínimo e programas sociais focalizados de transferência
de renda “(...) a‘Constituição Cidadã’ se transformou na ‘Constituição Anacrônica’”88.
86
BALERA, Wagner. Processo administrativo previdenciário: benefícios. São Paulo: LTr, 1999, p. 23.
O termo “cultura política da crise” é usado por Fernandes para demonstrar que o grande capital, no Brasil,
apoiado por organismos internacionais, se utiliza dos problemas conjunturais e das crises econômicas para
disseminar a necessidade de reformas do sistema público de proteção social em benefício de seus interesses,
tais como a privatização dos serviços públicos, redução dos custos com a força de trabalho, redução dos
valores das aposentadorias, etc. (FERNANDES, Ana Elizabete Simões da Mota. Cultura da crise e
seguridade social: um estudo sobre as tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80
e 90. São Paulo: Cortez, 1995, p. 142).
88
FAGNANI, Eduardo. “Seguridade Social no Brasil (1988/2006): longo calvário e novos desafios”. In: Carta
social do Trabalho. n.. 7, Eduardo Fagnani (organizador). Campinas: UNICAMP/CESIT, setembro a
dezembro de 2007, p. 50.
87
47
Daí resulta o desafio, nos dias atuais, de como criar as condições para
institucionalizar mecanismos de inclusão dos trabalhadores que estão no mercado informal de
trabalho, como é o caso dos assalariados rurais, a uma rede de proteção social.
48
PARTE II
O DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL CONFIGURADO
NO TRABALHO RURAL ASSALARIADO
49
1
Referenciais históricos e teóricos sobre a conformação das relações de
trabalho e dos institutos de proteção social aplicados na área rural
1.1 Considerações gerais
Ao longo de sua história o Brasil destaca-se por produzir não apenas
crescentes desigualdades no conjunto de sua população, mas também por reproduzir
disparidades inquestionáveis mesmo com a montagem e desenvolvimento do seu sistema
nacional de proteção social, cujos mecanismos, na sua fase embrionária, manifestam a ação
paternalista e autoritária do Estado para, mais adiante, expressar-se como fruto de conquistas
políticas no contexto democrático.
Mesmo tendo uma trajetória, em grande parte, influenciada pelas mudanças
econômicas e políticas ocorridas no plano internacional, as políticas de proteção social no
Brasil se estruturaram de modo bastante diverso do que ocorreu nos países capitalistas
desenvolvidos, que nasceram livres da dependência econômica e do domínio colonialista. O
sistema brasileiro não se apoiou firmemente nas pilastras do pleno emprego, nem constituiu
uma rede de proteção universal impeditiva da queda e da reprodução de extratos sociais
majoritários da população na pobreza extrema. No cerne dessa questão sempre estiveram os
trabalhadores rurais, que historicamente foram excluídos dos mais elementares direitos sociais
e que até hoje, em especial os assalariados rurais, não conseguiram se beneficiar do direito à
proteção social.
O grau de exclusão social a que foram e ainda estão submetidos os
trabalhadores rurais assalariados configura-se na principal marca da díspar evolução do modo
de produção capitalista, que se manifesta na impossibilidade do exercício da cidadania frente
ao trabalho precário e informal, ao desemprego e à desigualdade de renda que historicamente
marcou o campo brasileiro. Trata-se de um processo de exclusão que impede esses
trabalhadores de participarem plenamente da vida em sociedade, já que vivem uma situação
50
de privação da autonomia individual e coletiva que termina por comprometer a materialização
do direito à proteção social e a convivência cidadã.
Tudo isso nos remete à busca de maior compreensão da dialética
inclusão/exclusão social constituída a partir das relações de trabalho no contexto rural
brasileiro, que emerge com o fim da escravidão e o surgimento de um mercado de trabalho
livre. Até porque, no passado, os chamados ciclos de expansão econômica indicam a
construção de uma sociedade fundada na desintegração social em que o trabalhador rural
somente participou com sua força de trabalho, sendo excluído dos direitos mais elementares à
sua dignidade. Com o fim da escravidão e o crescente ciclo da industrialização, os parcos
avanços em termos de inclusão social, como bem observa Pochmann89, somente foi possível
por meio do mercado de trabalho via assalariamento formal, algo de pouco êxito no meio
rural.
1.2 Regimes de trabalho no meio rural no período pós-escravista
Para melhor compreensão do que pretendemos desenvolver nesse estudo, é
preciso voltar às raízes do mercado de trabalho no Brasil, que remonta ao século XIX e que
tem como fundamento de sua origem o fim do regime sesmarial90 (em 1822) e o surgimento
de duas Leis editadas no ano de 1850: a Lei de proibição do tráfico de escravos (Lei Eusébio
de Queiroz), que impôs o fim do fluxo de novos escravos e enfraqueceu o sistema
escravocrata, marcado pelas péssimas condições de reprodução da força de trabalho cativa,
contribuindo assim, para o surgimento do mercado de força de trabalho; e a Lei de Terras (Lei
89
90
POCHMANN, Márcio. O desafio da inclusão social no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 2004, p. 14.
O regime sesmarial, elaborado pelos legisladores portugueses para acentuar o conteúdo dominial de Portugal,
mostrou-se, após 300 anos, um sistema ultrapassado para fazer frente às demandas sócio-econômicas e
políticas da época. Raymundo Faoro observa que tantas foram as liberalidades nas concessões de sesmarias,
com várias doações a uma mesma pessoa, que no início do século XIX não havia mais terras a distribuir.
Assim, o panorama fundiário da época era o da grande propriedade tomando conta do país, que impossibilitava
a ascensão do lavrador não proprietário e o colocava numa relação de dependência. “A sesmaria não serve ao
cultivo e ao aproveitamento, mas imobiliza o status do senhor de terras, utilizada menos em proveito da
agricultura do que da expansão territorial, estimulada esta pelos agentes do rei no Brasil”. (FAORO,
Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5 ed. Porto Alegre: Globo, 1979, p.
407 - 408).
51
n. 601), da qual nasceu o mercado de terras e que, ao estabelecer a transmissão da propriedade
apenas pela via da sucessão e da compra e venda, praticamente liquidou com o sistema de
posses das terras públicas que havia sido estabelecido no ano de 1822 em substituição ao
regime sesmarial, extirpando a possibilidade futura de os trabalhadores escravos libertos
virem a se transformar em posseiros fundiários e, ainda, abrindo caminho para a chegada do
imigrante europeu e asiático. Ruy Moreira, ao fazer uma análise crítica da relação entre a Lei
de Terras e a regulação do mercado de trabalho, ressalta o seguinte:
Num anúncio público do fim do acesso à terra por meio de concessões pelo
Estado, a Lei de Terras estabelece o mercado como regra do caminho.
Doravante, só se adquire terra mediante compra. Por conseguinte, só a quem
a pode comprar fica ela assim franqueada, excluindo-se desse acesso quem
não tem recursos, o que quer dizer a quase totalidade da população. Dessa
forma, embora seja um instrumento de regulação mercantil da circulação da
terra, a Lei de Terras se combina com a lei de regulação do mercado de
trabalho, uma vez que exclui automaticamente do acesso à terra a quase
totalidade da população colonial, à qual só resta oferecer-se em trabalho aos
proprietários fundiários. A um só tempo, a Lei de Terras preserva o
latifúndio e organiza a nova relação de trabalho91.
Observa-se, contudo, que as relações de trabalho sobre as quais se assenta o
novo regime de trabalho, posterior à mercantilização de Terras e a abolição dos escravos
alcançada com a Lei Áurea (em 1888), não significaram o aprofundamento do assalariamento
rural na economia nacional. A mão-de-obra utilizada na exploração das grandes propriedades
em substituição à mão-de-obra escrava era composta de lavradores meeiros, pequenos
agricultores, posseiros e peões que também ocupavam as terras e produziam gêneros de
subsistência, mas sob uma forte relação de dependência com o grande proprietário que
detinha o domínio da grande lavoura e cuja produção era destinada ao comércio externo.
Raymundo Faoro descreve esse período de transição histórica enfatizando:
(...) A terra deveria ser objeto de negócios sem entraves alheios ao mercado,
ou impedimentos economicamente irracionais, como será a própria
escravidão. Em contrapartida, permitiu ao proprietário absorver, anular ou
encadear o pequeno proprietário, reduzindo a pouco mais de nada o grupo
intermediário entre o senhor e o escravo, numa realidade já definida no
91
MOREIRA, Ruy. Formação do espaço agrário brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 36.
52
começo do século. O lavrador sem terras e o pequeno proprietário somem na
paisagem, apêndices passivos do senhor territorial que, em troca da safra,
por ele comercializada, lhes fornece, em migalhas encarecidas, os meios de
sustentar o modesto plantio. As precárias choupanas que povoam o
latifúndio abrigam o peão, o capanga, talvez o inimigo velado, servo da
gleba sem estatuto, sem contrato e sem direitos. O sistema das sesmarias
deixou, depois de extinto, a herança: o proprietário com sobras de terras, que
não as cultiva, nem permite que outrem as explore. Lavradores, meeiros e
moradores de favor são duas sobras que a grande propriedade projeta,
vinculadas à agricultura de subsistência, arredadas da lavoura que exporta e
que lucra (...)92.
A sociedade que se estrutura, a partir de então, conserva as relações
fundiárias e de trabalho que marcaram o período de transição da abolição, e permite
identificar um proletariado rural que combina em si a condição de reprodução do trabalho
assalariado e autônomo centrado na figura do meeiro, do posseiro, do pequeno proprietário,
do colono imigrante, que pratica, ao mesmo tempo, um modo de produção para uma
economia de subsistência e mantém uma relação de dependência e de subordinação com o
grande proprietário. São muitas as relações de trabalho não assalariada que coexistem com o
trabalho assalariado e concorrem para depreciar o salário monetário e o próprio contrato
salarial. Tal sociedade, também exacerba vários problemas de perversidade das condições de
vida da maioria da população, iniciando o século XX, nos dizeres de Delgado, “impregnada
pela desigualdade de oportunidades e pelas condições de reprodução humana impostas à
esmagadora maioria dos agricultores não proprietários e trabalhadores urbanos não inseridos
na economia mercantil da época”93.
É de se observar que não há no período da República Velha uma economia
dinâmica capaz de incorporar de maneira sistemática o assalariamento rural. O excedente da
força de trabalho, formado por ex-escravos e outros trabalhadores, constitui uma “massa
92
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5 ed. Porto Alegre:
Globo, 1979, p. 418.
93
DELGADO, Guilherme Costa. O setor de subsistência na economia brasileira: gênese histórica e formas de
reprodução. In: Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Luciana Jaccoud
(organizadora). Brasília:IPEA, 2005, p. 31.
53
marginal”94 ou “campesinato marginal”
95
não integrados à economia de mercado alicerçada
na agricultura exportadora. Reproduz-se assim, um contingente de trabalhadores rurais
excluídos, confinados a ocupações instáveis, que tem como principal modo de sobrevivência a
prática da agricultura de subsistência que se desenvolveu tanto dentro quanto fora do domínio
físico do latifúndio explorador de monocultura para a exportação servindo, segundo Otávio
Guilherme Velho, “como uma espécie de ‘depósito’ de mão-de-obra de que a plantation
lançava mão nas suas atividades principais quando em expansão ou em determinados períodos
particulares, como época de colheita”96.
Há que se destacar, no entanto, o papel decisivo desempenhado pelo Estado
brasileiro nessa conformação clássica do mercado de trabalho rural97. Durante o período de
escravidão o Estado, com seu poder coercitivo, cuidou de assegurar a ordem escravista, e com
seu poder regulatório utilizou-se do instrumental jurídico necessário para garantir o trabalho
escravo como base do funcionamento da produção de grande escala e da economia de
exportação. Já no período de transição do trabalho escravo para o trabalho livre, diante do
processo que levaria à libertação dos cativos enquanto movimento irrefutável da dinâmica
94
Mário Theodoro utiliza a expressão “massa marginal” como contraponto à “teoria da marginalidade”. Explica
o autor que o grande contingente de trabalhadores excluídos do mercado de trabalho formado por ex-escravos,
posseiros, colonos, dentre outros, não funcionava apenas como um “exército industrial de reserva”, termo este
utilizado por Marx para explicar a estratégia de acumulação e expansão do sistema capitalista. Segundo
Theodoro, o contingente de trabalhadores excluídos do mercado de trabalho brasileiro no início do século XX,
não tinha como característica ser um mecanismo para estabilizar salários ou servir apenas como um
instrumento de “funcionalidade” para responder às necessidades mediatas e imediatas de expansão capitalista.
Tratava-se, na verdade, de uma mão-de-obra marginalizada que historicamente não conseguiu integrar-se à
economia de mercado, tendo como meio de sobrevivência apenas a prática de uma agricultura de subsistência.
(Ver: THEORODO, Mário. As características do mercado de trabalho e as origens do informal no Brasil. In:
Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Luciana Jaccoud (organizadora). Brasília:
IPEA, 2005, p. 103-104).
95
A expressão “campesinato marginal” é usada por Otávio Guilherme Velho para designar o conjunto de
trabalhadores rurais que exploravam pequenas áreas de terras fora da plantantion, comumente doadas pelo
grande proprietário no intuito de garantir a reprodução barata da força de trabalho. Esses trabalhadores tinham
como modo de reprodução a prática de uma agricultura voltada para o alto consumo sem laços estreitos com o
mercado. Ver: VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. 2. ed. São Paulo – Rio
de Janeiro: Difel, 1979, p. 137.
96
VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. 2. ed. São Paulo – Rio de Janeiro:
Difel, 1979, p. 118.
97
O mercado de trabalho, em sentido clássico, pressupõe a existência de trabalho livre que rompe com as pechas
do sistema escravocrata.
54
social que se impunha, o governo brasileiro – incentivado e controlado pelos grandes
fazendeiros – preparou-se para a substituição da mão-de-obra escrava, incentivando a
imigração e se adaptando à nova ordem política e social do Brasil republicano. Nesse período,
a intervenção estatal na conformação do mercado de trabalho rural foi ainda mais direta ao
utilizar os recursos da venda das terras devolutas para financiar98 a vinda dos imigrantes
europeus em substituição à mão-de-obra escrava99, sobretudo para trabalhar em regime de
colonato100 na produção do café.
1.3 A estrutura das relações sociais de trabalho no meio rural no período pós
1930
Os anos 1930 marcam o início de importantes transformações políticas,
econômicas, sociais, jurídicas e culturais no cenário brasileiro. O Estado engaja-se
diretamente no processo de modernização econômica inaugurando a intervenção estatal do
tipo desenvolvimentista, tomando como eixo central desse processo a industrialização e a
urbanização. Marca-se também o início da efetiva regulamentação do mercado de trabalho,
sendo instituído um conjunto de medidas com o objetivo de tecer uma força de trabalho que
pudesse servir ao setor industrial.
98
A própria Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, que proibia a aquisição de terras devolutas a não ser que
fosse por meio da compra, autorizava o governo a utilizar os próprios recursos da venda das terras para
financiar a vinda dos imigrantes europeus visando constituir o mercado de trabalho livre. O texto normativo
assim disciplinava: “Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir annualmente à custa do Thesouro certo
numero de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos
agricolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração publica, ou na formação de colonias nos logares em
que estas mais convierem; tomando anticipadamente as medidas necessarias para que taes colonos achem
emprego logo que desembarcarem. Brasil”. Ver: BRASIL. Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe
sobre as terras devolutas do Império. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ ccivil_ 03/ Leis/
LIM/LIM601.htm> Acesso em 25.09.2007.
99
THEORODO, Mário. As características do mercado de trabalho e as origens do informal no Brasil. In:
Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Luciana Jaccoud (organizadora). Brasília:
IPEA, 2005, p. 104-105.
100
O colonato constituiu-se num sistema particular de parceria muito utilizado na lavoura cafeeira do Estado de
São Paulo junto à mão-de-obra imigrante européia. A participação do colono na lavoura cafeeira se dava
desde a sua formação, recebendo para tanto um salário fixo anual e uma cota da produção colhida. Além
disso, com a autorização do fazendeiro, era permitido ao colono produzir gêneros de subsistência nas faixas
intercalares ao café, o que lhe propiciava além do consumo próprio uma renda extra pela venda dos
excedentes.
55
Com efeito, no primeiro governo Vargas intensifica-se o processo de
migrações internas com o deslocamento dos trabalhadores rurais para os centros urbanos,
aonde a indústria vai se consolidando, e implanta-se uma estrutura complexa regulando as
relações de trabalho com a garantia de alguns direitos sociais e trabalhistas apenas para uma
parcela da mão-de-obra considerada urbana. É o começo da gestação de uma superpopulação
agora criada para e pelo capital. Esta regulação segmentada continuou mantendo na área rural
a reprodução truncada da classe trabalhadora, bem como a manutenção de um subproletariado
com vínculos de subordinação indireta com o capital, vivendo da realização de atividades
eventuais e precárias às quais não conformavam um estatuto do trabalho e nem conferiam
reconhecimento de direitos sociais.
As mudanças na estrutura agroeconômica também provocaram profundas
transformações nas relações de trabalho rural, sobretudo em dois setores que historicamente
sempre demandaram muita mão-de-obra no processo produtivo: a cafeicultura e a cana-deaçúcar.
A crise na cafeicultura, ocorrida na década de 1930 e ocasionada pela
superprodução e preços baixos no mercado internacional, impôs um rearranjo na estrutura
fundiária devido ao endividamento dos latifundiários que tiveram que dispor de parte de suas
terras, fato que aumentou o número de propriedades em várias regiões do país. Boa parte da
lavoura cafeeira, nas grandes propriedades, começou a ser substituída pela produção pecuária,
iniciando-se a diversificação da produção com prioridade para culturas comerciais, tendo em
vista a formação, ampliação e proximidade dos centros urbanos e industriais consumidores de
produtos variados.
É o início de um processo de desestruturação das formas tradicionais de
produção agrícola e a emergência da policultura de matérias-primas para a indústria. Em
decorrência, deflagrou-se a crise do regime de colonato, gerando um enorme contingente de
56
mão-de-obra desocupada.0 Uma parte dos trabalhadores rurais que laborava sobre esse regime
permaneceu no campo desempenhando outras atividades numa relação instável e bastante
precária de trabalho. A outra parte começou a migrar para os centros urbanos à busca de
melhores ocupações na indústria.
Já no setor canavieiro, o maior impacto foi decorrente da regulamentação
dos preços do açúcar pelo governo brasileiro com a edição do Estatuto da Lavoura Canavieira
- Decreto-Lei n. 3.855, de 1941. Desde o fim do regime de escravidão as relações de trabalho
neste setor encontravam-se predominantemente assentadas nas relações de parceria agrícola,
que se revelara mais interessante para o usineiro na medida em que podia compartilhar os
riscos da produção com os parceiros, tendo em vista as oscilações dos preços do açúcar no
mercado internacional. Com os preços do açúcar regulamentados no mercado interno não
havia mais a necessidade de o usineiro dividir eventuais prejuízos com os parceiros, tornandose, portanto, desvantajosa a relação de parceria vigente. Esse foi também um dos motivos de
expulsão do trabalhador do campo, já que o parceiro habitava a propriedade rural como uma
espécie de colono.
As evidências de que começava a surgir um excedente de mão-de-obra nas
grandes cidades fez com que o governo brasileiro incentivasse o movimento de fronteira, que
se denominou “rumo ao oeste” e se serviu do “espírito bandeirante” para ocupar novos
espaços do território brasileiro em direção ao interior do país, com o apoio e a assistência do
Estado. Esse movimento, sob a ótica do Estado Novo, teve por objetivo levar para zonas com
maior potencial produtivo a mão-de-obra excedente de certas regiões do país e impedir que se
aglomerasse nos grandes centros urbanos um excessivo contingente de pessoas
desocupadas101. Visava também impedir que os imigrantes estrangeiros ocupassem as novas
101
VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. 2. ed. São Paulo – Rio de Janeiro:
Difel, 1979, p. 148 - 149.
57
áreas que seriam exploradas temendo-se a influência destes nas relações de trabalho que
viriam a ser estabelecidas102.
Até a década de 1950 a organização da agricultura no Brasil assentou-se em
métodos rudimentares de produção e de divisão e organização do trabalho. As relações de
produção – movidas principalmente pela força humana e animal –, amparadas por uma base
técnica frágil, sustentavam relações sociais de trabalho de cunho paternal ou até mesmo
subserviente, como era o colonato. Esse panorama pode ser mais visualizado quando se toma
por referência o detalhamento dos dados do Serviço Nacional de Recenseamento do ano de
1950103, demonstrando que a mão-de-obra agrícola brasileira, trabalhando em terras alheias,
era composta por cerca de 6,017 milhões de trabalhadores (homens, mulheres e menores)
distribuídos da seguinte forma: 20,6 % eram parceiros agrícolas; 9,6 % eram ocupantes; 7,7 %
trabalhavam como arrendatários; e, 62,1% trabalhavam como empregados, sendo que destes,
apenas 38% detinham vínculo de emprego permanente, enquanto que
62% eram
considerados empregados temporários. Neste universo, os homens representavam 67,8% da
força de trabalho, enquanto que as mulheres representavam apenas 18,3%, e os menores
13,9%. Para Octávio Ianni104, os referidos dados são também um indicativo de que a
reposição da força de trabalho no campo ocorreu, principalmente, pelo trabalho da mulher e
dos menores, na medida em que eram os homens que migravam para os centros urbanos à
busca de ocupação nas indústrias.
Ao tomar os dados acima como referência, abre-se aqui um parêntese para
anotar a similitude do grau de informalidade e de precarização nas relações de trabalho rural
102
Como bem observa Otávio Guilherme Velho, a participação de imigrantes como lideranças nas primeiras
greves e movimentos trabalhistas ocorridos antes de 1930, fez com que o Estado os temesse por suas
influências ideológicas e como causadores da desordem social (op. cit. p. 149).
103
Serviço Nacional de Recenseamento. Cf. Conjuntura Econômica. Ano X, n.º 12, Rio de Janeiro, Dezembro de
1956, p. 75, apud, IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. 3. edição. Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1975, p. 77.
104
IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. 3. edição. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira,
1975, p. 77.
58
assalariadas, existentes na década de 1950, com os dados mais recentes divulgados pelo
IBGE. Como já mencionamos, os dados da PNAD/IBGE 2006 apontam que dos atuais 4,7
milhões de assalariados rurais apenas 33% conseguem ter um vínculo de emprego
permanente. O que causa perplexidade nessas informações é que, passados mais de meio
século, não obstante os direitos sociais instituídos na Constituição Federal de 1988 e a
existência de um arcabouço jurídico específico para o campo em matéria trabalhista e
previdenciária, o grau de trabalho precário e informal na área rural dá mostras de resistência,
inclusive, com um percentual menor de assalariados rurais trabalhando mediante um vínculo
de emprego permanente do que fora no passado.
Os referidos dados são também bastante incisivos para demonstrar que a
força de trabalho no campo foi se reproduzindo sob vários esquemas de relações. Os
trabalhadores agrícolas, nas suas mais diversas definições sociais, tipificados como volante,
empreiteiro, colono, parceiro, rendeiro, meeiro, camarada, peão, seringueiro, arrendatário,
agregado, etc., estavam submetidos a relações de trabalho marcadas por conteúdos
comunitários e patrimoniais, desprovido de conteúdo e caráter político. Como bem observa
Octávio Ianni,
Nessa situação, o trabalhador não dispõe de recursos culturais e intelectuais
para definir o proprietário ou o capataz como outro. Todos participam do
mesmo nós. E quando ele pensa o proprietário das terras como ‘outro’, não o
toma como categoria política, mas apenas como categoria social, bafejada
pela tradição, a sorte e os laços de família.105
Somente quando se modificam as condições de produção é que as relações
de trabalho começam a se transformar. Conforme a seguir veremos, na área rural isso veio
ocorrer somente em período muito recente com o processo de “modernização da agricultura”,
que transformou boa parte dos agricultores em assalariados, constituindo a proletarização dos
trabalhadores agrícolas.
105
IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. 3. edição. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira,
1975, p. 78.
59
1.4 Reestruturação produtiva e os impactos nas relações de trabalho
Desde a década de 1960 a modernização do setor agrário é vista como algo
imprescindível no Brasil para fazer frente ao crescente avanço da industrialização e da
urbanização, e como forma de dar maior equilíbrio à balança comercial brasileira. Um dos
argumentos utilizados no passado e ainda nos dias atuais é de que o setor rural, no seu modo
de produção tradicional, constitui-se num entrave para o desenvolvimento econômico, pois
não consegue responder à demanda de matéria prima para o setor urbano – industrial,
tampouco para produção de alimentos e produtos suficientes para abastecer o mercado. Daí a
pretensão de se passar de uma agricultura tradicional, totalmente dependente da natureza e
praticada por meio de técnicas rudimentares, para uma agricultura mecanizada e organizada
em torno de um complexo agroindustrial. Os fundamentos técnicos jurídicos para essas
mudanças foram estabelecidos pelo Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504/1964), que instituiu o
conceito de empresa rural e tentou estabelecer um rearranjo espacial da área rural, inclusive
preconizando a Reforma Agrária como instrumento hábil para fundar um sistema de relações
entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o
progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a
gradual extinção do latifúndio e do minifúndio.
De fato, as novas técnicas de produção e o uso de equipamentos modernos
na mecanização permitiram ampliar as áreas cultivadas ou a escala de produção de modo a
alcançar maior rentabilidade. Contudo, o que realmente impulsionou a transformação da base
técnica da produção agrícola foi a maior intervenção do Estado por meio do chamado crédito
rural, viabilizado, principalmente, a partir de meado da década de 1960. Com efeito, a política
desenvolvimentista do Estado, criada à época, instituiu um sistema de créditos e incentivos à
estrutura agrária, por meio do denominado Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR),
60
permitindo o desenvolvimento de programas106 que aceleraram a produção empresarial de
alimentos e matérias-primas para a indústria107. Foi marcante também a presença do Estado na
fiscalização, determinação de preços, estocagem e comercialização da produção agrícola.
Com seu projeto modernizador, o objetivo do Estado estava em atrelar o setor agrário ao
processo de desenvolvimento econômico, criando os institutos de pesquisas e assistência
técnica e incentivando a utilização de técnicas e insumos modernos. Era preciso viabilizar o
chamado complexo agroindustrial instituído no país.
A crise do petróleo, ocorrida na década de 1970, trouxe novo desafio para o
setor produtivo rural que, além de alimentos e divisas, passou a ser demandado para a
produção de uma alternativa energética ao petróleo. Surge, assim, a ambiciosa proposta do
PROÁLCOOL, passando a cana-de-açúcar a requerer maior espaço para o seu cultivo, vindo a
ocupar vastos campos em uma rápida substituição dos espaços rurais utilizados na produção
de alimentos.
Gradativamente a segunda metade do século XX vai sendo marcada pela
chamada “modernização da agricultura”. Com seus excedentes captados e distribuídos em
favor da indústria e do comércio interno, a agricultura foi ficando subordinada ao padrão de
acumulação urbano-industrial em detrimento do seu próprio desenvolvimento. Do ponto de
vista da valorização do capital, esse estágio foi necessário para atender às necessidades de
suprimento de matéria-prima e força de trabalho para a indústria em expansão. Conforme
106
Durante o período do Regime Militar, o processo de modernização da agricultura brasileira contou com
vários programas criados pelo Estado no intuito de beneficiar certas regiões e atividades, mas que mantiveram
os efeitos concentradores e excludentes. Dentre eles, destacam-se: o POLONORDESTE (Programa de
Desenvolvimento das Áreas Integradas do Nordeste), o PROPEC (Programa Nacional de Desenvolvimento da
Pecuária), POLOAMAZÔNIA (Programa de Desenvolvimento da Amazônia), o PROTERRA (Programa de
Redistribuição de Terras e de Estímulos à Agroindústria do Norte e Nordeste), o POLOCENTRO (Programa
de Desenvolvimento das Áreas de Cerrados), o PRONAGEM (Programa Nacional de Armazenagem), e o
PROÁLCOOL (Programa Nacional do Álcool).
107
SCOPINHO, Rosemeire Aparecida. A região de Ribeirão Preto e a agroindústria sucroalcooleira. In:
Modernização e Impactos Sociais: o caso da agroindústria sucro-alcooleira na região de Ribeirão Preto.
Rosimeire Aparecida Scopinho e Leandro Valarelli (organizadores). Rio de Janeiro: Fase, 1995, p. 26.
61
observa José Graziano da Silva, “a produção agropecuária deixa, assim, de ser uma esperança
ao sabor das forças da natureza para se converter numa certeza sob o comando do capital”108.
Nota-se, porém, que o principal entrave para o desenvolvimento almejado
estava na estrutura fundiária altamente pautada na concentração de terras nas mãos de uma
minoria. Ao contrário das diretrizes estabelecidas pelo Estatuto da Terra, o caminho da
reforma agrária para uma melhor distribuição de terras não aconteceu. A modernização do
setor agrário tornou-se, portanto, seletiva, concentrando-se basicamente nas grandes
propriedades, com investimentos direcionados apenas para alguns produtos, devido à busca
por excedentes exportáveis e matéria-prima para a indústria. Ao lado de culturas mecanizadas
permaneceram as culturas rudimentares, ficando os pequenos produtores rurais à margem do
processo de modernização implantado. Caio Prado Júnior retrata bem essa questão ao afirmar:
A parcela da humanidade que vive em função da agropecuária brasileira,
nada tem de homogênea, e muito pelo contrário, se encontra profundamente
diferenciada e classificada em setores largamente apartados, que são de um
lado, uma pequena minoria de grandes proprietários que não atingem 10%
da população rural (incluindo famílias, empregados), e do outro lado, a
grande maioria dessa população que vive em péssimas condições.109
Se do ponto de vista econômico as transformações ocorridas na estrutura
produtiva, a partir da década de 1960, foram importantes para dar impulso à produção
agrícola no país, do ponto de vista social não se obteve o mesmo êxito. Nesse sentido,
Martine e Garcia observam:
É impossível avaliar a tecnificação pela qual passou a agricultura no Brasil
sem analisar também os resultados sociais em termos de questões como o
acesso à terra, a evolução do emprego, a dimensão da migração, a produção
e distribuição de alimentos, os efeitos dos agrotóxicos e a adequação do
modelo tecnológico às condições sociais e ecológicas brasileiras.110
Com efeito, a ausência de políticas para atender às reais necessidades dos
assalariados e dos pequenos produtores; a dificuldade de acesso às novas tecnologias; o
108
SILVA, José Graziano da. Progresso Técnico e Relações de Trabalho na Agricultura. São Paulo: Hucitec,
1981. p. 44.
109
PRADO JÚNIOR, Caio. A Questão Agrária no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979, p. 20.
110
MARTINE, George; GARCIA, Ronaldo Coutinho . Impactos Sociais da Modernização Agrícola. São
Paulo: Caetes/Hucitec, 1987, p. 11.
62
processo de mecanização e a substituição de culturas intensivas em mão-de-obra111, dentre
outros fatores, causaram violenta transferência de população para o setor urbano. Conforme
os dados do IBGE112, em 1950 a participação dos trabalhadores rurais no conjunto dos
trabalhadores ocupados no mercado de trabalho brasileiro correspondia ao percentual de
59,9%. Pelos dados do Censo Agropecuário de 2006113, divulgados recentemente, a força de
trabalho ocupada na área rural passou a ser constituída por apenas 18,4% do total da força de
trabalho ocupada nacionalmente, o que corresponde a 16,4 milhões de pessoas.
Por outro lado, a capitalização da agricultura praticamente realizou-se por
meio da exploração intensiva e extensiva da mão-de-obra assalariada e familiar, destacandose a relevância dessa última forma de trabalho no fornecimento de considerável contingente
de trabalhadores para desempenhar precariamente atividades remuneradas, em face das novas
formas de relações de produção que elevou a necessidade de mão-de-obra para a colheita,
etapa de cultivo ainda não mecanizada em diversas culturas. Essas transformações
provocaram uma reformulação nas relações de trabalho no campo, mitigando a mão-de-obra
parceira, meeira, agregada, etc., e, ao mesmo tempo, incrementando-se o trabalho assalariado
precário, sobretudo nas grandes propriedades que foram se transformando em empresas com o
processo de modernização. Às pequenas propriedades, conforme observa Gonçalves Neto,
restou “a possibilidade da subordinação ao capital industrial, a marginalização, o
esfacelamento ou a venda e migração para os centros urbanos” 114.
111
Um dos setores de pouca utilização de mão-de-obra e que mais se expandiu na segunda metade do século XX
foi a pecuária.
112
Conforme aponta o IBGE, o processo migratório ocorre de forma mais intensa a partir de 1960 quando a força
de trabalho rural ainda era maioria, com 54%, se comparada à urbana. Na década de 1970 esse percentual cai
para 44,3%, em 1980 chega a 29,3%, em 1990 cai ao patamar de 25,5% e no ano de 2000 cai para 20,7%. Ver:
IBGE. Estatísticas do século XX. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/seculoxx/default.shtm> acesso
em 02 de agosto de 2007.
113
Conforme dados preliminares divulgado pelo IBGE sobre o Censo agropecuário 2006. (IBGE. Censo
agropecuário 2006. Disponível em <http:www.ibge.gov.br/home/estatística/ economia/ agropecuária/
censoagro/2006/default.shtm>. Acesso em 04.04.08.
114
GONÇALVES NETO, Wenceslau. Estado e Agricultura no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 109.
63
É nesse contexto que surge em algumas regiões do país e intensifica-se em
outras o fenômeno do trabalhador rural assalariado pejorativamente denominado de “bóiafria”. Para Maria Conceição D’incao Mello, o “bóia-fria” é a afirmação do sistema capitalista
resultante da abundante oferta de força de trabalho no campo.
A forma que esse indivíduo realiza o seu trabalho no campo é uma
decorrência da existência deste excedente da oferta de força de trabalho, em
relação à demanda. A possibilidade de contar com um tipo de trabalhador
que, recebendo por tarefa ou por dia, trabalhando num ritmo irregular,
favorece os interesses do empregador existe, em última análise, como
decorrência da superabundância de mão-de-obra.115
Desse modo, a reprodução das relações de trabalho na área rural - quer seja
no assalariamento marcado pelo trabalho precário e informal, quer no modo de lavrar a terra
de forma autônoma produzindo para a própria subsistência – chega ao final do século XX sem
grandes transformações. Na medida em que a classe trabalhadora rural vai sendo privada dos
meios essenciais para a sobrevivência, torna-se uma fonte inesgotável de mão-de-obra barata
que migra para os centros urbanos116, amontoando-se nas periferias das cidades sem qualquer
alternativa de trabalho que não seja o trabalho precário e informal exercido em diversas
funções (ambulantes, ajudantes de pedreiro, jardineiros, etc.). Essa mesma mão-de-obra, que
agora tem moradia urbana, também retorna ao campo para trabalhar sazonalmente no
processo produtivo agrícola. São os denominados trabalhadores temporários, volantes, bóiasfrias, homens e mulheres, comumente aliciados por agenciadores de mão-de-obra mais
conhecidos como “gatos”.
1.5 O trabalho rural assalariado em perspectiva
A crescente reestruturação produtiva no setor agrário, tomada a partir da
“modernização na agricultura”, continua produzindo seus efeitos, alterando as relações sociais
115
MELLO. Maria Conceição D’incao e. “Bóia-fria”: acumulação e miséria. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 87.
DELGADO, Guilherme C. A pesquisa de avaliação da previdência social contextualizada. In: A
universalização de direitos sociais no Brasil: A previdência rural nos anos 90. Guilherme Delgado, José
Celso Cardoso Junior (coordenadores). Brasília: Ipea, 2000, p. 27.
116
64
de produção e de trabalho. Dada à exigência de mão-de-obra qualificada, novas categorias de
trabalhadores entraram em cena enquanto os trabalhadores tradicionais, mesmo dotados de
experiência e conhecimento empírico, mas por desconhecerem a técnica vão perdendo espaço.
Os investimentos nos incrementos tecnológicos pressupõem a adoção de
uma mão-de-obra que potencialize cada vez mais o uso de tecnologias e insumos agrícolas
visando aumentar a produtividade. Assim, enquanto as inovações tecnológicas introduzidas
no setor provocam, de um lado, a reformulação constante das relações sociais de produção
assegurando um emprego mais estável à mão-de-obra mais especializada, de outro lado
intensifica a sazonalidade do trabalho não especializado, estabelecendo uma simetria entre
trabalho temporário e trabalho informal precarizado. É a força de trabalho rural cada vez mais
subordinada ao capital.
Já a concorrência no mercado nacional e internacional por produtos
agrícolas repercute na busca de vantagens comparativas (clima, solo, água, preços da mão-deobra), reestruturando os espaços produtivos da agricultura brasileira. Com isso, os impactos
nas relações de produção e de trabalho se agigantaram com as especializações regionais
(grãos no centro-sul, pecuária no norte, fruticultura irrigada no nordeste, etc.) a partir de
atividades de monoculturas, o que comporta antigos e novos modelos de exploração da
produção (empresariais, agricultura familiar, arrendamentos, parcerias, etc.). Cita-se, por
exemplo, as lavouras de soja e de cana-de-açúcar117, que confluem para a concentração
fundiária resultante do processo de mecanização das atividades agrícolas, bem como para a
utilização intensiva de tecnologias químicas e biológicas, tendendo cada vez mais poupar
117
Matéria publicada no Jornal “Valor Econômico”, divulgou um recente estudo feito pelo Instituto de Economia
Agrícola (IEA) do Estado de São Paulo informando que 40% de toda a área da cana-de-açúcar do Estado já é
colhida mecanicamente. Isso, aliás, é uma prioridade ambiental do governo do Estado de São Paulo que
estabeleceu prazos para o fim das queimadas da cana em áreas planas (ano de 2021), e em áreas em declive
(no ano de 2031). O estudo também ressalta que o crescimento de 1% da mecanização da cana a cada ano,
representa a saída de 2.700 cortadores de cana dessa atividade. Ver: VALOR ECONÔMICO. Mecanização
alcança 40% da área de cana em SP. São Paulo: Jornal Valor Econômico. Matéria publicada na sexta feira e
fim de semana, 11, 12 e 13 de abril de 2008, p. B 14.
65
trabalho humano no campo ou, quando muito, demandar mão-de-obra de forma mais
intensiva apenas em períodos específicos de cultivo e de colheita. Isso repercute
profundamente na organização da força de trabalho rural.
