UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
SILVIA MÁRCIA FERREIRA MELETTI
Educação escolar da pessoa com deficiência mental em
instituições de educação especial: da política à instituição concreta
São Paulo
2006
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SILVIA MÁRCIA FERREIRA MELETTI
Educação escolar da pessoa com deficiência mental em
instituições de educação especial: da política à instituição concreta
Tese
apresentada
ao
Instituto
de
Psicologia
da
Universidade de São Paulo. Para obtenção do título de
Doutor em Psicologia.
Área
de
concentração:
Psicologia
Escolar
e
do
Desenvolvimento Humano.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Helena de Souza Patto
São Paulo
2006
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Meletti, Silvia Márcia Ferreira.
Educação escolar da pessoa com deficiência mental em instituições
de educação especial: da política à instituição concreta / Silvia Márcia
Ferreira Meletti; orientadora Maria Helena de Souza Patto. -- São
Paulo, 2006.
125 p.
Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1. Retardo mental 2. Educação especial 3. Institucionalização 4.
Política educacional 5. Inclusão escolar I. Título.
RC570
FOLHA DE APROVAÇÃO
Silvia Márcia Ferreira Meletti
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Doutor.
Área de concentração: Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento Humano
Aprovado em:
Banca Examinadora:
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição _________________________ Assinatura: _______________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição _________________________ Assinatura: _______________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição _________________________ Assinatura: _______________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição _________________________ Assinatura: _______________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição _________________________ Assinatura: _______________________
Aos meus pais, por me ensinarem a essência da
vida;
Aos meus tios Júlio e Cecília, por me ensinarem,
entre
tantas
outras
coisas,
a
essência
da
Educação, do Conhecimento;
À Ligia, que com sua sabedoria me ensinou a
essência do respeito às diferenças;
Ao Paulo, à Laura, à Ana e à Luísa, essências de
minha vida
AGRADECIMENTOS
Certamente cometeria injustiças se tentasse nominar todos aqueles que me
acompanharam durante todo o percurso de elaboração deste trabalho. Por isso, optei
por não fazê-lo neste espaço, salvo algumas exceções.
Foram cinco anos envolvida com o doutorado. Cinco anos marcados por
grandes tristezas e grandes alegrias. Como foi duro perder a companhia e a
interlocução da amiga e Professora Lígia Assumpção Amaral, que me orientou no
início deste trabalho. Como foi decisivo o apoio do Paulo, de nossas famílias e de
nossos grandes amigos para que eu conseguisse resgatar meu trabalho e chegar até
aqui. Assim como foi decisivo o percurso acompanhado pelo Professor José Leon
Crochik e, em um segundo momento, o acompanhamento da Professora Maria
Helena de Souza Patto, juntamente com as valiosas considerações e direcionamentos
dos Professores José Geraldo Bueno e Adriana Machado Marcondes na ocasião do
Exame de Qualificação.
Agradeço ao Departamento de Educação da Universidade Estadual de
Londrina pelo apoio e pela compreensão com o percurso atípico de meu
doutoramento. À Instituição Especial que abriu suas portas me permitindo a
realização deste estudo e aos profissionais que participaram da pesquisa.
A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a realização
deste trabalho.
Para que fazemos teses?
...Penso que muitos de nós, ao considerarmos que
perguntas
formuladas,
fazendo
sair
fantasmas
escondidos,
certamente
das
sombras
podem
iluminar
novos recantos e, assim, quem sabe propiciar respostas
para um bem viver. Já disse Moscovici que toda
pesquisa começa por um gesto de indignação – alguma
coisa não é como deveria ser, aos olhos do pesquisador.
Algo nos incomoda, nos inquieta, e nos encaminha para
o desafio de penetrarmos na tal espiral sem fim,
tentando,
por
maniqueístas
um
do
lado,
mundo
nos
e,
livrarmos
por
de
visões
outro,
nelas
mergulharmos para as questionar. Penso mesmo que
uma
pesquisa
tem
como
horizonte
último
indignações, novas perguntas, novas espirais.
Lígia Assumpção Amaral (2001)
novas
MELETTI, S. M. F. Educação escolar da pessoa com deficiência mental em
instituições de educação especial: da política à instituição concreta. 2006. f.
125. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2006.
Resumo
O presente trabalho teve como objetivo analisar os mecanismos utilizados pela instituição
especial para se adequar às exigências legais e normativas no sentido de assumir a
educação escolar como eixo central de seu trabalho, compatibilizando-o com as
necessidades especiais de seus educandos. Para isso, optou-se por analisar os
documentos institucionais que nortearam o movimento de adequação e a percepção dos
profissionais que compõem a equipe técnica de uma instituição especial em processo de
mudança. Os documentos analisados foram: as diretrizes curriculares elaboradas pela
Federação Nacional das APAES APAE Educadora: a escola que buscamos, o currículo da
instituição especial e seu relatório de atividades. A análise consistiu em buscar nos
documentos e no discurso dos profissionais a forma como as dimensões Educação
Especial, Deficiência Mental e Instituição Especial eram concebidas e se as concepções
contemplavam as novas configurações de cada uma delas, previstas na legislação
educacional: a educação especial como uma modalidade de ensino, a deficiência mental
como uma necessidade educacional especial e a instituição especial como uma escola do
sistema regular de ensino. Para isso, o recurso metodológico utilizado foi a Análise de
Discurso. Os resultados indicaram que os mecanismos utilizados foram: apropriação do
discurso oficial; reinterpretação das normas de flexibilização curricular e de terminalidade
específica; reorganização formal e aparente da estrutura institucional. Com base na
análise dos resultados foi possível concluir que os mecanismos utilizados pela instituição
especial sustentam uma transformação institucional aparente que mantém o caráter
totalitário e conservador da instituição e da educação especial por meio da manutenção
da pessoa com deficiência mental no âmbito da filantropia; da indistinção entre
reabilitação e educação e o não acesso a processos efetivos de escolarização; e da
manutenção da condição segregada da pessoa com deficiência mental na instituição
especial, reconhecida como escola do sistema regular de ensino.
Meletti, S.M.F. School Education of a handicapped person at special care
education institutes : from school policies to real-life institution - 2006 – p.
125. Doctorate thesis – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.
Abstract
The aim of this work was to analyze the devices used by the special care institution
to fit in with the legal and standard demands of regular school education by
adjusting it with the special needs of their students .In order to do so, both, the
school documents used in the adjusting process as well as the professional
awareness of the group in charge of the special care institution which is going
through a changing process, were analyzed .The documents taken into account were
the following: curriculum constraints, worked out by the Federação Nacional das
Apaes/ Apae Educadora: a escola que buscamos (The school we search for); the
special care institute curriculum and their activity report.The analysis searched for
the way Special Education, Handicapped People and Special Care Institution were
thought of and whether their basic ideas regarded the new shapes each one of them
has nowadays according to the school rules: Special Education as a modality of
teaching, Handicapped as a special education need and the Special Institute as a
regular teaching school.In order to do so, the methodology used was Discourse
Analysis. The results of the research showed that the devices used were the
following: formal discourse appropriation; a re-interpretation of the rules for
curriculum flexibility and specific bounds; formal reorganization of the institutional
structure. According to the data analysis it was possible to conclude that the devices
used by the special care institution support a seemingly institutional change that still
retains a conservative and totalitarian character. The same occurs with Special Care
Education because handicapped people are regarded within the scope of
philanthropy, they are maintained at the indistinct boundaries between restoring and
regular education; regular school access is denied for handicapped people.The
isolation of handicapped people remains at the special care institution which is seen
as a school of the regular teaching system.
Sumário
Resumo
Abstract
A construção do problema de pesquisa
01
Capítulo 01 - Referenciais Teóricos para Uma Análise do Discurso sobre
Escola Especial para Pessoas com Deficiência Mental
Capítulo 02 - Apontamentos sobre a Metodologia da Pesquisa
13
58
Capítulo 03 - Os sentidos e os mecanismos presentes na reestruturação
da Instituição Especial
64
3.1 - A construção do perfil educacional da instituição
especial expressa nos documentos institucionais e na
perspectiva de seus profissionais.
80
Considerações Finais
111
Referências
120
1
A construção do problema de pesquisa
É muito difícil reconstruir os caminhos e descaminhos que percorri para
formular as perguntas que desencadearam a elaboração deste trabalho. Parece
impossível, como nos mostra Amaral (2001, p. xii), delimitar o início deste caminho,
dessa “espiral infinita que une as coisas da vida, alternando e imbricando início e
fim”. Por isso, a tentativa de reconstrução que aqui se inicia pode não contemplar
todo este trajeto constituído por minhas experiências pessoais e profissionais sempre
tão recheadas de preocupações e indagações.