Confere-se assim, esmagadora prioridade do setor produtivo rural patronal–
empresarial na contratação de trabalhadores temporários, intensificando o contrato de trabalho
descontínuo e flexível, de modo que esses trabalhadores passam a ser contratados, não raras
as vezes, pelas mesmas empresas a cada safra, criando uma tipologia de trabalhadores
denominada “temporário-permanente”118, sem condição de acesso ao seguro-desemprego e a
determinados direitos trabalhistas, como aviso prévio e multa rescisória do contrato de
trabalho. É claro que alguns desses direitos podem ser alcançados por uma parcela de
assalariados temporários que conseguem uma relação formal de trabalho em algum período
durante o ano. Mas a grande maioria trabalha na informalidade não desfrutando de qualquer
direito trabalhista e, por conseqüência, encontra-se totalmente excluída do direito à proteção
social previdenciária.
É de se notar, no entanto, que as relações de trabalho temporário não se
refletem apenas no setor produtivo patronal-empresarial. Emergem também na agricultura
familiar que adota um modelo de produção voltado para atender às necessidades do mercado
local/regional, estando esse modelo de produção também integrado à cadeia produtiva de
determinados produtos agrícolas intercambiados pelo setor agroindustrial.
Nesse contexto, a agricultura familiar tem duplo perfil: ao mesmo tempo em
que é fonte de trabalhadores que se assalariam, é também lugar de contratação temporária no
panorama da agricultura brasileira. E aqui é preciso destacar a forte tendência da agricultura
familiar na contratação de mão-de-obra temporária para garantir a sua própria reprodução.
118
A expressão “temporário-permanente” designa uma tipologia de trabalhador rural assalariado caracterizado
pelo trabalho de natureza temporária apenas em relação às atividades de curta duração que exercem para
vários empregadores. No entanto, a prática desse tipo de trabalho é contínua e permanente no decorrer de cada
ano civil.
66
Pesquisa divulgada, no ano de 2000, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária – INCRA e pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
– FAO119, tomando por base os dados do Censo Agropecuário do IBGE de 1995/1996, já
indicava o segmento da agricultura familiar120 como forte demandante de mão-de-obra
assalariada para trabalhar em atividades de curta duração. Os dados divulgados a partir de
levantamento feito em uma data fixa (em 31/12/95) indicaram que a agricultura familiar
contratou 986.678 assalariados temporários.
Para o futuro, há diversos indicativos de que a relação de trabalho
assalariada no âmbito da agricultura familiar tende a aumentar. Cita-se o êxodo rural, em
especial dos jovens, que continuam migrando para os centros urbanos procurando concluir
seus estudos e buscando novas oportunidades de trabalho; o maior controle de natalidade e o
rápido envelhecimento da população rural, o que diminui a força de trabalho familiar; a maior
facilidade com que os agricultores familiares têm acesso ao crédito rural para custeio e
investimento na produção, o que lhes permite gerar alguns excedentes produtivos
contribuindo para mudar o perfil econômico da família que até então produzia para uma
economia de subsistência e que agora pode produzir de forma mais integrada ao mercado.
São, portanto, diversos os fatores indicativos de que a agricultura familiar, para a sua própria
sobrevivência e reprodução, demandará um contingente cada vez maior de mão-de-obra
119
Ver: INCRA/FAO. Novo Retrato da Agricultura Familiar. O Brasil redescoberto. Pesquisa coordenada
por GUANZIROLI. Carlos. E.; CARDIM, Silvia E. de C. S. Brasília: MDA/INCRA, 2000.
120
Na pesquisa realizada pela INCRA/FAO, foram utilizadas duas variáveis básicas para delimitar o universo da
agricultura familiar: (i) a direção dos trabalhos do estabelecimento ser exercida pelo próprio produtor; (ii) a
mão-de-obra familiar ser superior à mão-de-obra contratada. Foi utilizada, também, uma delimitação de
tamanho da área do estabelecimento familiar para cada região do país, para evitar eventuais distorções que
decorreriam da inclusão de grandes latifúndios no universo de unidades familiares, ainda que do ponto de vista
conceitual a agricultura familiar não seja definida a partir do tamanho do estabelecimento. Os resultados dos
estudos indicam que a agricultura brasileira apresenta uma grande diversidade em relação ao seu meio
ambiente, à situação dos produtores, à aptidão da terra, à disponibilidade de infra-estrutura etc., não apenas
entre as regiões, mas também dentro de cada região. De acordo com a metodologia adotada, dos 4.859.864
estabelecimentos rurais existentes no Brasil, 4.139.369 são considerados estabelecimentos familiares. Foi
deste universo que se detectou a contratação de quase um milhão de assalariados temporários no ano de 1995.
67
assalariada no processo produtivo, sobretudo nos períodos de colheitas, comumentes de curta
duração.
Em que pese esta constatação, são praticamente inexistentes relações de
trabalho assalariadas devidamente formalizadas no âmbito da agricultura familiar. Até porque,
de um lado, esses agricultores não foram e não estão preparados, nem culturalmente nem
financeiramente, para arcar com toda a burocracia e dispêndio que se exige para formalizar
relações de trabalho com vínculo empregatício. De outro lado, ainda está por se constituir um
entendimento uniforme quanto à permissibilidade de o agricultor em regime de produção
familiar poder contratar mão-de-obra assalariada, ainda que por curto período, e permanecer
no direito de acesso à proteção social previdenciária pela regra especial que lhe é outorgada.
Essa questão, que até então vinha sendo tratada com certa reticência pelos órgãos competentes
para apreciar o direito previdenciário dos agricultores familiares - tanto o Instituto Nacional
do Seguro Social (INSS) quanto o Poder Judiciário –, ganha agora novos elementos para o
debate e para a construção de entendimentos convergentes com a edição da Lei n.º 11.718,
publicada no dia 23/06/2008, que mais adiante será analisada num tópico específico.
Deste modo, se o trabalho assalariado formal for o viés para se garantir
maior efetividade do direito de proteção social aos assalariados rurais, certamente o desafio
está posto e merece ser discutido. Até porque, há que se reconhecer que o trabalho rural
assalariado para o exercício de atividades temporárias, de curta duração, é parte da rotina do
processo produtivo do setor agrícola.
68
2 Proteção social e jurídica ao trabalho rural
2.1 Os trabalhadores rurais sob o estigma da exclusão
A partir da abordagem histórica feita pode-se constatar que no primeiro
período republicano a questão social não aparece concretamente como um problema de nação.
O Estado, sob a égide de uma ideologia liberal, atua de forma residual restringindo-se a
reparações pontuais e seletivas das questões mais urgentes que vão surgindo ou tenta dar
respostas morosas a reivindicações sociais dos trabalhadores e de setores populacionais mais
empobrecidos dos centros urbanos. A questão social é identificada como caso de polícia a ser
enfrentado pela violência repressiva e autoritária das forças públicas e privadas. Retrata bem
essa situação as rebeliões sociais que serviram de contraponto à ordem estabelecida, como
ocorreram com Canudos121 (1893-1897) e Contestado122 (1912 – 1916), e que fizeram com
que algumas regiões rurais se tornassem verdadeiros campos de conflitos. Conforme assinala
Delgado, esses movimentos sociais tiveram em comum a sua organização no âmbito do setor
da economia de subsistência, altamente excluídos de qualquer política do Estado e
desintegrados da economia de mercado, que denunciavam ou ignoravam a estrutura da
propriedade fundiária preexistente123. Esses movimentos foram aniquilados pelas forças
repressivas do Estado autoritário.
121
A história nos mostra que a guerra de Canudos, movimento sócio-religioso ocorrido no interior do Estado da
Bahia, originou-se de vários fatores, como a grave crise econômica e social em que se encontrava a região à
época, historicamente caracterizada pela presença de latifúndios improdutivos, situação essa agravada pela
ocorrência de secas cíclicas, de desemprego crônico, e pela crença numa salvação milagrosa que pouparia os
humildes habitantes do sertão dos flagelos do clima e da exclusão econômica e social.
122
A Guerra do Contestado, conflito armado entre a população cabocla e os representantes do poder estadual e
federal brasileiro, travado numa região rica em erva-mate e madeira pretendida pelos Estados do Paraná e
Santa Catarina, teve origem em conflitos sociais, frutos de desmandos, em especial no tocante à regularização
da posse de terras por parte dos caboclos.
123
DELGADO, Guilherme Costa. O setor de subsistência na economia brasileira: gênese histórica e formas
de reprodução. In: Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Luciana Jaccoud
(organizadora). Brasília:IPEA, 2005, p. 33.
69
No período de transição de uma economia agroexportadora para uma
economia urbano-industrial (período de 1930 a 1964)124, as políticas de proteção social na
área rural, apesar de algumas tentativas incipientes de intervenção estatal, pouco avançaram.
A subordinação dos valores da equidade e da justiça social aos interesses da maximização
econômica fez com que a atuação estatal na regulação e na provisão sociais continuasse
tratando essas políticas como questão secundária. Não houve, portanto, como bem observa
Pereira, “um rompimento decisivo com o laissez-faire nem com a antiga estrutura do poder
oligárquico da era agroexportadora”125 já que os aspectos sociais continuavam marginais na
política de Estado. Apenas o setor urbano mereceu maior atenção, mas, mesmo assim, de
forma limitada e precária.
Deu-se maior ênfase à proteção do trabalho e à expansão da proteção social
vinculada ao sistema de seguro social, beneficiando, de forma diferenciada, os trabalhadores
pertencentes a alguns grupos com maior poder de barganha do setor urbano. Foi o que
ocorreu, por exemplo, com os trabalhadores formais de alguns setores da economia como
transportes, indústrias e bancos que além dos direitos trabalhistas, passaram a ser protegidos
pela via securitária por meio das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), criadas a partir
do ano de 1923, e que ao serem reestruturadas, anos depois, deram origem aos Institutos de
Aposentadorias e Pensões (IAPs), conforme já mencionado nessa pesquisa.
Para o segmento dos trabalhadores rurais, a garantia de direitos sociais
mínimos foi bastante tardia se comparada aos direitos assegurados aos trabalhadores urbanos.
Não obstante a Constituição Federal de 1934126 expressamente determinar que todo
124
Algumas peculiaridades da experiência brasileira no campo das políticas sociais dimensionadas em períodos
históricos podem ser encontradas em: PEREIRA, Potyara. A. P. Necessidades Humanas: subsídios à crítica
dos mínimos sociais. 2002, p. 129.
125
PEREIRA, Potyara. A. P. Necessidades Humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. 2002, p. 130.
126
O texto constitucional de 1934 (art. 121) estabeleceu que a regulação das condições de trabalho e a proteção
social do trabalhador rural deveriam observar aos interesses econômicos do país. Por outro lado, o texto
constitucional determinou que tais direitos fossem regulados por lei específica. Com isso, a possibilidade
desses direitos serem regulados ficou atrelada aos interesses da classe política dominante da época. Ademais, a
70
trabalhador brasileiro tivesse direito de ser socialmente protegido, não houve, de fato, a
extensão desse direito aos rurais. Registre-se que o mesmo ocorreu em relação às normas
trabalhistas da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT127, editada em 1943, que excluiu
expressamente os assalariados rurais de alcançarem o acesso aos direitos nela previstos. Isso
demonstra o poder que as oligarquias rurais detinham no campo político para defender seus
interesses, embora o Estado intervencionista, organizado a partir do primeiro governo de
Getúlio Vargas, ter sido um importante instrumento para romper com o poder das oligarquias
rurais que se perpetuava desde a época do Brasil colônia.
A propósito, um dos impactos mais significativo da Era Vargas no meio
rural, como observa Marcus Dezemone, foi a de ter contribuído para o desenvolvimento de
uma “cultura de direitos”. Para esse autor, ao contrário do que outros estudos e pesquisas
acadêmicas apontam, o surgimento da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, embora
tenha sido considerada como não aplicável nas relações trabalhistas rurais, teve um impacto
importante na solução jurídica de conflitos no mundo rural, já que muitos trabalhadores rurais,
ante a existência de um vácuo jurídico no ordenamento brasileiro, se valeram desse
instrumento legal para reivindicar e alcançar na justiça seus direitos.128.
Constituição de 1934, explicitamente apontou que a proteção social, vinculada à relação salarial, seria
instituída pelo mecanismo da técnica securitária com contribuições proporcionais da União, do empregador e
do empregado. Tais princípios já condicionavam ao segmento rural uma proteção social fadada ao fracasso
pelas próprias características das relações do trabalho salariado no meio rural. (BRASIL. Constituição da
República Federativa do Brasil: 1934. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/
Constituicao/Constituiçao34.htm> Acesso em 15.08.2007).
127
A Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT estabeleceu em seu artigo 7º, alínea “b” a não aplicação de seus
preceitos aos trabalhadores rurais nos seguintes termos: “aos trabalhadores rurais, assim considerados aqueles
que, exercendo funções diretamente ligadas à agricultura e à pecuária, não sejam empregados em atividades
que, pelos métodos de execução dos respectivos trabalhos ou pela finalidade de suas operações, se
classifiquem como industriais ou comerciais”. Em tese, estariam os assalariados rurais cobertos pelas normas
trabalhistas da CLT, não fosse a parte final do referido dispositivo condicionando que o trabalho protegido
fosse apenas aquele classificado como industrial ou comercial. Assim, o assalariado rural ficou excluído pela
natureza da atividade exercida. (BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a
Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/19371946/_quadro.htm> Acesso em 15.08.07).
128
DEZEMONE, Marcus. Impactos da Era Vargas no mundo rural: leis, direitos e memória. In: PERSEU:
história, memória e política . Revisa do centro Sérgio Buarque de Holanda – Vol. 1. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2007. p. 183.
71
Certamente que se podem encontrar explicações dessa exclusão dos
trabalhadores rurais de um mínimo de proteção social no fato de o setor rural posicionar-se de
forma bastante subalterna diante da estratégia de desenvolvimento estabelecida após 1930.
Seguindo o raciocínio de Delgado e Schwarzer, a principal justificativa para tal situação
decorre do fato de que, mesmo os trabalhadores rurais constituírem a maioria da população
brasileira até o ano de 1960, eles “não representavam grupo de pressão com capacidade de
articulação política e vocalização suficiente para que o Estado populista-paternalista os visse
como grupo social a ser integrado por meio da expansão significativa da cobertura de
programas sociais”129.
São poucas, portanto, as referências sobre a extensão de direitos sociais aos
trabalhadores rurais na primeira metade do século XX. Os escassos direitos, quando
legalmente instituídos, situavam-se em normas esparsas e serviam muito mais aos interesses
dos grandes proprietários rurais do que necessariamente aos interesses dos trabalhadores.
Cita-se o Estatuto da Lavoura Canavieira - Decreto-Lei n. 3.855, de 1941 -, que ao disciplinar
as relações entre os grandes usineiros e os fornecedores da cana, estabeleceu algumas regras,
nem sempre cumpridas, para regular as precárias relações de trabalho a que se submetiam os
lavradores colonos ou salariados neste setor. Nesse sentido, o Estatuto proibiu a redução da
remuneração devida ao trabalhador com fundamento na má colheita; instituiu o direito à
moradia e à assistência médica e hospitalar; e previu indenização no caso de despedida injusta
do trabalhador. Entretanto, o que mais chama a atenção na regulação da relação de trabalho
estabelecida era a determinação para que o grande proprietário concedesse ao trabalhador uma
área de terra, a título gratuito, suficiente para plantação e criação necessárias à sua
129
DELGADO, Guilherme; SCHWARZER, Helmut. Evolução histórico-legal e formas de financiamento da
previdência rural no Brasil. In: A universalização de direitos sociais no Brasil: a previdência rural nos anos
90. Guilherme Costa Delgado e José Celso Cardoso Jr. (coordenadores). Brasília: IPEA, 2000, p. 189.
72
subsistência e de sua família130. Desse modo, reproduzia-se dúbia relação de trabalho de
maneira que a concessão de um pedaço de terra servia para demarcar, no âmbito do trabalho
assalariado, o trabalho autônomo em regime de produção de subsistência.
Não faltaram tentativas na gestão do Estado populista da era Vargas para
estabelecer certa uniformização da proteção social para o conjunto dos trabalhadores. Em
1945, o governo decretou a criação do Instituto de Serviços Sociais do Brasil (ISSB)131
visando a unificação de todos os fundos das instituições previdenciárias então existentes e a
extensão dos benefícios do seguro social para toda a população ativa do país. No entanto,
apesar da louvável iniciativa, que se constituía na primeira tentativa de universalização da
previdência social no Brasil, o governo tornou sem aplicação o crédito orçamentário destinado
à instalação do ISSB, não permitindo a sua execução.
2.2 Os primeiros institutos de garantia de direitos sociais aos trabalhadores
rurais
Um panorama sócio-político importante para a compreensão da inserção dos
trabalhadores rurais ao acesso a direitos mínimos de proteção configura-se na década de 1950.
De um lado, porque se intensifica a luta entre o Estado populista e as oligarquias agrárias pelo
controle da mão-de-obra rural, vista como potencialmente explosiva, mas, ao mesmo tempo,
considerada estratégica na manutenção da legitimação quer do poder tradicional, quer do
poder burocrático, que precisava demarcar sua posição nas áreas rurais de onde sempre esteve
muito ausente. Como todo poder político que procura legitimar-se pela via eleitoral, isso era
necessário já que a maioria dos votos ainda estava no meio agrário. De outro lado, porque, no
contexto da modernização da agricultura brasileira intensificou-se o processo de
130
O pedaço de terra que os grandes proprietários concediam aos trabalhadores do setor canavieiro para que
esses pudessem produzir alimentos para subsistência correspondia, em média, a dois hectares. Essa regra ficou
conhecida como “Lei do Sítio” e perdurou até a década de 1980.
131
O Instituto de Serviços Sociais do Brasil (ISSB), criado pelo Decreto-Lei 7.526, de 7 de maio de 1945, com
caráter de administração única e controle centralizado, ficou apenas na intenção de estender aos rurais os
mecanismos de proteção social já vigentes para o setor urbano.
73
proletarização em algumas regiões do país. É nesse contexto que surgem as ligas
camponesas132 dando a necessária sustentação a um amplo movimento para que os
trabalhadores rurais se organizassem em torno de sindicatos. Neste cenário, a Igreja Católica,
o Partido Comunista e o Partido Trabalhista Brasileiro aparecem como protagonistas de um
processo organizativo dos trabalhadores que viria, em dezembro de 1963, resultar na fundação
da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG. Desde então,
tornaram-se cada vez mais intensas as demandas e reivindicações por políticas de proteção
social para os trabalhadores rurais.
Os interesses do Estado populista somado às pressões políticas para que
fossem instituídos mecanismos de proteção social que pudessem minorar a precariedade das
relações de trabalho no campo, bem como a exclusão social, resultou na elaboração e
aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural - Lei 4.214/63 – que, além de estabelecer uma
legislação assecuratória de direitos trabalhistas, previu também a criação do Fundo de
Assistência e Previdência do Trabalhador Rural com um significativo plano de benefícios.
Do ponto de vista da estrutura social e da produção, a extensão de alguns
direitos trabalhistas ao campo passou a ser vista, de acordo com Oliveira, “menos como ação
progressista do Estado brasileiro e mais como tática diversionista à luta dos trabalhadores pela
propriedade dos meios de produção”133. De fato, ao invés de se aprovar uma lei que facilitasse
o acesso à terra, procurou-se estabelecer alguns direitos (salário, férias, aviso prévio, etc.)
essencialmente vinculados ao trabalhador assalariado. Por outro lado, tal legislação não levou
em consideração as particularidades das relações de trabalho no campo, estabelecendo mera
132
As Ligas Camponesas surgiram a partir de 1955, em Pernambuco, sendo um dos motivos de sua organização,
conforme expõe Delgado e Schwarzer, a constituição de associação de trabalhadores rurais para auxílio mútuo
aos sepultamentos de seus membros. (DELGADO, Guilherme; SCHWARZER, Helmut. Evolução históricolegal e formas de financiamento da previdência rural no Brasil. In: A universalização de direitos sociais no
Brasil: a previdência rural nos anos 90. Guilherme Costa Delgado e José Celso Cardoso Jr. (coordenadores).
Brasília: IPEA, 2000, p. 189.
133
OLIVEIRA, Mauro Márcio. Pequenos agricultores e reforma agrária no Brasil: perspectivas e dilemas
numa quadra de mudanças. Brasília, 1997, p. 16-17
74
sobreposição da realidade urbana sobre a rural. Isso fez com que, do ponto de vista concreto,
não se lograsse êxito na aplicação de tais normas. O mesmo pode-se dizer em relação ao plano
de proteção social que não se efetivou devido a não constituição de uma base financeira
suficiente para a execução do programa, além de serem praticamente inviáveis os meios de
fiscalização e de recolhimento das contribuições preestabelecidos·.
A nova conjuntura social, econômica e política que se abriu com o golpe de
1964 gerou expectativas de que se avançaria na implantação de políticas para fazer o
enfrentamento aos problemas sociais existentes no campo. Dentre as propostas de reformas
utilizadas pelo governo militar, como justificativa para se contrapor ao projeto nacional
populista que vinha sendo executado, estava a reforma agrária como uma das medidas
prioritárias a ser regulada e disciplinada institucionalmente, como forma de amenizar as
tensões no campo. O Estatuto da Terra - Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 - teve essa
pretensão sem, no entanto, obter êxito, pois estabeleceu a propriedade familiar como base da
reforma agrária, mas também delegou à grande empresa rural a função condutora da
modernização e único exemplo eficaz do uso racional da terra.
Contudo, o Estatuto da Terra se destaca por inserir nova regulamentação
sobre os contratos agrários, dando maior “proteção ao débil econômico”134 e superando as
obsoletas regras civilistas que normatizavam os contratos de arrendamento e de parceria
rural135. O Estatuto também se destaca por conferir identidade jurídica a determinadas
categorias sociais existentes no campo ao estabelecer, por exemplo, uma determinada
concepção de reforma agrária e por conceituar o que seria latifúndio, propriedade familiar,
134
Paulo Torminn Borges usa a expressão “proteção ao débil econômico” enfatizando que o Estatuto da Terra
normatizou os contratos agrários subordinando-os a cláusulas inarredáveis de proteção à parte mais vulnerável
da relação contratual, o que serviu de contraponto à soberania da vontade das partes tão apregoada pelo
liberalismo econômico. Tais cláusulas estão bem delineadas nos artigos 92 a 96 da Lei 4.504/64. (Ver:
BORGES, Paulo Torminn. Institutos do direito agrário. 8. ed. – São Paulo: Saraiva, 1994, p. 77 e 78).
135
Antes da vigência do Estatuto da Terra o arrendamento rural era regulado pelos artigos 1.211 a 1.215 e a
parceria rural era regulada pelos artigos 1.410 a 1.423 do Código Civil brasileiro. Atualmente, por expressa
disposição do artigo 92, § 9º do Estatuto da Terra, o Código Civil é fonte subsidiária do direito agrário.
75
empresa rural, função social, desapropriação, tributação, etc. Para Regina Bruno, a
importância do Estatuto da Terra vai ainda mais além:
Sabemos que o fato de existir uma legislação agrária marcou todo o ethos do
sindicalismo rural. Como bem avaliou Regina Novaes, numa discussão sobre
a questão, houve uma apropriação do discurso pré-64 e isto traz à luz a
marca da continuidade. Na verdade, é o Estatuto que vai fazer a relação entre
o Estado e o sindicalismo na luta por terra. É ele que abre o diálogo - tenso,
difícil e com lutas - entre os trabalhadores rurais e o Estado.136
O que efetivamente marca a viabilidade de um regime de proteção social
para os trabalhadores rurais é a instituição do Programa de Assistência e Previdência do
Trabalhador Rural (PRORURAL) - Lei Complementar n.º 11/71 - cuja administração ficou a
cargo do Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (FUNRURAL)137.
Decorre, a partir de então, um programa de proteção oferecendo, ainda que precariamente,
benefícios de aposentadoria por idade, invalidez, pensões, dentre outros, com financiamento
vinculado à contribuição sobre o valor da comercialização da produção rural e a uma
contribuição sobre a folha salarial das empresas do setor urbano, mediante a qual se instituía
uma transferência de renda para o FUNRURAL. É de se notar que a não-contribuição direta
do beneficiário para o sistema, associado ao baixo valor uniformizado dos benefícios rurais,
passa a ser um fator diferenciado da previdência urbana. Conforme Malloy138, o
PRORURAL/FUNRURAL representou um rompimento com os princípios do seguro social
136
BRUNO, Regina. O Estatuto da Terra: entre a conciliação e o confronto. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/cinco/regina5.htm> Acesso em 30 de agost.
2008.
137
O PRORURAL/FUNRURAL beneficiava os trabalhadores rurais assalariados e em regime de economia
familiar, pescadores (a partir de 1972) e garimpeiros (a partir de 1975), bem como seus dependentes,
oferecendo benefícios precários de aposentadoria por idade aos 65 anos, aposentadoria por invalidez, pensão
para viúvas e órfãos, auxílio-funeral e assistência médica. A percepção da aposentadoria por idade ou
invalidez era devida apenas para o arrimo de família e perfazia o valor de meio salário mínimo como teto; a
pensão por morte equivalia a 30% do salário mínimo. A partir de janeiro de 1974, por força da Lei
Complementar n.º 16, de outubro de 1973, a pensão por morte passou a ser 50% do valor salário mínimo,
sendo também incluída no plano de benefícios a Renda Mensal Vitalícia para idosos a partir dos setenta anos
de idade ou para inválidos, dirigida àqueles que não completassem os requisitos estabelecidos para a
aposentadoria / pensão, também no valor de meio salário mínimo. Incluiu-se também, o seguro acidente de
trabalho rural. A assistência médica era administrada via convênios com organizações locais.
138
MALLOY, James M. Previdência social e distribuição de renda: notas de pesquisa. In: TAVARES, Maria da
Conceição (et al.). Valor, força de trabalho e acumulação monopolista. Estudos Cebrap. Petrópolis-RJ:
Editora Vozes, n/d, p. 126-127.
76
de padrão contributivo bismarckiano que caracterizaram o desenvolvimento da previdência
social urbana no Brasil, além de ser um elemento inovador no sentido de gerar uma
redistribuição de renda das áreas urbanas para as rurais caracterizando-se como um modelo
tributário progressivo e redistributivo139, não obstante o seu financiamento ter por base
impostos indiretos, comumente transferidos para os preços finais dos produtos rurais e das
manufaturas urbanas.
Salienta-se, que os esparsos institutos jurídicos regulatórios dos mecanismos
de proteção social e das relações de trabalho na área rural, instituídos até o início da década de
1970, constituíram a figura do “trabalhador rural” sem fazer qualquer distinção entre o
assalariado rural e o trabalhador autônomo por conta própria ou em regime de produção
familiar. Essa distinção, do ponto de vista das relações de trabalho passou a ser feita com a
Lei n.º 5.889, de 8 de junho de 1973, que cuidou de regular toda matéria sobre o trabalho rural
subordinado até então não caracterizado nem mesmo pelo Estatuto do Trabalhador Rural de
1963140.
Observa-se que essa imbricação em torno do conceito de “trabalhador rural”
advém, conforme já mencionamos, desde meado do século XIX com a transição do trabalho
escravocrata para o trabalho livre. Trata-se de um conceito que traz na sua gênese a marca de
relações precárias do trabalho subordinado em concomitância com o exercício do trabalho em
139
O sistema bismarckiano apresenta algumas características básicas, a saber: (i) a um benefício deve
corresponder uma contribuição; (ii) essa contribuição deve ser tripartite (segurado, empregador e Estado); e
(iii) o benefício resultante deve estar vinculado ao padrão de rendimentos pregressos do segurado.
140
Antes da Lei 5.889/73 a relação de trabalho rural, conforme acima mencionamos, era regulada pela Lei n.º
4.214/63, que conceituava genericamente o “trabalhador rural” como sendo “toda pessoa física que presta
serviços a empregador rural, em propriedade ou prédio rústico, mediante salário pago em dinheiro ou in
natura, ou parte in natura e parte em dinheiro”. Já a Lei 5.889/73 instituiu a figura do empregado
conceituando-o como “toda pessoa física que, em propriedade ou prédio rústico, presta serviço de natureza
não eventual a empregador rural, sob dependência deste e mediante salário”. A diferença básica entre os dois
conceitos está calcada na relação de subordinação não prevista no Estatuto do Trabalhador Rural de 1963. É o
que nos esclarece José Luiz Ferreira Prunes, ao referir-se ao conceito de “trabalhador rural” previsto na Lei
4.214/63: “é de se notar que aquele artigo não menciona a ‘subordinação’ como um traço distintivo do
contrato de trabalho e admitia a hipótese de pagamento somente in natura”. (Ver: PRUNES, José Luis
Ferreira. Dicionário LTr. Direito do trabalho rural. São Paulo: LTr, 1991, p. 314/315). Cumpre frisar, que a
Lei nº 5.889/73 revogou a Lei 4.214/63.
77
regime de produção familiar para a própria subsistência. Retratam bem essa situação as
expressivas palavras de Lyndolpho Silva141 sobre as condições de vida e de trabalho
enfrentada pelos trabalhadores rurais nas décadas de 1950/1960:
A luta dos posseiros concentrava-se na defesa da titulação da terra, com base
na lei do usucapião, já que cultivavam a terra e pagavam impostos. A luta
dos assalariados rurais era por melhores salários.
A maioria dos camponeses morava na fazenda como colonos e era semiproletária. Eles recebiam um salário e permissão para plantar nas ruas
(espaço entre fileiras de plantação) para o próprio sustento. Era comum o
trabalho sem registro em carteira. Aliás, este era um documento difícil de ser
encontrado no campo. Fiscalização também não existia.142
Tão forte e marcante foi essa característica em torno das relações de
trabalho no meio rural, que mesmo após a Constituição Federal de 1988 - em que pese o texto
constitucional instituir princípios e regras para se proceder à maior distinção dessas relações –
a política de proteção social do Estado brasileiro não se desvencilhou por completo do
preceito de estabelecer um tratamento homogêneo aos trabalhadores rurais em determinadas
circunstâncias. Isso ficou caracterizado na política previdenciária, ao se estabelecer ao
conjunto dos trabalhadores rurais regras comuns de acesso ao benefício da aposentadoria por
idade.
O que percebemos, no entanto, é que este tratamento histórico encontra-se
em via de esgotamento, de modo que o direito à proteção social caminha para maior
condicionamento a regras específicas que demarquem e caracterizem os trabalhadores rurais
nas suas especificidades, considerando a relação de trabalho a qual estão submetidos. Daí
resultar um futuro incerto quanto à efetivação desse direito, sobretudo para os denominados
assalariados rurais. É o que adiante veremos.
141
Lyndolpho Silva foi uma das grandes lideranças do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras
Rurais. Em 1954, ajudou na organização e na fundação da União dos Lavradores Agrícolas do Brasil, sendo
eleito seu presidente. Mais tarde, no ano de 1963, foi eleito primeiro presidente da Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura – CONTAG.
142
SILVA, Lyndolpho. Entrevista concedida à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. In
Revista CONTAG 30 anos de luta: dignidade e cidadania. Brasília: gráfica sindical, 1993, p. 10.
78
3 Os trabalhadores rurais no contexto da Seguridade Social brasileira
3.1. Os novos parâmetros de proteção social
São incontestáveis as transformações e a significativa evolução que a
Constituição Federal de 1988 representou no modelo de proteção social brasileiro. Visando à
universalização da cidadania e rompendo com as noções de cobertura restrita a setores
inseridos no mercado formal de trabalho, o texto constitucional, promulgado em um contexto
de transição do regime autoritário para a democracia, institui um sistema de Seguridade Social
sustentado por mecanismos mais solidários e redistributivos, composto por “um conjunto
integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinadas a assegurar os
direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (Título VIII, Capítulo II, Seção
I, art. 194)143.
Dentro desse novo reordenamento, a política de proteção social aplicada à
área rural deixou de ter um tratamento administrativo-institucional específico, que oferecia
benefícios precários ao público rural, para alinhar-se a uma política mais ampla desenvolvida
no âmbito da Seguridade Social balizada pelos princípios sobre os quais já nos referimos, em
especial da universalização dos direitos, da solidariedade e da eqüidade nas regras de custeio e
de tratamento entre homens e mulheres do setor rural e entre trabalhadores rurais e urbanos.
Como bem lembra Eduardo Fagnani144, a Seguridade Social brasileira foi
concebida para dar novos rumos ao modelo de proteção fazendo uma transição de uma base
estritamente contratualista, focada no direito individual associado à contribuição, para um
modelo mais solidário entre os contribuintes, centrado no direito coletivo decorrente da
cidadania. Ainda de acordo com esse autor, a nova sistemática de proteção foi instituída para
143
BRASIL. Constituição da República Federal do Brasil: 1988. 23. ed. Brasília: Câmara dos Deputados,
Coordenações de Publicações, 2004.
144
FAGNANI, Eduardo. “Seguridade Social no Brasil (1988/2006): longo calvário e novos desafios”. In: Carta
social do Trabalho. n. 7. Eduardo Fagnani (organizador) Campinas: UNICAMP/CESIT, setembro a
dezembro de 2007, p. 37-38.
79
ser portadora de duas premissas fundamentais: a primeira, de que “todo cidadão brasileiro é
titular de um conjunto mínimo de direitos sociais independente de sua capacidade contributiva
para o financiamento dos benefícios e serviços implícitos nesses direitos”; a segunda,
considera que “é da responsabilidade da sociedade diretamente, ou por intermédio de
adequada estrutura tributária da União, prover os recursos para assegurar o cumprimento do
enunciado acima”145.
Nesse sentido, as principais mudanças trazidas pelo texto constitucional de
1988 contemplando os trabalhadores rurais ocorreram na área da Previdência Social, cuja
regulamentação se deu pelas Leis n.º 8.212/91 - Lei de Custeio da Seguridade Social - e
8.213/91 - Lei de Benefícios da Previdência Social. As principais mudanças implementadas
foram as seguintes: a) equiparação de condições entre homens e mulheres para acesso aos
benefícios previdenciários, já que no antigo regime o direito à proteção era específico para o
cabeça do casal; b) estabelecimento de um piso de aposentadorias e pensões no valor de um
salário mínimo para os segurados urbanos e rurais , enquanto que o
regime anterior
estabelecia teto em meio salário mínimo para o público do Funrural e pensões limitadas a
30% do benefício principal; c) redução do limite de idade para aposentadoria de trabalhadores
rurais que passou a ser de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres, enquanto que para os
segurados urbanos ficou estabelecido a idade de 65 e 60 anos, respectivamente, para homens
e mulheres; d) participação no financiamento da Seguridade Social com contribuição
incidente sobre a comercialização da produção, regra esta aplicável aos trabalhadores rurais
denominados segurados especiais e aos empregadores rurais; e) carência para o acesso aos
benefícios dos trabalhadores rurais passou a ser medida em tempo de atividade rural e não em
tempo de contribuição, como ficou estabelecido para os segurados urbanos. Essa regra,
145
FAGNANI, Eduardo. “Seguridade Social no Brasil (1988/2006): longo calvário e novos desafios”. In: Carta
social do Trabalho. n. 7. Eduardo Fagnani (organizador) Campinas: UNICAMP/CESIT, setembro a
dezembro de 2007, p. 38.
80
contudo, não foi equânime para todos os trabalhadores rurais, já que para os assalariados a sua
aplicabilidade ficou restrita ao acesso do benefício da aposentadoria por idade.
As transformações daí decorrentes provocam fortes impactos no sistema de
Seguridade Social e na própria dinâmica da política de Previdência Social, sobretudo quando
se analisa a situação dos trabalhadores rurais que se valem de regras diferenciadas de
contribuição e de elegibilidade para o recebimento de benefícios, o que rompe com o viés de
proteção alicerçado no paradigma tradicional do seguro social. Isso tem causado impactos
significativos nas condições de vida dos beneficiários rurais e na estrutura econômica e
produtiva das famílias rurais que exploram a terra por conta própria em regime de produção
familiar146, além de contribuir na dinamização da economia dos pequenos municípios
brasileiros147.
Com efeito, essa nova sistemática protetiva, com pressupostos bem
definidos no texto constitucional, traz uma configuração própria para o trabalhador rural que
explora a terra de forma independente e autônoma, individualmente ou em regime de
produção familiar, com parâmetros conceituais que já haviam sido estabelecidos nos institutos
jurídicos de outrora148, sendo esses trabalhadores agora denominados perante a previdência
social como segurados especiais. A esses trabalhadores, a proteção social passa a ser
reconhecida efetivamente como um direito de cidadania que se universaliza, na medida em
que é uma política que não fica mais subserviente aos interesses do gestor público e não é
146
Para aprofundamento sobre os impactos da política de proteção social na área rural, em especial sobre a
previdência social, recomendamos alguns estudos realizados por técnicos do IPEA condensados na obra: A
universalização dos direitos sociais no Brasil: a previdência rural nos anos 90. Guilherme Delgado e José
Celso Cardoso Jr. (organizadores), Brasília: IPEA, 2000.
147
Sobre o impacto dos benefícios previdenciários na economia dos municípios, ver: FRANÇA, Álvaro Sólon.
A Previdência Social e a Economia dos Municípios. 2ª Ed.Brasília: ANFIP, 2000.
148
O texto constitucional, em seu artigo 195, § 8º, constitui-se num referencial de suma importância para a
efetividade do direito à proteção social aos denominados trabalhadores rurais em regime de produção familiar,
reconhecidos pela Previdência como segurados especiais. Algumas diretrizes do referido texto constitucional
já estavam presentes na Lei Complementar n.º 11/71 como, por exemplo, a contribuição desses trabalhadores
para a seguridade social com incidência de uma alíquota sobre a comercialização da produção rural. Outras
diretrizes são uma inovação na medida em que o direito à proteção é assegurado não mais apenas ao chefe ou
arrimo de família, mas também ao cônjuge e a todos os demais membros familiares que exercem a atividade
rural no âmbito do regime de economia familiar.
81
assegurada apenas ao chefe ou arrimo de família, como foi no passado, mas sim a todos os
membros que compõem o mesmo grupo familiar e estejam exercendo a atividade rural em
regime de economia familiar sem empregados permanentes.