Meu contato com pessoas com deficiência mental se iniciou, juntamente com
minha graduação em Psicologia, por meio do trabalho que desenvolvi em instituições
especializadas no atendimento a esta população. Em um segundo momento, quando
do desenvolvimento de minha pesquisa de mestrado, meu contato se deu
especificamente no setor profissionalizante de uma instituição especial.
No Mestrado em Educação Especial a pesquisa foi conduzida buscando
conhecer o significado que o processo de profissionalização tinha para a pessoa com
deficiência mental. Para realização do estudo, acompanhei o cotidiano de uma oficina
abrigada
1
que mantinha convênios com empresas nas quais os aprendizes
2
trabalhavam em condição de estagiários. O referencial teórico 3 que sustentou as
análises indicava, por um lado, o trabalho como uma via de integração social da
pessoa com deficiência mental e, por outro, que os processos de profissionalização
oferecidos por instituições especiais não estavam viabilizando a preparação, o acesso
e a permanência desta população ao mercado de trabalho regular. Além disso, a
literatura especializada (AMARAL, 1994; MANZINI, 1989) destacava a estigmatização
da pessoa com deficiência mental e sua preparação para o trabalho em condição
1
Local supervisionado, situado em instituições especiais ou como apêndices destas, que atende o indivíduo com deficiência
proporcionando atividades consideradas profissionalizantes [...] Geralmente, é considerado parte do processo de formação [...]
representando uma escala a mais em sua trajetória educativa (MELETTI, 1997, p. 20)
2
Modo como as pessoas com deficiência mental eram denominadas na oficina abrigada.
3
Especialmente, Amaral (1994, 1995), Goyos (1995), Manzini (1989), Giordano (1994).
2
segregada como entraves para sua integração. Os resultados da pesquisa indicaram
que para as pessoas com deficiência mental que participaram do estudo o processo
de profissionalização significava: continuidade ao atendimento educacional, pois que
inserido na instituição especial; alternativa ao ócio e ao desemprego; locus de
aquisição de comportamentos socialmente adequados; e via de estigmatização em
função da permanência em uma instituição especial para deficientes mentais. Além
disso, na análise da estrutura institucional, dos procedimentos de trabalho adotados,
dos tipos de contratos firmados com empresas, não foi possível perceber um
movimento institucional no sentido de integrar a pessoa com deficiência mental no
mercado competitivo de trabalho. Concluiu-se que o processo de profissionalização
não se constituía em uma via de integração social, ao contrário, reiterava a
segregação da pessoa com deficiência mental na instituição especial (MELETTI,
1997).
Ao final daquela pesquisa, as constatações começaram a iluminar outros
questionamentos acerca do processo de institucionalização da pessoa com deficiência
mental, e outras possibilidades de estudo foram se configurando. Especificamente,
direcionei meu interesse e meus estudos para o fato da educação desta população
ocorrer quase que exclusivamente em condição segregada e circunscrita à instituição
especial. As delimitações subseqüentes foram possíveis a partir da literatura
especializada que analisa a segregação da pessoa com deficiência mental como algo
sustentado, ao mesmo tempo em que sustenta, o modo de conceber o fenômeno da
deficiência em nossa sociedade.
Aqui, considero oportuno discorrer sobre como a deficiência mental é
concebida no presente trabalho: um fenômeno multifacetado e multideterminado
em seus aspectos físicos, neurológicos, intelectuais que, dependendo do contexto
social, histórico e cultural no qual está inserido adquire significados específicos de
3
atraso, de incapacidade de atividade mental que sustentarão formas específicas de
lidar com a condição em si.
Ser identificado como deficiente mental em alguns contextos pode ser mais
restritivo das interações entre a pessoa identificada e seu grupo que a identifica do
que a condição de deficiência propriamente dita. O impacto da condição de
deficiência mental em um determinado indivíduo depende mais da leitura social que
é feita desta condição do que das condições orgânicas propriamente ditas.
Foi em Vigotski (1989) que encontrei a análise da necessidade de se
considerar uma determinada deficiência para além de suas manifestações orgânicas,
individuais. Sustentado pelos postulados do materialismo histórico e dialético,
Vigotski, nos Fundamentos da Defectologia, nos mostra que
a cegueira e a surdez como defeito físico permanecerão ainda por muito
tempo na Terra. O cego seguirá sendo cego e o surdo, surdo, mas eles
deixarão de ser pessoas com defeito, porque a deficiência é um conceito
social [...] A cegueira por si só não faz da criança uma pessoa com
defeito, não é uma deficiência, quer dizer uma insuficiência, uma menosvalia, uma enfermidade. A cegueira se converte em deficiência só em
certas condições sociais de existência do cego (VYGOTSKY, 1989, p. 60).
Nesta mesma linha, encontramos nas análises tecidas por Jannuzzi (1992,
2004), por Amaral (1995), por Bueno (1997a) e por Garcia (2004) a sustentação de
que o fenômeno da deficiência é constituído por meio de múltiplas determinações
que não se restringem a manifestações orgânicas. O fenômeno da deficiência
também é constituído e determinado pelas dimensões sociais, históricas e culturais,
constitutivas da vida humana.
Bueno (1997a, pp. 163-164) nos mostra que
... a deficiência mental, tal como a conhecemos hoje, não apenas só
passou a ser identificada a partir do final do século XVIII, como foi
construída na trajetória histórica de determinadas formações sociais que,
gradativamente, foram exigindo determinadas formas de produtividade
intelectual, as quais culminaram na caracterização de um determinado
tipo de indivíduos – os deficientes mentais – que não conseguiam, em
relação a essas exigências do meio (produtividade intelectual), se
constituir como normativos.
4
Isso porque, em uma sociedade capitalista, marcada pela hegemonia
ideológica do liberalismo e sustentada pelo ideário iluminista com sua valorização da
razão empírica e culto à racionalidade humana, é possível o entendimento de que a
“improdutividade intelectual” seguida de outras improdutividades decorrentes da
primeira, é algo que coloca a pessoa identificada como deficiente mental em uma
condição de profundo desvio.
É,
portanto,
no
conjunto
das
relações
sociais
que
uma determinada
característica individual passa a ser identificada como deficiência, dependendo das
expectativas depositadas em cada sujeito de um determinado grupo e das
conseqüências que as diferenças acarretam às possibilidades de sua participação em
seu contexto social, histórico e cultural.
Nesse sentido, o entendimento é de que podemos encontrar pessoas
consideradas como deficientes mentais em função exclusivamente das condições de
vida nas quais se encontram 4 , o que direciona as formas de lidar, de significar, de
interagir, enfim, de participação nesse mesmo contexto. Ou seja, a condição de
deficiência mental é algo que não se restringe ao indivíduo e que depende do
julgamento do outro para se efetivar. Julgamento este sustentado pelo conjunto de
normas e valores utilizados para caracterizar tal condição em um determinado
momento histórico.
E como a deficiência mental é julgada e caracterizada em nosso contexto?
Como algo que expressa a falta, o atraso, o distanciamento de atributos
considerados importantes e que compõem o modelo idealizado de homem vigente.
Mas, que idealização é essa? Como o homem deve ser, qual é o ideal de indivíduo
almejado e a partir de quais referenciais ele é idealizado?
4
Podemos encontrar exemplos de como pessoas são identificadas e classificadas como deficientes mentais em função das
condições sociais que lhes são impostas nas análises tecidas sobre o fracasso escolar (Patto, 1997; Moysés e Collares 1992)
sobre os procedimentos de avaliação e encaminhamentos de alunos para as classes especiais (Denari, 1994; Dal Pogetto, 1987)
e também em estudo anterior (Meletti, 1997) em que pude constatar jovens desempregados e com problemas de
comportamento na escola sendo diagnosticados como deficientes mentais leves para trabalharem em oficinas abrigadas.
5
O ideal de homem é uma abstração, uma referência que traz consigo um
conjunto de características e atributos (papéis sociais, competências, valores,
crenças, expectativas) que se configura como parâmetro do que deve ser
considerado normal, melhor, desejável em um dado contexto. O ideal de homem
assume contornos e formas distintas em cada grupo social e em cada contexto
histórico e cultural, dependendo das transformações sociais que vão se processando,
das relações de poder instituídas, das idealizações (abstrações) que se tem de
mundo, de sociedade e das expectativas sociais depositadas em cada segmento e em
cada indivíduo.
Por ser uma abstração, o padrão ideal não pode ser atingido em sua
totalidade pelo indivíduo singular e, por isso, assume o papel daquilo que deve ser
almejado por cada um. Para Amaral (1998, p. 14)
a aproximação ou semelhança com essa idealização em sua totalidade ou
particularidades é perseguida, consciente ou inconscientemente, por todos
nós, uma vez que o afastamento dela caracteriza a diferença significativa,
o desvio, a anormalidade. E o fato é que muitos e muitos de nós, embora
não correspondendo a esse protótipo ideologicamente construído, o
utilizamos em nosso cotidiano para a categorização/validação do outro.
Nesse sentido, o ideal de homem é também uma referência para identificação
e julgamento do que não é condizente com aquilo que se almeja para cada indivíduo
em seu grupo social. O ideal de homem é utilizado para qualificar sua própria
negação, sustentando as formas de significar determinadas condições, atributos e
papéis sociais que caracterizam o distanciamento do indivíduo daquilo que é
idealizado e das expectativas nele depositadas em um dado contexto. Em outras
palavras, o ideal de homem sustenta a produção do distanciamento, da incompletude,
de seres humanos faltosos.
Ser identificado como não correspondente ao padrão idealizado faz com que
seu lugar social, seu status, seus papéis, suas interações sejam permeadas e
6
validadas por essa idealização. O que significa, inclusive, ser considerado como não
digno daquilo que compõe a sociedade na qual está inserido.
Significa dizer que as condições de vida de um determinado indivíduo ou
grupo são também criadas e sustentadas pelas idealizações postas em cada contexto
e pelos julgamentos desencadeados por elas. No que se refere à pessoa com
deficiência mental, podemos observar que suas condições de vida foram e ainda o
são sustentadas pela leitura social que é feita de sua condição, qual seja, de que sua
deficiência é algo que se afasta de modo preponderante daquilo considerado normal.
A conseqüência disso pode ser observada nas formas de significar e de lidar com a
pessoa com deficiência mental ao longo da nossa história.
Formas estas caracterizadas, quase que exclusivamente, pelo descrédito, pela
discriminação e pela segregação daqueles considerados deficientes.
De acordo com Jannuzzi (1996, p. 107)
O referencial histórico valorizando as necessidades sociais específicas a
um modelo de homem incorporado ao imaginário coletivo, a grosso modo,
sempre
esteve
presente
nas
sociedades,
pois
que
os
indivíduos
apresentando aspectos considerados divergentes, de uma forma ou de
outra foram sempre segregados. [...] O que tem variado historicamente é
o ponto de “corte” entre “normalidade” e “anormalidade” em função dos
parâmetros mínimos considerados necessários ao funcionamento da
organização social.
Assim, quanto mais a pessoa se aproximar dos padrões de normalidade de um
determinado grupo, mais normal será considerada e, por isso, mais aceita. Quanto
mais se distanciar destes, mais desviante e menos aceita será. É nesse contexto de
interações permeadas e sustentadas por padrões ideologicamente construídos e
mantidos, que à condição de deficiência é dado um significado de desvio.
O desvio é aqui considerado, compartilhando com as análises de Goffman
(1982), como constructo social, como algo que se efetiva no julgamento social do
que se identifica como desviante.
7
Este julgamento social se efetiva nas interações estabelecidas socialmente.
Considero, compartilhando das reflexões tecidas por Goffman (1982) e por Amaral
(1994, 1995, 1998), que as relações sociais são permeadas por referências que
permitem a categorização das pessoas e dos atributos considerados normais e
naturais para cada uma dessas categorias. Quando em minhas relações sociais
encontro
um
desconhecido,
é
através
do
reconhecimento
de
determinadas
características ou atributos que consigo incluí-lo em uma determinada categoria.
Com isso, o desconhecido deixa de ser, ao menos temporária e aprioristicamente,
um estranho e uma ameaça em potencial. No entanto, quando um de seus atributos
o torna significativamente diferente (de modo negativo) daqueles indivíduos que se
encontram a princípio na mesma categoria, esse atributo se transforma em seu
estigma (marca, sinal). Em outras palavras, de acordo com Goffman (1982), a
diferença significativa pode ser transformada em um estigma quando se constitui em
um atributo julgado depreciativo e que se distancia daquilo considerado ideal ou
normal em um determinado contexto social.
A estigmatização de um indivíduo determina a qualidade das interações entre
ele e seu grupo social, que passam a ser mediadas pelo rótulo a ele impingido.
Ocorre a coisificação e desumanização do estigmatizado, já que o indivíduo é
transformado em sua própria diferença, passa a ser reconhecido unicamente em
função desta e sua deficiência passa a ser seu único atributo, com uma carga social
de desvantagem e descrédito. Com isso, ocorre o que Amaral (1995) chamou de
“generalização indevida” e, conseqüentemente, o que temos é a impossibilidade de
outros atributos serem reconhecidos e direcionarem de forma distinta a interação.
A generalização indevida também está presente na visão homogênea que se
tem de um grupo de pessoas que recebem o mesmo rótulo, já que o estigma traz
consigo um rol de características que qualifica a pessoa rotulada. Assim, ao
identificar em uma pessoa um traço que remeta ao estigma da deficiência mental
8
passo a considerar que sei tudo a seu respeito pois o rótulo “deficiente” traz consigo
todas
as
suas
características:
incapaz,
incompetente,
dependente...
A
homogeneização reside no fato de que todos os rotulados serão qualificados da
mesma forma independentemente de suas singularidades. A conseqüência disso é o
entendimento de que todos os identificados como deficientes mentais são iguais,
possuem as mesmas necessidades, devem ser alvo dos mesmos serviços, métodos
de trabalho etc.
Conceber a deficiência mental a partir do rótulo de deficiente faz com que as
possibilidades e as potencialidades do indivíduo rotulado sejam desconsideradas e,
acima de tudo, faz com que a pessoa não seja considerada para além de sua
deficiência.
No que se refere à educação da pessoa com deficiência mental o que pode ser
observado é que uma das conseqüências que permanecem ao longo da história é a
segregação em ambientes especiais como melhor forma de educá-la. Ambientes
educacionais estes que assumiram características próprias e se distanciaram da
educação comum. Bueno (1997a) analisa que o processo de institucionalização da
pessoa com deficiência contribuiu e contribui para a constituição tanto das
concepções sociais acerca da condição quanto da identidade do próprio deficiente.
Assim, o autor nos mostra que a crença na ineducabilidade, na dependência,
na imaturidade, na improdutividade e na necessidade de uma educação segregada
tem sustentação nos modos como foi se constituindo a educação institucionalizada
da pessoa com deficiência em nosso país. Merece destaque a indicação de que a
ampliação das instituições especiais ao longo do século XX no país não incorpora
grande parte da população elegível para tal atendimento.
Ao não incorporar a maior parcela das crianças anormais, a educação
especial contribui decisivamente para a disseminação da concepção de
irreversibilidade da anormalidade, na medida em que, por não deixar
explícita que essa ampliação não significou, de fato, a oportunidade de
acesso à maioria dos deficientes, os quais permanecem sem atendimento
e conseqüentemente com grandes dificuldades de integração social,
9
contribui para que a sociedade em geral os encare como incapazes de
adquirirem autonomia. (BUENO, 1997a, p. 175, grifos do autor)
A isso podemos acrescentar que, por outro lado, a não incorporação da
maioria das crianças anormais, mesmo com a ampliação das instituições especiais,
sustenta também a crença de que o trabalho especializado só pode ser oferecido na
e pela instituição especial, visto o grau de comprometimento da população atendida.
Na contra-mão desta história, podemos observar a partir da segunda metade
do século XX, especificamente após a segunda guerra mundial, o início de
movimentos sociais anti-segregacionistas e anti-discriminatórios que desencadearam
a reavaliação dos direitos humanos e resultaram na Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948. Esta Declaração proclama os direitos humanos
fundamentais a “Todo Homem” sem enfatizar grupos específicos e
... tece em pontos firmes direitos individuais e coletivos, especialmente
no âmbito civil. Inspira constituições e tratados internacionais, desdobrase pelo mundo, disseminando eixos de legitimidade e respeito. Claro está
que nada disso garantiu (ou garante) o pleno respeito a esses direitos e,
por exemplo, a Anistia Internacional aí está para denunciar abusos e
transgressões. Mas, de qualquer forma, passamos a ter uma grande
pauta ética que já não podemos mais ignorar ou apelar para sua
ignorância. (AMARAL 1999, p. 36)
Por outro lado, a autora enfatiza que o fato da Declaração não explicitar
necessidades e direitos de grupos específicos, entre eles o das pessoas com
deficiência, contribuiu para que estas permanecessem, até a década de 1970 quase
invisíveis aos olhos da comunidade e não consideradas verdadeiramente humanas.