Para o segmento assalariado rural, os institutos jurídicos de proteção social
pós 1988149 passaram a equiparar esses trabalhadores, para fins de direitos e obrigações, aos
trabalhadores urbanos. Com isso, a proteção social deixa de ser concebida sob a tutela de um
conceito homogêneo, qual seja, o de “trabalhador rural”, para projetar-se sob novos
enquadramentos conceituais e sob novas regras que vão tornar o acesso ao direito de proteção
bastante restritivo devido às especificidades que marcam o modo produção e as relações de
trabalho no campo, sobretudo no trabalho assalariado em atividades de curta duração.
3.2. A proteção social sob dois vieses: natureza da atividade x natureza das
relações de trabalho
Como já afirmamos, as inovações trazidas pela Constituição Federal de
1988 foram extremamente significativas para o reconhecimento e a efetividade do direito à
proteção social dos trabalhadores rurais. Ao mesmo tempo em que se reconhecem direitos e
obrigações específicas, as diretrizes constitucionais tratam com deferência especial o
trabalhador rural conceituando-o enquanto gênero para fins de proteção social. É o que se
depreende, por exemplo, do artigo 7º, caput, da Constituição quando faz deferência especial
aos direitos sociais dos trabalhadores rurais. O mesmo sentido está prescrito no artigo 201, §
7º, II, ao assegurar aos trabalhadores rurais150 a redução, em cinco anos, na idade de
aposentadoria em relação à regra geral.
Já nas normas infraconstitucionais previdenciárias, se por um lado o
legislador procurou dar relevância à natureza da atividade exercida pelos trabalhadores rurais
149
Referimo-nos aqui à Lei n. 8.212/91, que trata do custeio da Seguridade Social e à Lei n. 8.213/91, que trata
dos benefícios da previdência Social
150
Nos termos do art. 201, § 7º, inciso II, é assegurado aos trabalhadores rurais de ambos os sexos, o direito à
aposentadoria por idade aos 60 anos, se homem, e aos 55 anos, se mulher, inclusive para aqueles que exerçam
atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural e o pescador artesanal.
82
para fins de aplicação do critério de redução da idade de aposentadoria, por outro lado foram
os trabalhadores rurais tipificados em três categorias distintas: empregado rural; contribuinte
individual (usualmente denominado trabalhador autônomo); e as espécies remanescentes
enquadradas como segurados especiais. Cada uma dessas categorias passou a ter regras
próprias de vinculação com o sistema de Seguridade Social e de Previdência Social, mas com
intrínseca relação entre si.
Importante aqui observar que os institutos de proteção social pós 1988
rompem com o principal fundamento que concedia um tratamento equânime entre o
trabalhador rural assalariado e o trabalhador rural em regime de produção familiar para fins de
acesso ao direito à proteção social. Antes esse tratamento era fundamentado na natureza da
atividade exercida pelo trabalhador, qual seja, a atividade rural. Agora é a natureza da relação
de trabalho – que pode ser com vínculo empregatício, prestado a terceiros de forma autônoma
ou, ainda, por conta própria em regime de produção familiar – que define por quais meios se
alcança a proteção social.
Nesse sentido, foram mantidas regras especiais de proteção previdenciária
apenas para os trabalhadores rurais que laboram em regime de produção familiar. Para o
assalariado rural as regras de proteção seguem a linha do seguro social tradicional, ou seja,
pelo critério da equivalência contribuição/benefício, comportando uma exceção a essa regra
no caso do acesso ao benefício da aposentadoria por idade, o qual veremos mais adiante. Por
ora, cumpre enfatizar que demonstrada a relação de vínculo empregatício, a proteção social
reger-se-á pelas peculiaridades que conformam a condição de empregado. Do contrário, em
não sendo comprovada a relação de vínculo empregatício, o trabalho prestado a terceiros é
caracterizado como eventual, o que qualifica o assalariado rural como trabalhador autônomo,
portanto, um contribuinte individual.
83
A propósito, impende observar ser muito difícil para um trabalhador que
vive em condições de miserabilidade efetuar, por sua livre e espontânea vontade,
contribuições mensais para o regime de proteção estatal – como se um contribuinte individual
fosse –, objetivando obter garantias contra os riscos sociais a que está exposto. Diríamos aqui,
que para a grande maioria dos trabalhadores rurais assalariados a primeira ordem de
prioridade é garantir-se contra o risco da fome, passível de afetar a si próprio e aos seus
familiares. A esse respeito são oportunas as observações de Castel de que um modelo de
proteção calcado na personificação ou individualização do direito pode até ter conseqüências
positivas na medida em que “corrige o caráter impessoal, opaco e burocrático que caracteriza
em geral a distribuição de prestações”151. No entanto, adverte esse mesmo autor,
A lógica contratual, cujo paradigma é a troca comercial, subestima
gravemente a disparidade das situações entre os contratantes. Ela coloca o
beneficiário de uma prestação em situação de solicitante, agindo como se ele
dispusesse do poder de negociação necessário para travar uma relação de
reciprocidade com a instância que dispensa as proteções. Raramente este é o
caso. O indivíduo tem necessidade de proteções precisamente porque, como
indivíduo, ele não dispõe por si mesmo dos recursos necessários para
garantir sua independência. Portanto, onerá-lo com a responsabilidade
principal do processo que deve assegurar-lhe esta independência, é na
maioria das vezes impor-lhe um negócio de otário.152
Assim, na medida em que a atividade rural deixa de ser a referência para o
acesso do assalariado à proteção social projetam-se desafios e conflitos extremamente
acentuados para a garantia dessa mesma proteção. Isso porque, a efetividade desse direito
praticamente fica condicionada à existência de contrato de trabalho formal, algo que no
espaço rural brasileiro nunca foi a regra. Ao mesmo tempo, passa-se a exigir o constante
discernimento entre uma relação de trabalho com vínculo empregatício e aquela sem vínculo
empregatício caracterizadora, portanto, do trabalho eventual. Considerando que na área rural
há uma predominância das relações de trabalho de curtos períodos (em épocas de plantio,
151
CASTEL, Robert. A insegurança social: o que é ser protegido? Tradução de Lúcia M. Endlich Orth. Rio de
Janeiro: Vozes, 2005, p. 80.
152
CASTEL, Robert. A insegurança social: o que é ser protegido? Tradução de Lúcia M. Endlich Orth. Rio de
Janeiro: Vozes, 2005, p. 80.
84
colheitas, etc.) essa relação torna-se extremamente opaca à luz dos conceitos estabelecidos na
legislação vigente.
3.3. Estrutura da previdência rural brasileira
Os novos parâmetros de proteção social dos trabalhadores rurais,
estabelecidos a partir da Constituição e contidos agora no Regime Geral da Previdência
Social, foram instituídos sob novas regras de custeio e de benefícios, constituindo uma
arquitetura própria comumente denominada de “Previdência Rural” e amparada por um
sistema maior que é a Seguridade Social.
Por isso, para maior visualização dos desafios que se projetam em termos de
garantia da proteção previdenciária para os assalariados rurais, torna-se imprescindível, nesse
tópico, adentrarmos a uma análise sobre os elementos que caracterizam os segurados rurais no
Regime Geral da Previdência Social, bem como os critérios de vínculo (regras contributivas)
e de elegibilidade para o acesso aos diversos benefícios que o sistema assegura.
3.3.1 Tipificação dos segurados rurais
3.3.1.1 Os segurados especiais
A sistemática de proteção, estabelecida no texto constitucional, traz uma
configuração própria para o trabalhador rural que tem autonomia no seu trabalho e explora a
terra individualmente ou em regime de produção familiar, embasada nos parâmetros
conceituais que já haviam sido estabelecidos nos institutos jurídicos de outrora, sendo esses
trabalhadores agora denominados perante a Previdência Social como segurados especiais.
Os elementos caracterizadores da figura do segurado especial encontram-se
especificados no artigo 195, § 8º da Carta da República, que ainda estabelece parâmetros para
uma política de proteção social no campo com contornos de universalidade e de eqüidade.
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma
direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos
85
orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e
das seguintes contribuições sociais:
........................................................................
§ 8º. O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador
artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades
em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão
para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o
resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos
termos da lei.153
Se por um lado o legislador constituinte determinou parâmetros
contributivos para o segurado especial semelhantes ao da política do Prorural / Funrural (Lei
Complementar n.º 11/71), qual seja, uma contribuição incidente sobre o resultado da
comercialização da produção, por outro inovou ao ampliar o direito à proteção social
previdenciária tornando-o extensivo a todos os membros de um mesmo núcleo familiar e não
apenas ao “chefe” da família. A delimitação imposta foi a não utilização pelo grupo familiar
do concurso de empregados permanentes para ajudar a lavrar a terra.
São, portanto, esses requisitos que delineiam o conceito de segurado
especial estabelecido na legislação infraconstitucional - Lei 8.212/91 -, conceito este que
recentemente foi alterado substancialmente por disposições introduzidas pela da Lei 11.718,
de 23 de junho de 2008. Nesse sentido:
Art. 11. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes
pessoas físicas:
................................................................................
VII – como segurado especial: a pessoa física residente no imóvel rural
ou em aglomerado urbano ou rural próximo a ele que, individualmente ou
em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de
terceiros, na condição de:
a) produtor, seja proprietário, usufrutuário, possuidor, assentado,
parceiro ou meeiro outorgados, comodatário ou arrendatário rurais, que
explore atividade:
1. agropecuária em área de até 4 (quatro) módulos fiscais;
153
BRASIL. Constituição da República Federal do Brasil: 1988. 23. ed. Brasília: Câmara dos Deputados,
Coordenações de Publicações, 2004.
86
2. de seringueiro ou extrativista vegetal que exerça suas atividades nos
termos do inciso XII do caput do art. 2o da Lei no 9.985, de 18 de julho de
2000, e faça dessas atividades o principal meio de vida;
b) pescador artesanal ou a este assemelhado que faça da pesca profissão
habitual ou principal meio de vida; e
c) cônjuge ou companheiro, bem como filho maior de 16 (dezesseis)
anos de idade ou a este equiparado, do segurado de que tratam as alíneas a e
b deste inciso, que, comprovadamente, trabalhem com o grupo familiar
respectivo.
§ 1o Entende-se como regime de economia familiar a atividade em que
o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e
ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em
condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de
empregados permanentes. 154
A nova redação dada ao citado artigo 11, inciso VII, da Lei 8.213/91,
especifica novos tipos de segurados especiais que não estavam contemplados no texto
anterior, como o usufrutuário, o assentado, o possuidor, o comodatário, o extrativista. Antes o
texto da lei se limitava a identificar o produtor, o parceiro, o meeiro e arrendatário rurais e o
pescador artesanal. É de se anotar, entretanto, que o rol de segurados mencionados não é
taxativo. Outras figuras jurídicas como o condômino rural, o acampado cadastrado nos
programas de reforma agrária, dentre outros, estão insertas no mesmo conceito sendo,
inclusive, devidamente reconhecidos pelo INSS em suas normas internas155.
Outro elemento conceitual, introduzido pela Lei 11.718/2008, foi
condicionar o enquadramento do segurado especial e do seu grupo familiar pelo tamanho da
área de terra explorada, ou seja, até o limite de quatro módulos fiscais156. Trata-se de uma
154
BRASIL. Lei 8.212, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano
de Custeio, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/
Leis/QUADRO/1991.htm> Acesso em 24.08.2008. Na tipificação dos segurados da previdência social feita
pela Lei n. 8.212/91 (plano de custeio), há sempre um dispositivo correspondente na Lei n. 8.213/91 - plano de
benefícios.
155
Ver: Instrução Normativa INSS / PRES n.º 20, de 10 de outubro de 2007, que Estabelece critérios a serem
adotados pela área de Benefícios. Disponível em: <http://www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/38/INSSPRES/2007/20.htm> Acesso em: 27.05.2008. Ver também o Parecer CONJUR/MPS nº 10, de 17 de janeiro
de 2008 - DOU de 18/01/2008. Disponível em: <http://www81.dataprev.gov.br/ sislex/ paginas/
60/2008/10.htm> Acesso em 27.05.2008.
156
O termo módulo fiscal foi criado pelo Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964), em seu artigo 50, que cuida do
cálculo do ITR (imposto territorial rural), e constitui uma unidade de medida expressa em hectares, fixada para
cada município, feita a partir da catalogação econômica dos imóveis rurais, variando com base em indicadores
87
questão polêmica, já que o art. 195, § 8º do texto constitucional não impõe esse tipo de
restrição, mas que segue os parâmetros conceituais de outras normas visando uniformizar o
entendimento do que seja o agricultor familiar para fins de destinação de políticas públicas. É
o que ocorre, por exemplo, na Lei n.º 11.326, de 24 de julho de 2006, que estabelece os
conceitos, princípios e instrumentos destinados à formulação das políticas públicas
direcionadas à agricultura familiar e empreendimentos familiares rurais, conceituando o
agricultor familiar como aquele que não detenha área superior a quatro módulos fiscais. Regra
semelhante está prevista na Lei n.º 8.629, de 25/02/93, que regulamenta as políticas relativas à
reforma agrária com base nos princípios do art. 185 da CF/88 e que define a pequena
propriedade157 como sendo o imóvel rural de área compreendida entre um e quatro módulos
fiscais.
Entretanto, a característica fundamental que demarca o conceito de segurado
especial, e que nos interessa pela intrínseca relação com o objeto dessa pesquisa, refere-se ao
tipo de trabalho de terceiros possível de ser utilizado no âmbito da agricultura familiar para
ajudar no cultivo da terra. A esse respeito, dedicaremos um tópico específico mais adiante
para abordar essa questão, por entendermos que os próprios institutos jurídicos de proteção
social impõem restrições desproporcionais a esse segmento em relação à utilização de mãode-obra assalariada, o que contribui para intensificar o alto grau de informalidade do trabalho
no campo e, conseqüentemente, para a baixa cobertura da proteção previdenciária dos
assalariados rurais.
econômicos e de produtividade de cada região e indicadores específicos de cada imóvel. Para o cálculo do
módulo, são considerados os seguintes fatores: tipo de cultura explorada de modo predominante no município;
renda obtida com a exploração predominante; outras explorações existentes no município que, embora não
predominantes, sejam significativas em função da renda ou da área utilizada.
157
A Lei 8.629/93 define o conceito de pequena propriedade rural em seu art. 4º, inciso II.
88
3.3.1.2 O contribuinte individual rural
Dentre os segurados obrigatórios que se enquadram como contribuintes
individuais no âmbito do Regime Geral da Previdência Social destaca-se o empregador rural
pessoa física equiparado ao trabalhador autônomo por força do artigo 12, inciso V, alínea “a”
da Lei n. 8.212/91, e tipificado como o proprietário ou não, que explora atividade
agropecuária ou pesqueira, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou por
intermédio de prepostos e com auxílio de empregados. Por determinação do mesmo
dispositivo legal, também se enquadra como contribuinte individual aquela pessoa que
explora atividade agropecuária, em caráter permanente ou temporário, em área superior a 04
módulos fiscais.
O outro perfil de segurado passível de ser enquadrado como contribuinte
individual é o trabalhador rural que, em caráter eventual, presta serviço para uma ou mais
empresas, sem relação de emprego (art.12, inciso V, alínea “g” da Lei 8.213/91). É sob este
conceito que se estabelece um grande conflito para o enquadramento dos assalariados rurais
na Previdência Social, pela dificuldade em demarcar a linha divisória entre uma relação de
trabalho com vínculo empregatício e uma relação de trabalho sem vínculo empregatício,
caracterizadora, portanto, do trabalho eventual. Por ser esta relação extremamente nebulosa na
área rural, muitas vezes fica o assalariado rural excluído do acesso à proteção previdenciária
caso se interprete a legislação de modo a descaracterizar a relação de emprego.
3.3.1.3 O empregado rural
Como já mencionamos, a Constituição Federal designa direitos e obrigações
específicas em matéria de proteção social a todos os “trabalhadores rurais”, abarcando sob o
manto dessa expressão os empregados rurais. Por isso, as expressões “trabalhador rural” e
“empregado rural” não têm o mesmo significado. O trabalhador rural se caracteriza por
desenvolver o trabalho de natureza rural; já o empregado rural, além da natureza da atividade
89
desempenhada, caracteriza-se por manter com o beneficiário do seu trabalho uma relação de
vínculo empregatício.
Perante o Regime Geral da Previdência Social, o empregado rural, enquanto
segurado obrigatório, não adquire uma identificação específica que o diferencie do empregado
urbano, salvo pela natureza da atividade exercida. Nesse sentido preconiza a Lei 8.212, de
1991:
Art. 12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes
pessoas físicas:
I – como empregado:
a) aquele que presta serviço de natureza urbana ou rural à empresa, em
caráter não eventual, sob sua subordinação e mediante remuneração,
inclusive como diretor empregado.
O referido texto traz ínsito o preceito de se homogeneizar o tratamento entre
o empregado rural e o empregado urbano conforme estabelecido no caput do artigo 7º da
Constituição Federal. Isso se torna mais evidente quando a Lei n.º 8.212/91 estabelece a
forma de participação do empregado no plano de custeio da Seguridade Social sem fazer
qualquer distinção entre o urbano e o rural.
Há, no entanto, enormes dificuldades por parte dos empregados rurais em
comprovar a relação de vínculo de emprego e a condição de trabalhador rurícola, já que a
grande maioria labora na informalidade. Isso os coloca numa posição extremamente
vulnerável ante à Previdência Social na medida em que sem a comprovação desses requisitos
praticamente não conseguem o acesso à proteção previdenciária.
3.3.2 O financiamento da Previdência Social e as contribuições oriundas da área
rural
Pela relevância do princípio da solidariedade que caracteriza o sistema de
Seguridade Social brasileiro, importa abordar a forma de participação do segmento rural e não
apenas do assalariado rural na participação do custeio do sistema.
90
O texto constitucional de 1988 consagra os princípios da diversidade da
base de financiamento e da eqüidade na forma de participação do custeio da seguridade social
que envolve as políticas de saúde, previdência e assistência social. Com isso, a base de
financiamento da seguridade social é composta por contribuições sociais sobre folha de
salários, rendimentos do trabalho, lucros, faturamento, movimentação financeira, e sobre a
receita de concursos e prognósticos.
No que tange à Previdência Rural, esta se distingue pelo caráter específico
de suas regras na atribuição de direitos e obrigações para os trabalhadores rurais e também
pela maneira diferenciada de participar do financiamento para o pagamento de benefícios.
Desde a sua origem, com o PRORURAL/FUNRURAL, até o presente, a previdência rural
caracteriza-se como subsistema de transferência de renda, que tem requerido formalmente
contribuição dos seus participantes, mas cujos valores arrecadados não guardam relação
intrínseca com o total das despesas dos benefícios.
Atualmente, o financiamento previdenciário rural apóia-se em estruturas
distintas de contribuição direta em termos de bases e procedência setorial dos recursos, a
saber:
Uma das fontes advém da contribuição do segurado especial incidente sobre
a receita bruta da comercialização primária da produção rural (art. 25 da Lei 8.212/91), sendo
a responsabilidade pelo recolhimento das contribuições do adquirente do produto, quando se
tratar de pessoa jurídica, ou do próprio segurado, quando a comercialização da produção for
feita diretamente ao consumidor ou por ele for exportada. Ressalta-se que, ao longo do tempo,
as alíquotas de contribuição tiveram mudanças freqüentes, oscilando entre 2% e 3%.
Atualmente, a alíquota de contribuição é de 2,1% (dois inteiros e um décimo por cento) já
incluídos a alíquota de 0,1% para financiamento das prestações por acidente de trabalho.
Salienta-se que o segurado especial, objetivando obter um salário-de-benefício superior ao
91
valor do salário mínimo, pode contribuir facultativamente para Previdência Social com uma
alíquota de 20% sobre o salário-de-contribuição (art.25, § 1º, da Lei 8.212/91). A opção por
essa forma de contribuição não muda o seu enquadramento como segurado especial, muito
menos o transforma em segurado facultativo, dada à relação obrigatória de vínculo com o
Regime Geral da Previdência Social.
A outra fonte de contribuição vincula o empregador rural pessoa física ou
jurídica. Até a vigência da Lei 8.540, de 22 de dezembro de 1992, a contribuição incidia sobre
a folha de pagamento de seus empregados. A partir de então, a contribuição passou a incidir
sobre a comercialização da produção rural e não mais sobre a folha de pagamento, com o
mesmo fato gerador e a mesma base de cálculo aplicada ao segurado especial. Essa forma de
contribuição tornou-se extensiva às pessoas jurídicas (empresas agropecuárias) por força da
Lei 8.870, de 15 de abril de 1994, e passou a valer, inclusive, para as agroindústrias a partir de
2001 (Lei n.º 10.256/01). No decorrer desse período a alíquota de contribuição variou entre
2% e 2,7% sendo que, atualmente, o empregador rural pessoa física contribui com a alíquota
2,1% e o empregador pessoa jurídica contribui com 2,6% sobre a receita bruta proveniente da
comercialização da produção.
Apesar dos questionamentos doutrinários de inconstitucionalidade da
contribuição do empregador rural para a seguridade social pelo fato da mesma incidir sobre a
produção comercializada158, é fato que o Supremo Tribunal Federal tem apreciado a matéria e
pautado entendimento em contrário159. Ademais, com a Emenda Constitucional n.º 42, de
19/12/2003, ao incluir os parágrafos 12 e 13 ao artigo 195 do texto constitucional, parece não
158
Nesse sentido ver: SOUZA, Ricardo Conceição. O Custeio da Seguridade Social pela Agroindústria e
Produtores Rurais - Pessoas Jurídicas IN: Revista de Estudos Tributários. n. 24. mar/abr 2002. p.61. Ver
também: SILVA, Francisco de Assis e. Funrural ou Novo Funrural: A inconstitucionalidade constante, desde
sua origem até as mais recentes alterações legislativas. IN: Revista de Estudos Tributários. Vol, 7. n. 38.
jul/ago 2004. p.139-146.
159
Nesse sentido ver: RE-AgR-ED 238395/MS; RE-AgR 188108/SP; RE-AgR 352638/RS; RE-AgR
261579/MG. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/
pesquisarInteiroTeor.asp> Acesso em 08 de agosto de 2007.
92
haver mais dúvidas sobre a possibilidade de substituir, total ou parcialmente, a contribuição
incidente sobre a folha de salários (inciso I, alínea “a”) pela contribuição incidente sobre a
receita ou o faturamento (inciso I, alínea “b”), nos mais diversos setores da economia.
A par da contribuição incidente sobre a produção rural, o empregador rural
pessoa física, para ter acesso aos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, deve
contribuir também como segurado contribuinte individual, com a alíquota de 20% (vinte por
cento) sobre o salário de contribuição. Essa forma de contribuição é extensiva aos
trabalhadores rurais que prestam serviços de forma eventual a uma ou mais empresas.
Por fim, há o aporte dos empregados rurais que passaram a contribuir para o
Regime Geral da Previdência Social, por determinação da Lei 8.212/91, a partir da
competência do mês de novembro de 1991 nos mesmos moldes dos trabalhadores urbanos,
com uma alíquota variável entre 8% e 11 % incidente sobre o salário-de-contribuição
mensal160 (art. 20 da Lei 8.212/91). Até então, não se exigia contribuição do empregado rural,
vez que a Lei vigente à época – Lei Complementar 11/71, artigo 15 - previa apenas a
contribuição paga pelo produtor sobre o valor comercial dos produtos rurais e sobre a folha de
salários das empresas. Desse modo, não se exige do empregado rural, para fins de qualquer
benefício, contribuições anteriores à competência novembro de 1991.
A obrigação de arrecadar e recolher a contribuição do empregado é do
empregador, sob pena de incorrer no crime de apropriação indébita previdenciária161. A
160
Conforme disposto na Portaria Interministerial MPS/MF Nº 77, de 11 de março de 2008 – publicada no
diário Oficial da União em 12/03/2008, seção 1 - págs. 42 e 43, para o cálculo da contribuição previdenciária
do empregado rural utiliza-se a alíquota de 8% no caso de salário de até R$ 911,70; alíquota de 9% no caso de
salário de R$ 911,71 a R$ 1.519,50; e alíquota de 11% no caso de salário de R$ 1.519,51 a R$ 3.038,99. Esses
valores de salários de contribuição tomados como parâmetros para efeito de aplicação das correspondentes
alíquotas são reajustados na mesma época e com os mesmos índices que os do reajustamento dos benefícios de
prestação continuada da Previdência Social (art. 20, § 1º da Lei n. 8.212/91)
161
O crime de apropriação indébita previdenciária consiste no ato omissivo do empregador em não repassar aos
cofres do tesouro nacional as contribuições previdenciárias descontadas do empregado. Sua tipificação e a
respectiva pena está prevista no Código Penal Brasileiro, no artigo 168 – A, na redação dada pela Lei n.
9.983, publicada no Diário Oficial em 17/07/2000. Antes, porém, da Lei n. 9.983/2000, os crimes praticados
em detrimento da previdência social estavam previstos no artigo 95 da Lei n. 8.212/91, não era de boa técnica,
pois se limitava a enunciar o preceito, mas não cominava sanção obstando a sua aplicabilidade em função do
93
propósito, vale registrar ser comum os empregados rurais, mesmo com a Carteira de Trabalho
assinada, encontrarem dificuldades de acesso ao direito de proteção previdenciária ante a
omissão do empregador em inscrever-lhes na Previdência Social e não recolher à Seguridade
Social as contribuições que lhes foram descontadas. Muitas vezes, isso somente é detectado
no momento em que o empregado vai requerer o benefício, constituindo-se uma situação de
exclusão do direito à proteção social e impossibilidade do órgão administrativo em constituir
o crédito previdenciário devido ao decurso do prazo ensejador do instituto da decadência162.
É de se notar, contudo, que as bases fiscais sobre as quais incide a
arrecadação direta da área rural – valor bruto da produção agropecuária e salários pagos no
setor formal da economia rural – padece de dois dilemas no campo da arrecadação
previdenciária. O primeiro, pelo fato das contribuições serem susceptíveis de inúmeras formas
de evasão, reflexos da pouca eficiência da fiscalização na área rural. O Segundo, cuja base
fiscal tem menor potencial contributivo, não por questões de evasão, mas pelo alto grau de
informalidade do trabalho rural assalariado, cuja taxa de formalização, como já enfatizamos, é
uma das mais baixas dos setores da economia.
Ademais, por força do § 2º do art. 149 da Constituição Federal, (redação
dada pela Emenda Constitucional n.º 33/2001), estão isentas de contribuição social as receitas
das exportações provenientes da comercialização dos produtos rurais. Trata-se de expressiva
renúncia previdenciária que beneficia apenas as empresas exportadoras já que os produtores
princípio da legalidade que impede a aplicação de pena sem prévia cominação legal (CF, art. 5º, XXXIX e CP,
art. 1º).
162
O instituto da decadência é uma das causas de extinção do crédito tributário e ocorre pelo decurso do prazo do
sujeito ativo, no caso a Receita Federal do Brasil, em fazer o lançamento das contribuições sociais devidas à
Seguridade Social. Até recentemente, existiam controvérsias em torno desse prazo decadencial, se 10 anos,
conforme consta no artigo 45 da Lei 8.212, de 1991, ou, se 05 anos, conforme determina o Código Tributário
Nacional (art. 150, § 4º). O Supremo Tribunal Federal, através da Súmula Vinculante n. 8, publicada no DJe
em 20/06/2008, uniformizou o entendimento ao considerar inconstitucional o referido artigo 45 da Lei n.
8.212/91, fixando-se, portanto, em cinco ano o referido prazo decadencial. Nesse sentido: “São
inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei nº
8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário”. (Ver: SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL. Súmula Vinculante n. 8. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia
/listarJurisprudencia.asp> Acesso em: 16 de setembro de 2008).
94
rurais pagam a contribuição previdenciária no ato da comercialização. Esse é um tipo de
medida de caráter fiscal que contrasta com os princípios que norteiam a Previdência e a
Seguridade Social brasileira e que deveria ser assumida de outras formas pelo governo e não
pelo orçamento da Seguridade Social.
Do exposto, decorre que as despesas da previdência rural são sustentadas
pelas fontes próprias de financiamento e por outras fontes vinculadas ao sistema de
Seguridade Social proveniente de tributos gerais.
3.3.3 As espécies de benefícios e os critérios de elegibilidade para acesso à proteção
previdenciária
O sistema de Previdência Social brasileiro congrega um amplo leque de
espécies de benefícios destinados a garantir a proteção social dos segurados, de modo que
procura responder aos mais variados riscos sociais ensejadores da incapacidade do cidadão
para o exercício do trabalho. Aliás, é um sistema que vai além da oferta de proteção vinculada
à incapacidade ou perda das forças de trabalho do segurado já que assegura também o direito
ao benefício por tempo de contribuição, benefício este pouco comum em outros sistemas de
proteção social ao redor do mundo. Isso, contudo, não significa que o conjunto da população
tenha amplo acesso a esses benefícios, já que o principal critério de acesso decorre de uma
relação de trabalho formal163 que precisa ser devidamente comprovada.
Os trabalhadores rurais, após a Constituição Federal de 1988, têm direito ao
mesmo rol de benefícios que é assegurado aos urbanos, tais como: auxílio-doença; auxílioacidente; aposentadoria por invalidez; salário-maternidade; aposentadoria por tempo de
contribuição; aposentadoria por idade; pensão por morte e auxílio-reclusão (para os
dependentes), dentre outros. A exceção recai sobre o benefício da aposentadoria por tempo de
163
O “trabalho formal” é aqui entendido sob diversas formas: como trabalho assalariado devidamente registrado
em Carteira de Trabalho e Previdência Social; como trabalho autônomo prestado a terceiros devidamente
registrado em contrato; como trabalho cooperativado plenamente regularizado perante os órgãos competentes;
e outras formas mais que o sistema de Previdência Social comporta.
95
contribuição que não é extensivo ao segurado especial mesmo que comprove a contribuição
incidente sobre a comercialização da produção, salvo se o
mesmo contribuir
facultativamente164 para o sistema. Exceção feita também ao benefício do salário-família
assegurado apenas ao empregado rural.
Quanto à forma de acesso aos benefícios, inobstante o caráter contributivo
que vincula cada segurado ao sistema previdenciário, para os trabalhadores rurais foram
instituídas regras especiais e transitórias com o propósito de assegurar-lhes a devida proteção
social. No caso do segurado especial - como se denota no art. 39, inciso I, da Lei 8.213/91- o
acesso aos benefícios exige tão somente a comprovação do exercício da atividade rural. Aos
demais trabalhadores rurais – empregado e contribuinte individual – a regra de acesso
mediante a comprovação do exercício da atividade rural foi extensiva apenas ao benefício da
aposentadoria por idade, no valor de um salário mínimo, nos termos do artigo 143 da mesma
Lei. Trata-se de regra transitória, originalmente prevista para um lapso temporal de 15 anos,
ou seja, até 24 de julho de 2006165, sendo este prazo prorrogado para até dezembro de 2010
por força da Lei n. 11.718, publicada em 23 de junho de 2008. Pela importância dessa regra
transitória na garantia da proteção previdenciária dos assalariados rurais, mais adiante serão
abordadas as perspectivas que se colocam com o término dessa regra.
À exceção da aposentadoria por idade, para acesso aos demais benefícios os
trabalhadores rurais, empregado e contribuinte individual, precisam comprovar a efetiva
contribuição previdenciária.
164
O segurado especial pode ter acesso ao benefício da aposentadoria por tempo de contribuição somente se
houver contribuição facultativa. Trata-se de um direito pacificado na Súmula 272 do STJ que assim dispõe: “O
trabalhador rural, na condição de segurado especial, sujeito à contribuição obrigatória sobre a produção rural
comercializada, somente faz jus à aposentadoria por tempo de serviço, se recolher contribuições facultativas”.
(SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula 272. Brasília. DF. 11 de novembro de 2002. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.> Acesso em: 08 de agosto de 2007).
165
O texto original do artigo 143 da Lei n.º 8.213/91 estabelecia que: “Art. 143. O trabalhador rural ora
enquadrado como segurado obrigatório no Regime Geral de Previdência Social, na forma da alínea ‘a’ do
inciso I, ou do inciso IV ou VII do art. 11 desta Lei, pode requerer aposentadoria por idade, no valor de um
salário mínimo, durante quinze anos, contados a partir da data de vigência desta Lei, desde que comprove o
exercício de atividade rural, ainda que descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do
benefício, em número de meses idêntico à carência do referido benefício”.
96
Quanto à forma de comprovação da atividade rural, a exigibilidade de início
da prova material é requisito imprescindível à concessão de benefício, matéria essa já
pacificada pelo Superior Tribunal de Justiça por meio da da Súmula 149: “A prova
exclusivamente testemunhal não basta à comprovação de atividade rurícola, para efeito de
obtenção de benefício previdenciário."
Nesse sentido, há um rol extensivo de documentos previstos no artigo 106
da Lei 8.213/91 e na norma interna do INSS (Instrução Normativa n.º 20/2007, art. 136), que
se presta a tal fim. Entretanto, a grande maioria desses documentos é destinada à
comprovação da atividade do segurado especial. No caso específico dos assalariados rurais,
servem à comprovação da atividade rural o contrato individual de trabalho ou Carteira de
Trabalho e Previdência Social; acordo coletivo de trabalho, inclusive por safra, desde que
caracterize o trabalhador como signatário e comprove seu registro na respectiva Delegacia
Regional do Trabalho – DRT; declaração do empregador comprovada mediante apresentação
dos documentos originais que serviram de base para sua emissão, confirmando, assim, o
vínculo empregatício; recibos de pagamento contemporâneos ao fato alegado, com a
necessária identificação do empregador e do empregado; e, declaração fundamentada de
sindicato que represente o trabalhador rural, desde que corroborada por início de prova
material (art. 140, da Instrução Normativa n.º 20/2007).
Ressalta-se, que o rol de documentos elencados nas referidas normas não é
taxativo, de modo que outros ali não relacionados também podem servir para a comprovação
do labor rural.
No caso específico do assalariado rural que trabalha na informalidade, a
exigência de documentos no intuito de se comprovar o vínculo empregatício com o tomador
de serviços significa excluir-lhe por completo do direito de acesso à aposentadoria por idade.
Isso porque, dificilmente o empregador vai produzir prova contra si próprio que possa onerá-
97
lo além da remuneração paga pelo serviço contratado.
O Superior Tribunal de Justiça,
sensível à desigualdade na relação de trabalho experimentada por esse trabalhador, vem
reconhecendo o direito à aposentadoria por idade baseada em outros tipos de documentos,
manifestando-se a jurisprudência desse Tribunal no seguinte sentido:
PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR IDADE. BÓIA-FRIA.
DECISÃO DO TRIBUNAL DE ORIGEM COM BASE EM PROVA
TESTEMUNHAL E DOCUMENTAL. ADOÇÃO DA SOLUÇÃO PRO
MISERO.
1. A fotocópia autenticada de ficha de atendimento médico de trabalhador
rural volante, cuja autenticidade não foi contestada pelo INSS, revela-se
razoável prova material para efeito de percepção de aposentadoria
previdenciária.
2. Recurso especial não conhecido.166
Um último comentário a respeito desse tema refere-se à legalidade da
exigência de contemporaneidade do início de prova material. Se o que se busca é um início de
prova material que sirva de base para outros elementos comprobatórios extraídos de outra
natureza – já não mais necessariamente materiais, como ocorre com a prova testemunhal –,
parece ser razoável que o início da prova material, exigido para o benefício da aposentadoria
por idade, não tenha necessariamente que ser contemporâneo com os períodos de trabalho
rural a serem comprovados em número de meses idênticos ao da carência do benefício. Ou
seja, o trabalhador pode apresentar como prova de seu direito, um documento que tenha sido
emitido em período não compreendido aos últimos quinze anos anteriores à data do
requerimento da aposentadoria. A jurisprudência de nossos Tribunais tem assinalado nesse
166
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 314610 / PR. Recurso Especial 2001/0036751-8. Relator:
Ministro Paulo Gallotti. Órgão Julgador: Sexta Turma. Data do Julgamento: 09/10/2001 Data da
Publicação/Fonte:
DJ
07.10.2002
p.
309.
Disponível
em:
<http://www.stj.gov.br/SCON
/jurisprudencia/doc.jsp?> Acesso em: 26 de setembro de 2008. Outros documentos que o STJ reconhece como
início razoável de prova material para o assalariado rural: certidões de nascimento dos filhos (Ver: AR 3005 /
SP. Ação Rescisória 2003/0228326-2. relator: Ministro Paulo Gallotti. Órgão Julgador: Terceira seção. Data do
Julgamento: 26/09/2007. Data da Publicação/Fonte: DJ 25.10.2007, p. 119); Declarações de ex-empregadores
(Ver: REsp 500929 /SP. Recurso Especial 2003/0022467-1. relator: Ministro Paulo Ministro Jorge Scartezzini.
Órgão Julgador: Quinta Turma. Data do Julgamento: 07/10/2003. Data da Publicação/Fonte: DJ 15.12.2003 p.
372).
98
sentido, o que vai ao encontro da realidade social, considerando as dificuldades que o
trabalhador rural enfrenta para comprovar o efetivo exercício da atividade. Aliás, o próprio
Ministério da Previdência Social já externou esse entendimento por meio do Parecer n.º
3.136, de 23 de setembro de 2003, emitido por sua Consultoria Jurídica.
99
4 Controvérsias que envolvem o assalariado na Previdência Social
4.1 Considerações iniciais
A efetivação do direito à proteção previdenciária do trabalhador rural
assalariado pelo mecanismo do contrato de trabalho formal, ou seja, na condição de
empregado, constitui-se hoje num enorme desafio devido às dificuldades em se caracterizar
essa condição em face dos institutos jurídicos vigentes e ante a diversidade de relações de
trabalho que se estabelecem no campo e que demarcam a linha fronteiriça entre o trabalho
com vínculo empregatício e outros tipos de relações de trabalho.
Já abordamos nesse estudo que depois do sistema escravista a exploração do
trabalho rural no Brasil migrou para os regimes de arrendamento, de parcerias, colonatos,
comodatos, de empreitadas, agregados, e outros, que visavam à produção agrícola conjunta
entre os donos da terra e os trabalhadores, na forma de trabalho livre, sem que houvesse uma
base normativa que desse conta de regular todas essas relações.