Analisa que a invisibilidade e a desumanidade daqueles com algum tipo de
deficiência se confirmam nos diferentes âmbitos de nosso contexto, afirmando:
Sim: invisíveis para a sociedade em geral, pois guardados a “sete
chaves” em instituições ou em suas casas; invisíveis para a legislação,
que deles só se ocupava em termos de restrições ou sanções; invisíveis
para as instituições educacionais regulares, que sequer os viam como
sujeitos da educação; invisíveis para os meios de comunicação não
sensacionalistas; invisíveis para os produtos culturais de qualidade. E
mais: quando tornados visíveis o eram, muitas e muitas vezes, com
10
tonalidades
e
características
drasticamente
estereotipadas
e
des-
humanizadas. (AMARAL, 1999, p. 36)
Em 12 de dezembro de 1975 a Assembléia Geral da Organização das Nações
Unidas (ONU) aprova a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes. Com esta
Declaração, pela primeira vez, as pessoas com deficiência têm suas necessidades
explicitadas, seus direitos, seus deveres e sua condição específica reconhecidos.
Neste momento, a pessoa com deficiência “pôde começar a ser olhada, e a olhar
para si mesma, de forma menos maniqueísta: nem herói nem vítima, nem deus nem
demônio, nem melhor nem pior, nem super-homem nem animal. Pessoa” (AMARAL,
1994, pp. 14-15).
A partir de então, os movimentos sociais e as políticas públicas referentes às
pessoas com deficiência, em especial quanto à sua educação, enfatizam sua
participação na educação escolar regular como um meio de romper com sua
condição segregada e ascender a maiores níveis de escolarização, o que materializa
seu direito à educação letrada. No Brasil este movimento e as políticas dele
decorrentes indicam que a educação desta população deve ocorrer preferencialmente
na rede regular de ensino sendo a instituição especial uma opção educacional, caso
as pessoas com deficiência e/ou suas famílias assim decidirem (Brasil, 1997, 2001a).
Nesse sentido, há a exigência de uma pedagogização da instituição especial
que deve se caracterizar como escola para fins de educação escolar.
Educação escolar aqui entendida como o desenvolvimento por escolas de objetivos
comuns a todos os alunos da educação básica como previsto na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, Lei n° 9394/96 (LDBEN 96):
Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem Ter uma
base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino
e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas
características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e
da clientela.
§ 1º Os currículos a que se refere o
caput devem abranger,
obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa e da matemática, o
11
conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política,
especialmente no Brasil. (BRASIL, 1996)
Para o cumprimento de tais objetivos da LDBEN 96 e as diretrizes e planos a
ela associados determinam uma série de outros requisitos para o reconhecimento da
instituição especial como escola.
Sob estas exigências e frente à história de educação da população com
deficiência mental em instituições especiais, que se constituiu à parte do sistema
comum de ensino e sob a égide de outros princípios educacionais que não os da
educação geral, temos a constituição de um espaço propício ao embate de forças
contrárias. Diante deste embate, as questões que se colocam são: 1) que direções as
mudanças
exigidas,
presentes
na
política
educacional,
estão
imprimindo
no
movimento de adequação das instituições especiais? 2) as exigências feitas no
âmbito legal e normativo são suficientes para alavancar a transformação da
instituição especial no sentido indicado? 3) está havendo uma organização e uma
atuação institucional no sentido de garantir a escolarização das pessoas com
deficiência mental institucionalizadas? 4) quais os mecanismos utilizados pela
instituição especial nos processos de mudança para lidar com as exigências legais e
normativas no sentido de assumir a educação escolar como o eixo central de seu
trabalho, compatibilizando-o com as necessidades especiais de seus educandos?
O presente texto se inicia nesta apresentação na qual foi definido o problema
de pesquisa e delimitado um objeto de estudo que se expressa por meio de quatro
questões.
No Capítulo I, apresento o referencial teórico que sustenta a compreensão e a
análise do objeto de estudo.
No Capítulo II, faço os apontamentos metodológicos do estudo e apresento os
procedimentos de coleta e análise dos dados empíricos.
No Capítulo III, analiso os referenciais político pedagógicos que nortearam a
reestruturação de uma instituição especial e a percepção dos profissionais acerca das
12
mudanças institucionais, assim como os sentidos e os mecanismos presentes nesta
reestruturação.
Na última parte, teço algumas considerações que este estudo me suscitou.
13
Capítulo I
Referenciais Teóricos para Uma Análise do Discurso Sobre
Escola Especial para Pessoas com Deficiência Mental
A exigência de mudança das instituições especiais conforme as diretrizes da
educação comum, propostas na LDBEN 96 e diretrizes específicas dos níveis
escolares, indica a necessidade de um movimento institucional de adequação às
normas legais cuja natureza é preciso investigar. Nessa investigação consideramos o
impacto de uma política que aponta para mudanças em dois sentidos que são
divergentes perante a história da educação desta população: o primeiro, de ruptura
da segregação da pessoa com deficiência mental ao indicar a escola comum como
espaço educacional onde preferencialmente todos devem ser educados; o segundo, a
exigência de pedagogização da instituição especial para reconhecê-la como instância
de educação escolar.
É possível perceber a complexidade do processo de transformação das
instituições especiais no resgate de sua constituição histórica. Começamos este
resgate por meio de uma breve análise histórica da Educação Especial no Brasil,
breve por já ter sido alvo de valiosas investigações 5 das quais me aproprio para
apresentar
alguns
fragmentos
históricos
necessários
para
situar
sua
atual
configuração. Especificamente este resgate se refere ao fato da educação das
pessoas com deficiência mental, estar ancorada na necessidade de uma educação
especial implementada em um locus específico – instituição especial – que se
constituiu com uma função também específica: oferecer educação especializada para
pessoas com deficiência mental.
Para isso, inicio resgatando que:
A educação especial, desde o seu surgimento no final do século XVIII,
atende a dois interesses contraditórios: o de oferecer escolaridade a
5
Tais como as desenvolvidas, entre outros, por Jannuzzi (1992, 2004), por Bueno (1993), por Ferreira (1995), Mazzotta (1996)
e por Kassar (1999).
14
crianças anormais, ao mesmo tempo em que serve de instrumento básico
para a segregação do indivíduo deficiente. (BUENO, 1997b, p.38)
Podemos observar que no Brasil a educação especial, principalmente a
direcionada à pessoa com deficiência mental, apresenta ao longo de seu processo de
constituição estes dois traços desde o início da preocupação com o atendimento
desta população que, de forma incipiente, tem seu início nos primeiros anos do
século XX. Neste período, surgem os primeiros registros sobre a educação da pessoa
com deficiência mental no Brasil destacando sua vinculação com a medicina. Os
registros também vão rompendo com o silêncio acerca dessa população e mostrando
que as pessoas com maior grau de comprometimento encontravam-se confinadas
nos hospitais psiquiátricos juntamente com todos os tipos de desvalidos que estas
instituições abrigavam na época. Essa situação começa a ser modificada através da
iniciativa de alguns médicos que criam alas anexas aos hospitais com o objetivo de
atender exclusivamente as crianças. 6
Jannuzzi (1992) analisa o quanto a implantação dos pavilhões para as
crianças nos hospitais psiquiátricos é ambivalente, pois ao mesmo tempo que se
reitera a segregação do deficiente, há a percepção da importância da educação e de
não limitar o atendimento ao campo médico.
Nesta perspectiva, a educação especial era sustentada por teorias sensualistas
e se efetiva na perspectiva da medicina moral. Conforme nos mostra Ferreira (1995,
p. 19), os trabalhos eram desenvolvidos
6
Em 1905, temos no Rio de Janeiro a criação do Pavilhão Bourneville, anexo ao Hospício da Praia Vermelha. Esta prática se
repete em Petrópolis, 1920 e em São Paulo, no Hospício de Juqueri, em 1921.
15
na linha de treino psicomotor, com imposição de hábitos regulares e
freqüentes, como oposição à anomalia fisiológica. Experiências concretas,
atividades sensoriais, rotina, consistências, menos punição.
Temos aqui o início do trabalho pedagógico destinado às pessoas com
deficiência mental fortemente direcionado por uma concepção médico-pedagógica de
educação, centrada nas causas e manifestações orgânicas da deficiência que
pretendia, dentro dos preceitos da ortopedia mental, ajustar e corrigir os danos
causados por ela (JANNUZZI, 2004).
Além do trabalho desenvolvido nos hospitais nas duas primeiras décadas do
século XX, temos a criação de classes especiais para atender crianças que
apresentavam problemas na escola regular. Segundo Jannuzzi (1992, p. 32), em São
Paulo, o Serviço de Higiene e Saúde Pública deu origem “à inspeção médico-escolar
que em 1911 foi a responsável pela criação de classes especiais e formação de
pessoal para trabalhar com essa clientela” .
Kassar (1999, p.23) nos mostra que,
as classes especiais públicas vão surgir pautadas na necessidade
científica da separação dos alunos normais e anormais, na pretensão da
organização de salas de aula homogêneas, sob a supervisão de
organismos de inspeção sanitária que incorporam o discurso da ortopedia,
a partir dos preceitos da racionalidade e da modernidade.
Outro aspecto a ser destacado é que com o surgimento das classes especiais
inaugura-se um novo espaço educacional que cumprirá com o papel de educar e de
segregar as crianças que apresentassem características que fossem identificadas
como uma deficiência.
Nesta época, temos o advento do movimento escolanovista e, com ele, a
psicologia e a sociologia, em suas vertentes funcionalistas, se consolidam como as
ciências que instrumentalizam a educação. Concomitantemente, temos a educação
brasileira buscando legitimar-se como nova, moderna, científica e experimental.
16
Carvalho (1997) nos mostra que nessa busca a escola moderna se consolida
como uma “instituição intrinsecamente disciplinar”, tanto no sentido preventivo
quanto no sentido de correção. A autora apresenta a criação do Laboratório de
Pedagogia Experimental, no Gabinete de Psicologia e Antropologia Pedagógica, anexo
à Escola Normal Secundária de São Paulo, em 1914, como a expressão mais
ambiciosa dessa busca pela implantação de práticas consideradas científicas no
campo da Pedagogia.
Considero que a criação do Laboratório também seja um exemplo significativo
da forma como os desvios e os desviantes eram concebidos na época e do quanto a
busca da pedagogia científica deixa marcas profundas na educação do deficiente em
nosso país, na medida em que por meio de várias práticas “de indagação e de
medição” buscava “construir um conhecimento científico do indivíduo” (CARVALHO,
1997 p. 272).
A autora, analisando o discurso de Oscar Thompson no texto O Futuro da
Pedagogia é Científico, explicita que
a idéia de que as diferenças entre os educandos requerem “meios
absolutamente vários de educação”, devendo ser “objeto de um estudo e
tratamento particular” é que, desse ponto de vista, comanda a
constituição de uma pedagogia científica. Assentada em uma pluralidade
de práticas de medição, tal pedagogia se contrapunha à “velha pedagogia,
[...] abstrata, dogmática, absoluta”. (CARVALHO, 1997, p. 272)
A
elaboração
de
um
conhecimento
específico
do
indivíduo
visava
a
possibilidade de discriminar as crianças normais das anormais ou degeneradas para
que cada uma fosse encaminhada e cuidada de acordo com suas necessidades.
Desse modo, a pedagogia científica constitui-se como recurso de seleção e
composição do grupo de crianças que pode freqüentar a escola. Esta prática era
entendida como necessária e humanitária. Carvalho (1997, p. 277, grifos da autora)
analisa que a
prática humanitária de distribuição científica das crianças por escolas,
casas de correção, hospícios ou prisões, [...] a organização de classes
17
homogêneas, um dos objetivos da prática de medição, era recurso de
maximização dos resultados do ensino simultâneo e seriado. [...] Mas,
contraditoriamente, o intuito “humanitário” de seleção da clientela
escolar indicia o horizonte ideológico em que se inscreviam as intenções
políticas republicanas de levar a educação a todos os cidadãos.
Nesse contexto, temos o eixo da educação se deslocando da medicina para a
psicologia e o trabalho pedagógico destinado às pessoas com deficiência mental
passando a ser sustentado por uma concepção psicopedagógica da educação e a ser
fortemente influenciado pelas teorias de aprendizagem psicológicas. A ênfase do
trabalho pedagógico recai sobre os métodos e técnicas de ensino.
É nessa atmosfera que temos a criação da primeira instituição especializada
no atendimento da pessoa com deficiência mental no Brasil, o Instituto Pestalozzi de
Canoas, no Rio Grande do Sul, em 1926.
As instituições especiais surgem submersas em contexto educacional e social
marcado pela hegemonia da ideologia liberal, pelos preceitos das ciências naturais e
pelo ideal de racionalidade humana. Da mesma forma que a educação regular, a
educação especial implementada nas instituições também é uma expressão, ao
mesmo tempo em que é conseqüência, da incorporação de tais concepções por uma
pedagogia que se pretendia científica e que, instrumentalizada pela psicologia,
objetivava
observar, medir, classificar, prevenir, corrigir. Em todas essas operações,
a remissão à norma é uma constante. A pedagogia científica, as práticas
que a constituíam e as que derivavam dela, caracterizavam-se, assim,
por essa remissão constante a cânones de normalidade produzidos, pelo
avesso, na leitura de sinais de anormalidade ou degenerescência que a
ciência
contemporânea
colecionava
em
seu
afã
de
justificar
as
desigualdades sociais e de explicar o progresso e o atraso dos povos pela
existência
de
determinações
inscritas
na
natureza
do
homem.
(CARVALHO, 1997, p. 278)
É também sustentada por essas idéias que Helena Antipoff, “na década de 30,
marca a educação especial, provendo ao Instituto Pestallozzi de Minas Gerais, tanto
18
uma base científica, quanto uma idéia ligada ao exercício do assistencialismo”
(KASSAR, 1999, p. 24).
A base científica é constituída de acordo com os preceitos da Escola Nova, que
reitera a crença de que seja possível “reconstruir a sociedade por meio da educação
de cada pessoa; e, ainda, na esperança liberal de que o talento pessoal – respeitado
e promovido na escola – tenha o poder de determinar a posição social futura dos
educandos” (CUNHA, 1995, p. 42).
O enaltecimento do individualismo no movimento escolanovista é terreno fértil
para a consolidação da crença no sucesso ou fracasso individual como naturalmente
dado e como uma conseqüência direta das diferenças individuais. Isso faz com que o
papel da psicologia como uma ciência instrumental da educação se consolide,
especificamente no que se refere à sua condição de, através de medidas
psicométricas, classificar e agrupar os alunos de acordo com suas aptidões e
potencialidades. Acredita-se que o agrupamento dos alunos em classes homogêneas
de acordo com o resultado dos testes favorece o aprendizado. Por outro lado, o que
temos
é
a
possibilidade
de
separação
e
conseqüente
segregação
daqueles
identificados como anormais se consolidando.
É com base nestes preceitos que Helena Antipoff organiza o trabalho
desenvolvido no Instituto Pestalozzi. Jannuzzi (2004) analisa que, para Antipoff, o
trabalho pedagógico da educação especial deveria ser sustentado pela medicina e
pela psicologia, inclusive no que tange à atuação do professor. A educação especial
é pois uma tentativa de abrangência do total pedagógico, em que a
instrução permaneceria como horizonte que, para ser atingido, exigiria
toda essa complexificação da formação do professor e do aparelhamento
escolar (JANNUZZI, 2004, p. 125)
A criação da primeira instituição especial e das posteriormente fundadas pode
ser
entendida
como
conseqüência
do
movimento
de
grupos
específicos,
particularmente grupos de pais, com o objetivo de preencher uma lacuna existente
19
no sistema educacional brasileiro, referente ao atendimento de pessoas com
deficiência (D’ANTINO, 1996). Por outro lado, não podemos desconsiderar que a
criação das instituições especiais privadas foi favorecida pelas reformas educacionais
que se processaram no país a partir da segunda metade da década de 1920,
prevendo e favorecendo a implementação do ensino privado em todas as suas
modalidades.
De acordo com Jannuzzi (1997, p. 184), o estabelecimento do setor privado
no campo educacional foi amplamente favorecido após as reformas, especialmente
com a Reforma Francisco Campos “que facilitou a equiparação dos estabelecimentos
escolares privados com os públicos pela prescrição do currículo mínimo em âmbito
nacional”. Isso também favoreceu a transferência da responsabilidade da educação
das pessoas com deficiência mental para o setor privado, especialmente para aquele
de caráter filantrópico.
Na Constituição Brasileira de 1946, o favorecimento do ensino privado mais
uma vez é evidente com a proibição de cobrança de impostos a instituições de
educação ou de assistência social.
Da mesma forma, temos no modo de implementar políticas sociais outra via
de transferência da responsabilidade do atendimento às pessoas com deficiência do
Estado para a iniciativa privada. De acordo com Sposati (1995, p. 13)
... no Brasil a assistência social, como área de ação governamental, longe
de ser ação complementar, constitui forma específica e estratégica de
atribuir alguns serviços sociais a determinados segmentos da população.
Destaca-se aqui a criação, por parte do Estado, da Fundação Legião Brasileira
de Assistência – LBA – em 1942 7 , com o objetivo de “congregar brasileiros de boa
vontade para promover, por todas as formas, serviços de assistência social,
prestados diretamente ou em colaboração com o poder público e as entidades
7
Inicialmente seu objetivo foi “assistir às famílias dos convocados na II Guerra Mundial, passou a partir de 1945, a dar
prioridade à assistência materna e à infância” no que se refere às áreas de saúde e de educação. (Rizzini, 1995 p. 291)
20
privadas” (SPOSATI, 1995, p. 87). A indicação era de que os serviços deveriam
abranger, entre outros, a assistência aos excepcionais.