Vimos também que à
Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, num primeiro momento, não foi um instrumento
jurídico passível de ser aplicado diretamente na regulação das relações trabalhistas no meio
rural.
Em regra, a pluralidade de relações de trabalho no campo sempre foi um
argumento em torno do qual os proprietários rurais e suas associações de classe se reuniram
para barrar a extensão dos direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais. De certo modo, até o
início da década de 1960, o meio rural ficou dependente de uma regulação das relações de
trabalho mais apropriada às suas realidades específicas, predominando assim, os usos e
costumes baseados na cultura da contratação autônoma, sem a configuração do vínculo de
subordinação do empregado ao empregador. Nas observações de Rosinete Dantas de Lima,
O meio rural e os que nele labutavam ficaram entregues à própria sorte, sem
a devida regulação legal de seu trabalho. Numa situação de absoluta
inferioridade, de desproteção, de quase-miséria, tornaram-se presa fácil a
100
serem espoliadas pelo proprietário de terra, detentor dos meios de
produção.167
Ressalta-se, que antes da década de 1960 as relações de trabalho no campo
eram disciplinadas por algumas normas esparsas, mas era o Código Civil Brasileiro o grande
condensador das normas regulatórias dessas relações, a exemplo do arrendamento rural (arts.
1.211 a 1.215), a locação de serviços (arts. 1.216 a 1.236), os serviços de empreitada (arts.
1.237 a 1.247), e a parceria rural e pecuária (arts. 1410 a 1423). Os institutos jurídicos que
surgem a partir de então (Estatuto do Trabalhador Rural – Lei 4.214/63, substituído pela Lei
n.º 5.889/73 e o Estatuto da Terra – Lei n.º 4.504/64, e outros) é que começam a dar uma
identidade mais clara para os trabalhadores rurais, distinguindo-se o trabalho rural
subordinado protegido pelo Direito do Trabalho de outros tipos de relações de trabalho
vinculadas aos contratos submetidos ao Direito Agrário e ao Direito Civil.
Contudo, mesmo com a maior identificação dos trabalhadores rurais pelos
institutos jurídicos vigentes, há controvérsias nas interpretações para se reconhecer nas
relações de trabalho subordinado à condição rurícola do empregado e a própria existência do
vínculo empregatício, conflitos que se revelam de forma aguda no âmbito da Previdência
Social.
Nesse sentido, procuraremos destinar este capítulo à reflexão sobre o modo
como se opera a relação do trabalhador rural assalariado com a Previdência Social a partir de
três ordens de questões: a primeira envolve a caracterização do empregado rural na
Previdência Social, ou seja, trata-se de compreender a natureza do trabalho rural, o que
efetivamente caracteriza o empregado como rurícola distinguindo-o do empregado urbano; a
segunda enfatiza os elementos que caracterizam a prestação do trabalho rural sob a relação do
vínculo de emprego; e, a terceira questão dá ênfase ao aspecto da relação de trabalho de curta
duração na área rural, que comporta enormes dificuldades para se fazer a distinção entre o
167
LIMA, Rosinete Dantas de. O trabalho rural no Brasil. São Paulo: LTr, 1992, p. 17-23
101
trabalho de natureza empregatícia e o trabalho de natureza eventual. A propósito, não se
pode esquecer que o setor rural brasileiro historicamente carrega a pecha de ser um dos
setores que não conseguiu superar o problema da informalidade nos contratos de trabalho
característicos da relação de emprego.
4.2 O empregado e o dilema da sua caracterização como rurícola
A caracterização do empregado como um trabalhador rurícola é tema de
relevância para o direito previdenciário devido às regras especiais que lhes são asseguradas
em termos de proteção como, por exemplo, na aplicação do redutor na idade de aposentadoria
em cinco anos em relação ao segurado urbano (art. 201, § 7º, inciso II da Constituição
Federal) e no critério para o acesso ao benefício da aposentadoria por idade, atualmente
vinculado a uma regra transitória inserta no artigo 143 da Lei n. 8.213, de 1991, que substitui
a comprovação de tempo de contribuição previdenciária pela comprovação de tempo de
exercício da atividade rural.
Por isso, a questão de relevo a ser analisada nesse momento consiste em
identificar quais são os elementos fático-jurídicos que diferenciam o empregado rural do
empregado urbano. Sobre essa questão imperam controvérsias no sentido de saber se a
caracterização do empregado rural decorre especificamente do seu labor rural, ou seja, da
prestação de serviço tipicamente de natureza rural ou se decorre da natureza da atividade
agroeconômica do empregador rural.
O critério para o reconhecimento do empregado rural pela natureza da
atividade está previsto na legislação previdenciária no citado artigo 12, inciso I, alínea “a”, da
Lei 8.212/91, que preceitua: é empregado “aquele que presta serviço de natureza urbana ou
rural à empresa, em caráter não eventual, sob sua subordinação e mediante remuneração,
inclusive como diretor empregado”. Já a caracterização rurícola do empregado pela natureza
102
da atividade do empregador é disciplinada pela legislação que regula as relações de trabalho
na área rural (Lei 5.889/73 e o Decreto n. 73.626/74).
Considerando que a condição de empregado rural é inerente à de
empregador rural, ou seja, que não existirá aquele sem que exista este, em tese não deveria
haver maiores conflitos sobre essa questão. Mas a situação não é tão simples em termos de
política previdenciária. Isso porque, existem empregadores rurais cuja finalidade do seu
empreendimento não está voltada apenas para um processo produtivo que exija a prática de
atividades rurais, mas também industriais, como ocorre com as agroindustriais; da mesma
forma, existem empregadores rurais com empregados exercendo atividades não caracterizadas
como tipicamente rurais, a exemplo dos empregados de escritórios de fazendas, cozinheiras,
motoristas, tratoristas, administradores rurais, fiscal de campo, capataz, etc. Assim, questionase se determinadas regras e benefícios previdenciários aplicáveis aos rurais, como a
aposentadoria por idade aos 60 anos, se homem, e 55 anos, se mulher (art. 201, § 7º, inciso II
da CF), seriam também aplicados aos empregados que, mesmo vinculados a determinados
empregadores rurais, desempenham atividades diversa daquela de natureza rural.
4.2.1 Os parâmetros estabelecidos pelo Direito do Trabalho
As discussões e dúvidas em torno dos elementos para se caracterizar o
empregado como rural não são recentes. Dado o seu caráter de natureza trabalhista, essa
questão surge com o advento da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (em 1943), que ao
determinar a não aplicação dos seus preceitos aos trabalhadores rurais, formulou critério de
caracterização desses trabalhadores pelo método da prática do trabalho rural. Assim, para a
CLT, seriam trabalhadores rurais “... aqueles que, exercendo funções diretamente ligadas à
agricultura e à pecuária, não sejam empregados em atividades que, pelos métodos de
execução dos respectivos trabalhos ou pela finalidade de suas operações, se classifiquem
como industriais ou comerciais” (art. 7º, inciso “b”, CLT). Logo, seriam trabalhadores
103
industriários ou comerciários, aqueles que trabalhavam em atividades tipicamente industriais
ou comerciais, ainda que o empregador estivesse estabelecido na área rural.
Como aponta Maurício Godinho Delgado, o critério de diferenciação,
estabelecido pela CLT, baseado nos métodos e nos fins da atividade laboral sofreu severas
críticas. De um lado, porque não guardava consonância com o critério dominante no direito
brasileiro de enquadramento de empregado, cuja sistemática para determinar as categorias
profissionais funda-se no segmento de atividade do empregador. É o que ocorre, por exemplo,
com o segmento bancário, ferroviário, comercial, metalúrgico, etc. De outro lado, a crítica
incidia no fato de a CLT consentir que houvesse diferenciação entre trabalhadores vinculados
a um mesmo empregador, ou seja, o empregador poderia ter empregados rurais e urbanos sob
sua regência, gerando problemas de ordem operacionais bastante complexos para tocar o
empreendimento168.
Com a Lei n.º 5.889, de 8 de junho de 1973, que regula o trabalho rural e
atualmente em vigência, mudou-se por completo o
critério celetista. Nesse sentido, o
empregado rural passou a ser concebido como sendo “(...) toda pessoa física que, em
propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador
rural, sob a dependência deste e mediante salário” (art. 2º da Lei n. 5.889/73). A
caracterização do empregado rural se completa com o conceito de empregador rural
considerado como sendo “(...) a pessoa física ou jurídica, proprietário ou não, que explore
atividade agro-econômica, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou através de
prepostos e com auxílio de empregado” (art. 3º, da Lei n. 5.889/73).
Assim, o enquadramento do empregado rural foi ajustado à regra clássica e
hegemônica do Direito do Trabalho, de modo que a condição de rurícola passou a estar
vinculada à natureza da exploração econômica do empregador rural, relativizando-se,
168
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 384-385.
104
portanto, a natureza da atividade obreira. Com isso, a caracterização do empregador rural
tornou-se condição sine qua non à caracterização do empregado rural, sendo que dois
elementos conceituais extraídos da norma reguladora do trabalho rural passaram a ser
determinantes a essa caracterização: a) a prestação de serviços em propriedade rural ou
prédio rústico; b) e a exploração de atividade agro-econômica pelo empregador. Nesse
sentido são as ponderações de Dirceu Galdino e Aparecido Domingos Erreiras Lopes:
A CLT (art. 7º) adotava o critério finalístico da atividade. O trabalhador
rural, embora trabalhasse em empreendimentos agrícolas, era categorizado
de acordo com a finalidade das operações, sendo considerado comerciário ou
industriário. Entretanto, com o advento da Lei n. 5.889/73 deu-se
prevalência à localização da unidade produtiva conjugada à finalidade
econômica rural.169
Dessa maneira, a propriedade rural ou prédio rústico procura demarcar a
localização da prestação dos serviços do empregado rural. A definição de propriedade rural
não enseja controvérsia, pois está atada ao próprio senso comum, referindo-se à zona
geográfica situada no campo, exterior às áreas urbanizadas. Já o conceito de prédio rústico é
utilizado juridicamente para designar aquele imóvel que, do ponto de vista econômico e
laborativo, está alinhado às atividades agropastoris, mas que se encontra incrustado no espaço
urbano. Assim, é considerado rurícola o empregado que trabalhe tanto em uma grande
fazenda manejando gado ou em um pequeno sítio ou chácara, cultivando hortaliças, flores,
etc., ainda que localizados nos centros urbanos, pois o que importa é a natureza da atividade
do empreendimento com finalidade econômica.
No pertinente à exploração da atividade agroeconômica esse é um elemento
decisivo à caracterização do empregador rural, entendendo-se que na expressão
agroeconômica englobam-se atividades agrícolas, pecuárias e agroindustriais que tenham
destinação ao mercado. A Lei n. 5.889/73 ainda ampliou o conceito de empregador rural ao
considerar como atividade agroeconômica a exploração industrial em estabelecimento agrário
169
GALDINO, Dirceu; LOPES, Aparecido D. E. Manual do direito do trabalho rural. São Paulo: LTr, 1995,
p. 30.
105
não compreendido na Consolidação das Leis do Trabalho (art. 3º, § 1º). Não obstante, a noção
de indústria rural foi delineada por critérios bastantes restritivos estabelecidos pelo Decreto n.
73.626/74, regulamentador da Lei n. 5.889/73, ficando, portanto, a industrialização rural
restrita “... às atividades que compreendem o primeiro tratamento dos produtos agrários in
natura sem transformá-los em sua natureza...” (art. 2º, § 4º do Decreto n. 73.626/74). O
Decreto foi além e exemplificou o que seja o processo de industrialização rural, informando
ser “o beneficiamento, a primeira modificação e preparo dos produtos agropecuários e
hortigranjeiros e das matérias primas de origem animal e vegetal para posterior venda ou
industrialização”, e ainda, “o aproveitamento dos subprodutos oriundos das operações de
preparo e modificação dos produtos in natura, referidas no item anterior” ( art. 2º, § 4º,
incisos I e II). Com isso, por força do regulamento normativo, deixou de ser caracterizada
como indústria rural aquela que, “...operando a primeira transformação do produto agrário,
altere a sua natureza, retirando-lhe a condição de matéria-prima” (art. 2º, § 5º), como ocorre,
por exemplo, com as indústrias de produção de açúcar e álcool e tantas outras que estão
localizadas no campo. Isso, em tese, constitui-se num elemento potencial para descaracterizar
a condição rurícola de todos os empregados dessas indústrias, mesmo que exercendo o labor
rural.
4.2.2 A posição da doutrina e da jurisprudência
Pelos preceitos de natureza trabalhista estabelecidos na Lei 5.889/73, a
caracterização do empregado como rurícola perfila-se, como regra geral, pelo enquadramento
do empregador. Sendo este caracterizado como rural, rurícolas serão seus empregados que
laborem no campo, ainda que não exerça atividades tipicamente rurais. Sem essa
caracterização do empregador também não serão tidos como rurais seus empregados. Nessa
linha de entendimento há, inclusive, a Súmula 196 do Supremo Tribunal Federal que diz:
106
“Ainda que exerça atividade rural, o empregado de empresa industrial ou comercial é
classificado de acordo com a categoria do empregador.”170
Na doutrina existem divergências, embora predomine o entendimento de
que a figura jurídica do empregador rural é fundamental para a caracterização do contrato de
emprego de natureza rural. Para Nascimento, empregado rural é aquele que “... presta serviços
em propriedade rural, continuadamente e mediante subordinação. Assim, será considerado
como tal o trabalhador que cultiva a terra, que cuida do gado e o pessoal necessário à
administração da empresa ou atividade rural.”171
Seguindo o critério dominante que determina as categorias profissionais no
Brasil, Maurício Godinho Delgado enfatiza que,
(...) rurícola será o empregado vinculado a um empregador rural. O que
importa à sua classificação como rurícola ou urbano é o próprio
posicionamento de seu empregador: sendo rural este, rurícola será
considerado o obreiro, independente de seus métodos de trabalho e dos fins
da atividade em que se envolve.172
Para Délio Maranhão e Luiz Inácio B. Carvalho, “é a natureza da exploração
econômica do empregador, em que o trabalho é utilizado como fator de produção, que servirá
para caracterizá-lo, ou não, como rural.”173
Semelhante raciocínio encontra-se em Sussekind que reconhece que nem
todos que trabalham no campo são rurícolas dado à natureza da atividade econômica da
indústria rural, e observa que o conceito de empregado rural decorre da prestação de serviço
em empreendimento agro-econômico, que “... se dedique apenas ao primeiro tratamento dos
170
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula 196. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/cms/ver
Texto.asp ?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_101_200> Acesso em 18 de setembro de 2008.
171
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 19. ed. rev. e atual. São Paulo, Saraiva,
2004. p. 944.
172
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 385.
173
MARANHÃO, Délio. CARVALHO. Luiz Inácio Barbosa. Direito do Trabalho. 17. ed., Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1993, p. 76.
107
produtos agrários, in natura, sem alterar sua natureza, de forma a retirar-lhe a condição de
matéria-prima.”174
Há opiniões, contudo, que não se adequam ao sentido literal da legislação
trabalhista rural. Osíris Rocha, após abordar o tema mediante um exame cronológico das
legislações trabalhista e previdenciária aplicáveis à área rural, exemplifica diversos tipos de
trabalhadores que mesmo trabalhando no campo não se caracterizam como empregado rural.
Eis a conclusão deste autor:
Em síntese, não são empregados rurais os médicos veterinários, os
engenheiros agrônomos, os administradores de empresas (...) e os
zootecnistas. Também não o são os trabalhadores da construção civil (Dec.lei n. 66/66), os pescadores (Dec.-lei n. 221/67) e os garimpeiros (Dec.-lei n.
227/67), os motoristas (categoria diferenciada) e os que trabalham em
escritórios de fazendas além dos empregados em lojas aí estabelecidas,
porque não exercem atividade rural e se submetem, pois, à classificação a
que se refere o quadro de atividades examinado. 175
Seguindo o raciocínio pelo qual a maioria dos doutrinadores coloca a
questão, bem como o que determina a Súmula 196 do STF, e considerando o modo como o
setor produtivo vem se organizando no campo nos últimos anos, vislumbram-se duas
situações em termos de proteção previdenciária para os trabalhadores que laboram nesse setor
mediante vínculo empregatício. Uma é a incorporação de novos trabalhadores com funções
não tipicamente rurais para serem protegidos pelas regras especiais aplicáveis aos
trabalhadores rurais de um modo geral, no caso, a redução em cinco anos na idade de
aposentadoria quando comparada à idade do segurado urbano. Seriam, assim, considerados
empregados rurais todos aqueles trabalhadores que exercem suas funções em um imóvel rural
ou prédio rústico, para empregador rural, mesmo que a atividade exercida não seja a de
exploração direta da terra, como é o caso do empregado que trabalha no escritório da fazenda,
o motorista, a cozinheira e tantos outros.
174
SÜSSEKIND, Arnaldo. Curso de Direito do Trabalho. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
p.159.
175
ROCHA, Osíris. Manual prático do trabalho rural. 6. ed.-São Paulo: Saraiva, 1998, p. 3.
108
A outra situação tem um caráter inverso à primeira, ou seja, significa
exclusão, pois retira da proteção especial concedida ao rurícola aqueles empregados que,
embora estejam exercendo o labor rural, dessa condição acabam se descaracterizando por ter
vínculo com empregador que explora a atividade agroindustrial para além da transformação
primária da matéria prima extraída do campo. Veja que nesta situação estariam muitos
assalariados rurais que trabalham, por exemplo, no corte da cana-de-açúcar ou em outras
atividades penosas que certamente reduz a capacidade produtiva do indivíduo ao longo dos
anos.
Em que pese à salutar discussão doutrinária e o entendimento inserto pelo
Supremo Tribunal Federal na Súmula 196, temos na jurisprudência de nossos Tribunais novas
visões sendo construídas, embora não haja um entendimento uniforme sobre o assunto em
questão. Em matéria de Direito do Trabalho, a Orientação Jurisprudencial n.º 38/SDI do
Tribunal Superior do Trabalho, que dispõe: "Empregado que exerce atividade rural. Empresa
de reflorestamento. Prescrição própria do rurícola (Lei nº 5.889/1973, art. 10 e Decreto nº
73626/1974, art. 2º, § 4º)”176, constitui-se num marco importante de mudança de interpretação
da regra rígida estabelecida na Lei 5.889/73, deixando em segundo plano para a
caracterização rurícola do empregado a natureza da atividade agroeconômica do empregador
quando esta for a industrialização da matéria prima. Nesse sentido, vem o Tribunal Superior
do Trabalho pacificando o seguinte entendimento:
TRABALHADOR RURAL - CARACTERIZAÇÃO. EMPRESA QUE
DESENVOLVE ATIVIDADES INDUSTRIAIS. Os trabalhadores rurais,
disciplinados pela Lei n° 5.889/73 e pelo Decreto n° 73.626/74 (e normas
complementares), merecem, com base em tal ordenamento, tratamento
nitidamente distinto daquele outorgado aos trabalhadores urbanos. Diante do
norte imposto pela O.J. 38/SDI, não há dúvidas quanto à qualificação
176
TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Orientação Jurisprudencial n.º 38/SDI . Disponível em:
<http://www.tst.gov.br/ > Acesso em 18 de setembro de 2008.
109
profissional dos rurícolas, mesmo quando congregados à empresa que
industrialize o seu produto final. Agravo de instrumento desprovido.177
EMPREGADO RURAL. CARACTERIZAÇÃO. NATUREZA DOS
SERVIÇOS PRESTADOS. PRESCRIÇÃO. É rurícola o empregado que
desenvolve atividades rurais em empresa de reflorestamento, sendo-lhe
aplicável a prescrição prevista na alínea b do inciso XXXIX do art. 7º da
Constituição Federal (...).178
TRATORISTA. EMPRESA DE AGROPECUÁRIA. ENQUADRAMENTO.
TRABALHADOR RURAL. PRESCRIÇÃO. O elemento fundamental
diferenciador da natureza da classificação do empregado (urbano ou rural) é
o da prestação de seus serviços, o da atividade desempenhada. Estando o
trabalhador exercendo tarefas diretamente vinculadas à atividade rural, é
rurícola para todos os efeitos legais. Tratorista de empresa de agropecuária,
portanto, é trabalhador rural (...).179
Em matéria de Direito Previdenciário, embora também não haja consenso
sobre o tema, é possível de se identificar uma posição jurisprudencial favorável à
caracterização do empregado rural pela natureza da atividade por este exercida. Expressa bem
esse posicionamento o voto do Ministro José Delgado, do Superior Tribunal de Justiça,
exarado no Recurso Especial n. 198413, julgado em 2002, ao abordar critérios de
enquadramento dos empregados de uma agroindústria para fins de contribuição
previdenciária. Citamos a seguir texto parcial do referido voto.
(...) Há décadas discute–se nos tribunais o conceito de trabalhador rural e
trabalhador urbano contido nas Leis Complementares 11/71 e 16/73, que
instituiu o custeio do programa de assistência aos trabalhadores do setor
agroindustrial. Pretende-se que seja compreendido no conceito de
trabalhador rural, os trabalhadores ditos especializados. Para início, é de se
destacar que desde a Lei Complementar 16/73, a conceituação do
trabalhador rural, para efeitos previdenciários, depende da natureza das
atividades exercidas pelo empregado, e não da categoria do empregador.
Seguindo este conceito o extinto TFR e o Egrégio STJ sempre rejeitaram a
tese tantas vezes apresentada. É que os trabalhadores como estes elencados
na inicial não prestam serviço de "natureza rural", sendo irrelevante para
essa classificação a circunstância de vinculação laboral com empregador
rural, desde a LC 16/73. Porque, como acentuado, o que prevalece para
177
TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Processo: AIRR - 768929/2001.6. Data de Julgamento:
20/03/2002, Relator Juiz Convocado: Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, 4ª Turma, Data de Publicação:
DJ 12/04/2002. Disponível em: <http://www.tst.gov.br/ > Acesso em: 18 de setembro de 2008.
178
TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Processo: E-RR - 649992/2000.9 Data de Julgamento:
02/05/2005, Relator Ministro: Lélio Bentes Corrêa, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data
de Publicação: DJ 05/08/2005. Disponível em: <http://www.tst.gov.br/ > Acesso em: 18 de setembro de 2008.
179
TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Processo RR - 410365/1997.6 Data de Julgamento: 08/11/2000,
Relatora Juíza Convocada: Eneida Melo Correia de Araújo, 3ª Turma, Data de Publicação: DJ 07/12/2000.
Disponível em: <http://www.tst.gov.br/ > Acesso em: 18 de setembro de 2008.
110
definir a classificação do trabalhador rural, não é a categoria de seu
empregador, mas a espécie de serviços por ele prestado. (...).180
Como haveria de ser, essa é uma discussão que não passa incólume no
âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, cujas decisões proferidas por seus
servidores, ao apreciar os pedidos de benefícios previdenciários, certamente já deixaram
profundas marcas na vida dos segurados ante as interpretações dadas caso a caso. Tanto é
assim, que no ano de 2001, o Ministério da Previdência Social foi instado a manifestar-se
sobre essa questão após terem os servidores autárquicos promovido, em ato revisional, a
suspensão do pagamento de benefícios previdenciários de aposentadoria por idade de
segurados rurais que detinham vínculos com empresas agroindustriais, em especial com as
usinas de produção de álcool, ao argumento de que a relação empregatícia com tais empresas
era de natureza urbana, o que não autorizava aos empregados receberem benefícios rurais.
Disso resultou que o Ministério da Previdência Social, por meio de sua Consultoria Jurídica,
emitiu o Parecer n.º 2.522, de 09 de agosto de 2001, expressando entendimento de que, para
fins previdenciários, todos os segurados obrigatórios da Previdência Social são enquadrados
pela natureza da sua atividade e não pela natureza da atividade da empresa em que trabalham.
Eis alguns dos argumentos postos:
(...) Não nos parece concretizar o dispositivo constitucional a adoção do
critério da natureza da atividade do empregador para fins de caracterização
da atividade rural para a obtenção de benefícios previdenciários. Não nos
parece lógico que um trabalhador safrista, ou mais comumente chamado de
bóia-fria, que trabalhe na extração da cana-de-açúcar, seja tido por
trabalhador urbano, para fins previdenciários, tendo em vista a natureza
agroindustrial do empregador - a usina de cana-de-açúcar -, impedindo este
trabalhador, que exerce atividade tipicamente rural, de se aposentar aos 60
(sessenta) anos, se homem, e 55 (cinqüenta e cinco) se mulher.
Por outro lado, não nos parece lógico que contadores, escriturários,
cozinheiros, motoristas etc., sejam tidos como trabalhadores rurais pelo tão
só motivo da natureza da atividade rural do seu empregador. Efetivamente,
estes segurados não são trabalhadores rurais, mas sim urbanos.
180
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 198413/AL. Registro: 1998/0092021-8. Relator Ministro
José Delgado. Órgão Julgador: Primeira Turma. Data do Julgamento: 25/06/2002, Data da Publicação/Fonte:
DJ 30.09.2002 p. 161. Disponível em: http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp? Acesso em: 18 de
setembro de 2008.
111
A distinção constitucional entre trabalhadores rurais e urbanos, para fins
previdenciários, não nos parece acobertar esta situação. Há motivos
históricos e sociais a fundamentar esta distinção, considerando-se a natureza
da atividade desempenhada por estes segurados e não pela natureza
econômica da atividade de seu empregador, o que se confirma pela
legislação infraconstitucional específica, qual seja, a Lei 8.213, de 1991.
Assim, temos que os trabalhadores que comprovadamente desempenham
atividades rurais, independentemente da natureza da atividade do
empregador, têm direito ao prazo reduzido, previsto no art. 201, § 7º, inciso
II da Constituição Federal, para fins de concessão de aposentadoria por
idade. 181
Foi, o referido parecer, uma tentativa clara de se alcançar maior adequação
das normas regulamentares e da rotina do Instituto Nacional do Seguro Social quanto ao
entendimento sobre a quem se destina o direito assegurado no art. 201, § 7º, inciso II da
Constituição Federal.
4.2.3 Critérios metodológicos para a identificação do empregado rural
Não resta dúvida de que ainda vão continuar surgindo dificuldades, no
exame de casos concretos, para definir sobre o enquadramento do empregado, se rural ou
urbano, perante a Previdência Social. Se, por um lado, há uma base de consenso, a partir da
jurisprudência dos tribunais superiores, no sentido de reconhecer como rurícola o empregado
da agroindústria que esteja no exercício do labor rural, por outro lado não se pode dizer o
mesmo em relação aos empregados que, embora prestem serviços a empregador rural, não
exercem a atividade rural em sentido estrito. A propósito, o entendimento manifestado pelo
Ministério da Previdência Social no Parecer CJ n. 2.522/2001, deixa claro que para efeito de
política previdenciária o enquadramento de tais empregados como rurícolas deve ser recusado
na via administrativa.
Soma-se a isso, o fato de haver uma multiplicidade de combinações de
métodos produtivos despontando no segmento econômico rural que, por sua vez, demandam
181
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. Parecer CJ nº 2.522, de 09 de Agosto de 2001.
Enquadramento legal dos trabalhadores rurais que trabalham em empresas agroindustriais. Disponível em
<http://www81.dataprev.gov.br/sislex/superpesnew2.asp> Acesso em 01 de agosto de 2008.
112
o exercício de múltiplas atividades dos empregados, algumas caracterizadas como tipicamente
rurais outras nem tanto. Cita-se, como exemplo, o trabalho executado num empreendimento
rural onde se elabora, com técnicas industriais, produtos derivados do leite (iogurte, manteiga,
etc.), produção de doces e os serviços prestados num empreendimento que explore o
agroturismo, dentre outros.
Assim, entendemos que a tomada de posição sobre o critério de distinção
entre o empregado rural e urbano precisa levar em consideração algumas questões. Primeiro,
importa saber porque o texto constitucional estabelece alguns preceitos de proteção
previdenciária diferenciados entre os trabalhadores rurais e urbanos (no caso dos empregados,
como já expusemos isso se restringe à idade de aposentadoria – art. 201, § 7º, II). A nosso ver,
isso se deve ao fato da prática do trabalho no campo congregar fatores que expõem o
trabalhador a determinados riscos que levam ao esgotamento da sua capacidade para o
trabalho em menor período de tempo. Daí resulta a inteligência da regra estabelecida na
legislação previdenciária infraconstitucional (Lei n. 8.212/91 e Lei 8.213/91) em caracterizar
o empregado rural pela natureza da sua atividade e não pela natureza da atividade
agroeconômica do empregador, estabelecendo, portanto, um critério que é inerente ao próprio
trabalhador.
Outra
questão
é
a
necessidade
de
se
examinar
a
legislação
complexivamente, ou seja, não por um artigo de uma lei, mas sim pelo texto integral das leis
em vigor, considerando sempre a lei anterior como suporte para a compreensão de termos que
estejam nas leis novas. Sob esse aspecto, é preciso reconhecer que o Direito Previdenciário é
um ramo do direito público distinto do Direito do Trabalho, que tem princípios próprios e
autonomia no campo da dogmática jurídica, elementos estes que devem ser considerados
como ponto de partida para uma distinção constitucionalmente adequada da política de
proteção previdenciária aplicada ao trabalhador rural.
113
Nesse sentido, a legislação infraconstitucional previdenciária - Lei n.
8.212/1991(Plano de custeio da Seguridade Social) e a Lei n. 8.213/1991 (Plano de benefícios
da Previdência Social) – estabelece em diversos de seus dispositivos que o elemento que
caracteriza o trabalhador rural é o exercício da atividade rural182. Essa é uma regra que vale
tanto para o empregado quanto para o contribuinte individual e o segurado especial. E mais, é
um critério que já estava presente na Lei Complementar n.º 11, de 1971 (art. 3º, § 1º, alínea
“a”) e na Lei Complementar n. 16, de 1973 (art. 4º), ambas disciplinadoras da proteção social
dos trabalhadores rurais no antigo regime de proteção social rural, o Prorural / Funrural.
Dito isso, e diante de possíveis dificuldades para distinguir se o empregado
caracteriza-se como rural ou urbano, sugere-se que se avalie as circunstâncias envolvidas no
caso concreto em auxílio à operação de subsunção do fato ao conceito jurídico estabelecido
na Lei 8.212/91 (art. 12, inciso I, alínea “a”), podendo-se utilizar como instrumento
metodológico o critério da observação do local da prestação dos serviços do empregado no
âmbito do imóvel rural ou prédio rústico (isso permite averiguar se o empregado exerce uma
atividade rural ou não), e o critério de aferição da preponderância ou da atividade principal
exercida pelo empregado em contraponto à atividade acessória, devendo-se levar em conta,
nesse caso, a atividade final do empreendimento econômico.
Não há, portanto, como não ter presente no conceito de empregado rural
para fins de política de proteção previdenciária a espécie de serviço prestado. Afinal, o
alcance dos preceitos especiais da Constituição Federal e das Leis de custeio e de benefícios
da Previdência Social é destinado a proteger os trabalhadores que tenham uma identidade
rural bem definida.
182
Em diversos dispositivos a legislação previdenciária menciona que o trabalhador rural deve exercer e
comprovar a atividade rural. Ver, por exemplo, na Lei n. 8.212/91 o artigo 11, inciso I, alínea “a”, inciso V,
aliena “a”, inciso VI, inciso VII; na Lei n. 8.213/91, ver o artigo 39, inciso I e parágrafo único, art. 106, art.
143.
114
4.3 Elementos que caracterizam a prestação de trabalho com vínculo
empregatício na área rural
Refletir sobre a caracterização da relação de trabalho com vínculo
empregatício na área rural, a partir dos institutos jurídicos vigentes, é relevante, pois nos dá
uma melhor dimensão sobre os desafios postos para o maior alcance da política de proteção
previdenciária em prol dos assalariados rurais.
É sabido que a prestação de trabalho por uma pessoa física a outrem pode
concretizar-se segundo fórmulas relativamente diversas entre si, não se circunscrevendo à
exclusiva fórmula da relação empregatícia. De fato, a relação empregatícia enquanto
fenômeno sócio-jurídico resulta de um diversificado conjunto de elementos reunidos em um
dado contexto social, sem os quais não se configura a mencionada relação. São elementos que
ocorrem no mundo dos fatos não sendo, portanto, criação jurídica. O Direito apenas lhes
confere efeitos compatíveis. Daí serem denominados, na expressão usada por Maurício
Coutinho Delgado, como “elementos fático-jurídicos”183.
No entanto, caracterizar esse tipo de relação na área rural nem sempre é
tarefa fácil, pois é um setor onde predominam relações de trabalho de curtos períodos que
ensejam dúvidas e conflitos em torno do trabalho com vínculo empregatício e aquele sem o
vínculo empregatício, comumente designado como trabalho eventual. Por ser esta relação
extremamente nebulosa, a interpretação extraída dos textos legais conduzem, muitas vezes, a
um entendimento extremamente prejudicial aos interesses dos assalariados rurais,
distanciando-os do acesso ao direito à proteção social previdenciária. Isso ocorre com certa
freqüência nas decisões proferidas pelos órgãos administrativos (INSS, Junta de Recursos e
Conselho de Recursos da Previdência Social) e pelas instâncias judiciais.
A doutrina, em regra, assinala como elementos básicos caracterizadores da
relação empregatícia: a) o trabalho prestado por pessoa física; b) intuitu personae
183
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 290.
115
(pessoalidade); c) com onerosidade; d) com continuidade (não-eventual); e) e, em situação
de subordinação. Na legislação previdenciária esses elementos aparecem no art. 12, inciso I,
alínea “a” da Lei 8.212/91 ou no art. 11, inciso I, alínea “a” da Lei 8.213/91 ao definir como
segurado obrigatório da Previdência Social o empregado enquanto pessoa física “... que presta
serviço de natureza urbana ou rural à empresa, em caráter não eventual, sob sua
subordinação e mediante remuneração, inclusive como diretor empregado”. Esses mesmos
elementos encontram-se presentes também na lei que regula as relações de trabalho rural - Lei
n. 5889/73 (artigos 2º e 3º). A seguir, exporemos de modo bastante sintético alguns
comentários sobre cada um desses elementos, o que nos permitirá, em seguida, traçar uma
linha divisória mais clara entre o trabalho com vínculo de emprego e o trabalho eventual.
4.3.1 Trabalho prestado por pessoa física
A prestação de serviços numa relação empregatícia há de ser
necessariamente sempre executada por pessoa física – o empregado. Até porque, os bens
jurídicos tutelados nesse tipo de relação são a vida, a saúde, o bem-estar, etc., que só podem
ser usufruídos por uma pessoa natural. A pessoa jurídica não pode, portanto, ser empregado.
Por essa razão, afasta-se a relação jurídica protegida pela legislação trabalhista quando na
relação de trabalho o pacto para a prestação de serviços tiver como executor uma pessoa
jurídica, salvo se ficar constatado que houve uma maquiagem na relação estabelecida, de
modo que a pessoa jurídica foi utilizada apenas para encobrir relação de vínculo empregatício
entre o empregador e determinadas pessoas físicas.
A propósito, desde meados da década de 1990 tem sido uma prática na área
rural tentar encobrir a relação de vínculo empregatício por meio da constituição de falsas
cooperativas de mão-de-obra184, cujo interesse dos empregadores é o de se desvencilhar das
184
As falsas cooperativas de mão-de-obra começaram a surgir com maior intensidade após a Lei 8.949/94
acrescentar o parágrafo único ao artigo 442 da Consolidação das Leis do Trabalho, declarando não existir
116
obrigações sociais para com o trabalhador. A atuação dos órgãos fiscalizadores (Ministério
Público do Trabalho, Fiscais do trabalho e Sindicatos da categoria profissional) tem
conseguido evitar a proliferação abusiva dessa forma de maquiar a relação de trabalho.
4.3.2 Pessoalidade
É condição segundo a qual a relação empregatícia somente se dará na
pessoa do empregado, que não poderá fazer-se substituir constantemente por outro
trabalhador ao longo da concretização dos serviços pactuados, ou seja, a obrigação principal
assumida pelo empregado – a de prestar trabalho – é de natureza pessoal. Octavio Bueno
Magano esclarece que “quem executa um contrato de trabalho não pode ser substituído por
outro, o que vale dizer que se trata de contrato intuitu personae”185. Essa exigência, ao
contrário, não existe em relação ao empregador que tem como uma de suas características a
despersonalização, diretriz esta dada pelo Direito do Trabalho. Por conseqüência, pode
ocorrer na relação empregatícia a alteração do empregador mantendo-se em vigor as regras
contratuais anteriores com relação ao mesmo empregado. Isso ocorre com a denominada
sucessão trabalhista.
A pessoalidade com que os serviços devem ser prestados não impede, no
entanto, que o trabalhador seja eventualmente substituído por outrem no exercício das suas
atividades, desde que com o consentimento do empregador. Pode ocorrer, contudo, que uma
intermitente e constante substituição, mesmo consentida, venha a caracterizar-se como
prestação de serviços de caráter autônomo e sem pessoalidade, configurando, assim, uma
relação jurídica diversa da relação empregatícia.
vínculo empregatício entre a cooperativa de trabalho e seus associados, nem entre estes e os tomadores de
serviços daquela. Tal mudança ainda repercute nos fóruns de debates sobre as relações de trabalho no Brasil,
havendo, inclusive, projetos de lei tramitando no Congresso Nacional propondo a revogação do referido
dispositivo. Nesse sentido ver, por exemplo, o Projeto de Lei do Executivo de n.º 7009/2006, que dispõe sobre
a organização e o funcionamento das cooperativas de trabalho e institui o PRONACOOP - Programa Nacional
de Fomento às Cooperativas de Trabalho.
185
MAGANO, Octávio Bueno. Manual de direito do trabalho – direito individual do trabalho. V. II, 4. ed.,
São Paulo: LTr, 1993, p. 49.
117
4.3.3 Onerosidade
Por ser a relação empregatícia uma relação contratual bilateral e onerosa,
dela devem resultar prestação e contraprestação, obrigações recíprocas e correspondentes.
Assim, a onerosidade explicita-se na contraprestação devida pelo empregador ao trabalhador
pelo trabalho realizado, que consiste no salário. Este pode ser pago em dinheiro ou
parcialmente em utilidades como alimentação, habitação, etc. (art. 458 da CLT e art. 9º da Lei
5.889/73), e ainda pode ser pago por dia, semana, quinzena ou mês.