Assim, na ampliação do setor privado e no afastamento do Estado de questões
relacionadas à educação e à assistência social, temos a consolidação de um campo
fértil para criação das instituições especiais privadas de cunho filantrópico como a
instância social responsável pelo atendimento à pessoa com deficiência mental em
nossa sociedade. O que ficará evidente a partir da década de 1950, com a
necessidade de ampliação do serviço educacional especializado, que passa a atender,
inclusive, as deficiências mais leves e menos evidentes, devido ao aparecimento da
excepcionalidade nas escolas regulares (JANNUZZI, 1992).
É submersa neste contexto que, em 1954, é fundada a Associação de Pais e
Amigos dos Excepcionais (APAE), na cidade do Rio de Janeiro, nos moldes da
“National Association for Retarded Children” (NARC), organização criada em 1950
nos Estados Unidos.
Silva (1995), nos mostra que, desse modo, o surgimento da APAE está
marcado por um modelo de associação que busca se desenvolver como uma rede
nacional, “como um movimento em prol da criança excepcional”, que não objetivava,
inicialmente, o atendimento direto dessa população, conforme os objetivos do
primeiro estatuto da APAE-Rio, de 1954.
A partir da análise dos objetivos estabelecidos na fundação da APAE-Rio,
é possível compreender como essa instituição surge inicialmente para
assessorar o atendimento aos excepcionais e, em seguida, se constitui
como entidade prestadora de serviços diretos aos portadores de
deficiências. Seus fundadores mantém uma interlocução com entidades
públicas e privadas, nacionais e internacionais. Essa visão ampliada lhe
confere o status de organizadora das experiências realizadas na área do
atendimento ao excepcional (SILVA, 1995, pp. 43-44).
O surgimento da APAE está intimamente relacionado à ausência de um serviço
especializado ampliado na rede regular de ensino, que se destinasse às pessoas com
deficiência mental. Nesse sentido, Silva (1995, p. 41) nos mostra que a APAE se
21
coloca no cenário educacional nacional, de expansão da iniciativa privada e de crítica
ao monopólio do Estado, como uma “instituição privada que busca atender às
necessidades da educação especial pública”. O atendimento direto é implantado
gradativamente fazendo com que a instituição vá se constituindo e se consolidando
como uma rede nacional destinada a atender esta população.
Nos anos seguintes temos a ampliação do movimento apaeano com a
fundação das APAEs de Volta Redonda, em 1956, São Lourenço,
Goiânia, Niterói,
Jundiaí, João Pessoa e Caxias do Sul, em 1957, Natal, em 1959, Muriaré, em 1960 e
São Paulo, em 1961 (SILVA, 1995).
Neste mesmo período, podemos perceber uma alteração no foco da educação
especial devido à ênfase na valorização da educação como necessária para o
progresso da sociedade, por possibilitar que o indivíduo se adapte ao seu meio. A
alteração se dá no sentido de que,
a partir do pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos
princípios de racionalidade, eficiência e produtividade, essa pedagogia
advoga a reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo
objetivo e operacional. (SAVIANI, 1997, p. 15)
Nesse contexto temos a manutenção da psicologia, em sua vertente
comportamental, como uma das bases de sustentação teórica da educação especial.
O Behaviorismo surge no início do século XX através dos trabalhos
desenvolvidos por Watson (1878 - 1958) e se consolida através dos postulados
elaborados por Skinner. Esta escola da Psicologia busca
as relações entre o meio material e o meio social, o que, dada sua
herança biológica, enfatiza o naturalismo do meio social e a necessidade
de adaptação do indivíduo a ele, para que a sociedade possa se elevar
harmoniosamente, tendo no seu seio indivíduos que, bem ajustados,
contribuem para o estado de progresso permanente.
[...] A premissa básica do behaviorismo - previsão, controle, seleção e
orientação de comportamentos com vista ao ajustamento daqueles
comportamentos não desejáveis. Seu método é objetivo e seu objetivo é
o comportamento. (CAMBAÚVA, 1988, p. 64)
22
Nesta perspectiva o comportamento é considerado como toda e qualquer
forma de responder a estímulos do ambiente e é na análise desta relação entre o
homem e seu meio, na seleção e controle de variáveis que interferem nas respostas
dadas, que o comportamento pode ser previsto, controlado, modificado ou extinto. É
na aquisição de comportamentos mais complexos e adequados que o indivíduo se
desenvolve. É na análise do repertório comportamental do indivíduo, buscando
apreender o seu nível de desenvolvimento, que se estabelece o quanto ele se desvia
ou não do padrão definido.
Podemos encontrar as bases epistemológicas da psicologia behaviorista no
positivismo e no funcionalismo na medida em que o conceito de ciência implícito
nesta abordagem "é o da busca das causas, das relações de efeito de variáveis sobre
um fenômeno, de forma a dizer que conhecemos o fenômeno se identificarmos suas
causas se o definirmos operacionalmente em sentido único" (FERREIRA, 1994, pp.
24-25).
A influência dessa abordagem psicológica na educação especial é profunda e
marca as formas de lidar com a deficiência mental, reiterando a idéia de que a
segregação em instâncias educacionais especiais é necessária e benéfica ao
desenvolvimento da pessoa que apresenta tal condição.
Ferreira (1994, p. 25) nos mostra que nesta perspectiva
o desenvolvimento do aluno com deficiência mental é reduzido a um
conjunto de dados mensuráveis, delimitado, isolado, dividido em partes
que passam a compor o sistema de variáveis na relação funcional com a
deficiência.
[...]
A
tomada
de
decisão
educacional
baseia-se
na
operacionalidade e mensurabilidade do objetivo de ensino e deve se
orientar
pela
adequação
do
comportamento
ao
meio,
pelo
desenvolvimento de habilidades linearmente organizadas, segundo uma
cronologia
ou
sistemas
previamente
definidos
nas
suas
relações
temporais ou funcionais.
O desenvolvimento, então, reduz-se ao conjunto originado pela soma das
aquisições ou habilidades aprendidas e é visto como um fenômeno cujo
processo é de natureza externa à pessoa, dentro de uma perspectiva
totalmente ambientalista.
23
Nesse sentido, a educação especial concentra seus esforços educacionais na
recuperação das etapas que faltariam ao aluno. Podemos perceber a sustentação da
educação da pessoa com deficiência mental como emendativa e compensatória, pois
que “significa corrigir falta, tirar defeito” decorrentes da deficiência (JANNUZZI, 2004,
p.70). Acredita-se que ao instalar comportamentos menos aberrantes e mais
adaptados à normalidade está se reduzindo sua condição de deficiente e dando-lhe
condições de convívio em sociedade de forma mais adequada.
A institucionalização da educação especial que ocorre no país a partir da
década de 1950 consolida não só o distanciamento do Estado no que se refere à
educação das pessoas consideradas com deficiência mas também, e principalmente,
a privatização do ensino, da assistência social e da saúde dessa população, na
medida em que agrega à sua especialidade um atendimento global. Mais que isso, ao
assumir o status de “especializada em” e, principalmente, de instituição privada de
caráter público, passa a ser reconhecida e responsabilizada como tal.
Assim, em 1961, quando é promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação – LDB (Lei 4.024/61), que explicita o compromisso com a educação
especial, esta já está relativamente implementada nas instituições privadas de
caráter filantrópico.
Em seu artigo 88, a LDB de 1961 apresenta a necessidade de integrar as
crianças excepcionais à comunidade e aponta a escola regular como uma das
principais vias de integração. Por outro lado, seu artigo 89 explicita o compromisso
de dispensar “tratamento especial mediante bolsas de estudos, empréstimos e
subvenções” às instituições privadas de atendimento aos excepcionais, desde que
consideradas eficientes pelos Conselhos Estaduais de Educação.
Mazzotta (2001, pp. 68-69) analisa que
nesse compromisso ou “comprometimento” dos Poderes Públicos com a
iniciativa privada não fica esclarecida a condição de ocorrência da
educação dos excepcionais; se por serviços especializados ou comuns, se
no “sistema geral de educação” ou fora dele. Esta circunstância acarretou,
24
na realidade, uma série de implicações políticas, técnicas e legais, na
medida em que quaisquer serviços de atendimento educacional aos
excepcionais, mesmo aqueles não incluídos como escolares, uma vez
considerados
eficientes
pelos
Conselhos
Estaduais
de
Educação,
tornavam-se elegíveis ao tratamento especial, isto é, bolsas de estudos,
empréstimos e subvenções.