Sem a onerosidade não haveria a relação de emprego, mas sim situações de
trabalho voluntário, filantrópico, comunitário em que o trabalho é prestado, mas não há a
obrigatoriedade da contraprestação onerosa pelo tomador dos serviços. Pode ocorrer, no
entanto, situações tipificadas como “servidão disfarçada” em que há efetiva prestação de
trabalho sem a devida contraprestação onerosa do tomador de serviços. Nesse caso, como
adverte Maurício Godinho Delgado186, a investigação do elemento onerosidade não deve ser
enfocada apenas pela ótica do trabalho realizado, mas também no plano subjetivo que consiste
em averiguar a intenção contraprestativa (intenção onerosa) conferida pelas partes, em
especial pelo prestador dos serviços.
4.3.4. Continuidade ou não-eventualidade
A utilização da força de trabalho como fator de produção, por meio do
contrato de trabalho, pressupõe certa continuidade do trabalho prestado para atender às
necessidades da dinâmica do empreendimento do tomador de serviços. Por isso, a duração, o
tempo, é um fator que particulariza o contrato de trabalho em relação a outras modalidades
contratuais. Nesse sentido, a antítese da continuidade é a eventualidade, cujo conceito é um
dos mais controvertidos no ramo do direito do trabalho.
186
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 299-300.
118
Visto assim, temos entendimento de que a relação de emprego somente se
descaracteriza pela eventualidade do trabalho prestado quando este for necessário para atender
a uma necessidade transitória da atividade econômica do empregador, devendo o fator tempo
ser relativizado como critério para caracterizar a eventualidade do trabalho executado.
O preponderante para a configuração da relação empregatícia é se a
atividade executada se insere como atividade necessária para atender às necessidades normais
do
empreendimento do tomador dos serviços. Délio Maranhão observa que “a
descontinuidade da prestação nem sempre afastará a existência de autêntico contrato de
trabalho, desde que corresponda a uma normal descontinuidade da atividade econômica do
empregador: prestação descontínua, mas necessidade permanente”187.
Nas relações de trabalho rural, defendemos essa linha de interpretação como
a mais adequada para se averiguar o elemento continuidade ou a não-eventualidade do
trabalho prestado na caracterização do vínculo empregatício. Isso se deve à intermitência e à
sazonalidade que a prática do trabalho rural comporta, devido às condições climáticas,
perenidade dos produtos, ataque de pragas, etc., que exigem trabalhos a serem prestados por
curtos períodos. Mais adiante abordaremos com maior profundidade essa questão, já que ela
se insere como núcleo do debate do direito de proteção social do assalariado rural.
4.3.5. Subordinação
De todos os elementos que compõem a relação de trabalho empregatícia, a
subordinação é considerada o elemento de maior proeminência na conformação dessa relação,
servindo como o principal critério para marcar a diferença com outras modalidades de
contratação de prestação de trabalho.
187
MARANHÃO, Délio. CARVALHO. Luiz Inácio Barbosa. Direito do Trabalho. 17. ed., Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1993, p. 63.
119
Inúmeras situações contratuais muitas vezes protegidas por um contrato
civil formalmente existente entre as partes podem ser desconstituídas pela prova da
subordinação, revelando que o aparente caráter autônomo da relação está, na verdade,
revestido de vínculo empregatício. Na área rural isso se revela com certa intensidade, por
exemplo, nas relações de trabalho constituídas por meio dos contratos de empreitada e de
parceria.
No Direito do Trabalho a subordinação é concebida sob um prisma objetivo,
pois atua sobre o modo de realização da prestação e não sobre a pessoa do trabalhador. Para
Octavio Bueno Magano, a subordinação se caracteriza pelo modo com que “o empregador
organiza e controla os fatores de produção...”188. Advém daí o poder diretivo de comandar a
execução da obrigação contratual pelo empregado; o poder de organizar e controlar o
cumprimento dessa obrigação; e o poder disciplinar de penalizar o empregado (com
advertência, suspensão, dispensa) que não atenda de modo satisfatório à prestação a que se
obrigou.
A doutrina de Orlando Gomes e Elson Gottschalk expõe que, na
subordinação, “a atividade do empregado consistiria em se deixar guiar, dirigir. De modo que
as suas energias convoladas no contrato, quase que indeterminadamente, sejam conduzidas,
caso por caso, segundo os fins desejados pelo empregador”189.
Délio Maranhão e Luiz I. B. Carvalho, citando o conceito de subordinação
de Paul Colin expresso na obra de Evaristo de Moraes Filho, ressaltam a feição própria que o
contrato de trabalho adquire pelo modo de ser da prestação. “Por subordinação jurídica,
entende-se um estado de dependência real criado por um direito, o direito do empregador de
188
MAGANO, Octávio Bueno. Manual de Direito do Trabalho - Direito individual do trabalho. V. II, 4. ed.,
São Paulo: LTr, 1993, p. 50.
189
GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. 11. ed., Rio de Janeiro: Forense,
1990, p. 142.
120
comandar, dar ordens, donde nasce a obrigação correspondente do empregado de se submeter
a essas ordens”190.
Na literatura jurídica, diferentes posições doutrinárias surgiram e passaram a
considerar a subordinação ora como sendo uma dependência econômica, ora como sendo uma
dependência técnica. No primeiro caso a subordinação se configuraria por um matiz pessoal,
subjetivista, ou seja, pela sujeição e dependência econômica do trabalhador perante o
empregador, marcada por uma hierarquia austera. Essa posição doutrinária perdeu força até
porque se percebeu que a eventual independência econômica não desnatura o contrato de
trabalho do empregado, da mesma forma que a dependência econômica pode existir sem que
se configure uma relação de trabalho subordinado. No segundo caso concebeu-se a
subordinação como elemento de natureza e fundamentação técnica, consistindo no monopólio
do conhecimento do empregador sobre os processos de produção em que está inserido o
empregado. Essa teoria foi considerada bastante imprecisa por considerar que “a assimetria
no conhecimento técnico daria fundamento à assimetria na relação jurídica de emprego”191, o
que não consiste numa verdade já que o empregador mantém o poder de direção sobre os
fatores de produção sem necessariamente ter todo o domínio técnico utilizado no seu
empreendimento. Ademais existem trabalhadores subordinados tão ou mais intelectuais do
que os empregadores que os contratam.
Apesar de tais posições doutrinárias, Maurício Godinho Delgado nos
informa que o debate sobre a natureza do fenômeno da subordinação encontra-se atualmente
pacificado, de modo que hoje é hegemônico o entendimento de que a subordinação tem
natureza jurídica derivada do contrato de trabalho estabelecido entre o trabalhador e o
190
MARANHÃO, Délio. CARVALHO. Luiz Inácio Barbosa. Direito do Trabalho. 17. ed., Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1993, p. 64.
191
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 304.
121
tomador de serviços, embora o seu suporte e fundamento originário estejam na assimetria
social característica da moderna sociedade capitalista192.
Concordamos com essa formatação doutrinária do reconhecimento do
vínculo empregatício tendo por núcleo central e distintivo a subordinação jurídica. Apenas
enfatizamos que o elemento da subordinação deveria ter maior status, como traço
característico da relação de trabalho com vínculo empregatício no meio rural, tendo em vista
às particularidades que marcam o contexto econômico, social e cultural desse espaço
geográfico brasileiro e a forma como as relações de trabalho ali se reproduzem. Neste
particular, vale lembrar, que o nível de formação educacional do trabalhador rural assalariado
é um dos mais baixo entre os trabalhadores brasileiros, elemento este que, a nosso ver, deveria
ser levado em consideração enquanto gradação da subordinação para caracterização da
relação empregatícia.
4.4 O assalariado rural e a prestação de trabalho de curta duração: vínculo
empregatício ou trabalho eventual?
Já expusemos em diversas tópicos dessa pesquisa, que é prática do
segmento
econômico rural, tanto do grande quanto do pequeno empreendedor, fazer a
contratação de trabalhadores rurais por curtos períodos visando atender à necessidade
premente de mão-de-obra para fazer o plantio, tratos culturais, colheita da lavoura, etc. Sobre
este tipo de trabalho prestado circundam dúvidas e polêmicas se nele está presente a relação
de vínculo empregatício ou se o mesmo caracteriza-se apenas como um trabalho eventual.
A relação empregatícia, conforme já abordamos no tópico anterior,
caracteriza-se pelo trabalho prestado por pessoa física, com pessoalidade, onerosidade,
habitualidade e subordinação, devendo todos esses elementos estarem presentes
192
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 303.
122
simultaneamente na relação de trabalho, de modo que a ausência de qualquer deles é
suficiente para descaracterizar essa relação.
Já o trabalho eventual tem características que muito se aproximam do
trabalho prestado com relação de emprego.
Nele tendem a se reunir quase todos os
pressupostos da relação empregatícia. Alguns entendimentos são no sentido de que é a
ausência da subordinação que caracteriza o trabalho eventual; outros entendem que é a
ausência do elemento continuidade.
Em termos de política de proteção previdenciária, o conflito da
caracterização do trabalhador rural se estabelece a partir do conceito legal utilizado para
identificar o trabalhador contribuinte individual. Dispõe o art. 12, inciso V, alínea “g” da Lei
8.212/91 que se enquadra como contribuinte individual o trabalhador que “presta serviço de
natureza urbana ou rural, em caráter eventual, a uma ou mais empresas, sem relação de
emprego” (grifo nosso). Vê-se que em tal conceito é o elemento eventualidade o demarcador
da não relação de emprego.
Não há dúvidas de que o conceito de trabalho eventual é um dos mais
controvertidos em matéria de Direito do trabalho, tanto na doutrina quanto na jurisprudência,
sendo, portanto, diversas as teorias que procuram explicar essa relação. Maurício Godinho
Delgado apresenta como sendo quatro as principais teorias que abordam esse tema: a teoria da
descontinuidade; a teoria do evento; a teoria da fixação jurídica e a teoria dos fins do
empreendimento193, advertindo-nos esse autor, de antemão, que não se deve perquirir o
conceito de trabalhador eventual tendo em linha de conta os fundamentos exclusivos de
qualquer dessas teorias.
193
Maiores informações sobre as principais teorias que explicam o conceito de relação de trabalho eventual e
não-eventual, ver: DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr,
2007, p. 293 a 298.
123
Descrevendo-se uma síntese de cada uma dessas teorias, é de se observar
que a teoria da descontinuidade aborda o trabalho eventual como sendo o trabalho
descontínuo e interrupto perante o contratante da mão-de-obra. Trata-se de um trabalho
fragmentado, disperso e fracionado no tempo, de modo que entre um serviço e outro prestado
ao mesmo tomador, há um espaçamento temporal significativo que interrompe a relação de
trabalho contínua. Essa teoria, em conformidade com o entendimento majoritário da doutrina
e da jurisprudência foi, nas observações de Maurício Godinho194, enfaticamente rejeitada pela
Consolidação das Leis do Trabalho - CLT.
Pela teoria do evento o trabalho eventual configura-se quando vinculado a
“determinado e específico fato, acontecimento ou evento” que leva o tomador a demandar
certa obra ou serviço. Em que pese o tempo de duração do trabalho prestado estar vinculado
ao tempo de duração do evento ocorrido, essa teoria esclarece que não poderá ser considerado
como trabalho eventual aquele que resulte por um dilatado período de tempo. Citando Victor
Russomano, Maurício Godinho esclarece que o trabalho eventual corresponde ao seu exato
“conceito gramatical”. Nessa linha de entendimento, “é trabalho eventual ‘aquele que depende
de acontecimento incerto, casual, fortuito”195. São os fatos que determinarão se a relação de
trabalho constituída é eventual ou permanente.
Em conformidade com a teoria da fixação jurídica, o trabalhador eventual é
caracterizado pela sua não fixação ao tomador dos serviços. O fato de o trabalhador prestar
serviços a diversos destinatários, ainda que os serviços sejam prestados continuamente, isso o
tipificará como um trabalhador eventual dada à impossibilidade de haver a fixação jurídica
entre o trabalhador com qualquer um dos tomadores de seus serviços. O trabalhador “não se
194
195
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 295.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 296.
124
fixa a uma fonte de trabalho”, diferentemente do empregado que estabelece uma relação fixa
com o tomador de serviços196.
Por fim, no que se refere à teoria dos fins do empreendimento, o trabalho
eventual se caracteriza pela sua não vinculação às atividades fins do empreendimento, além
de ser um trabalho esporádico e de curta duração. Considerada a formulação teórica mais
prestigiada entre as quatro aqui enfocadas, essa teoria trata com maior relevância a natureza
da atividade executada pelo trabalhador e minimiza o critério do tempo de duração dos
serviços como requisitos para tipificar ou não o trabalho eventual. Daí o entendimento de que
é eventual apenas o trabalhador “chamado a realizar tarefa não inserida nos fins normais da
empresa”.197
Conforme lecionam Délio Maranhão e Luiz Inácio Barbosa Carvalho, o
trabalho eventual está vinculado à ocorrência de determinadas “circunstâncias transitórias”
que podem demandar a contratação de alguém para prestar serviços visando a atender a uma
necessidade que tem “caráter de exceção dentro do quadro das necessidades normais do
empreendimento”198. Esses autores vão mais além ao afirmarem que “(...) não se tratando de
trabalho acidental, fortuito, a título excepcional ou em caso de emergência, a simples
transitoriedade da prestação não desfigura o contrato de trabalho, nem descaracteriza a
condição de empregado”199. Desse modo, a aferição da natureza eventual dos serviços
prestados há de ser sempre feita tendo em vista os fins normais da empresa. É como também
assinala José Luiz Ferreira Prunes:
O traço distintivo entre um trabalhador eventual e um não eventual é a sua
necessidade para a empresa empregadora. Assim, se seu serviço é essencial
aos fins da empresa, não se pode falar em trabalhador eventual, mesmo que
labute ele poucos dias ou em raras ocasiões.
196
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 296.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho - 6. ed. – São Paulo: LTr, 2007, p. 296.
198
MARANHÃO, Délio. CARVALHO. Luiz Inácio Barbosa. Direito do Trabalho, 17. ed., Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1993, P. 63.
199
MARANHÃO, Délio. CARVALHO. Luiz Inácio Barbosa. Direito do Trabalho. 17. ed. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1993, p. 63
197
125
(...).
Se um estabelecimento se dedica à criação de gado e contrata um trabalhador
para cortar pastagens por semana, por exemplo, este trabalhador não é
eventual. Não é necessário salientar que exerce ele atividades indispensáveis
dentro do estabelecimento. Poderá, isto sim, ser um empregado rural com
contrato de trabalho por tempo determinado (uma semana, por exemplo) ou
para corte de certa área de pasto (obra certa). Nunca um trabalhador
eventual. Eventual, isto sim, será o trabalhador cujos serviços não sejam de
proveito imediato, essenciais. Podemos dar como exemplo o do trabalhador
contratado para embelezar o estabelecimento, pintando cercas ou fazendo
obras ornamentais.200
Consentâneos à teoria dos fins do empreendimento, alguns julgados dos
Tribunais na área do Direito do Trabalho vêm reconhecendo aos assalariados rurais que
prestam serviços em atividades de curta duração a condição de empregados e não como
trabalhadores eventuais ou autônomos201, o que pode ser averiguado na jurisprudência a
seguir citada:
Eventualidade não é mensurável pelo espaço de tempo da prestação dos
serviços. Importa é que o trabalho esteja inserido na linha finalística de
atividades do tomador. Reiteradas vezes assim ensinou o E. Tribunal
Regional do Trabalho da 9ª Região (...): ‘É empregado aquele que exerce
atividade essencial à consecução dos fins da empresa’ (RO-1.603/83, Rel.
Juiz Vicente Silva, in DJ-PR, 8 de fevereiro de 1984, p. 55).202
No mesmo sentido:
TRABALHADOR RURAL. ATIVIDADE ESSENCIAL. INVIABILIDADE
DE ENQUADRAMENTO COMO EVENTUAL.
É despropositado pretender enquadrar como eventual o trabalhador rural que
realiza tarefas essenciais à espécie de cultivo informada pelo réu. O trabalho
eventual caracteriza-se pela descontinuidade da prestação laboral,
pluralidade variável de tomadores de serviços, curta duração do trabalho
prestado e, principalmente, pela natureza pontual da atividade a ser exercida,
concernente a evento certo, determinado e episódico, ou seja, sem
correspondência com os fins normais do empreendimento. Definir o
trabalhador rural como eventual - o chamado "volante" ou "bóia fria" - ou
não eventual exige que se atente para a atividade preponderante do
empregador, já que o principal fator para a distinção é a essencialidade do
trabalho para a atividade-fim do réu. Se o empregador não prova que tenha
alterado o ramo de cultivo para alguma categoria sazonal, a conclusão é de
200
PRUNES, José Luiz Ferreira. Guia Prático do Empregador e do Trabalhador Rural. 2. ed. São Paulo:
LTr, 1973. p. 183.
201
Na jurisprudência brasileira é possível de se destacar entendimentos que convergem com o intento dessa
pesquisa que é o de reforçar a tese de que na grande maioria das relações de trabalho no campo, sobretudo
naquelas de curta duração e remuneradas por dia de serviço ou por produção, há a presença de uma relação de
vínculo empregatício.
202
Apud: PINTO. Airton Pereira. Direito do trabalho rural e a terceirização. São Paulo: LTr, 1999, p. 55.
126
que precisou da mão-de-obra do autor de forma permanente e habitual.
Recurso provido para reconhecer o vínculo de emprego e determinar o
retorno dos autos à origem para julgamento dos demais pedidos.203
TRABALHADOR RURAL. EVENTUALIDADE.
Não pode ser considerado eventual o trabalho realizado em operações
contínuas e relacionadas à atividade fim da empresa. No caso, a prova dos
autos demonstrou a existência de uma relação de emprego nos moldes
trabalhistas, uma vez que o reclamante executava tarefas peculiares a um
trabalhador permanente.204
Em matéria de direito previdenciário há julgados com esse mesmo
entendimento. Citamos aqui parte do trecho do voto do Desembargador Federal Antônio
Albino Ramos de Oliveira, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, proferido na Apelação
Cível nº 2000.04.01.136558-4, com o seguinte teor:
(...) O que o desqualifica [ao trabalhador eventual] como assalariado não é a
freqüência com que presta os serviços a um mesmo empregador, e sim a
natureza desses serviços, sua eventualidade. E por eventual têm-se os
serviços (sic) que não são próprios da empresa e que, assim, não exigem a
manutenção permanente de trabalhadores para prestá-los. Seria o caso, por
exemplo, de serviços de eletricista numa escola, ou de encanador em uma
empresa jornalística, ou de um mecânico numa pequena propriedade
agrícola. Não é, porém, o caso dos serviços de tombamento da terra, de
capina, de colheita e outras atividades essenciais à empresa agrícola: ainda
que para sua realização sejam contratados trabalhadores temporários, serão
eles assalariados típicos. (...) Portanto, é inadequado classificar-se o "bóiafria" como prestador de serviços eventuais e, assim, incluí-lo entre os
contribuintes individuais, uma vez que, sabidamente, seu trabalho insere-se
nas atividades fins da empresa agrícola.205
Entendimento semelhante pode ser extraído da decisão proferida pelo
Desembargador Rômulo Pizzolatti, também do Tribunal Regional Federal da 4º Região, que
ao julgar o recurso de apelação no processo nº 2006.70.99.001608-4, reconheceu o direito à
aposentadoria por idade a uma trabalhadora rural denominada “bóia-fria”. Por oportuno, citase o seguinte trecho do seu voto:
203
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DO PARANÁ, TRT-PR-00607-2006-325-09-00-5-ACO00890-2008 - 2. Turma, Relatora: Marlene T. Fuverki Suguimatsu. Publicado no DJPR em 18-01-2008.
Disponível em: <http://www.trt9.jus.br/internet_base/jurisprudenciasel.do#> Acesso em: 09 de setembro de
2008.
204
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DE GOIÁS, RO-00553-2004-111-18-00-8. Relatora: Juiza
Ialba-Luza Guimarães de Mello. Publicação: DJE nº 14.391 do dia 12.11.2004, pág. 59. Disponível em:
<http://www.trt18.jus.br/> Acesso em 09 de setembro de 2008.
205
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL 4. REGIÃO. AC nº 2000.04.01.136558-4 UF:SC. Órgão Julgador:
QUINTA TURMA. Data da decisão: 06/03/2003. Relator: Dês. Antônio Albino Ramos de Oliveira.
Disponível em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/> Acesso em: 03 de agosto 2007.
127
(...) Por outro lado, não é de ser exigida aos trabalhadores rurais bóias-frias a
comprovação do recolhimento de contribuições previdenciárias para que
tenham acesso aos benefícios da Previdência Social, uma vez que, como é
notório, esses trabalhadores são assalariados sem emprego permanente nem
registro formal, e ganham a vida como "diaristas" ou mesmo "safristas",
fazendo serviços gerais na agricultura, daqueles que não exigem
qualificação. Sendo assalariados, a obrigação do recolhimento das
contribuições previdenciárias é exclusivamente dos empregadores, sejam
eles quantos forem, cabendo ao INSS a fiscalização desse recolhimento (Lei
nº 8.212, de 1991, art. 30). É totalmente descabido pretender classificar os
trabalhadores rurais bóias-frias como contribuintes autônomos, individuais
ou em dobro para efeito de imputar-lhes a responsabilidade pelo
recolhimento das contribuições previdenciárias, uma vez que o trabalho
autônomo, por conta e risco próprios, exige um mínimo de qualificação
técnica, que não se encontra nesses trabalhadores braçais, a maioria deles
analfabeta.206
Assim, a teoria dos fins do empreendimento é a mais coerente e adequada
para traçar na área rural a linha divisória entre o trabalho exercido mediante uma relação de
emprego e o trabalho eventual, posto que há de se reconhecer no segmento econômico rural
um modo muito específico de produção, que a depender do produto cultivado haverá sempre
demanda de um contingente maior de mão-de-obra para trabalhar em períodos intermitentes
e numa relação de curta duração durante o ano. É o que comumente ocorre, por exemplo, em
épocas de colheitas.
A compreensão que se extrai, portanto, das relações de trabalho de curto
prazo na área rural pode significar maior inclusão ou exclusão do assalariado rural do acesso à
proteção previdenciária. Isso porque, o não reconhecimento da existência de vínculo
empregatício em tais relações de trabalho significa excluir do direito à proteção social
milhares de trabalhadores rurais assalariados caracterizados como diaristas, temporários,
safristas, “bóias-frias”, que não terão capacidade de fazer contribuições mensais para o
sistema de Seguridade Social como se trabalhadores autônomos fossem, nem tampouco
compreendem e colocam a política de proteção social na sua ordem de prioridade.
206
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL 4. REGIÃO. AC nº 2006.70.99.001608-4 UF:PR. Órgão Julgador:
QUINTA TURMA. Data da decisão: 08/05/2007. Relator: Des. Rômulo Pizzolatti. Disponível em:
<http://www.trf4.gov.br/trf4/> Acesso em: 03 de agosto 2007.
128
Para melhor elucidar tal afirmação, é preciso relembrar que a proteção
previdenciária do empregado rural está condicionada à contribuição mensal com base numa
alíquota variável entre 8 e 11% sobre o salário-de-contribuição,
a ser recolhida pelo
empregador (art. 20 c/c art. 30, I, alínea “a”, da Lei n. 8.212/91). Para o trabalhador eventual,
autônomo, caracterizado na Previdência Social como contribuinte individual, a contribuição
previdenciária é de 20% e o recolhimento é de sua responsabilidade, podendo tal alíquota de
contribuição ser reduzida ao percentual de 11% caso a empresa tomadora dos serviços tenha
recolhido para a Previdência Social a contribuição incidente sobre a remuneração paga ao
trabalhador (art. 21 c/c art. 30, II, e § 4º da Lei n. 8.212/91)207. Assim, dificilmente o
assalariado rural, por um ato volitivo, efetuará contribuições próprias para a Previdência.
Pelas necessidades emergentes de sobrevivência que tem, contribuir mensalmente com a
Previdência certamente não está na sua ordem de prioridade.
207
É de se observar que historicamente foi obrigação do empregador fazer o desconto e o recolhimento das
contribuições previdenciárias incidentes sobre a remuneração paga ao empregado. Com o advento da Lei n.º
10. 666/2003 (art. 4º), essa sistemática obrigacional tornou-se extensiva às pessoas jurídicas que contratam
mão-de-obra de pessoas físicas caracterizadas como contribuintes individuais (trabalhadores autônomos). Ou
seja, deu-se um passo importante para não deixar o trabalhador contratado afastado do plano de proteção.
Ocorre que esta regra, por força do § 3º, do art. 4º da referida Lei, não se tornou aplicável quando o contratante
da mão-de-obra for uma pessoa física. Com isso deixou-se de uniformizar os procedimentos e tornar a
previdência social um sistema com regras mais apropriadas para a garantia da proteção.
129
5 Conflitos e dilemas das regras previdenciárias que demarcam limites da
proteção social do assalariado rural
5.1 O dilema da proteção social do assalariado e do agricultor familiar
Como já mencionamos, a agricultura familiar é um segmento importante no
contexto sócio econômico brasileiro, geradora de postos de trabalho no meio rural e se
projeta, numa escala progressiva, como demandante de mão-de-obra assalariada para a prática
de serviços temporários, visando fazer frente aos desafios que lhes são postos, seja enquanto
setor produtivo de alimentos, seja para a sua própria reprodução e sustentabilidade.
A própria Constituição Federal concede um tratamento especial à
propriedade rural trabalhada pela família, instigando a necessidade de prover meios para o seu
desenvolvimento sócio-econômico (art. 5º, XXVI da CF/88), instituindo, inclusive, um
capítulo específico tratando das questões vinculadas às políticas agrícolas, fundiárias e
agrárias (artigos 184 a 191) no título que trata “Da Ordem Econômica e Financeira”, cujos
princípios orientadores são a função social da propriedade, redução das desigualdades sociais,
busca do pleno emprego, dentre outros.
Numa ordem coerente, o texto constitucional também estabelece parâmetros
de proteção social para os agricultores familiares dando ênfase para a promoção do
desenvolvimento sócio-econômico da agricultura familiar. Isso pode ser conferido com a
redação dada ao parágrafo 8º do art. 195.
Art. 195. ............................................................:
§ 8º. O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador
artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades
em regime de economia familiar, sem empregados permanentes,
contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota
sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios
nos termos da lei (grifo nosso).208
208
BRASIL. Constituição da República Federal do Brasil: 1988. 23. ed. Brasília: Câmara dos Deputados,
Coordenações de Publicações, 2004.
130
Três ordens de questões devem ser consideradas a partir do referido preceito
constitucional:
A primeira é a extensão da proteção social conferida aos membros
integrantes do mesmo grupo familiar, não apenas aos cônjuges, mas também aos filhos
solteiros que trabalham com a família. Essa garantia de proteção apresenta-se como um
importante indicativo da vontade política expressa pelo poder constituinte em superar o
modelo de exclusão social que historicamente marcou o campo brasileiro.
A segunda é o fato de o texto constitucional determinar que a participação
dos agricultores familiares no custeio do sistema de Seguridade Social deve assentar-se em
critério de contribuição diferenciado em relação aos demais segurados, no caso, “mediante a
aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção”. Trata-se da
aplicação do princípio da equidade na forma de participação do custeio da Seguridade Social
reconhecendo ao agricultor familiar o direito de participação no sistema de proteção social,
levando em consideração a sua realidade sócio-econômica e cultural.
A terceira questão consiste em assegurar aos agricultores familiares o direito
de proteção social por meio de regras especiais, desde que os mesmos exerçam a atividade
rural em regime de economia familiar “sem empregados permanentes”. Parecia claro ao
legislador constituinte, há 20 anos, que a agricultura familiar não alcançaria maior inserção
sócio-econômica produzindo somente para a subsistência e utilizando apenas a mão-de-obra
familiar na exploração da terra. Até porque, as transformações sociais que ocorriam no campo
naquele momento já evidenciavam que trabalho em regime de mutirão209 no âmbito da
agricultura familiar estava perdendo consistência, o que exigiria a contratação de mão-de-obra
remunerada para garantir a produção. Por isso, procurou-se alinhar o direito à proteção social
209
O trabalho em regime de mutirão foi uma prática muito comum, no passado recente, em que as famílias rurais
se ajudavam mutuamente nos períodos de colheitas (época em que a demanda de trabalho de mão-de-obra
sempre foi maior) apenas trocando dias de serviços, ou seja, as pessoas não eram remuneradas pelos serviços
prestados.
131
à nova realidade que se impunha. É, no entanto, a partir dessa questão que se situa o problema
em torno do direito de proteção previdenciária do assalariado rural e do agricultor familiar,
devido ao tipo de relação de trabalho que se estabelece entre ambos.
A legislação previdenciária ao regulamentar o referido texto constitucional
constitui a figura do segurado especial conceituando-o como sendo a pessoa física,
proprietária ou não, que explora a atividade rural “individualmente ou em regime de economia
familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros” (Lei n. 8.212/91, art. 12, inciso
VII)210. Desse modo, reside a controvérsia em saber se o agricultor familiar pode ou não
explorar a terra contratando mão-de-obra assalariada por curtos períodos, com vínculo
empregatício, e manter-se no enquadramento de segurado especial da Previdência Social.
É de se anotar, nesse aspecto, que o legislador não foi feliz na
regulamentação do preceito constitucional (art. 195, § 8º). Isso porque, se o texto
constitucional significou um grande avanço para que se pudesse desenvolver uma política de
proteção social no campo de forma integrada e articulada, a legislação previdenciária, por sua
vez, procurou apenas reproduzir, no conceito de segurado especial, os mesmos elementos
presentes em alguns institutos jurídicos constituídos ainda na década de 1970.
É o que se observa, por exemplo, com o conceito de trabalhador rural
instituído pelo Decreto - Lei 1.166, de 15 de abril de 1971, que disciplina o enquadramento
sindical na área rural211. Estabeleceram-se como elementos caracterizadores do conceito de
210
Na versão original do inciso VII, do artigo 12 da Lei 8.212/91, o segurado especial era qualificado como
sendo “o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o garimpeiro, o pescador artesanal e o
assemelhado, que exerçam essas atividades, individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que
com o auxílio eventual de terceiros, bem como seus respectivos cônjuges ou companheiros e filhos maiores de
14 anos ou a eles equiparados, desde que trabalhem, comprovadamente, com o grupo familiar respectivo”.
Essa redação foi altera recentemente pela Lei n. 11.718, publicada em 23.06.08, mas manteve no mencionado
dispositivo, o entendimento de que o segurado especial só pode utilizar o auxílio eventual de terceiros para
ajudar a lavrar a terra.
211
O Decreto-Lei 1.166/71 para fins de enquadramento sindical rural contempla como trabalhador rural o
assalariado rural e o agricultor familiar, sendo este conceituado da seguinte forma: “quem, proprietário ou
não, trabalhe individualmente ou em regime de economia familiar, assim entendido o trabalho dos membros
da mesma família, indispensável à própria subsistência e exercido em condições de mútua dependência e
colaboração, ainda que com ajuda eventual de terceiros.” (art. 1º, inciso I, alíneas “a” e “b”). São esses
132
trabalhador rural o fato de a pessoa, proprietário ou não, trabalhar individualmente ou em
regime de economia familiar, considerando o trabalho indispensável apenas à própria
subsistência, sendo permitido ao núcleo familiar contar com a ajuda eventual de terceiros.
Observa-se que, em face dos interesses políticos dominantes da época, ofuscou-se no texto do
referido Decreto a consideração do trabalho dos membros da família como “indispensável ao
desenvolvimento sócio-econômico do grupo familiar”.212 Na verdade, optou o legislador em
associar o trabalho ao desenvolvimento sócio-econômico como elemento caracterizador do
enquadramento sindical do empresário/ empregador rural213. Com isso, a norma, em sua
abstração, não manteve qualquer consonância com a realidade sócio-organizativa e cultural
dos agricultores familiares, já que estes, em sua grande maioria, jamais se consideraram ser
empregadores ou empresários rurais.
Cita-se, ainda, como norma balizadora do conceito de segurado especial, a
Lei Complementar n.º 11, de 25 de maio de 1971 (revogada), que criou o Programa de
Assistência e o Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural. Essa norma
estabeleceu como beneficiário do programa o produtor, proprietário ou não, que exercesse
atividade rural, individualmente ou em regime de economia familiar, sem empregado,
devendo o trabalho dos membros da família ser indispensável à própria subsistência e
mesmos elementos que estão presentes no conceito de segurado especial previsto na versão original da Lei
8.212/91.
212
Cumpre lembrar, que o critério de ser o trabalho considerado como “indispensável ao desenvolvimento
sócio-econômico do grupo familiar” é utilizado para caracterizar o instituto da Propriedade Familiar,
especificado no art. 4º, II, da Lei n.º 4.504, de 30/11/64 (Estatuto da Terra), como sendo “o imóvel rural que,
direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantidolhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de
exploração, e eventualmente trabalhado com a ajuda de terceiros”. Tal instituto surgiu para regulamentar os
direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para os fins de execução da reforma agrária e
promoção da política agrícola. Preocupou-se o legislador, à época, em inserir um elemento fundamental na
base conceitual da propriedade familiar, qual seja, o de que o imóvel rural explorado deveria garantir, além da
subsistência, o progresso social e econômico do agricultor e sua família. Essa visão futurística, à época, não se
confirmou ante ao projeto da revolução verde iniciada na década de 70, cuja estratégia era montar uma
estrutura de grandes propriedades/empresas na agricultura, as quais viriam substituir a pequena propriedade
familiar considerada “ineficiente”.
213
Conforme art. 1º, inciso II, alínea “b” do Decreto-Lei 1.166/71.
133
exercido em condições de mútua dependência e colaboração (art. 3º, alínea “b”, da Lei
Complementar n. 11/71).
Assim, o conceito de segurado especial presente na lei previdenciária
vigente (art. 12, inciso VII, da Lei 8.212/91) advém de uma concepção extraída do conceito
de trabalhador rural estabelecido para fins de enquadramento sindical rural e para fins de uma
política de proteção aos trabalhadores do campo (Prorural/Funrural) de caráter
predominantemente assistencialista, que considerava o trabalho apenas um instrumento para
garantir uma economia de subsistência.
Ante as questões postas, fazer uma interpretação restritiva das normas no
sentido de que só é permitido ao agricultor familiar utilizar mão-de-obra extra-familiar para
ajudar na propriedade caracterizada como auxílio eventual de terceiros, constitui-se num
óbice para que esse mesmo agricultor venha contratar mão-de-obra assalariada devidamente
formalizada sob uma relação de emprego. Isso porque, sob esse entendimento, a formalização
de um contrato de trabalho, mesmo que seja por um curto período, como ocorre em épocas de
safras, descaracterizaria o agricultor e os respectivos membros do grupo familiar da qualidade
de segurado especial. Por conseqüência, os agricultores familiares, em sua grande maioria,
ficariam excluídos do direito de acesso aos benefícios da previdência social, já que não dispõe
de capacidade contributiva214 suficiente para lhes garantir a proteção previdenciária noutra
qualidade de segurado215 com contribuições nos moldes da técnica securitária tradicional.
214
Após fazer uma análise sobre o desempenho dos rendimentos dos agricultores familiares no Brasil no
período 2001-2004, Sérgio Schneider informa que a renda média mensal desses agricultores, por unidade
familiar, passou de R$ 617,49 em 2001 para R$ 685,93 em 2004. (Ver: SCHNEIDER, Sergio. Agricultura
familiar e emprego no meio rural brasileiro: análise comparativa das Regiões Sul e Nordeste. Disponível
em: <http://www.cgee.org.br/prospeccao/doc_arq/prod/registro/pdf/regdoc3089.pdf> Acesso em 28 de
setembro de 2008). Isso demonstra a pouca capacidade contributiva dos agricultores familiar para a
Previdência Social.
215
Na medida em que o agricultor familiar perde a qualidade de segurado especial, seu enquadramento
previdenciário só será possível enquanto segurado contribuinte individual, o que lhe exigiria contribuição
mensal para a previdência social com alíquota mínima de 11% sobre o salário mínimo quando se almeja um
benefício neste mesmo valor, ou de 20% sobre um salário de contribuição de maior valor para se auferir
benefícios proporcionais ao valor das contribuições. Considerando que, em caso de contratação de mão-deobra assalariada, essa é uma regra que necessitaria ser aplicada a todos os membros do mesmo grupo familiar,
134
Na doutrina, autores como Sérgio Pinto Martins entendem que a expressão
“empregados permanentes” contida no texto constitucional é redundante vez que o vínculo de
emprego, por si só, pressupõe a continuidade da prestação dos serviços. Na visão desse autor,
a expressão “auxílio eventual de terceiros”, prescrita no texto da lei ordinária, interpreta
melhor a norma constitucional, de forma que o segurado especial pode utilizar o auxílio de
terceiros, mas apenas de forma eventual.
A expressão empregados permanentes contida no § 8º do art. 195 da
Constituição é redundante, pois empregado só pode ter continuidade na
prestação dos serviços, pois, do contrário, não será empregado. O inciso VII
do art. 12 da Lei nº 8.212 usa a expressão auxílio eventual de terceiros, que,
parece-me, interpreta melhor a norma constitucional, no sentido de que pode
haver auxílio de terceiros, mas deve ser eventual, pois do contrário haverá a
configuração da condição de empregado. Não se poderia dizer empregados
eventuais, pois este trabalhador é justamente o que presta serviços de
natureza contínua, não eventual. 216
Seguindo outra linha de entendimento, interpretamos o texto constitucional
visualizando razões suficientes que justificam a expressão “sem empregados permanentes”
contida no art. 195, § 8º. Trata-se, a nosso ver, de uma permissão para que os agricultores
familiares possam contratar mão-de-obra com vínculo empregatício, ainda que seja por curtos
períodos, com propósitos bem definidos, que é o de incentivar o desenvolvimento sócioeconômico da agricultura familiar e, ao mesmo tempo, ampliar a extensão da cobertura da
proteção social a outros trabalhadores, no caso, aos assalariados rurais. Para uma sociedade,
como a brasileira, que tem no primado do trabalho formal o paradigma de proteção social,
parece-nos lógico que o propósito do texto constitucional foi o de incentivar a relação de
vínculo empregatício e não qualquer outro tipo de relação de trabalho.
Ademais, existem outras razões que decorrem das especificidades do modo
de produção no campo e pelas características próprias de reprodução econômico-social e
organizativa dos agricultores familiares. A necessidade de sobrevivência, o número reduzido
certamente, muitos destes ficariam excluídos da proteção social previdenciária por não disporem de meios
financeiros para contribuir.
216
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p.131.
135
de pessoas na família para o labor da terra resultante do êxodo rural, principalmente dos
jovens que não encontram incentivos
para permanecerem no campo, e o aumento da
demanda de trabalho em épocas de colheitas são fatores determinantes para que se utilize
mão-de-obra de terceiros, em períodos de curta duração, mediante uma relação de trabalho
empregatícia. A propósito, o ordenamento jurídico pátrio já reconhece o trabalho sazonal no
meio rural – que não é permanente – regido pela modalidade do contrato de safra, conforme
previsto no artigo 14 da Lei 5.889/73 e no artigo 19 do seu regulamento - Decreto nº
73.626/74, caracterizador, portanto, do empregado rural safrista217.
A jurisprudência de nossos Tribunais é muito oscilante no trato dessa
matéria, sobretudo na interpretação que se faz sobre a natureza da relação de trabalho para a
execução de atividades de curta duração na área rural. Ora entende que o agricultor familiar
está descaracterizado da condição de segurado especial pelo fato de contratar assalariado rural
comumente denominado de safrista, diarista, “bóia-fria”; ora entende que a contratação desse
tipo de mão-de-obra não prejudica o agricultor em sua condição de segurado especial. De um
modo geral, é entendimento majoritário da jurisprudência que a não descaracterização da
condição de segurado especial decorre do fato da mão-de-obra de terceiros utilizada no labor
da terra equiparar-se a trabalho eventual. Nesse sentido, citam-se alguns julgados de nossos
Tribunais:
PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. CARÊNCIA
E QUALIDADE DE SEGURADO INDEMONSTRADOS. APELO DO
AUTOR IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA.
(...) 3. Com efeito, da prova oral coligida, apurou-se que o autor é
proprietário de um sítio de 30 (trinta) alqueires, com dez mil pés de café e
algumas vacas de leite. As notas fiscais de fls. retratam que é produtor rural.
As testemunhas ouvidas disseram que o autor, em comandita com o pai,
exploram a propriedade, com o auxílio de alguns diaristas. 4. Não se duvida
que o trabalhador rural qualificado como diarista, volante ou "bóia-fria" é
considerado segurado empregado, uma vez que executa serviços sob
subordinação, de caráter não eventual e mediante remuneração. Precedente
desta Corte. 5. Logo, quem o contrata caracteriza-se como empregador217
O contrato de safra vem discriminado no art. 14 da Lei 5.889, de 08 de junho de 1973 e no artigo 19 e 20 do
Decreto nº 73.626, de 12 de fevereiro de 1974, que estatui as normas reguladoras do trabalho rural.
136
produtor rural equiparado a autônomo, segurado obrigatório da previdência
social (art. 11, V, da Lei nº 8213/91) e sujeito ao recolhimento de
contribuições nos moldes do art. 30, II, da Lei nº 8.212/91, se deseja fazer
jus a benefícios. (...).218
PREVIDENCIÁRIO - APOSENTADORIA POR IDADE - RURÍCOLA PROVA TESTEMUNHAL - INÍCIO DE PROVA MATERIAL - VALOR
DO BENEFÍCIO - TERMO INICIAL DO BENEFÍCIO - ABONO ANUAL
- JUROS DE MORA - CORREÇÃO MONETÁRIA - HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS - CUSTAS PROCESSUAIS - RECURSO PROVIDO SENTENÇA REFORMADA
(...) 3. A contratação de diaristas para o trabalho da colheita não faz óbice à
concessão do benefício vindicado, visto que o produtor, o parceiro, o meeiro
e o arrendatário rurais, que exerçam suas atividades, individualmente ou em
regime de economia familiar, são, a teor do inciso VII do art. 11 da Lei
8213/91, segurados especiais, ainda que contem com o auxílio eventual de
terceiros (...).219
Entretanto, existem julgados que tomam por fundamento o preceito
constitucional de que a mão-de-obra utilizada pelo agricultor familiar em períodos sazonais
ou em épocas de colheita não se caracteriza como empregado permanente, mantendo-se o
agricultor na condição de segurado especial. Essa é a linha de raciocínio manifestada no
julgado a seguir citado:
PREVIDENCIÁRIO
–
SUSPENSÃO
DE
BENEFÍCIO
–
APOSENTADORIA RURAL POR IDADE – APRESENTAÇÃO DE
DOCUMENTAÇÃO QUE COMPROVA O EXERCÍCIO DA ATIVIDADE
RURAL À ÉPOCA DA CONCESSÃO – REGIME DE ECONOMIA
FAMILIAR – CONTRATAÇÃO DE DIARISTAS – POSSIBILIDADE.
(...) 2. O impetrante afigura-se como segurado especial, sendo demonstrado
ter trabalhado em regime de economia familiar contribuindo para a
subsistência do grupo em condições de mútua dependência e colaboração,
conforme exige o § 1º do inciso VII do art. 11 da Lei nº 8.213/91.
218
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. 3. REGIÃO. AC n.º 200503990323828, UF: SP Órgão Julgador:
Décima Turma. Data da decisão: 08/08/2006. Relator Dês. Fonseca Gonçalves. Disponível em
<http://www.jf.jus.br/juris/> Acesso em: 27 de junho de 2008.
219
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. 3. REGIÃO. AC n.º 200061060112713 UF: SP Órgão Julgador:
Quinta Turma. Data da decisão: 05/02/2002 Relator Des. Ramza Tartuce. Disponível em
<http://www.jf.jus.br/juris/> Acesso em: 05 de agosto de 2008. No mesmo sentido, o Acórdão proferido pela
Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região “(...) Eventual auxílio de terceiros em época de
colheita não tem o condão de descaracterizar o regime de economia familiar (...)”. (Ver: Tribunal Regional
Federal. 4. Região. AC nº 2000.70.04.001098-5 UF:PR. Órgão Julgador: Quinta Turma. Data da decisão:
06/07/2007. Relator: Des. Luiz Antonio Bonat. Disponível em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/> Acesso em: 03
de agosto 2007). Citamos ainda o Acórdão proferido pela Turma Suplementar do TRF da 4. Região, em que
aprecia pedido de aposentadoria rural por idade, e que afirma: “(...) Eventual auxílio de terceiros em
determinados períodos do ano (sazonal) não elide o direito postulado, visto que se trata de prática comum nos
períodos de safra”. (Ver:: Tribunal Regional Federal 4. Região. AC nº 2004.04.01.046048-7 UF:PR. Órgão
Julgador: Turma Suplementar. Data da decisão: 13/12/2006. Relator: Des. Luciane Amaral Corrêa Munch.
Disponível em: <http://www.trf4.gov.br /trf4/> Acesso em: 03 de agosto 2007).
137
3. Não é vedada a contratação de diaristas para a concessão de benefício de
acordo com as Leis nº 8.212/91 e 8.213/91 e a Constituição Federal em seu
art. 195, § 8º, o que é vedado é apenas a contratação de empregados
permanentes. 4. Apelação e remessa necessária improvidas. 220
Diante desse contexto, importa observar que a interpretação que se faz do
texto constitucional e da legislação previdenciária no sentido de que a mão-de-obra contratada
pelo agricultor familiar caracteriza-se como “auxílio eventual de terceiros”, conduz à maior
proteção social do agricultor familiar, mas, ao mesmo tempo, exclui o assalariado rural desse
mesmo direito pela exigência, conforme já abordamos, de ter esse trabalhador que efetuar
contribuições mensais para a Previdência como se trabalhador autônomo fosse. Além disso,
corre-se o risco de se projetar um entendimento de serem as relações de trabalho no campo
constituídas, em sua grande maioria, sem o vínculo empregatício, regra esta que tornar-se-ia
aplicável tanto ao agricultor familiar quanto ao grande empreendedor rural que demanda o
trabalho assalariado por curtos períodos.
Certamente, uma maior convergência do direito de proteção social do
agricultor familiar e do assalariado rural poderá advir com a interpretação a ser feita do texto
da recente Lei n.º 11.718, publicada em 23 de junho de 2008, que procurou corrigir, em parte,
a distorção conceitual existente no inciso VII do artigo 12 da Lei n. 8.212/91. É que foi dada
nova redação ao § 1º do artigo 12 da mesma Lei, definindo o que seja o “trabalho em regime
de economia familiar”, incorporando dois elementos a que nos referimos como essenciais
para atender à determinação do preceito constitucional prevista no art. 195, § 8º, quais sejam:
a consideração do elemento “trabalho” como indispensável à própria subsistência e ao
220
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. 2. REGIÃO. Apelação em Mandado de Segurança 21937. Processo:
9802115916, UF:ES. Orgão Julgador: Quarta Turma. Data Decisão: 06/06/2001. Disponível em:
<http://www2.trf2.gov.br/NXT/gateway.dll?f=templates&fn=default.htm&vid=base _jur:v_juris> Acesso em:
26 de setembro de 2008. No mesmo sentido: (...) Comprovada a condição de trabalhador rural do marido, esta
é extensível à esposa, quando as atividades são realizadas em regime de economia familiar, com a ajuda dos
filhos de casal e eventual de diaristas e, mesmo, esporadicamente, de meeiro. Precedentes jurisprudenciais que
consideram que apenas a existência de empregados permanentes afasta a configuração de trabalhador rural
como segurado especial. (ver: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. 2. REGIÃO. Apelação Cível 345240.
Processo: 2000.50.01.008174-0, UF: ES, Orgão Julgador: Primeira Turma Especializada. Data Decisão:
23/10/2007. Disponível em: <http://www2.trf2.gov.br/NXT/gateway.dll?f= templates&fn= default.
htm&vid=base_jur:v_juris> Acesso em: 26 de setembro de 2008.
138
desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar; e permissibilidade para o agricultor
familiar contratar empregados para suprir a demanda de mão-de-obra em determinados
períodos do ano221. O novo texto da Lei se completa com a introdução do § 8º222 ao citado
artigo 12, especificando que o grupo familiar poderá utilizar empregados, contratados por
prazo determinado, ou trabalhadores eventuais, em épocas de safra, à razão de, no máximo,
cento e vinte pessoas/dia no ano civil, em períodos corridos ou intercalados, para ajudar a
lavrar a terra. Certamente esses novos dispositivos trazem novas perspectivas quanto à
possibilidade de o agricultor familiar vir a contratar mão-de-obra de terceiros, por curtos
períodos, mediante relação de emprego devidamente formalizada, sem perder, contudo, a
qualidade de segurado especial. Aos assalariados rurais resta a expectativa de, por esse
caminho, alcançar maior garantia de acesso à proteção previdenciária.
Assim, diante do que determina o texto constitucional e com a nova redação
dada ao parágrafo 1º e ao parágrafo 8º do artigo 12, da Lei n. 8.212/91, há que ser superado o
conflito estabelecido pelo mencionado inciso VII do mesmo artigo 12 da citada lei, que ainda
mantém em seu texto a expressão “auxílio eventual de terceiros” para designar o tipo de mãode-obra extra-familiar que o segurado especial pode utilizar como apoio para o cultivo da
lavoura. Não nos parece mais ser cabível a linha de interpretação que distanciava o direito à
proteção social do agricultor familiar do direito de proteção do assalariado rural.
Há que se considerar que o texto constitucional e as normas ordinárias
devem ser sempre analisados em seu conjunto e de forma harmônica à luz da realidade social
que envolve as relações de trabalho no heterogêneo segmento da agricultura familiar. Até
221
A nova redação dada ao § 1º do art. 12, da Lei n. 8.212/91, disciplina o trabalho exercido em regime de
economia familiar da seguinte forma: “Entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o
trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico
do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de
empregados permanentes”.
222
O § 8o do artigo 12 da Lei 8.212/91, prescreve que: “o grupo familiar poderá utilizar-se de empregados
contratados por prazo determinado ou trabalhador de que trata a alínea g do inciso V do caput deste artigo, em
épocas de safra, à razão de no máximo 120 (cento e vinte) pessoas/dia no ano civil, em períodos corridos ou
intercalados ou, ainda, por tempo equivalente em horas de trabalho”.
139
porque não se obtém respostas a contento apenas por meio de uma hermenêutica lógico–
dedutiva dos textos legais pré-estabelecidos. Se o direito se realiza com a aplicação da norma
a partir da realidade que vemos, torna-se imprescindível conhecer essa realidade para fazer
valer o direito. Assim observa Eros Roberto Grau: “podemos descrever o direito de várias
formas e desde várias perspectivas; na verdade, contudo, não descrevemos jamais a realidade,
porém, o nosso modo de ver a realidade”223.
Ademais, a norma jurídica não fornecerá claramente todas as respostas às
relações jurídicas que se reproduzem na sociedade, decorrendo sempre várias alternativas de
interpretação e decisão. Por isso, é preciso buscar linhas de interpretação e decisão
sobejamente pensadas a partir da realidade factual de vida dos sujeitos envolvidos,
procurando garantir, a partir das regras existentes, a proteção previdenciária tanto do
agricultor familiar quanto do assalariado rural. Trata-se de uma questão da mais alta
relevância para o alcance da justiça social.
5.2 A regra transitória de acesso à aposentadoria por idade mediante
comprovação da atividade rural
Os direitos conferidos pela Constituição Federal aos trabalhadores rurais e a
inclusão dos mesmos ao Regime Geral de Previdência Social por força das Leis n.º 8.212/91 e
8.213/91, significou a possibilidade de ingresso a um quadro mais amplo de benefícios
previdenciários com regras contributivas variáveis conforme o enquadramento do segurado e
conforme as espécies de benefícios.
Como regra geral, determina a lei que o acesso a diversas espécies de
prestações pecuniárias do Regime Geral de Previdência Social exige um período mínimo de
contribuição (carência). Para o auxílio-doença e a aposentadoria por invalidez são necessários
doze contribuições mensais; para o salário maternidade são necessárias dez contribuições
223
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 17.
140
mensais; para a aposentadoria por idade, aposentadoria por tempo de contribuição e
aposentadoria especial são exigidas cento e oitenta contribuições mensais. Existem, no
entanto, benefícios que não exigem carência como é caso da pensão por morte, auxílioreclusão, salário-família, entre outros (arts. 25 e 26 da Lei n. 8.213/91).
Na especificidade do benefício da aposentadoria por idade os trabalhadores
rurais (empregado, contribuinte individual e segurado especial) obtiveram tratamento
diferenciado em relação à regra geral por força do artigo 143 da Lei n.º 8.213, de 24 de julho
de 1991. Deste modo, para acesso à aposentadoria no valor de um salário mínimo, a carência
para esse benefício passou a ser comprovada não em contribuições mensais, mas sim em
tempo de atividade rural imediatamente anterior ao requerimento do benefício, mesmo que de
forma descontínua. Trata-se, portanto, de uma regra transitória instituída originalmente para
viger por um período de quinze anos, contado a partir da vigência da Lei n.º 8.213/91 e cujo
prazo final seria, portanto, em 24 de julho de 2006224.
Parecem lógicas as razões que levaram o legislador a instituir tal regra
especial. Primeiro, porque, em julho de 1991, não se poderia exigir dos trabalhadores rurais
contribuições mensais, mínimas que fossem, para a obtenção do benefício da aposentadoria
se, antes dessa data, encontravam-se os mesmos vinculados ao Funrural, que não exigia
contribuições ao sistema. Segundo, porque, era evidente que devido ao alto grau de
informalidade e precariedade das relações de trabalho no campo, a exigência de contribuições
para a aposentadoria, sobretudo dos assalariados rurais, constituir-se-ia num óbice à
efetivação do acesso a esse benefício. Daí a pretensão em se projetar uma regra em cujo
período de transição pudessem os trabalhadores rurais, pelos meios que a lei determina que
224
É de se esclarecer que o trabalhador rural enquadrado como segurado especial na Previdência Social, embora
lhe sendo aplicada a regra transitória prevista no artigo 143 da Lei n. 8.213/91, tem garantido a seu favor a
regra permanente prevista no artigo 39, inciso I da mesma Lei, que lhe assegura o acesso aos benefícios
previdenciários por meio da comprovação da atividade rural. Portanto, a expiração do prazo previsto no art.
143 em nada prejudicou esse tipo de segurado.
141
sejam feitas suas contribuições, alcançar a participação efetiva no custeio da Previdência
Social e, conseqüentemente, por esse meio, garantir o acesso aos benefícios previdenciários.
Contudo, tal pretensão do legislador não se efetivou no prazo originário
estabelecido, em especial em relação à situação dos assalariados rurais que em sua grande
maioria continuam trabalhando na informalidade. De acordo com o Ministério da Previdência
Social225, enquanto que em todo o ano de 2006 foram registrados em sua base de dados 2,877
milhões de vínculos de empregos na área rural, a média de empregos mensais nesse mesmo
ano não passou de 1,539 milhões. Esses dados são muito próximos daqueles fornecidos pelo
IBGE226, que demonstra o panorama geral sobre o grau de informalidade do mercado de
trabalho rural. Conforme já citado, de um universo de 4,772 milhões de assalariados rurais,
apenas 1,591 milhão (aproximadamente 33%) mantém uma relação de trabalho formal estável
que lhes assegura, de maneira mais efetiva, o direito à proteção social previdenciária. Os
demais - cerca de 3,181 milhões –, quando alcançam um emprego formal, isso se limita a
pouquíssimos meses no ano ou laboram diuturnamente na informalidade para diversos
produtores exercendo atividades de curta duração, mediante relações de trabalho precárias.
5.2.1 A prorrogação do prazo para de acesso à aposentadoria por idade mediante a
comprovação da atividade rural
Às vésperas de transcorrer o prazo previsto no artigo 143 da Lei 8.213/91, o
governo se viu pressionado pelo Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais227 em
estabelecer uma alternativa que não deixasse os assalariados rurais totalmente descobertos da
proteção previdenciária. Disso resultou a Medida Provisória n.º 312 - convertida na Lei nº.
225
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. Anuário estatístico da Previdência Social 2006. Brasília:
MPS/DATAPREV, 2006, p. 550.
226
Conforme PNAD/IBGE 2006. Disponível em <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/
condiçãodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2006 >. Acesso em 22.05.08.
227
O Movimento Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais tem uma estrutura verticalizada, cujos
interesses em âmbito nacional são representados pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura-CONTAG; nos Estados, pelas Federações de Trabalhadores na Agricultura; e, nos Municípios,
pelos Sindicatos de Trabalhadores Rurais.
142
11.368, de 10 de novembro de 2006 -, que prorrogou por mais dois anos, apenas para o
trabalhador rural empregado, o prazo do referido artigo 143 da Lei 8.213/91. Tratava-se,
portanto, apenas de uma medida paliativa para amenizar a pressão dos trabalhadores rurais
que exigiam do governo uma resposta que desse maior segurança ao direito de proteção, tendo
por base regras estáveis que solucionassem o problema de forma definitiva.
Contudo, a Medida Provisória não surtiu os efeitos esperados já que a
questão havia sido equacionada apenas para quem comprovasse a relação de emprego. Essa,
aliás, passou a ser a exigência primeira do INSS nos processos de benefícios dos assalariados
rurais. Por conseqüência, houve uma enorme frustração dos trabalhadores que não
conseguiam cumprir com as exigências da Autarquia previdenciária, ficando, portanto,
excluídos do direito à aposentadoria.
É de se esclarecer que só foi possível tomar consciência do pouco efeito
prático da Medida Provisória 312/2006 quando começou a haver reclamações dos assalariados
rurais em todo o Brasil de que não estavam mais conseguindo se aposentar. Ao que tudo
indica, até aquele momento, a principal forma de acesso dos assalariados à aposentadoria
ocorria na condição de contribuinte individual. Isso porque, se não fosse possível comprovar o
vínculo de emprego, era suficiente comprovar a atividade como trabalhador autônomo, pois a
lei lhe amparava também nessa condição.228 E ao que tudo demonstra, o próprio servidor do
INSS se incumbia de adequar o enquadramento do assalariado rural ao tipo de prova
constante no processo de requerimento do benefício, o que era plenamente possível de ser
feito, pois não havia nenhum impedimento legal para que isso ocorresse.
228
Cumpre observar que a base oficial de dados do Ministério da Previdência Social não nos permite quantificar
os benefícios concedidos por categoria de segurados, mas apenas por espécie de benefícios. Nesse sentido,
apenas para demonstrar o quão é importante a regra do direito de acesso à aposentadoria por idade mediante a
comprovação do tempo de serviço rural, no mês de julho de 2008, a Previdência social pagou aos
trabalhadores rurais um total de 5.017.788 benefícios de aposentadoria por idade ao passo que os benefícios de
aposentadoria por tempo de contribuição correspondiam a apenas 11.967 benefícios. (Conforme:
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. Boletim Estatístico da Previdência Social. Vol. 13. n. 07.
Julho de 2008, Brasília: MPS, 2008, p. 21 e 29).
143
A angústia daqueles assalariados que tendo completado ou estando prestes a
completar a idade para a aposentadoria após 25 de julho de 2006, sem qualquer perspectiva de
acesso à aposentadoria na condição de empregado, levou a organização sindical dos
trabalhadores rurais a intensificar a pressão política junto ao governo.229 Disso resultou, em 23
de agosto de 2007, a edição de nova Medida Provisória de n.º 385/2007, estendendo a
prorrogação do prazo do artigo 143 da Lei n.º 8.213/91 também para o assalariado rural que
não comprovasse o vínculo empregatício, tipificado, portanto, como contribuinte individual.
O ponto nevrálgico de toda esta situação viria a ocorrer em 09 de outubro de
2007, quando o governo editou a Medida Provisória n.º 397 revogando a Medida Provisória
n.º 385, sendo que esta, em razão do seu transcurso de prazo, passou a trancar a pauta de
votações da Câmara dos Deputados. Nas argumentações do governo230 a desobstrução da
pauta era necessária para que aquela Casa Legislativa apreciasse matéria de natureza tributária
essencial para o financiamento das ações sociais a cargo do próprio governo. É importante
esclarecer, que a Medida Provisória n.º 397 foi rejeitada pelo Ato Declaratório nº. 1, do
Senado Federal, publicado no DOU em 14/03/2008, restabelecendo temporariamente os
efeitos da Medida Provisória n.º 385, que logo em seguida também foi rejeitada pelo Ato
Declaratório nº. 3, do Senado Federal, publicado em 22/04/2008, ambas sob o argumento de
não preencherem os pressupostos constitucionais de relevância e urgência. Com isso, voltou o
impedimento do acesso ao direito à aposentadoria do assalariado rural que vinha laborando na
informalidade.
229
De acordo com a Secretária de Políticas Sociais da CONTAG, Alessandra da Costa Lunas, a instabilidade da
situação dos assalariados rurais na Previdência Social, que já era grave, chegou a uma situação insustentável
com a dificuldade de acesso desses trabalhadores aos benefícios previdenciários depois de 24 de julho de
2006. Isso levou o Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais, coordenado pela CONTAG, a promover,
no dia 23 de abril de 2007, uma ação de protesto e de ocupação em centenas de agências de atendimento do
INSS de 17 Estados da Federação. (LUNAS. Alessandra da C. Entrevista concedida a Evandro José Morello.
Brasília. 12 de agosto de 2008).
230
Ver: BRASIL. Medida Provisória n.º 397. Exposição de Motivos. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Exm/EM-245-MPS.htm> Acesso em: 26. agost.
08.
144
5.2.2 Os novos critérios de acesso à aposentadoria
Se, por um lado, a realidade do mercado de trabalho rural configura uma
situação de exclusão do assalariado do direito à proteção previdenciária por meio da técnica
tradicional do seguro social, parece claro, por outro lado, existir obstáculos de diversas ordens
(econômica, política e legal) no sentido de se manter em favor desses trabalhadores a política
de proteção até então vigente, em especial no que concerne à forma de acesso à aposentadoria
por idade.
Desde o ano de 2006, com a aproximação do fim da regra especial de
transição para o acesso à aposentadoria, era evidente que seria necessário rediscutir novas
regras para garantir minimamente o acesso dos assalariados rurais à proteção previdenciária.
Entretanto, as sucessivas Medidas Provisórias que foram editadas mostrou, primeiro, que não
havia no âmbito do governo uma dimensão clara de como enfrentar o problema previdenciário
dos assalariados rurais. Segundo, ficaram evidentes as dificuldades internas do governo em
estabelecer instrumentos jurídicos mais amplos para uma política mais consistente de inclusão
previdenciária fora do paradigma tradicional do seguro social, como ocorria com os preceitos
previstos no artigo 143 da Lei n. 8.213/91. Terceiro, revelou-se para o governo que é preciso
buscar alternativas para superar a situação incômoda e perversa de precariedade e
informalidade que marca as relações de trabalho no campo e que a política de previdência
social pode e deve ser um instrumento a ser utilizado também para este fim.
A Medida Provisória n.º 410/2007, publicada em 28/12/2007 – convertida
na Lei n.º 11.718, publicada em 23/06/2008 – demonstra ser uma tentativa do governo, e com
as quais os trabalhadores rurais parecem compartilhar, de tentar contornar as três situações
acima descritas. De um lado, porque institui uma nova modalidade de contratação de trabalho
na área rural cujos elementos merecem uma abordagem mais detalhada, o que faremos num
tópico específico mais adiante. De outro lado, o referido diploma legal traz mudanças
145
substanciais nas regras de acesso dos assalariados rurais ao benefício da aposentadoria por
idade, e, para que essa proteção seja efetivada, vai depender muito da aplicabilidade e da
funcionalidade do novo modelo de contratação instituído.
Nesse sentido, o novo diploma legal prorrogou, para até dezembro do ano
de 2010, o prazo do artigo 143 da Lei n.º 8.213/91 de modo a continuar permitindo o acesso
dos assalariados rurais à aposentadoria por idade no valor de um salário mínimo, mediante a
comprovação apenas do exercício da atividade rural. Essa regra vale tanto para o segurado
empregado quanto para o contribuinte individual (art. 2º e seu parágrafo único, da Lei n.º
11.718/2008).
A partir do mês de janeiro de 2011, entrarão em vigor novas regras de
transição diferente do modelo vigente. Assim, para o assalariado rural que efetivamente
comprovar a prestação de trabalho a outrem mediante relação de emprego, a concessão de
aposentadoria por idade, no valor equivalente ao salário mínimo, terá uma contagem de tempo
de carência especial por meio das seguintes regras: no período de 1º de janeiro de 2011 a 31
de dezembro de 2015, cada mês comprovado de emprego será multiplicado por três, mas com
limite de doze meses dentro do respectivo ano civil (art. 3º, inciso II, da Lei n.º 11.718/2008);
no período de janeiro de 2016 a dezembro de 2020, cada mês comprovado de emprego será
multiplicado por dois, limitado a doze meses dentro do respectivo ano civil (art. 3º, inciso III,
da Lei n.º 11.718/2008).
Considerando que estamos tratando aqui de trabalhadores empregados,
cumpre observar que a este compete comprovar apenas o vínculo empregatício e não o
recolhimento de contribuições, posto que o § 5º do artigo 33 da Lei de Custeio (Lei nº.
8.212/91) determina que, por ser de obrigação do empregador fazer o recolhimento mensal
das contribuições retidas dos empregados, tais contribuições serão consideradas
presumidamente recolhidas.
146
Outra observação a considerar é que a partir de janeiro de 2021 encerrar-seá a nova regra transitória, condicionando o direito à aposentadoria do assalariado rural
empregado ao critério da regra comum, ou seja, cada mês comprovado de emprego valerá por
igual tempo para fins da contagem do período de carência exigido para acesso ao benefício.
Com isso, tem-se a pretensão que nos próximos anos os assalariados rurais, se não todos, ao
menos a grande maioria esteja trabalhando mediante contratos devidamente formalizados231.
Este é um ponto de incógnita, pois existem inúmeros fatores a serem considerados para que as
relações de trabalho no campo sejam formalizadas. Para o governo, no decorrer desse novo
período de transição poder-se-á fazer uma avaliação sobre a efetividade das novas regras e, a
partir de então, ver que rumos tomar. Já na visão dos trabalhadores a nova regra deveria
tornar-se permanente como garantia mínima de proteção social232.
Parece-nos que, nos
próximos anos, essa vai ser a tônica de uma nova discussão a ser travada no campo político
entre os trabalhadores e o governo.
Uma última questão e que resulta das novas regras estatuídas, é que a partir
de 1º de janeiro de 2011 o assalariado rural que não conseguir comprovar a relação de
emprego enquadrar-se-á perante a previdência social como contribuinte individual
231
Para o governo, é possível que nos próximos anos haja uma mudança de comportamento dos empregadores
rurais no sentido de maior formalização dos contratos de trabalho. É o que se extrai nos argumentos da
exposição de motivos da Medida Provisória n.º 410/2007: “(...) 18. No entanto, sabendo que o prazo até 31 de
dezembro de 2010 é exíguo para que seja promovida a mudança no comportamento dos empregadores da área
rural quanto à formalização das relações do trabalho, estamos propondo mecanismo que permitem a contagem
especial do tempo de contribuição desses trabalhadores até o ano de 2020 (...)”. Seria mais prudente, no
entanto, o governo assinalar que medidas serão adotadas nos próximos anos para que efetivamente haja maior
formalização dos contratos de trabalho. (ver: BRASIL. Medida Provisória 410: exposição de motivos.
Disponível em : <https://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Exm/EMI-40-MF-MPSMTE.htm>, Acesso em 11 de outubro de 2008).
232
Argumenta o governo que “(...) O ideal seria adotar-se uma regra diferenciada permanente, tal como
reivindica a categoria, entretanto, no momento isso não é possível, em razão das limitações impostas pela
Constituição Federal, porém o prazo estabelecido é suficientemente grande para propiciar uma avaliação isenta
do resultado da simplificação das contratações temporárias, que pode, de um lado, indicar a desnecessidade de
se continuar dando a esses trabalhadores tratamento diferenciado e, de outro, a necessidade de sua
continuidade, hipótese que implicará em alteração constitucional para superar as atuais vedações. (ver:
BRASIL. Medida Provisória 410: exposição de motivos. Disponível em : <https://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Exm/EMI-40-MF-MPS-MTE.htm>, Acesso em 11 de outubro de
2008).
147
(trabalhador autônomo) e não mais terá qualquer tratamento diferenciado na previdência
social. Desse modo, a aposentadoria por idade somente será obtida se comprovado o tempo de
carência exigido para o benefício mediante contribuições mensais. Isso, na prática, configura
uma situação de exclusão desses trabalhadores da proteção previdenciária pela pouca
capacidade contributiva que os mesmos têm perante o sistema.
5.2.3 Perspectivas quanto ao futuro do assalariado rural em alcançar a
aposentadoria por idade
Diante do contexto posto, não resta dúvida de que se projeta um futuro
bastante nebuloso quanto ao direito do assalariado rural em usufruir não apenas da
aposentadoria por idade, mas da proteção previdenciária como um todo. Como já dissemos,
esses trabalhadores enfrentam enormes dificuldades para conseguir um vínculo de emprego
formal e quando isso ocorre nem sempre é um período duradouro.
Daí algumas indagações: será possível alcançar maior proteção social dos
assalariados rurais pelo viés da formalização dos contratos de trabalho? Será que os institutos
jurídicos, que regulam as relações de trabalho no campo, se mostram apropriados para
dialogar com uma realidade em que preponderam relações de trabalho intermitentes, sazonais
e de curtíssima duração? Vai ser possível alcançar uma nova postura dos empregadores, dos
órgãos públicos, dos próprios trabalhadores e das instituições sindicais que os representam
visando estimular a formalização do contrato de trabalho na área rural? E, por fim, será
possível, no futuro, estabelecer um consenso político para a manutenção de regras mais
flexíveis que possam conduzir ao desenvolvimento de uma política de proteção previdenciária
para os assalariados rurais que seja mais includente?
De fato, está-se diante de um cenário marcado por forte exclusão social do
assalariado rural, onde predominam relações de trabalho precárias e informais impulsionadas,
148
como bem aponta Theodoro233, por diversos fatores, como a existência de uma extrema
desigualdade social expressa pelas disparidades de renda e de padrões educacionais, pela
redução dos níveis de oportunidade de empregos formal em face das dimensões da força de
trabalho, pelas mudanças tecnológicas,
pelas próprias características e dinâmica do
funcionamento da atividade no setor rural, mas também pela inadequação dos mecanismos
regulatórios jurídico-institucionais que tratam das relações de trabalho rural e da própria
concepção do trabalhador rural assalariado no âmbito da Previdência Social.
Não resta dúvida de que o quadro de exclusão dos assalariados rurais da
cobertura previdenciária demonstra uma cruel realidade, pois não é apenas o indivíduo que
está desprotegido, mas sim todos os familiares que o acompanham. Isso caracteriza uma
situação de insegurança social que, como bem observa Castel, “(...) não alimenta somente a
pobreza. Ela age como um princípio de desmoralização, de dissociação social à maneira de
um vírus que impregna a vida cotidiana. Dissolve os laços sociais e mina as estruturas
psíquicas dos indivíduos”.
Trata-se de uma insegurança que induz uma “corrosão do
caráter”234.
Nesse particular, o benefício da aposentadoria por idade, nos moldes em que
o assalariado rural atualmente tem acesso, desempenha um papel fundamental como
instrumento de segurança social, principalmente por ocorrer num momento de maior
necessidade devido ao esgotamento das forças de trabalho. Sem o acesso a esse tipo de
benefício esses trabalhadores certamente comporiam as fileiras de pessoas idosas vivendo no
Brasil ao nível da extrema pobreza.
A propósito, em recente estudo divulgado pelo Ministério da Previdência
Social sobre a evolução da proteção social previdenciária e seus impactos sobre o nível de
233
A propósito, ver: THEODORO, Mário. As características do mercado de trabalho e as origens do informal no
Brasil. In: Questão social e políticas sociais no Brasil. Luciana Jaccoud (Organizadora). Brasília:IPEA, 2005,
p. 114 - 118.
234
CASTEL, Robert. A insegurança social: o que é estar protegido? Tradução de Lúcia M. Endlich Orth. Rio de
Janeiro: Vozes, 2005, p. 31.
149
pobreza235, fica evidente que as transferências previdenciárias impactam de forma muito mais
consistente na vida da população idosa do que em relação às demais faixas etárias. Eis o que
diz o estudo:
Muito embora a redução da pobreza decorrente da expansão da Previdência
Social seja percebida em todas as faixas etárias, a renda previdenciária
favorece, sobretudo, aqueles com idade superior aos 55 anos – a partir dessa
idade nota-se uma significativa expansão da diferença entre o percentual de
pobres com e sem as transferências previdenciárias. Portanto, a pobreza
diminui com o aumento da idade (...), chegando ao limite inferior de 10%
para a população com 70 anos de idade ou mais. Caso as transferências
previdenciárias deixassem de ser realizadas, haveria um ponto a partir do
qual a pobreza voltaria a aumentar, chegando aos 70% para a população com
idade acima de 70 anos.236
É salutar, portanto, enfatizar a importância da regra transitória instituída
para a garantia do direito de aposentadoria dos assalariados. Sem ela, estariam os mesmos
praticamente fora do sistema de previdência social, mesmo contribuindo com o seu trabalho
para a produção de alimentos e riquezas para o país. Quanto ao futuro desse direito a situação
é muita incerta. Na verdade, é uma corrida contra o tempo.
235
De acordo com o Ministério da Previdência Social, em 1992 o percentual de pobres em relação à população
de referência alcançava 51,7% quando considerada a renda proveniente dos benefícios previdenciários. Sem
esta renda, o percentual de pessoas vivendo na mais extrema pobreza avançava para 58,4%. Já em 2006, o
percentual caiu para 31,0% quando incorporada a renda previdenciária. Sem esta, o percentual de pobres sobre
para 43,1%. (Ver: MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. Informe de Previdência Social. Março de
2008. Volume 20. número 03. Brasília: MPS, 2008, p. 5).
236
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. Informe de Previdência Social. Março de 2008. Volume 20.
número 03. Brasília: MPS, 2008, p. 5.
150
6
Proteção previdenciária e formalização do contrato de trabalho na área
rural
6.1 Considerações iniciais
Todo direito que se expressa pela legislação traz em seu bojo uma carga
valorativa dos aspectos culturais, políticos e sócio-econômicos de cada sociedade e em cada
época, como resultado da interação dos agentes nela envolvidos. Estruturado dentro de um
ordenamento jurídico, o direito legislado normatiza o conjunto de relações jurídicas que se
estabelecem na sociedade, sendo a sua aplicabilidade e funcionalidade determinante para a
aferição da maior ou menor efetivação das políticas públicas desenvolvidas pelo Estado.
Não se deve olvidar, no entanto, que esse mesmo direito, num contexto
cultural, social, político e econômico em constante transformações, enfrenta enormes
dificuldades para normatizar os distintos campos da vida. Nas observações de Eros Roberto
Grau “o tempo que vivemos denuncia uma tendência bem marcada à desestruturação do
direito. O direito, em suas duas faces – enquanto direito formal e enquanto direito moderno –,
se desmancha no ar”237. Frente a isso, propugna-se cada vez mais por uma forma de pensar e
estruturar
um
ordenamento
jurídico
que
incorpore,
gradativamente,
enfoques
multidisciplinares, críticos e reflexivos sobre a realidade social.
A esse respeito, Miguel Reale, na sua teoria tridimensional do Direito,
concebida sobre as bases de um “humanismo cultural”, nos revela que diversos elementos
constitutivos das regras de direito são dados na natureza ou na vida social, cuja validade
precisa ser apreciada também à luz de dados histórico-culturais. Os valores são
incessantemente renovados, o que explica a necessidade de renovação da ordem jurídica
positiva. Expõe esse autor o seguinte:
A regra do direito, por conseguinte, não é criação arbitrária do espírito, nem
fruto de um capricho de déspota, porquanto, para ser tal, deve
237
GRAU, Eros Roberto. O Direito posto e o Direito pressuposto. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 107.