Podemos dizer que a LDB de 1961 consolida a educação especial como um
sistema paralelo de ensino, que se estrutura fora da escola pública e que não seria
assumida diretamente pelo Estado, ficando circunscrita ao espaço privado das
instituições especiais. Além disso, evidencia-se o fato do caráter educacional da
educação das pessoas com deficiência não ser destacado.
Esta ambigüidade entre o público e o privado, assim como o distanciamento
da educação especial do sistema regular de ensino, sustenta o alargamento da
prestação de serviços que deveriam ser públicos pelas instituições especializadas e
da influência que estas passam a exercer sobre o Estado. Isso é apontado por Silva
(1995) na análise histórica da constituição do movimento apaeano no Brasil.
Na primeira reunião nacional das APAEs ocorrida em novembro de 1962, um
dos temas discutidos foi “Legislação”. Silva (1995) nos mostra que entre os aspectos
apontados como prioritários está a necessidade: de incluir as pessoas com
deficiência mental entre os cidadãos com direito à assistência social; de defender
junto aos órgãos e autoridades competentes, principalmente os Conselhos Federal e
Estaduais de Educação, a ampliação dos recursos destinados a essa população, por
meio de medidas que assegurem, nos Planos de Educação, o financiamento da
educação especial implementada nas instituições.
A partir de então, podemos perceber que os limites não muito delimitados
entre o público e o privado no atendimento às pessoas com deficiência mental vai
moldando não só as legislações educacionais mas também a estruturação das
instituições especiais. Temos o apoio direto do Estado às instituições privadas de
ensino especial, financiando, inclusive, a ampliação das estruturas física e material
25
de várias APAEs. Em contrapartida, as instituições se consolidam como responsáveis
pelo atendimento global a esta população.
Desse modo, instituições especiais dessa natureza foram se constituindo como
a referência social, como o locus da deficiência mental em nosso país, preenchendo a
lacuna deixada por um Estado que reduz os investimentos com a educação geral
pública, que intensifica o incentivo à iniciativa privada e que e se distancia das
questões relativas à educação especial. Jannuzzi (1997, p. 185) acrescenta que “há
assim uma parcial simbiose entre o público e o privado, que permite ao segundo
exercer influência na determinação da política pública na área”. O que pode ser
amplamente observado no caso das instituições especiais, desde o primeiro estatuto
da APAE-Rio, de 1954, que explicita como um de seus objetivos “promover junto aos
órgãos oficiais a obtenção de medidas legislativas e administrativas visando o
interesse dos excepcionais” (SILVA, 1995, p. 43).
A perspectiva tecnicista analisada anteriormente se intensifica tanto na
educação geral quanto na especial a partir de meados da década de 1960. Segundo
Jannuzzi (2004), neste período ocorre a implantação da corrente da Economia da
Educação ou Teoria do Capital Humano.
Seria esta teoria a expressão mais explícita de vincular a educação ao
desenvolvimento econômico do país, tal como ele se manifestava. Seria a
procura de, pela educação, formar o aluno para os postos de trabalho
existentes.
Uma
subordinação
da
educação
ao
projeto
de
desenvolvimento implantado. A escola como necessária à produção,
produtora
de
“recursos
humanos”
entendidos
como
mão-de-obra
(JANNUZZI, 2004, p. 13).
A autora ainda nos mostra que o Plano Setorial de Educação e Cultura de
1971 explicitava:
“Enquanto não se puder abrir largamente as portas da educação a cada
um, o interesse nacional recomenda que se favoreça a ascensão cultural
dos mais talentosos, os mais capazes de mobilizar a ciência e a técnica
em favor do progresso social. O único bem que nação alguma está em
condições de desperdiçar é o talento de seus filhos”. E continuava: “Mas
o mesmo interesse social exige que se eduquem os deficientes, no
26
sentido de torná-los, quanto possível, participantes de atividades
produtivas”. E num rasgo de generosidade acrescentava: “E, nesse caso,
o interesse fala mais baixo que os reclamos da eqüidade e da justiça”.
(JANNUZZI, 2004, pp. 13-14)
No caso da educação especial, o que observamos é que a ênfase no treino de
habilidades específicas é ampliada. A educação especial passa a ter como objetivo
tornar, de alguma forma, o indivíduo útil à sociedade.
Ainda durante a década de 1970, temos a ampliação do sistema nacional de
ensino e sua intensa tecnicização. Temos também os índices de fracasso escolar
aumentando na mesma proporção que aumentava o acesso das crianças advindas
das classes populares à escola. Nesse contexto a educação especial converte-se em
prioridade para o Ministério da Educação e a ela é atribuída, conforme nos mostra
Kassar (1999, p. 31),
a responsabilidade de atendimento de crianças sem a necessidade de
diagnóstico de deficiência ou, em outras palavras, torna-se legítima a
transformação de crianças “atrasadas” em relação à idade escolar de
matrícula em “deficientes mentais educáveis”. O sucesso ou fracasso
dessa clientela é respaldado pelo discurso das “potencialidades inatas” e
pela implementação e utilização de técnicas especializadas.
Entre as décadas de 1960 e 1970 o “espaço vazio” da educação especial
pública
foi
efetivamente
ocupado
pelas
instituições
especiais
privadas,
principalmente pelas APAEs. A rede nacional se consolida não só no número de
instituições fundadas 8 , mas também na criação da Federação Nacional das APAEs em
1962.
Silva (1995, p.90) nos mostra que o rápido desenvolvimento das APAEs
se dará pela capacidade de responder às necessidades de atendimento às
pessoas portadoras de deficiência mental ao lado da carência do serviço
público. Além de tornar-se empreendedora de iniciativas nas áreas da
medicina, da psicologia e pedagogia junto às demais instituições, a APAE
obteve êxito na relação estabelecida com o poder público, seja por
intermédio de acordos econômicos ou políticos.
8
Segundo Silva (1995, p. 96), “na década de 50 a APAE constituiu-se com 07 associações, na década de 60 contava com 118,
na década seguinte com 428 e chegando à década de 80 com 775 associações”.
27
Cabe citar como exemplo do êxito obtido na relação com o poder público a
influência exercida em duas esferas: na criação do Centro Nacional de Educação
Especial – CENESP – em 1973 e na garantia de financiamento das instituições
especiais filantrópicas por parte do poder público nas políticas educacionais e sociais.
A influência na criação do CENESP pode ser analisada como um movimento de
pressão decorrente das recomendações feitas por organizações internacionais
direcionadas à
criação de um órgão para definir a política em relação aos deficientes
mentais. Frisava-se que a ONU, através de seus organismos especiais [...],
tinha possibilidade de auxiliar o desenvolvimento de assistência aos
excepcionais através do auxílio técnico aos governos nacionais (JANNUZZI,
2004, p. 139).
No que se refere ao financiamento público das instituições especiais, podemos
observar que a influência destas está presente inclusive na legislação educacional
que, a partir de 1961 com a Lei 4024/61, explicita o apoio financeiro às instituições
especiais privadas de caráter filantrópico em todas as Constituições, Planos Nacionais
de Educação, Diretrizes Educacionais etc.
O fato é que as instituições especiais absorvem uma expressiva parte da
verba pública destinada à educação especial no Brasil. Silva (2003, p. 91) nos
mostra que o Plano Nacional de Educação Especial para 1977/1979, estipulou
destinar no triênio “para a Cooperação Técnica e Financeira aos Sistemas Estaduais
de Ensino, o valor de Cr$ 21.520,00, em contrapartida aos Cr$ 87.148,00 para a
Cooperação Técnica e Financeira às Instituições Privadas, uma diferença de
aproximadamente 404%”.
A década de 1970 pode ser considerada um marco para a educação especial
brasileira, tanto em função da ampliação do Estado na área quanto pelo crescimento
das instituições especiais, com apoio público decisivo. De acordo com dados
apresentados por Silva (1995), na década de 1970 o crescimento das instituições
28
especiais filiadas à Federação Nacional das APAEs foi de aproximadamente de 363%
em relação à década anterior, principalmente nas regiões mais desenvolvidas do país.
Bueno (1993) analisa que esta ampliação
refletiu, em primeiro lugar, a importância cada vez maior que essas
entidades foram assumindo dentro da educação especial. Essa influência
crescente ocorreu pela sua organização em nível nacional, como são os
casos das Federações Nacionais das Sociedades Pestallozzi e das APAEs,
que passaram a exercer influência crescente nas políticas da educação
especial, bem como pela qualificação técnica das equipes de algumas
entidades assistenciais de ponta (como as Sociedades Pestallozzi de Minas
Gerais e de São Paulo e as APAEs do Rio de Janeiro e de São Paulo) e das
empresas prestadoras de serviços de alto nível (ao contrário das escolas
públicas que enfrentam o grave problema de falta de condições de
trabalho) e que passaram a estabelecer os padrões de qualidade com
relação à educação do excepcional.