151
necessariamente pressupor um valor a realizar, a análise das condições
culturais, a apreciação racional das soluções que os diferentes casos
comportam, para que o valor ético do preceito emanado de uma autoridade
competente possua real eficácia no seio do grupo.238
Nesse sentido, o direito enunciado na norma jurídica, além de sua função
estruturadora e reguladora das relações sociais, precisa ser visto e compreendido como uma
prática social específica que expressa, historicamente, os interesses e tensões dos indivíduos e
dos grupos sociais que atuam em cada sociedade conforme o paradigma de Estado em vigor e
que precisa ir se amoldando para dialogar com o mundo da vida.
Visto assim, o direito à proteção social previdenciária que se funda sob o
primado do trabalho e a partir do próprio direito do trabalho, é um direito que, como bem
assinala Octávio Bueno Magano, “não pertence ao mundo da natureza, mas ao mundo da
cultura”239 e que, enquanto produto de uma determinada cultura, não pode ser concebido
como universal240 e atemporal, já que a cada sociedade corresponde um direito integrado por
determinadas regras e princípios que regulam e estruturam as relações sociais e o modo de
produção da vida social. A esse respeito, Eros Roberto Grau preconiza:
(...) A análise histórica conduz à verificação de que a cada modo de
produção pertence um direito próprio e específico (Wieacker 1983/76 e ss. e
Barcellona 1977/3-32). Cada direito, em cada modo de produção puro, é
expressão de um direito pressuposto e é em nível particular no tipo de
articulação e de relações entres as instâncias da estrutura social que
caracterizam esse modo de produção puro (Poulantzas 1967/152). Por isso
que a definição de certas estruturas e práticas como jurídicas depende do
lugar e da função que elas ocupam e cumprem em um todo complexo
teoricamente definido, que constitui um determinado modo de produção
(Poulantzas 1967/153).241
Trazendo essas reflexões para a realidade presente, onde se constata o
distanciamento dos assalariados rurais do direito à proteção social pelo viés do contrato de
238
REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 3. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 302303
239
MAGANO, Octávio Bueno. Manual de Direito do Trabalho - Direito individual do Trabalho. V. II, 4.
ed., São Paulo: LTr, 1993, p. 22.
240
O termo “universal” a que se faz referência exprime a idéia de um direito passível de ser assegurado a todas
as pessoas e em qualquer sociedade indistintamente. Difere, portanto, do sentido de universalidade do direito
à proteção social que algumas sociedades estabelecem em seus ordenamentos jurídicos.
241
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 65.
152
trabalho formal, tem sido recorrente a indagação para saber até que ponto os institutos
jurídicos atinentes a essa questão estão aptos em apreender adequadamente os fenômenos
culturais, sociais e econômicos que vem transformando o espaço rural brasileiro, fenômenos
estes que se revelam nas mudanças do sistema produtivo, nas relações de trabalho, na
estrutura familiar e na densidade demográfica e etária da população rural.
Essa é uma questão que tem ganhado notoriedade nos últimos anos,
inclusive sendo pauta de discussões em diversos espaços institucionais envolvendo
organizações da sociedade civil e do governo. Como enfrentar o problema da informalidade
no mercado de trabalho rural e como assegurar ao assalariado rural o acesso à proteção
previdenciária? Trata-se de uma situação-problema que ocorre em todas as regiões do país e,
embora também presente nas relações de trabalho de longa duração, decorre principalmente
em função da natureza do trabalho precário prestado por curtos períodos242, limitando-se à
relação de poucos dias. O assalariado rural normalmente não tem anotação do contrato de
trabalho na Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS, e por isto não goza dos
benefícios sociais básicos. Em regra lhes são tolhidos diversos direitos naturais do contrato de
trabalho, justamente pela prestação do trabalho de curta duração que pode perdurar por um ou
alguns dias, ou algumas semanas, de modo que esse mesmo assalariado, em seguida, vai
laborar em outra propriedade para outro produtor nas mesmas condições.
Para uma compreensão mais clara do panorama acima posto, abordaremos,
a seguir, algumas questões que, a nosso ver, podem explicar um pouco melhor o quadro de
informalidade das relações de trabalho até então identificado e que tanto distancia o
242
Estudos feitos por Otávio Valentim Balsadi sobre a polarização do grau de formalidade do trabalho
empregatício na agricultura brasileira tomando por base os microdados da PNAD 2005, informam que,
naquele ano, entre os assalariados rurais com vínculo de emprego permanente, 51,2% dos residentes na área
urbana e 46,1% dos residentes na área rural tinham registro em Carteira de Trabalho. Já em relação aos
assalariados rurais temporários a formalização do contrato, via Carteira de Trabalho, alcançou apenas 14,7% e
4,6%, respectivamente, dos residentes na área urbana e rural. (Ver: BALSADI. Otavio Valentim. A
Polarização da Qualidade do Emprego na Agricultura Brasileira. In: Análise da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios – PNAD: 2005 – Mercado de trabalho – Brasília: MTE, AI, 2007, p. 96).
153
assalariado do direito à proteção social. Seguindo essa mesma linha de raciocínio,
abordaremos também nesse capítulo os tipos de contrato de trabalho na área rural, visando
aferir se os mesmos se mostram aptos para regular as relações de trabalho de curto prazo.
6.2 Aspectos que influenciam a informalidade do mercado de trabalho rural
Decerto que a não proteção social do assalariado rural, em face da
informalidade nas relações de trabalho, não é um problema eminentemente jurídico, pois as
soluções a essa questão dependem de diversos outros fatores como o nível de crescimento da
atividade econômica, o papel desempenhado pelas instituições públicas atuantes nas áreas do
trabalho e da previdência social, o poder de organização e de pressão das entidades de classe e
da sociedade, etc. Contudo, a existência de um marco regulatório
concatenado com a
realidade do mundo do trabalho rural é essencial para a melhor funcionalidade do mercado de
trabalho podendo servir de estímulo à formalização dos contratos, à maior eficiência e
cobertura da proteção social e ao desenvolvimento de políticas públicas voltadas a esses fins.
Na verdade, é fundamental contar com uma legislação e uma prática laboral que garantam os
direitos tanto dos trabalhadores como dos empregadores e que se apliquem plenamente.
Nesse sentido, alguns aspectos importantes merecem ser sopesados para fins
de análise do instrumental jurídico disponível ao enfrentamento da questão posta. É que o
trabalho informal em condições precárias na área rural está situado em dois segmentos
bastante distintos do sistema produtivo: no segmento empresarial, que é bem estruturado e
organizado em termos de recursos humanos, tecnológicos e financeiros; e no segmento da
agricultura familiar, que conta com unidades produtivas pouco estruturadas integrando,
inclusive, a base da economia informal, e que tem na mão-de-obra de terceiros uma base de
apoio para ajudar no processo produtivo como estratégia de sobrevivência. Visto assim, é de
se considerar o seguinte:
154
a) Existem empreendedores rurais que demandam mão-de-obra permanente
para tocar o seu empreendimento, mas procuram forjar a relação de trabalho adotando práticas
no intuito burlar o arcabouço legal e dissimular a relação de subordinação e de regularidade
que caracteriza a relação de emprego. Faz parte da estratégia terceirizar os serviços, contratar
por meio de falsas cooperativas de trabalho, contratar mão-de-obra utilizando a intermediação
de terceiros, permitindo a rotatividade da mão-de-obra de modo a dar a entender que o
assalariado rural tem sempre autonomia e está livre para decidir a quem vai prestar serviços.
Como bem esclarece Milton Inácio Heinen, o assalariado se submete a participar de um
“leilão diário de mão-de-obra”, demonstrando desconhecer as vantagens de trabalhar para um
único tomador enquanto durar o serviço243. Essa prática ocorre, sobretudo, naquelas
localidades onde a mão-de-obra é farta e o empregador tem fácil acesso para contratar.
Certamente o trabalho assalariado informal e precário decorrente dessas
circunstâncias precisa ser enfrentado com ações mais consistentes das entidades sindicais
representativas dos trabalhadores e com leis e fiscalizações rigorosas, por tratar-se de
verdadeiro delito cometido pelo tomador de serviços, que não afeta somente o assalariado
rural, mas sim o próprio sistema de seguridade social que deixa de receber recursos
fundamentais para desenvolver políticas universais de proteção social.
b) Pelos elementos históricos que marcam as relações de trabalho na área
rural, é de se considerar que o trabalho informal e precarizado tornou-se um hábito nas
diversas regiões do país, onde tanto o assalariado quanto o produtor rural estão acostumados a
essa sistemática, não considerando, pois, que a relação de trabalho que se estabelece entre si
ocorre sob o domínio de uma relação de emprego.
243
HEINEN. Milton Inácio. Trabalho rural: mudanças na realidade e inovações na legislação. Texto produzido
para exposição no Primeiro Seminário de Direito Agrário e Ambiental de Goiás. Organização: Escola Superior
de Advocacia do Estado de Goiás e Instituto Goiano de Direito Ambiental. Goiânia, 01 a 03 de setembro de
2008.
155
c) É preciso considerar os argumentos dos produtores/empregadores rurais
de que na relação de trabalho de curto período existem dificuldades em cumprir com as
exigências clássicas para formalizar o contrato de trabalho, que consiste na anotação do
contrato na Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS e em livros ou fichas de
registros de empregados; fazer controles de jornada de trabalho; recolher as contribuições nos
prazos determinados; proceder com a realização de exames médicos admissional e
demissional, etc.; além do que, muitos produtores argumentam ter dificuldades em dispor de
estrutura administrativa suficiente para atender aos imperativos legais e regulamentares que
envolvem a formalização do contrato nos moldes tradicionais estabelecidos.
d) São reais as dificuldades financeiras que envolvem a relação de trabalho
de curto prazo, tanto de um lado como de outro. Considerável número de produtores nem
sempre tem condições financeiras suficientes para manter empregados em sua propriedade
trabalhando sob uma relação mais consistente e duradoura. Em se tratando de um produtor
rural menos capitalizado, é comum nem mesmo ter demanda de trabalho por períodos mais
longos. Já o assalariado, na medida em que trabalha sem um contrato formalizado, está
habituado a procurar aquela atividade que lhe remunere melhor, migrando, portanto, de uma
propriedade para a outra a qualquer tempo, conforme as condições de trabalho que lhe são
oferecidas e o preço que lhe pagam.
Diante desse contexto, evidenciam-se enormes desafios para se alcançar a
proteção social do assalariado rural pelo mecanismo da relação de emprego devidamente
formalizada. Além da demanda por instrumentos que dêem suporte a ações de fiscalização
mais eficazes na área rural, existem questões históricas, culturais e de ordem econômica que
influenciam a não formalização da relação contratual de trabalho, demandando assim marcos
regulatórios apropriados que leve em conta essa realidade. Para uma abordagem mais clara
dessa questão, veremos a seguir os institutos jurídicos que regulam os contratos de trabalho
156
aplicáveis na área rural, e como esses institutos dialogam com as relações de trabalho de curto
prazo.
6.3 Modalidades de contrato de trabalho aplicáveis na área rural
O contrato de trabalho que viabiliza a concretização da relação jurídica
empregatícia na área rural, tipificada no artigo 2º e 3º da Lei n. 5.889/73, assume modalidades
distintas em face do pacto laboral estabelecido. Basicamente são duas as modalidades de
contratos de trabalho constituídas: o contrato por prazo indeterminado e o contrato por prazo
determinado. Cada um deles comporta elementos específicos que os diferenciam.
O contrato de trabalho por prazo indeterminado é característico das relações
de trabalho estáveis e duradouras, sendo a indeterminação da duração contratual o meio de se
conferir concretude ao princípio da continuidade da relação de emprego previsto no Direito do
Trabalho. A ordem jurídica confere a esse tipo de contrato a presunção de sua existência244
em qualquer contexto em que haja a relação empregatícia, tanto que não se exige forma
especial para a sua constituição. Aliás, nesse particular, o direito trabalhista segue a tendência
do Código Civil (art. 107) que prescreve: “a validade das declarações de vontade não
dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”. Contudo, para a
garantia do reconhecimento dos direitos previdenciários do assalariado, a formalização do
contrato de trabalho é essencial, sob pena da sua total exclusão do sistema protetivo.
Tradicionalmente, no Brasil, o contrato de trabalho se formaliza por meio do seu registro na
Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado e em livros ou fichas de registro de
empregados pertencentes ao empregador (art. 13 da CLT).
244
Prescreve a Súmula nº 212 do TST que o “O ônus de provar o término do contrato de trabalho, quando
negados a prestação de serviço e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade da
relação de emprego constitui presunção favorável ao empregado”. Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003.
157
Na prática, é o contrato por prazo indeterminado o que melhor assegura ao
assalariado o direito à proteção social e a um conjunto maior de direitos trabalhistas. Garante
a contagem contínua do tempo de carência para acesso aos benefícios previdenciários; em
caso de despedida arbitrária, importa em verbas rescisórias específicas mais favoráveis do que
o contrato a termo (aviso prévio, multa rescisória sobre o FGTS, etc.); enseja a indenização
relativa ao período de estabilidade no emprego (da gestante, do dirigente sindical, do cipeiro,
do acidentado, etc.), dentre outros direitos. Contudo, na área rural, são poucos os assalariados
rurais que alcançam seus direitos por meio dessa modalidade de contrato.
Já o contrato de trabalho por prazo determinado constitui-se numa exceção
à regra geral, sendo permitido somente nos casos em que a lei autoriza (art. 443, § 1º da
CLT). Nessa modalidade, a relação de emprego terá sempre seu termo final prefixado,
podendo ser estabelecido por unidade de tempo ou pela natureza do serviço a ser executado.
As hipóteses para que se pactue o contrato de trabalho por prazo
determinado são bem delineadas pela legislação trabalhista: em caso de serviço cuja natureza
ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo; quando se tratar de atividades
empresariais de caráter transitório; e, em se tratando de contrato de experiência (art. 443, § 2º,
alíneas a, b e c, da CLT). Outras hipóteses, porém, estão previstas na legislação extravagante
à CLT, a exemplo do contrato de trabalho temporário (Lei n. 6.019/74) e do contrato por
prazo determinado (Lei n. 9.601/98).
Na modalidade do contrato de trabalho por prazo determinado destaca-se na
área rural o contrato de safra instituído pela Lei n.º 5.889/73 (art. 14, parágrafo único) e
regulamentado pelo Decreto n. 73.626/74 (artigos 19 e 20), considerado o mais tradicional e
importante instrumento jurídico utilizado nas regulações de trabalho temporário na área rural.
Comumente utilizado nos períodos de colheitas, o contrato de safra
caracteriza-se pela sazonalidade e intermitência do modo de produção rural, vinculando-se ao
158
trabalho não-eventual inserido na atividade-fim do empreendedor rural. Sua duração
dependente da influência das estações nas atividades agrárias, ou seja, da sazonalidade de
cada cultura, não sendo possível, por isso, precisar o dia exato do seu término por estar
vinculado aos elementos da natureza. Pode, no entanto, ser fixada a data aproximada do seu
termo, que está subordinado ao término da safra. A lei ainda permite a sua prorrogação por
pelo menos uma vez com o mesmo empregador (art. 451 da CLT). Ultrapassado esse limite
converter-se-á em contrato por prazo indeterminado.
É de se considerar que não se exige forma especial para o contrato de safra,
podendo o mesmo ser tacitamente ajustado. Desse modo, pode o mesmo ser provado por
qualquer meio de prova que seja lícito. Pondera-se, contudo, que não se deve eliminar a
importância da forma (instrumento escrito, por exemplo) em sua dinâmica, pela relevância em
evidenciar tal pacto de relação empregatícia, sobretudo pela importância que isso tem na
garantia de direitos previdenciários, conforme já mencionamos.
Nos seus efeitos rescisórios, em linhas gerais, o contrato de safra obriga o
empregador a pagar ao assalariado a verba referente de 13º salário proporcional, férias
proporcionais com um terço constitucional (Súmula 328, TST), e liberação de FGTS,
dispensando-se, no entanto, o pagamento do aviso prévio e a multa rescisória de 40% sobre o
FGTS.
Embora a expressão safra reporta-se diretamente à noção de produção e
colheita, foi o regulamento normativo da Lei 5.889/73 por demais extensivo ao disciplinar que
o contrato de safra é aplicável de acordo com as variações estacionais das atividades agrárias,
“assim entendidas as tarefas normalmente executadas no período compreendido entre o
preparo do solo para o cultivo e a colheita” (art. 19, parágrafo único do Decreto n. 73.626/74).
Nos termos estabelecidos, o Decreto conduz à compreensão de que o contrato de safra pode
ser aplicado também no lapso temporal que envolve todo o ciclo de uma cultura que vai desde
159
o preparo do solo, o plantio, os tratos culturais e a colheita. Esse entendimento provoca
controvérsias, pois, na prática, torna o contrato de safra não mais a exceção ao princípio da
continuidade da relação de emprego, mas sim a regra contratual para a maioria da mão-deobra assalariada rural. A esse respeito, mostra-se a jurisprudência bastante oscilante, ora
emergindo entendimento de que o contrato de safra pode ser aplicado para todo tipo de
atividade desenvolvida durante o ciclo de uma cultura245, ora restringe a aplicação desse
contrato basicamente ao período de colheita246, não podendo vinculá-lo aos fins permanentes
da atividade do empreendedor.
Indubitavelmente é mais coerente a linha de interpretação que vê na
simultaneidade de contratos de safra pactuados entre o assalariado e o empregador a
existência de uma relação de vínculo empregatício por prazo indeterminado. Isso porque, em
culturas onde se tem um ciclo de produção mais longo, como ocorre, por exemplo, na
produção da cana-de-açúcar, da laranja, do café, dentre outras, pode acontecer de o
245
A visão mais extensiva da jurisprudência acerca da aplicação do contrato de safra é no seguinte entendimento:
EMENTA - CONTRATO DE SAFRA - CONCEITUAÇÃO - ABRANGÊNCIA - ATIVIDADE DE
IRRIGAÇÃO DO SOLO - De conformidade com o artigo 19 do Decreto n. 73.626/73 que regulamenta a Lei
n. 5.889/73, a safra não se limita à colheita dos frutos, vez que sua duração depende de variações estacionais
das atividades agrárias, envolvendo o preparo do solo para o cultivo e a plantação, alcançando todas as etapas
da produção agrícola do ano, ensejando, por certo, a formalização do contrato por prazo determinado, com
observância de todo esse lapso temporal, mormente quando, na região em que se desenvolve a prestação
laborativa, o autor laborava na irrigação do solo, utilizando-se de vinhaça, subproduto da fabricação de açúcar
e de álcool a partir da cana de açúcar, atividade esta abrangida pelo período considerado como de safra,
autorizando a modalidade contratual regida pela norma em comento. (Ver: TRIBUNAL REGIONAL DO
TRABALHO DA 3. REGIÃO. Processo 01291-2004-063-03-00-1 RO, Órgão Julgador: Sexta Turma,
Relator: convocada Maria Cristina Diniz Caixeta. Data de publicação 07/07/2005, DJMG, página: 11). No
mesmo sentido: (TRT da 3. Região, RO 5942/95, Órgão julgador: quarta turma, Relator: Deoclecia Amorelli
Dias. Data da publicação: MG - 05/08/1995).
246
O posicionamento jurisprudencial mais restritivo à aplicação do contrato de safra manifesta-se da seguinte
forma: EMENTA - UNICIDADE CONTRATUAL CONTRATO DE SAFRA E CONTRATO DE
EXPERIÊNCIA. Comprovado pela prova oral, inclusive depoimento do preposto, que a empregadora tem
como regra rescindir os contratos de safra e em seguida firmar novos contratos para os períodos de
entressafra, para execução de atividades relacionadas ao preparo da terra, mostram-se nulos os contratos de
safra e de experiência invocados pela empregadora, seja porque a atividade do trabalhador não era sazonal,
seja porque o autor já havia prestado serviço anteriormente para a reclamada na mesma função, além de
ultrapassado o limite temporal de 90 dias nos contratos de experiência, justificando-se a declaração de
continuidade e unicidade do contrato de trabalho firmados pelos litigantes. Ver: (TRIBUNAL REGIONAL
DO TRABALHO DA 3. REGIÃO. Processo 00250-2002-080-03-00-1 RO. Órgão Julgador: Quarta Turma.
Relator: Júlio Bernardo do Carmo. Data de publicação 02/10/2002, DJMG, página: 15). No mesmo sentido:
(TRT TRT da 15ª Região. Processo 01708-1995-075-15-00-9 RO. Órgão Julgador: Terceira Turma. Relator:
Mauro César Martins de Souza. Data de publicação: 01/12/1999).
160
assalariado rural ficar trabalhando para o mesmo empregador por vários meses seguidos
vinculado a contratos de safra. Isso praticamente cria um desvirtuamento desse tipo de
contrato que foi instituído para regular a prestação de trabalho cuja natureza ou
transitoriedade justifique a predeterminação do prazo. Não se pode olvidar que os princípios
do direito do trabalho primam pela pactuação de contrato de trabalho por prazo
indeterminado.
Nesse sentido, ao regular a relação empregatícia rural, o contrato de safra
cumpre com seus objetivos ao ser aplicado naquelas atividades que demandam um
contingente de mão-de-obra além do normal, por um período transitório, para o empreendedor
manter seu negócio em funcionamento. Empiricamente, constata-se que esse tipo de contrato
é utilizado com mais freqüência pelas empresas rurais na regulação das relações de trabalho
em atividades de colheitas com prazo de duração superior a trinta dias, como ocorre, por
exemplo, nas culturas da cana-de-açúcar e do café. A propósito, conforme aponta Balsadi, a
mão-de-obra temporária empregada nessas duas culturas é a que alcança um melhor índice de
contratos registrados em Carteira de Trabalho247, podendo-se considerar alguns fatores como
decisivos para que isso aconteça, dentre os quais, maior fiscalização dos órgãos públicos a
essas empresas; existência, nessas culturas, sobretudo na lavoura canavieira, de um mercado
de trabalho assalariado mais estruturado e um movimento sindical com histórico de atuação
em busca de melhores condições de trabalho; e a capacidade e estrutura administrativa que as
empresas têm para cumprir com toda a burocracia de formalização dos contratos de trabalho
temporários.
247
Outras informações interessantes trazidas por Balsadi a partir dos microdados da PNAD/IBGE 2005, é que
dos empregados rurais temporários residentes na área urbana, 73,9% dos ocupados na cultura da cana-deaçúcar e 20,7% dos ocupados na cultura do café tinham Carteira assinada. Quando analisado os dados dos
empregados rurais temporários residentes na área rural, o índice dos que alcançaram o registro do contrato em
Carteira caiu para 47,1% dos ocupados na cultura da cana e 10,6% na cultura do café. (Ver: BALSADI.
Otavio Valentim. A Polarização da Qualidade do Emprego na Agricultura Brasileira. In: Análise da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD: 2005 – Mercado de trabalho. Brasília: MTE, AI, 2007, p.
98).
161
Com isso, queremos enfatizar que o alcance da maior formalização dos
contratos de trabalho na área rural não é apenas uma questão de regulação jurídica. Existem
diversos fatores que, se somados, podem conduzir a isso. No entanto, os tradicionais
instrumentos jurídicos disponíveis mostram-se pouco apropriados para dialogar com uma
realidade em que os serviços são prestados por poucos dias e que carece de maior
formalização.
Além das culturas da cana e do café, é no universo das atividades
agroeconômicas e das especificidades de produtos que se cultivam na área rural com ciclos de
duração e/ou colheitas de curtos períodos, a exemplo da cultura do feijão, tomate, milho, soja,
frutas, hortaliças, dentre outras, que se encontram os milhares de assalariados rurais
trabalhando na informalidade. Não se deve esquecer, portanto, que existem dificuldades e
burocracia em demasia para formalizar a relação de trabalho pelo método tradicional,
mormente, como já afirmado, naqueles casos de contratação de trabalhadores por curtos
períodos, cujo prazo é inferior a trinta dias. Apenas para demonstrar uma evidência dessas
dificuldades, cita-se a exigência para que o produtor rural anote o contrato de trabalho na
Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado248 e a devolva ao trabalhador no
prazo de quarenta e oito horas, para, logo em seguida, com o término dos serviços, consignar
a rescisão do contrato no referido documento.
248
Dispõe o artigo 29 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, que “a Carteira de Trabalho e Previdência
Social será obrigatoriamente apresentada, contra recibo, pelo trabalhador ao empregador que o admitir, o qual
terá o prazo de quarenta e oito horas para anotar, especificamente, a data de admissão, a remuneração e as
condições especiais, se houver, (...)” do contrato de trabalho.
162
7 A proteção do assalariado rural na perspectiva do contrato de trabalho
por pequeno prazo instituído pela Lei n.º 11.718/2008
O direito do trabalho e o direito previdenciário são no mundo jurídico as
áreas mais sensíveis às novas mudanças que ocorrem na sociedade, pois envolve o valor
primeiro de sua proteção – o ser humano com suas necessidades.
Por isso, o problema social decorrente das transformações da sociedade
contemporânea e que se refletem no mundo do trabalho rural tem levado a sociedade
brasileira a discutir novos institutos jurídicos no intento de se constituir regulações mais
adequadas no âmbito da legislação trabalhista e previdenciária, que possam interagir e moverse num processo dialético normativamente integrante de fatos e valores que marcam a
realidade presente.
Nesse sentido, a Lei n.º 11.718, publicada em 23 de junho de 2008, em que
pese algumas questões polêmicas sobre o seu conteúdo, representa a mais nova tentativa de
estabelecer no setor rural outro arranjo institucional visando superar o problema do trabalho
informal e, consequentemente, da exclusão previdenciária que atinge os assalariados rurais.
Seu texto é oriundo da Medida Provisória n.º 410/2007 e conforme
comentado nessa pesquisa traz novas regras que impactam no direito do assalariado rural
perante a previdência social (ver capítulo 5), e altera a Lei n.º 5.889, de 1973, ao introduzir
em seu texto (artigo 14-A) a modalidade do contrato de trabalhador rural por pequeno prazo
visando incentivar os dois pólos da relação contratual à maior formalização. No entanto, essa
nova modalidade contratual tem sido objeto de análises por diversos setores da sociedade, em
que expressam posições bastante diferenciadas quanto aos efeitos e à eficácia do seu
conteúdo.
Dentre os objetivos imediatos previstos com a instituição do referido
contrato, o principal é a simplificação da contratação da mão-de-obra na perspectiva de maior
163
formalização dos contratos e, por conseqüência, na inclusão dos assalariados rurais no
Regime Geral da Previdência Social249. Conforme já expusemos nessa pesquisa (capítulo 5),
pelas circunstâncias projetadas a partir do ano de 2011 a proteção previdenciária do
assalariado rural tende a se agravar caso o mesmo não consiga comprovar, minimamente, a
relação de vínculo empregatício perante o sistema. Essa, inclusive, foi a tônica dos debates
que levaram os deputados e senadores a aprovar, no Congresso Nacional, a inserção no
ordenamento jurídico brasileiro da nova modalidade contratual específica para a área rural.
Para melhor compreensão quanto ao alcance dos objetivos depostos na nova
modalidade de contratação do trabalho rural e para melhor dimensionar os desafios que se
colocam à sua efetividade, impende apresentar, em síntese, os principais elementos que
caracterizam essa nova modalidade contratual.
a) Inicialmente, é de se esclarecer que o contrato de trabalho rural por
pequeno prazo difere dos outros tipos de contratos já existentes e que vem sendo aplicados na
área rural. Nesse sentido, a contratação do trabalhador rural se presta àquelas atividades de
natureza temporária e deverá necessariamente ser feita por produtor rural pessoa física que
explore diretamente a atividade agroeconômica. Trata-se, portanto, de um contrato por prazo
determinado que não poderá exceder a dois meses de duração dentro de um período de um
ano, sob pena de ser automaticamente convertido em contrato por prazo indeterminado (art.
14-A, § 1º e § 4º da Lei n.º 5.889/73). Com isso, embora qualquer produtor rural pessoa física
possa fazer uso dessa modalidade contratual, é a mesma direcionada aqueles produtores que
contratam mão-de-obra sazonalmente por curto período, mas que não dispõe de estrutura
física e recursos humanos suficientes para fazer o trabalho burocrático que envolve a
contratação de mão-de-obra.
249
Conforme exposição de motivos da Medida Provisória n.º 410, posteriormente convertida na Lei n.º
11.718/2008. Disponível em: <https://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Exm/EMI-40MF-MPS-MTE.htm>, Acesso em 11 de outubro de 2008.
164
b) Para formalizar a relação contratual por pequeno prazo tem o tomador de
serviços ao seu dispor duas formas. Uma, é pelo mecanismo tradicional que consiste em fazer
a anotação do contrato na Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS do empregado e
em Livro ou Ficha de Registro de Empregados; a outra consiste em adotar o contrato escrito
onde conste, no mínimo, a identificação do produtor rural e do imóvel rural onde o trabalho
será realizado e a identificação do trabalhador com indicação do respectivo Número de
Inscrição do Trabalhador – NIT. Para se aplicar essa segunda forma de contratação, em que
não se exige a anotação da CTPS, é necessário que haja autorização expressa em acordo
coletivo ou convenção coletiva de trabalho (art. 14-A, § 3º, I e II, da Lei n.º 5.889/73).
Convém assinalar, que essa última exigência não constava na redação original da Medida
Provisória 410.
c) Entretanto, é condição essencial para o reconhecimento do referido
contrato que o tomador de serviços identifique / inclua o trabalhador contratado na Guia de
Recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e Informações à Previdência Social
– GFIP, a ser enviada mensalmente à Caixa Econômica Federal – CEF, sem o que será essa
modalidade contratual considerada inexistente sem prejuízo de o trabalhador poder
comprovar, por qualquer meio admitido em direito, a relação jurídica diversa (art. 14-A, § 3º
c/c § 6º, da Lei n.º 5.889/73). Quando incluído na GFIP, o assalariado rural passa a estar
integrado automaticamente ao Regime Geral de Previdência Social, o que resulta no seu
direito à proteção previdenciária de forma incontestável.
d) É de se destacar que a Lei traz outro aspecto inovador ao referir-se aos
direitos trabalhistas do empregado. Estes deverão ser calculados proporcionalmente aos dias
trabalhados e pagos mediante recibo250 (art. 14-A, §§ 8º e 9º, da Lei n.º 5.889/73). Trata-se de
250
Embora a lei não se manifeste a respeito, há que se ponderar a necessidade de se discriminar no recibo de
pagamento todas as verbas trabalhistas remuneratórias e rescisórias do contrato de trabalho com seus
respectivos valores, sob pena de pagamento complessivo, o que é considerado ilegal pela Súmula 91, do TST.
165
uma verdadeira conquista de direitos, pois, até então, as verbas rescisórias como férias e
décimo terceiro salário vinculadas aos tradicionais contratos de trabalho só são devidas ao
trabalhador após o décimo quarto dia de trabalho. Assim, dá-se um passo importante para o
reconhecimento efetivo daqueles assalariados que prestam trabalho em atividades de curta
duração na condição de empregados rurais.
e) Por fim, todos os trabalhadores contratados por meio do novo contrato
contribuirão com a Previdência Social com uma alíquota fixa, no percentual de 8% sobre o
respectivo salário-de-contribuição, independente do quantum recebido. Embora a grande
maioria dos assalariados rurais não receba remuneração suficiente para incidir alíquota de
contribuição superior a 8% (a alíquota máxima é 11%), tem-se a expectativa de que a alíquota
fixa seja também uma forma de desburocratizar a formalização contratual.
Cumpre enfatizar que a principal crítica que recai sobre a nova regulação
contratual consiste em dispensar o tomador de serviços de fazer o registro do contrato na
Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS e no Livro ou Ficha de Registro de
Empregados (art. 14-A, inciso II, da Lei n.º 5.889/73), embora a Lei preveja a obrigatoriedade
de que o pacto laboral deva ser formalizado pela inclusão do trabalhador na GFIP, além de
contrato escrito indispensável à comprovação da regular relação de trabalho perante aos
órgãos fiscalizatórios. E aqui é importante abordar os pontos de vistas que existem sobre o
referido contrato.
Desde a publicação da Medida Provisória n.º 410/2007 que deu origem ao
contrato de trabalho em comento, pôde-se perceber o quão seria polêmico instituir novos
mecanismos de formalização da relação de emprego para além dos instrumentos tradicionais
como a Carteira de Trabalho e o livro ou ficha de registro de empregados. E não poderia ser
diferente, até porque a formalização do contrato de emprego que não seja por meio da
166
assinatura da CTPS significa romper com um paradigma histórico engendrado culturalmente e
socialmente na sociedade brasileira desde o segundo Governo de Getúlio Vargas. Ou seja,
trata-se de um documento com um valor simbólico incomensurável para milhões de
brasileiros.
Entretanto, enquanto os mecanismos tradicionais de formalização da relação
de trabalho (assinatura da CTPS e registro no livro ou ficha de empregados) são vistos por
alguns como um fim em si mesmo, para outros eles se constituem apenas em um meio para se
alcançar determinado objetivo, no caso, conferir ao trabalhador um instrumento de prova de
seus direitos. Isso conduz à discussão de se saber se esses mecanismos, no modo em que são
regulados, estão aptos a serem aplicados nas atividades de natureza rural de curta duração.
Para a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
(CONTAG), entidade sindical representativa dos trabalhadores rurais que atuou ativamente
nas negociações com o Governo e com o Congresso Nacional buscando consensuar o texto
normativo que resultou na Lei n.º 11.718/2008, o combate à informalidade das relações de
trabalho no campo e a exclusão previdenciária que ela gera exige que se adote um conjunto de
ações articuladas entre o poder público e a sociedade, dentre as quais uma regulação jurídica
específica para as relações de trabalho empregatícias de curta duração com mecanismos
simplificados de contratação. Essa posição pode ser compreendida a partir das deliberações
congressuais manifestadas pela categoria dos trabalhadores rurais nos últimos anos.
O 7º congresso, realizado em 1998, já explicitava a preocupação em relação
à situação dos assalariados, tanto que apresentou algumas propostas que pudessem mudar os
rumos da realidade existente. Na linha das proposições, apontavam a necessidade de melhorar
a fiscalização das relações de trabalho no campo; de se estabelecer regras de proteção social
diferenciadas para os assalariados rurais que contemplassem o trabalho de natureza
temporária tendo por base o valor da remuneração sobre os dias efetivamente trabalhados;
167
propugnavam também para que fosse instituído em todo o território nacional um recibo de
salário padronizado a ser utilizado nas relações de trabalho de curta duração; e solicitavam ao
INSS que fosse aceito, além da Carteira de Trabalho, outros documentos para fins
comprobatórios da relação de emprego e da comprovação do exercício da atividade rural
perante a Previdência Social, como o recibo de salário e o contrato coletivo de safra251.
Tais proposições tomavam por base uma experiência de negociação coletiva
de trabalho que passou a ser desenvolvida no final da década de 1990 pelo Movimento
Sindical de Trabalhadores Rurais com diversas empresas e sindicatos patronais no Estado de
Goiás. Por essa experiência, dispensava-se a anotação da CTPS naquelas atividades cuja
natureza fosse por tempo inferior a 30 (trinta) dias garantido-se aos trabalhadores todos os
direitos trabalhistas proporcionais aos dias trabalhados, conforme ajustado no instrumento
coletivo. Em que pese as vantagens auferidas pelos trabalhadores que conseguiam um
contrato formalizado e o recebimento de seus direitos trabalhistas, o Ministério Público do
Trabalho, à época, questionou tal modalidade de contratação ao argumento de que a
simplificação contratual estaria resultando em prejuízo para os assalariados em face da não
aplicação da norma irrenunciável, qual seja, a assinatura do contrato em CTPS. É de se
observar que a regulação dessa modalidade de contratação chegou a ser discutida no âmbito
dos Ministérios do Trabalho e da Previdência Social por volta do ano 2000, mas não houve a
receptividade necessária para ir adiante.
De certo modo, o que se observa é que já há algum tempo os trabalhadores
rurais vem negociando e reivindicando políticas que possam ampliar o quadro de
formalização do contrato de trabalho como meio de garantir maior consistência de acesso ao
direito à proteção previdenciária. No entanto, embora tenham a percepção da justeza que os
preceitos constitucionais estabelecem ao equiparar seus direitos e obrigações com a dos
251
7º CONGRESSO NACIONAL DOS TRABALHADORES RURAIS. Anais. Brasília: CONTAG, 1998, p.
106.
168
assalariados urbanos, entendem esses trabalhadores que para fins de proteção social não se
deve esquecer as diferenças decorrentes do mundo do trabalho rural em relação ao trabalho
urbano, sob pena de tais preceitos tornarem-se iníquos. É o que se depreende de outras
reflexões congressuais, a saber:
O principal problema que afasta o assalariado e a assalariada rural do
sistema previdenciário não está no percentual da alíquota de contribuição,
mas sim na formalização do contrato de trabalho e na quantidade de tempo
efetivamente trabalhado e registrado. É impossível abrir mão do Contrato de
Trabalho (ou da Carteira de Trabalho) para que o assalariado rural,
especialmente aquele que trabalha em atividades de curta duração, tenha
acesso aos direitos previdenciários. O que precisa ser feito é adequar a
formalização das relações de trabalho na área rural, de tal forma que
contemple os períodos de trabalho de curta duração. Portanto, duas questões
precisam ser contempladas: o período de entressafra de trabalho, em que o
assalariado não tem trabalho e, portanto, nem possibilidade de registro e de
contribuição; e os períodos de trabalho extremamente curtos, com grande
variação de empregadores.252
É interessante observar que essas reflexões acabaram sistematizadas e
convertidas, pelos próprios trabalhadores rurais, em um projeto de lei de iniciativa popular253
que mobilizou a categoria nacionalmente, sendo esse projeto protocolado na Câmara dos
Deputados em outubro de 2001 com o apoio de mais de um milhão de assinaturas254. Isso veio
em decorrência de um contexto político desfavorável que os trabalhadores rurais encontravam
252
8º CONGRESSO NACIONAL DOS TRABALHADORES RURAIS. Anais. Brasília: CONTAG, 2001, p.
127.
253
Uma análise mais atenta das propostas contidas no referido projeto de lei revela algumas questões inovadoras
e ao mesmo tempo desafiadoras em matéria de proteção previdenciária dos assalariados rurais e sustentam as
abordagens já mencionadas nessa pesquisa a respeito das dificuldades para a formalização das relações de
trabalho na área rural. Primeiro, explicita a necessidade de conceituar como empregado rural o trabalhador
prestador de serviço de natureza sazonal, independente do tempo de duração do contrato de trabalho e da
forma de remuneração por este recebida, seja por produção, tarefa, hora, dia ou mês. A motivação para esse
intento decorre da interpretação feita pelos gestores da política previdenciária que, na ausência de contrato de
trabalho registrado em CTPS, consideram o assalariado rural como um trabalhador autônomo e o enquadram
perante a previdência na qualidade de contribuinte individual. A segunda questão expõe a dificuldade que os
assalariados rurais enfrentam para comprovar o vínculo de emprego por meio da Carteira de Trabalho e
Previdência Social. Resulta daí a demanda de que a prova da relação de vínculo possa ser feita por meio de
outros documentos. A terceira questão demonstra que pelos mecanismos da técnica tradicional securitária os
assalariados rurais enfrentam enormes dificuldades em compor durante a sua vida laboral o tempo de
contribuição necessário para acesso aos benefícios previdenciários ante a temporalidade com que conseguem
um vínculo formal de emprego. Daí a demanda de redução do tempo de contribuição para fins de carência dos
benefícios. (Ver: 8º CONGRESSO NACIONAL DOS TRABALHADORES RURAIS. Anais. Brasília:
CONTAG, 2001, p. 128 a 133).
254
Embora o Projeto Lei apresentasse todos requisitos como sendo um projeto de iniciativa popular, acabou o
mesmo por ser protocolado na Comissão de Participação Legislativa da Câmara dos Deputados e, após
aprovado, passou a tramitar sob o número 6.548/2002.
169
naquele momento para negociar com o governo as suas demandas.
São evidentes, portanto, as razões que levaram a CONTAG a se posicionar
favoravelmente ao conteúdo da Lei n.º 11.718/2008. Isso porque, conforme já abordamos
nessa pesquisa, traz a lei em seu texto regras com contagem de tempo de carência especial
para os assalariados rurais terem acesso à aposentadoria por idade a partir de 2011 (ver
capítulo V); permite ao agricultor familiar contratar mão-de-obra assalariada por até 120 dias
no ano civil sem perder a condição de segurado especial perante a Previdência Social (ver
capítulo 4, item 4.5); e institui o contrato de trabalho ora em comento, visando simplificar a
contratação de mão-de-obra pelo produtor rural pessoa física sem restringir direitos.
Assim, a lei regula um conjunto de questões que convergem com os
interesses da categoria dos trabalhadores rurais, mas, ao mesmo tempo, revela que esses
trabalhadores não conseguiram o apoio político necessário, nem do governo nem do
congresso nacional, para estabelecer uma política de proteção previdenciária mais inclusiva
para os assalariados rurais, como seria o caso de transformar em regra permanente o critério
de acesso à aposentadoria por idade mediante a comprovação do tempo de serviço rural nos
termos previsto no artigo 143 da Lei 8.213/91.
Muito embora a organização sindical dos trabalhadores rurais tenha essa
visão favorável em relação ao texto da Lei n.º 11.718/2008, por entender que foi dado um
passo concreto para enfrentar o problema da informalidade e da desproteção social dos
assalariados, não faltaram vozes manifestando-se contrariamente ao referido contrato de
trabalho. As críticas vieram de parlamentares no Congresso Nacional255, de centrais sindicais,
de juízes do trabalho organizados na Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do
255
No Congresso Nacional foram apresentadas 45 emendas parlamentares ao texto da Medida Provisória n.º
410/2007, das quais 33% tinham conteúdos semelhantes que era a de suprimir ou alterar a redação dada ao §
3º do artigo 1º, que tratava da dispensa da assinatura do contrato de trabalho em CTPS e no livro ou ficha de
registro de empregados.
170
Trabalho (ANAMATRA)256, e dos auditores fiscais do trabalho257, todos argumentando que a
nova modalidade contratual, ao dispensar a anotação do contrato na CTPS e no livro ou ficha
de registro de empregados, poder-se-ia constituir numa forma de incentivo à fraude e à
desregulamentação dos direitos dos assalariados rurais.
Não deixam de ter suas razões as preocupações expressadas por essas
instituições e diversos parlamentares, especialmente quando se considera que os direitos
sociais no Brasil se situam num campo de disputa em constante tensão, com diversas
tentativas de modificação da legislação para a sua desregulamentação e minimalização. O
histórico das propostas de mudanças na legislação do trabalho nos últimos anos evidencia
bem essa situação258. Também são pertinentes as preocupações alçadas quanto aos efeitos
ocultos muitas vezes contidos na letra da Lei o que, no caso em análise, poderia abrir
precedentes para que empregadores mal intencionados pudessem burlar e violar direitos dos
trabalhadores.
256
Zéu Palmeira Sobrinho, juiz do trabalho, tenta demonstrar que a modalidade do contrato de trabalho instituída
pela Medida Provisória n.º 410/2007 tende a facilitar a fraude na medida em que desvaloriza a assinatura da
CTPS que é um instrumento simbólico das relações de trabalho formal no Brasil, sinalizando, portanto, “para
o desmantelamento das poucas e frágeis exigências que são representativas para a defesa do trabalhador e para
o combate à sonegação de direitos”. (Ver: SOBRINHO, Zéu Palmeira. O novo contrato de trabalho rural
por pequeno prazo. Disponível em: <http://ww1.anamatra.org.br/ sites/1200/ 1223/ 00000105.doc> Acesso
em 30 de setembro de 2008).
257
A Secretaria de Inspeção do Trabalho, órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, por meio de
nota técnica manifestou sua posição contrária ao referido contrato de trabalho argumentando que o mesmo não
oferecia qualquer chance promissora de atingir os fins colimados, pois além de não gerar maiores receitas para
a previdência social, também retirava do trabalhador um importante instrumento formal que lhes serve como
ônus da prova para a aferição do tempo de serviço. Para a referida secretaria ministerial “Na ‘nova
modalidade’ (contrato de pequena duração), o trabalhador é deliberadamente induzido a não saber se o
contrato em que se encontra é ou não regular. O preenchimento da GFIP (que em tese caracteriza o vínculo) ou
mesmo o contrato escrito (cujo destino na visão dos mais pessimistas não é outro senão a gaveta do
empregador à espera de eventual fiscalização), deixa o trabalhador alheio à regularidade ou não do seu próprio
vínculo”. (Ver: MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO / SECRETARIA DE INSPEÇÃO DO
TRABALHO. Nota Técnica n.º 49/2008/DMSC/SIT. Brasília, 27 de fevereiro de 2008).
258
Apenas para citar o exemplo da área rural, desde o final da década de 1990 vários projetos de lei passaram a
tramitar no Congresso Nacional apresentando novas modalidades de contratação como alternativa para
resolver o problema da informalidade e, consequentemente, da (des)proteção social do assalariado rural. No
entanto, análises mais acuradas dos conteúdos desses projetos revelam que existem muito mais interesses em
precarizar as já frágeis relações de trabalho com vinculo empregatício do que necessariamente solucionar esse
tipo de problema. A esse respeito, cita-se o Projeto de Lei 4.302/1998, cuja finalidade é regulamentar a
atividade de empresas de trabalho temporário e de empresas de prestação de serviços a terceiros, inclusive,
para atuarem no meio rural; o Projeto de Lei n.º 3.811/2000, propondo alteração na Lei n.º 5.889/73 ao dispor
sobre a regulamentação do trabalho sazonal e do contrato coletivo de safra; o Projeto de Lei n.º 2.639A/2000, dispondo sobre a permissão de empregador pessoa física e jurídica para a contratação de assalariados
rurais nas atividades de curta duração; e outros.
171
Contudo, ao que nos parece, o contrato de trabalho por pequeno prazo na
área rural, na forma como está normatizado, não tem esse caráter desregulamentador de
direitos e não se traduzirá num instrumento para o cometimento de fraudes trabalhistas que
venham prejudicar os assalariados rurais e os interesses da coletividade.
São razões para esse entendimento o fato da nova modalidade contratual
estar assentada em enorme rigor jurídico. A lei reafirma como regra de contratação o registro
do contrato na CTPS do trabalhador e no livro ou ficha de empregados. A dispensa da
anotação do contrato nesses documentos está condicionada à observância e ao cumprimento,
pelo produtor rural/empregador, de algumas condições básicas e simultâneas: a) ter
autorização expressa em acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho para aplicar o
referido contrato, o que, em tese, pode ser considerado um avanço para um maior controle por
parte das organizações representativas dos assalariados rurais em relação aos contratos
praticados; b) firmar contrato escrito que identifique tanto o próprio produtor quanto o
trabalhador com suas respectivas inscrições no INSS, e ainda identificar o imóvel rural onde o
trabalho será realizado com sua respectiva matrícula na Receita Federal do Brasil; c) e, incluir
o nome do assalariado/a rural na Guia de Recolhimento do FGTS e da Previdência Social
(GFIP), obrigação esta que deve ser cumprida pelo produtor também no caso de formalizar o
contrato via assinatura da CTPS. É no cumprimento dessas exigências que se encontram os
elementos necessários para os órgãos fiscalizatórios coibirem eventuais abusos no uso do
contrato.
De todo modo, o que precisa ser considerado é que a aprovação do referido
contrato de trabalho demonstrou haver um consenso mínimo sobre a necessidade de se regular
as relações de trabalho de curta duração e de se criar mecanismos mais adequados para
ampliar o grau de cobertura da proteção previdenciária para os assalariados rurais.
172
Voltando a essa questão, algumas ponderações merecem ser feitas já que
existem obstáculos de diversas ordens que se sobrepõem ao comando do texto legal e que,
senão superados, pouco efeito prático se alcançará em termos de assegurar a maior inclusão
previdenciária do assalariado rural. Alguns desses obstáculos referem-se aos próprios
requisitos que caracterizam a contratação do trabalhador por pequeno prazo.
A principal questão refere-se às Guias de Recolhimento do FGTS e da
Previdência Social (GFIP), que têm, na essência, o caráter formalizador da relação contratual,
pois é o que vincula diretamente o assalariado rural ao sistema de proteção social. Entretanto,
ainda são grandes os obstáculos para que os produtores rurais possam emitir esse documento
por meio eletrônico e fazer o recolhimento das contribuições previdenciárias daí decorrentes
nos prazos legalmente determinados259. Primeiro, porque é a GFIP um documento bastante
complexo para ser manuseado pelo próprio produtor rural, e isso pode gerar um custo
adicional devido à necessidade de contratar a prestação de serviços de terceiros, com o qual o
produtor não está disposto em arcar; segundo, o acesso à tecnologia da informação (internet)
na área rural ainda é incipiente, e muitas vezes há uma grande distância separando o imóvel
rural (local de trabalho) dos centros urbanos onde se pode encontrar o suporte adequado para
o cumprimento das obrigações exigidas.
Essas são questões que levam a outros desdobramentos quando se pretende
simplificar e facilitar a formalização da relação contratual no meio rural, como desenvolver
políticas que promovam o acesso da população do campo aos instrumentos tecnológicos de
informação, e ainda, criar as condições adequadas para que o produtor cumpra com suas
obrigações sem ser onerado em demasia, o que significa, dentre outras questões, ter que
259
O produtor rural, ao contratar mão-de-obra, tem que entregar a Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia
do Tempo de Serviço e Informações à Previdência Social - GFIP até o dia sete do mês seguinte aquele em que
a pagou a remuneração ao empregado. Já o recolhimento da contribuição previdenciária descontada da
remuneração do empregado deve ser feito até o dia 10 (dez) do mês seguinte ao da competência. (conforme
art. 30, inciso I, alínea “b” da Lei n.º 8.212/91).
173
desenvolver e implantar um modelo de GFIP bastante simplificado para ser utilizado pelo
produtor rural.
Para além dessas medidas, é preciso compreender que o alcance do maior
grau de formalização do trabalho no campo, em que pese ser importante existir novos marcos
regulatórios e maior fiscalização por parte do Estado, perpassa por uma mudança de
percepção das pessoas quanto aos seus direitos e obrigações. Nesse sentido, é preciso
desenvolver permanentes campanhas de esclarecimento como forma de estimular a
formalização do contrato de trabalho, e mais, é necessário criar instrumentos que permitam ao
próprio trabalhador fiscalizar se o empregador procedeu adequadamente ao recolhimento para
a Previdência das contribuições descontadas da sua remuneração. A esse respeito, seria de
fundamental importância democratizar e facilitar o acesso do trabalhador às informações das
suas contribuições que constam na base cadastral da Previdência Social.
Assim, considerando as observações até então feitas, podemos concluir que
o contrato de trabalho por curto prazo é uma experiência ainda por se desenvolver, que poderá
efetivar maior formalização das relações de trabalho e do direito à proteção social dos
assalariados rurais a depender da resolução de determinadas questões para as quais ainda não
se tem respostas. O próprio empenho do Estado e das instituições representativas dos
trabalhadores e dos empregadores rurais, naquilo que lhes competem nessa questão, é uma
condicionante fundamental para o êxito da aplicação do contrato.
Contudo, não vislumbramos nessa nova modalidade contratual uma saída
definitiva para resolver o problema da exclusão previdenciária dos assalariados rurais, pois
continua mantendo-se, por esse meio, o vínculo forte da proteção centrado apenas na técnica
do seguro e na relação de emprego formal.
174
Conclusões
O presente estudo buscou discutir a problemática que envolve o direito à
proteção social do assalariado rural em face do trabalho precário e informal que marca as
relações de trabalho na área rural. Ao mesmo tempo procurou-se identificar os limites e os
desafios de se ampliar a cobertura da proteção desses trabalhadores pela estreita via da
política previdenciária e do trabalho com vínculo de emprego formal.
Inicialmente, foram apresentados alguns elementos históricos-teóricos que
fundamentam o direito à proteção social, enfatizando-se basicamente dois modelos teóricos
considerados referências e que serviram de inspiração ao desenvolvimento do sistema de
proteção social organizado e executado pelo Estado brasileiro: o modelo bismarckiano,
fundado no seguro social, e o modelo beveridgeano, instituidor de um padrão mais universal
de proteção financiado com aportes fiscais. Ambos, nas suas peculiaridades, influenciaram na
formação da estrutura do sistema de proteção social brasileiro.
A análise acerca do desenvolvimento de mecanismos de proteção social no
Brasil permitiu constatar que, historicamente, nosso país apresentou um contexto social
complexo, marcado pela exclusão e pela desigualdade. A Previdência Social foi instituída, no
início da década de 1920, para responder à necessidade de regulação das relações capitaltrabalho, sendo organizada a partir do assalariamento formal e por categoria sócioocupacional da área urbana.
Para os trabalhadores rurais a garantia efetiva de direitos de proteção social
foi tardia, vindo a ocorrer a partir da Constituição Federal de 1988. Até então, alguns direitos
mínimos de proteção haviam sido instituídos por meio de uma política específica, o
Prorural/Funrural, implantada na década de 1970.
Pode-se dizer que a fragilidade
organizativa dos trabalhadores rurais, no passado, foi determinante para que alguns benefícios
175
sociais fossem concedidos pelos governantes de maneira populista, aquém do que seria
devido.
O que se deve realçar é que até a Constituição de 1988, para efeito de
política de proteção social, não se fazia distinção na área rural entre o trabalhador assalariado
e o trabalhador por conta própria. Assim, os institutos jurídicos de proteção reproduziram
conceitos alinhados às características da composição do mercado de trabalho rural, que
combinava o trabalho assalariado e trabalho não-assalariado. Ambas, no entanto, na
informalidade.
Isso foi determinante para que se utilizasse nos institutos jurídicos o
conceito homogêneo de “trabalhador rural” para deferir direitos mínimos de proteção,
exigindo-se a comprovação do trabalho de natureza rural. Esse critério de acesso à proteção
significou, no sistema de proteção social brasileiro, um rompimento com o princípio
contributivo tradicional vinculado ao seguro social.
Vimos também, nesse estudo, que com a equiparação dos direitos entre
trabalhadores rurais e urbanos estabelecida pela Constituição Federal de 1988 – e por seus
institutos de regulação (Lei n.º 8.212/91 e Lei n.º 8.213/91) –, os rurais deixaram de ter um
regime de proteção específico, que lhes concedia benefícios precários, para serem integrados
ao Regime Geral de Previdência Social. Em contrapartida, houve um rompimento com o
principal fundamento que garantia um tratamento equânime, para fins de proteção, entre o
trabalhador rural assalariado e o não-assalariado (em regime de trabalho por conta própria).
Com isso, os trabalhadores rurais passaram a ser tipificados em categorias
distintas, de modo que o direito de acesso do assalariado rural ao conjunto de benefícios
previdenciários deixou de ser pela comprovação da natureza da atividade exercida para ser de
acordo com a natureza da relação de trabalho. Ou seja, o assalariado rural passou a ter vínculo
com a Previdência Social por meio de duas categorias distintas: como empregado ou como
176
trabalhador autônomo, denominado contribuinte individual. Ambas, no entanto, vinculadas à
técnica tradicional do seguro social, que exige contribuições mensais para a garantia de acesso
às prestações de benefícios. A exceção a essa regra contributiva ficou valendo para o
benefício da aposentadoria por idade, pois se manteve a permissão para o assalariado rural
continuar requerendo esse benefício por meio da comprovação da atividade rural. Essa
garantia, no entanto, está vinculada a uma regra transitória com vigência até dezembro de
2010. A partir de então, todo e qualquer direito do assalariado rural perante a Previdência
Social exigirá a comprovação da relação do vínculo de emprego ou a comprovação da
contribuição mensal feita de forma autônoma, na qualidade de contribuinte individual.
Ao projetar esse cenário diante da realidade que demarca o mundo do
trabalho rural e onde preponderam relações de trabalho de natureza sazonal, intermitente, de
curto período, identificou-se o quão é grande o desafio de o assalariado rural manter-se
protegido pelo sistema previdenciário. Vários foram os fatores identificados e que realçam
esse panorama nebuloso. Primeiro, está a exacerbante informalidade do contrato de trabalho
na área rural, cujos dados estatísticos revelam que, aproximadamente, 70% desses
trabalhadores encontram-se trabalhando em tal condição; segundo, em face das relações de
trabalho de natureza sazonal, de curto período, pairam ainda muitas dúvidas sobre o
enquadramento do assalariado perante a legislação trabalhista e previdenciária. Isso pôde ser
constatado a partir do posicionamento encontrado na doutrina e na jurisprudência dos nossos
tribunais, que caracteriza o assalariado rural ora como empregado, ora como trabalhador
eventual/autônomo.
A esse respeito, averiguou-se que é preciso adotar uma hermenêutica sobre
as normas previdenciárias e trabalhistas que dialogue com a realidade do mundo do trabalho
rural de modo a assegurar maior efetividade do direito. Isso é necessário na medida em que se
percebe a insuficiência e a limitação da norma jurídica para regular adequadamente as
177
complexas relações sociais do trabalho rural. Ponderou-se assim, que um caminho seria
reconhecer que qualquer trabalho subordinado prestado pelo assalariado rural por curtos
períodos, independente do número de dias, e que esteja vinculado à atividade-fim do
empreendimento econômico caracteriza o vínculo de emprego.
Colocando em perspectiva a maior inclusão do assalariado rural na
Previdência por meio do contrato formal de trabalho, foram feitas algumas reflexões sobre as
formas de contratação do trabalho. Identificou-se que os tradicionais institutos jurídicos que
se prestam a esse fim mostram-se pouco adequados para serem utilizados naquelas relações de
trabalho de curta duração. A esse respeito, o contrato de trabalho instituído pela Lei n.º
11.718/2008 apresenta-se como uma real possibilidade, ainda que limitada, de se alcançar
maior formalização e, por conseqüência, ampliar a cobertura da proteção previdenciária dos
assalariados rurais. Entretanto, existem obstáculos que precisam ser superados, sob pena de tal
modalidade contratual ter pouca eficiência prática.
Uma última questão refere-se às dificuldades de se garantir maior inclusão
previdenciária do assalariado rural apenas pela via da técnica do seguro social. Sabe-se, nos
dias atuais, que é em torno do status da condição do trabalho assalariado formal que gira o
essencial da problemática da proteção social. É a crise da condição de assalariado, sob o teto
da formalidade e da estabilidade, que hoje fragiliza as proteções sociais. Como bem disse
Castel, a condição de assalariado é “simultaneamente a base e o calcanhar-de-aquiles da
proteção social. A consolidação do estatuto da condição de assalariado permite o
desenvolvimento das proteções, ao passo que sua precarização leva novamente à nãoseguridade social”260. Como vimos, essa precarização está muito presente na área rural:
trabalho sazonal, intermitente, informal.
260
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 413.
178
É claro que a estabilidade no emprego é objetivo essencial, e tudo o que a
sociedade fizer nesse sentido e ainda para melhorar a empregabilidade dos que querem
trabalhar, tem grande importância. No entanto, é de se indagar se a ampliação da cobertura da
proteção social do assalariado rural poderá ser alcançada pelo mecanismo do emprego estável.
Não se contesta que para algumas atividades específicas no campo existam ofertas desse tipo
de emprego. Mas, no geral, o que se observa é uma crise que dificulta a integração do
assalariado com o sistema de proteção social por meio do trabalho formal de longa duração.
Diante dessa realidade, o sistema previdenciário brasileiro merece ser
repensado de modo a evitar maiores iniqüidades. Isso porque, na prática, o sistema atual
comporta um paradoxo de proteção social em que os trabalhadores mais bem posicionados no
mercado de trabalho são aqueles que recebem maior e melhor proteção, enquanto grandes
contingentes de trabalhadores, em situações mais vulneráveis, ficam excluídos. Não se quer
dizer com isso que o sistema deva estabelecer um nível de padronização das proteções para
baixo. Pelo contrário, é preciso estimular o ingresso ao sistema por meio de benefícios que
guardam consonância com o valor da contribuição realizada pelo segurado, mas é preciso
também reforçar o caráter de solidariedade e de coesão social que um sistema de proteção
social público exige, garantindo ao menos uma proteção mínima que promova a cidadania
daqueles que contribuem para a geração de riquezas e o desenvolvimento do país apenas com
a sua força de trabalho.
O problema da proteção previdenciária dos assalariados rurais impõe hoje
uma acuidade singular, revelando que os desafios postos para tentar superá-lo precisam ser
analisados à luz da estrutura do sistema de Seguridade Social brasileiro, já que não se
consegue resolvê-lo apenas pelo ângulo estrito da técnica e da solidariedade securitária. Nesse
sentido, novos mecanismos de proteção podem ser redesenhados e fundados sob bases mais
179
sólidas de solidariedade social e de valores democraticamente compartilhados no seio da
comunidade.
Assim, embora sejam estreitos os caminhos a trilhar visando ao maior grau
de proteção dos assalariados rurais, existem algumas vias possíveis de serem exploradas com
esse intento. Uma delas consiste em constituir novos direitos capazes de assegurar proteção às
situações ocasionais de prestação do trabalho e garantir as trajetórias marcadas pela
descontinuidade dessa prestação. Ou seja, é uma forma de restabelecer, na recomendação de
Castel, “uma continuidade dos direitos através da descontinuidade das trajetórias
profissionais, incluindo também os períodos de interrupção do trabalho”261. Isso não significa
romper com o modelo previdenciário vigente, mas sim adequá-lo para corresponder às
múltiplas formas de contratação de trabalho contidas em nosso ordenamento jurídico. Até
porque é importante lembrar que o mecanismo securitário, como adverte Rosanvallon,
continuará a existir e será sempre uma das formas modernas da instituição do vínculo social.
Apenas o seu papel será menos central no contexto dos sistemas de proteção social, sendo que
o novo viés se inclina para uma nova gestão de solidariedade262.
Decerto, o novo mecanismo de contagem especial do tempo de carência
para o acesso do empregado rural à aposentadoria por idade, na forma estabelecida pela Lei
11.718/2008 (ver capítulo 5, item 5.2.2), pode ser considerado um bom começo da tão
necessária adequação do sistema previdenciário brasileiro à realidade que o mundo do
trabalho impõe. No entanto, é preciso ir adiante. É preciso olhar para tal regra almejando
transformá-la numa regra permanente, pois não há perspectiva de que o mercado de trabalho
rural vá gerar empregos mais estáveis para todos os assalariados após o ano de 2020. Outro
aspecto é o de não limitar a aplicação da referida regra a situações somente onde houver
261
CASTEL, Robert. A insegurança social: o que é ser protegido? Trad. Lúcia M. Endlich Orth. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2005, p. 84.
262
ROSANVALLON, Pierre. A nova questão social: repensando o Estado Providência. Trad. de Sérgio Bath.
Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1998, p. 73.
180
relação de emprego. O perfil do mercado de trabalho rural, analisado desde uma perspectiva
histórica, revela ser muito difícil o caminho para se alcançar a proteção por meio apenas da
prestação do trabalho com vínculo empregatício.
Pela mobilidade do assalariado rural no mercado de trabalho, que acarreta
freqüentes processos de transições entre vários empregos, às vezes entre emprego e perda de
emprego ou, ainda, várias prestações de trabalho sem qualquer vínculo de emprego, torna-se
necessário organizar o sistema previdenciário de modo que essas transições não se traduzam
numa degradação da proteção social.
Poder-se-ia assim conceber o que Castel denomina de “direitos de
transições” a ser associado a um verdadeiro “direito à formação” 263, que consiste em dotar os
trabalhadores de conhecimentos e qualificações necessários para enfrentar a mobilidade no
mercado de trabalho e, por conseguinte, integrar os períodos de qualificação, em que o
trabalhador estiver fora do emprego, ao tempo efetivo de sua vida laboral, de modo a compor
as exigências de garantia para o acesso à proteção previdenciária. Por certo, essa é uma
questão totalmente aberta ao debate e demanda uma política de qualificação profissional
bastante consistente e socialmente balizada com o sistema de Previdência Social, algo que
ainda precisa ser construído em nosso meio e que poderia comportar um viés voltado às
especificidades que o mercado de trabalho local e regional exige. É de ressaltar, no entanto, a
alta relevância desse tipo de política, por promover a igualdade de oportunidades para o
acesso ao mercado de trabalho e ao mesmo tempo garantir um tempo maior de proteção
básica para o trabalhador.
Outra perspectiva de extensão da proteção em face da descontinuidade do
vínculo de emprego, está em assegurar aos assalariados contratados pelos meios “atípicos”
(como ocorre com o contrato de safra e com o novo contrato de trabalho rural por pequeno
263
CASTEL, Robert. A insegurança social: o que é ser protegido? Trad. Lúcia M. Endlich Orth. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2005, p. 86.
181
prazo) o direito ao seguro-desemprego, vinculando os períodos de usufruição desse benefício
aos critérios de exigibilidade para o acesso à proteção previdenciária. Pode-se objetar talvez
que este tipo de proposição traria outros problemas, a exemplo de ser um incentivo às partes
contratantes a não formalizar o contrato de trabalho durante o período de recebimento do
seguro-desemprego. É claro que esse tipo de questão precisa ser mais bem decifrado. Não
obstante, tal proposição abre uma possibilidade de se ampliar a cobertura previdenciária,
sendo esta uma compreensão manifestada, inclusive, pelo Fórum Nacional de Previdência
Social, que se reuniu no ano de 2007 para debater os problemas de financiamento e de
sustentabilidade da Previdência Social264.
Seguindo o curso das proposições, verifica-se que a efetividade de uma
política previdenciária mais inclusiva poderá ser alcançada se houver uma reconfiguração do
direito de ser protegido a partir da comprovação do exercício do trabalho, seja este exercido
dentro ou fora da relação de emprego. Trata-se de garantir, por essa via, um patamar básico de
proteção, senão de todos os benefícios, ao menos para a aposentadoria por idade, vinculando o
direito à prática do trabalho prestado a outrem, independentemente da forma de contratação.
Enfatiza-se, que embora a relação com o emprego tenha se tornado um problema, o trabalho
ainda conserva sua centralidade para fins de vínculos de proteção.
Abordamos, de certo modo, essa questão em alguns tópicos dessa pesquisa
quando discorremos sobre o histórico e a trajetória da proteção previdenciária dos
trabalhadores rurais, que de fato se consolidou como uma das principais políticas sociais na
área rural e na própria estrutura do sistema de proteção social brasileiro. Trata-se de uma
experiência riquíssima que tem alcançado resultados bastante expressivos do ponto de vista da
264
Uma síntese das atividades e propostas apresentadas pelo Fórum pode ser encontrada em:
<http://www.previdenciasocial.gov.br/docs/forum/ConclusoesForum_31 out2007.pdf.> Acesso em 03 de
novembro de 2008.
182
maior inclusão e coesão social265. Só que esta experiência vem se desenvolvendo de modo
bastante consistente e satisfatório para os trabalhadores tipificados como segurados especiais,
que têm certa autonomia no exercício do trabalho.
Para os assalariados rurais, embora o direito à aposentadoria por idade ainda
esteja vinculado ao tempo de comprovação da atividade rural (regra que vale até dezembro de
2010 – ver capítulo 5), esse tipo de política sempre foi tratado pelo Estado com enormes
reticências. Tanto é, que nesses 17 anos de vigência do Regime Geral da Previdência Social,
praticamente não se deu ênfase para o seu aprimoramento.
Assim, ao se projetar novamente essa proposta, pondera-se que a maior
inclusão previdenciária vai depender de regras mais transparentes sobre a forma de
comprovação do exercício do trabalho que possa tornar o direito de proteção plenamente
acessível. Isso porque, a comprovação do exercício do trabalho precisa ser feita a partir de
uma relação de trabalho estabelecida com terceiros e na sistemática atual esse sempre foi o
grande problema; além do que, os critérios que se prestam a tal fim nunca estiveram bem
definidos. Esse é um ponto para ser aprimorado, pois é dele que se extrai a maior segurança
jurídica para o reconhecimento ou a denegação do direito.
É de se ponderar que esse critério de acesso à proteção comumente levanta o
debate a respeito de ser o mesmo um fator de desincentivo à formalização da relação de
trabalho, sendo o próprio assalariado visto como um sujeito conivente com esta situação. Não
nos parece que isso seja uma verdade, pois querer onerar o assalariado rural com a
responsabilidade da formalização do contrato de trabalho é o mesmo que querer negar-lhe o
direito de proteção.
265
Nesse sentido, ver: SCHWARTZER, Helmuth. Paradigmas de Previdência Social Rural: Um Panorama da
Experiência Internacional.São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2000; DELGADO,
Guilherme C. A pesquisa de avaliação da previdência social contextualizada. In: A universalização de
direitos sociais no Brasil: A previdência rural nos anos 90. Coordenação, Guilherme Delgado Costa e José
Celso Cardoso Junior. Brasília: Ipea, 2000; BERWANGER. Jane Lúcia Wilhelm. Previdência Rural:
inclusão social. Curitiba: Juruá: 2007.
183
Outra questão e que merece uma reflexão é o fato de o assalariado rural, ao
prestar informalmente serviços de curto período ao contratante, se vê no dilema que envolve o
trabalho com vínculo de emprego ou a prestação de um serviço autônomo. Por conseqüência,
fica ele diante de regras distintas, mas determinantes para a garantia do seu direito de
proteção: uma é a que obriga o contratante dos seus serviços a recolher a sua contribuição; a
outra é a que determina que a contribuição seja recolhida por sua própria iniciativa.
Isso, a nosso ver, é um contra-senso, pois se todos os trabalhadores são
segurados obrigatórios do sistema previdenciário, não importando sob qual enquadramento
conceitual, dever-se-ia assim vincular que em toda prestação de serviço, seja ela com vínculo
de emprego ou não, é de responsabilidade do contratante proceder ao recolhimento para o
sistema de todas as contribuições previdenciárias incidentes sobre a remuneração paga pelo
trabalho contratado, inclusive a de quem lhe presta os serviços.
É preciso ponderar que, à medida que a responsabilidade de garantir a
proteção fica condicionada à vontade do próprio trabalhador, pode o Estado querer eximir-se
da obrigação de fiscalizar as relações de trabalho (que não se resume apenas à relação de
emprego) e tampouco criar instrumentos mais adequados para recompor o seu papel
regulador. Essa é uma situação perigosa, pois é um caminho para a descoletivização dos
riscos sociais a que o sistema público de proteção deveria se incumbir.
Portanto, deve ser uma meta do Estado e da sociedade brasileira fortalecer o
vínculo social previdenciário com o desenvolvimento de políticas mais inclusivas. Contudo,
isso levanta o debate sobre o aspecto da sustentabilidade e do equilíbrio financeiro do sistema
de proteção para as mudanças que se almejam. Ou seja, em que medida o Estado brasileiro
conseguirá manter um tipo de proteção previdenciária para os assalariados rurais que supere
os aspectos da técnica tradicional do seguro social, e como a Previdência Social pode suportar
184
o ônus dessa inclusão. Essas são questões que exprimem diversas posições dos analistas e que
têm no dissenso a marca do debate.
É de se observar que as bases de sustentação para um modelo de proteção
includente foram instituídas na Constituição Federal de 1988, quando se incorporou, com
mais fidelidade na estrutura do sistema de Seguridade Social, os princípios da universalização
da cobertura do atendimento, eqüidade na forma de participação no custeio e diversidade da
base de financiamento.
Desse modo, o sistema de Seguridade Social encontra-se estruturado em
diversas fontes de custeio que intensificam os mecanismos de solidariedade e de estabilização
do sistema e que permitem transcender o modelo regressivo do seguro social que mantém
uma inexorável relação entre contribuição e benefício. É, portanto, a diversidade de fontes de
financiamento a responsável pela sustentabilidade do orçamento da Seguridade Social
(inclusive da Previdência Social) que sempre apresentou resultados superavitários, mesmo nos
ciclos de crises econômicas, conforme demonstram estudos feitos nesta área266.
Denota-se, portanto, que o sistema de Seguridade Social brasileiro, a partir
dos princípios e das diretrizes que o orientam e na forma como se encontra estruturado na
Carta Constitucional, contempla os mecanismos necessários para dar suporte a uma política
mais ampla de proteção previdenciária que inclua os assalariados rurais.
Essa é uma questão que exige superar a crescente tendência da polarização
econômica que recaí sobre a política de proteção previdenciária. A centralidade conferida ao
ajuste fiscal tem feito com que a análise do financiamento público seja focalizada,
prioritariamente, sob o ângulo do gasto social, taxado muitas vezes de “excessivo”, além de
estabelecer uma dicotomia entre gasto social contributivo - tendo o seguro social como
266
Ver: GENTIL, Denise Lobato. A política fiscal e a falsa crise da Seguridade Social brasileira: análise
financeira do período 1990–2005. Tese de doutoramento. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Economia, 2006.
No mesmo sentido, ver: ANFIP. Análise da Seguridade Social em 2006. Brasília: ANFIP, 2007.
185
referência - e gasto social não-contributivo – como sendo aquele financiado por receitas
fiscais. Essa linha discursiva pressupõe que os gastos da previdência social são aqueles
sustentados exclusivamente pelas contribuições sobre a folha de salários ou sobre os
rendimentos do trabalho, não considerando, portanto, as demais fontes de custeio conforme
previsto no art. 195 da Constituição Federal. É de se lembrar, que ao idealizar a pluralidade
de fontes de custeio o constituinte afastou o critério da especificação no intuito de, ao se
avaliar a capacidade contributiva, melhor distribuir os encargos sociais para garantir os
direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Destarte, ao passo em que se enfatiza o gasto social pelo ângulo do suposto
déficit das contas, pouca relevância tem sido dada às políticas de proteção social enquanto
efetivo instrumento de distribuição de renda e de redução das desigualdades sociais, como
ocorre, por exemplo, com a política de previdência social destinada aos segurados especiais.
Assim, a postura de transformar as políticas de proteção social em um
complemento possível da política econômica estabelece uma relação de subordinação que
limita as escolhas. É o mesmo que aceitar de modo inquestionável que as leis de mercado não
deixam nenhuma margem de manobra para que o Estado desenvolva novos mecanismos de
proteção social, o que significa, aliás, negar a própria possibilidade da ação política crível de
ser manifestada numa sociedade democrática.
À medida, portanto, em que se concebe a política previdenciária adstrita à
técnica tradicional securitária distanciando-a, ou melhor, dissociando-a do sistema de
Seguridade Social, automaticamente já se condiciona a impossibilidade de se desenvolver
essa política numa perspectiva mais inclusiva, salvo pela geração de empregos estáveis,
devidamente formalizados, o que mostra-se pouco provável de tornar-se regra na área rural.
Poder-se-ia, então, argumentar que o assalariado rural não protegido pela
Previdência alcançaria a proteção por meio do benefício de prestação continuada vinculado à
186
política da assistência social. Ora, isso não é tão simples assim. Primeiro, porque os critérios
de exigibilidade para acesso a esse benefício são extremamente restritivos, pois se exige que a
pessoa seja portadora de necessidades especiais ou que tenha 65 anos de idade e que
comprove ser incapaz de prover a sua própria manutenção ou de tê-la provida por sua família,
o que significa sobreviver com uma renda per capta familiar inferior ao valor de 1/4 (um
quarto) do salário mínimo (art. 34 da Lei n.º 10.741/2003, c/c art. 20 e parágrafos da Lei n.º
8.742/1993). Segundo, o problema é que em nosso ordenamento jurídico, o direito à
assistência não impede que seu acesso esteja subordinado a uma avaliação que incide sobre o
beneficiário, ou seja, este deve justificar-se como necessitado para beneficiar-se dessa
proteção, e isso não comporta a situação do assalariado rural em análise, salvo,
se se
universalizar o acesso à proteção assistencial exigindo-se do beneficiário apenas o requisito da
idade. Aliás, essa seria uma forma de superar a dicotomia existente entre as políticas de
assistência e de previdência social, dando-se um enorme passo para a realização plena da
Seguridade Social.
Considerando que a universalização do acesso ao benefício da assistência é
uma proposta complexa e bastante remota de ser efetivada no contexto sócio-econômico e
político brasileiro sob as bases de um pacto social, continuamos insistindo na possibilidade,
embora mais restritiva, mas plausível, de assegurar a proteção social do assalariado rural a
partir da prática do trabalho e, no nosso entendimento, o direito previdenciário, na atual
circunstância, é o que melhor legitima essa proteção por ser uma garantia coletiva, legalmente
instituída, que confere ao trabalhador o estatuto de membro de pleno direito da sociedade e
que por esse fato tem o direito de usufruir das prerrogativas essenciais da cidadania.
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O DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL EM SUA