O padrão de qualidade é grandemente dependente da amplitude dos
atendimentos às necessidades dos seus educandos. A ampliação das esferas de
atendimento faz com que as instituições especiais de caráter privado-filantrópico se
constituem como o espaço social responsável pela pessoa com deficiência mental. O
atendimento global incorporado abrange todas as áreas, especialmente aquelas
relacionadas à prevenção, reabilitação e bem estar social da pessoa com deficiência
mental e a subvenção o Estado se dá também nestas esferas. Um exemplo a ser
citado é a Portaria Interministerial n. 186 de 1978, na qual, segundo Mazzotta (2001)
os serviços especializados eram distribuídos da seguinte forma: educacionais,
prestados por órgãos ou entidades ligados ao CENESP/MEC; de reabilitação, prestado
pela LBA/MPAS 9 ; de saúde da Previdência Social e dos serviços de reabilitação
profissional do INPS/MPAS.
Mazzotta (2001, p. 72), ao analisar a citada Portaria, nos mostra que
o atendimento educacional, como competência “do MEC através do
CENESP, em ação integrada com outros órgãos do setor de educação, é
caracterizado como seguindo uma linha preventiva e corretiva”. Para o
encaminhamento aos serviços especializados de natureza educacional, é
9
Segundo Sposati (1995), neste mesmo ano a LBA funda o “Programa de Assistência aos excepcionais” com o objetivo de
“reabilitar portadores de doenças físicas, mentais, sensoriais, congênitas, ou adquiridas e prevenção de deficiências do
excepcional” e para o qual foram destinadas verbas para atendimento de aproximadamente 400.000 pessoas (p.98).
29
estabelecida a exigência de diagnóstico da excepcionalidade, a “ser feito,
sempre que possível, em serviços especializados da LBA/MPAS”. Onde não
houver tais serviços, recomenda-se que sejam aproveitados “os serviços
de
natureza
médico-psicossocial
e
educacional
oferecidos
pela
comunidade”.
Podemos considerar que os “serviços oferecidos pela comunidade” são
implementados prioritariamente nas instituições especiais que ofereciam, já nesta
época, um atendimento global. Mas, se considerarmos o caráter preventivo/corretivo
do atendimento educacional fica patenteado um posicionamento que atribui um
sentido clínico e/ou terapêutico à educação especial (MAZZOTTA, 2001).
No final da década de 1970, início dos anos 80, podemos perceber que a área
de educação especial, mesmo sem romper com o entendimento de educação
atrelada ao desenvolvimento econômico do país, passa a explicitar uma preocupação
de cunho pedagógico, incorporando em seu discurso os princípios de normalização e
de integração. O entendimento era o de que a educação especial deveria
proporcionar ao indivíduo com deficiência condições de vida tão semelhantes quanto
a de pessoas não deficientes, seja na escola, no trabalho ou no contexto social geral.
Para isso, defendia-se a normalização das condições de vida e não do deficiente, a
quem deveria ser ensinado beneficiar-se daquilo que a sociedade pode lhe oferecer
(PEREIRA et al., 1980).
Tais princípios se consolidam como o pano de fundo das investigações da área
de Educação Especial (NUNES et al., 1998) e passam a direcionar programas
políticos e educacionais referentes a esta população.
No âmbito das práticas educacionais especiais, a escola regular passou a
representar o local onde a integração poderia ser concretizada. Ampliam-se as
classes especiais públicas como forma de colocação do deficiente na escola regular,
mas com metodologias de ensino diferenciadas para atender suas necessidades.
Por outro lado, é preciso salientar que o esforço da normalização se centrou
de modo preponderante no sentido de neutralizar a deficiência (AMARAL, 1994). Ao
30
invés de construir condições de vida “tão semelhantes quanto” o que se observou foi
o esforço em tornar o indivíduo com deficiência “tão normal quanto”.
As investigações mostram que, mesmo com os princípios de normalização e
integração norteando a área da Educação Especial, as práticas integracionistas
contribuíram para a manutenção da condição em que a pessoa com deficiência
mental se encontrava anteriormente. Por exemplo, Ferreira (1995, 1998) aponta que
as classes especiais se constituíram como um local de segregação e, ao invés de
favorecer a integração dos deficientes vindos de seus lares ou de instituições
especiais, favoreceram a exclusão, de modo preponderante, de alunos do ensino
regular, especialmente aqueles que combinavam condições de pobreza e de fracasso
escolar; demonstrando inclusive que a simples colocação neste ambiente adaptado
não garantiu a integração desta população.
Isso porque, a partir desses princípios, os espaços considerados restritivos tais
como as instituições especiais e as classes especiais, são analisados como um
momento necessário de segregação para uma posterior integração mais eficiente,
como se fosse possível
abstrair a pessoa portadora de deficiência de seu contexto social,
“consertá-la” ou torná-la menos diferente, e depois devolvê-la a este
contexto de forma que não haveria ou haveria menos motivo para
estigmatizá-la e excluí-la. (FERREIRA, 1995, p. 7)
Na busca desse "conserto" ou dessa normalização, o ensino especial tem se
orientado por abordagens educacionais que, reduzidas a uma dimensão técnica de
ensino,
priorizam
o
treino
do
indivíduo
objetivando
o
desenvolvimento
de
competências e habilidades específicas a fim possibilitar sua integração nos espaços
sociais dos quais foi excluído em função de sua diferença (FERREIRA, 1994).
Outro aspecto a ser salientado é que esta maneira de conceber o processo
educativo de pessoas com deficiência mental (segregar → preparar → integrar) não
atende suas reais necessidades além de colocá-las em permanente “preparo para”,
31
já que só estará preparado na medida em que estiver menos deficiente, o que não se
dá. Outrossim, o fracasso em integrar o deficiente em qualquer instância social é
atribuído à própria deficiência e não ao processo educacional.
O que percebemos é a manutenção das noções de adaptação e de
ajustamento, da visão reducionista e psicologizante da deficiência como eixos
centrais da educação especial (CAMBAÚVA, 1988). O que explicita a não ruptura com
as concepções sobre a educação das pessoas com deficiência mental analisadas
anteriormente.
Outro aspecto a ser destacado na consolidação das instituições especiais e na
omissão do Estado é que, especialmente no que se refere ao atendimento da pessoa
com deficiência mental, o assistencialismo é entendido como forma de tratar os
direitos sociais, reiterando a indistinção entre o público e o privado. Silva (2003, p.
86) nos mostra que
em alguns setores das políticas sociais esta indistinção se confunde com a
própria forma de conceber, praticar e analisar este campo de atuação. [...]
Uma forma de desdobramento da relação público-privado, [...] trata da
legitimação de determinadas formas de serviços a serem destinadas a
determinadas clientelas. A identidade criada entre a instituição e o homem,
nestas relações acaba por traçar uma compreensão a respeito desse
próprio homem.
Mas, se por um lado o apoio do Estado é decisivo para consolidação das
instituições
especiais
de
cunho
privado-filantrópico
como
responsáveis
pelo
atendimento ao indivíduo com deficiência mental, por outro, ele por si só, não é
suficiente tanto para justificar a amplitude do espaço social por elas ocupado, quanto
para suprir suas necessidades econômicas. Assim, conforme nos mostra D’Antino
(1996, p.04), muito embora o Estado canalize recursos públicos para iniciativa
privada, mesmo que de caráter filantrópico,
estes não se constituem em solução econômica para as instituições, uma
vez que o custo da prestação de seus serviços é sempre muito superior à
verba recebida, bem como os recursos públicos destinados à iniciativa
privada são pulverizados pelo grande número de instituições, cabendo,
32
então, à sociedade civil a responsabilidade da complementação do
orçamento institucional.
Complementação esta advinda de recursos arrecadados junto à sociedade civil,
representada pelos sócios beneméritos, pelos diversos contribuintes das campanhas
promocionais e pelas empresas privadas e que se sustenta nos pilares da filantropia,
do assistencialismo e da caridade.
Esta forma de angariar fundos para a manutenção institucional traz
conseqüências para o trabalho desenvolvido na instituição especial como um todo,
visto que o apelo à caridade, à piedade e ao amor cristão se sustenta em uma
concepção de deficiência mental que coloca o indivíduo com tal condição como
aquele que depende do outro para as questões mais básicas da vida, como aquele
incapaz de aprender, de expressar seus desejos, suas necessidades... E a instituição
depende desse apelo e dessa imagem do deficiente mental para se manter e para se
perpetuar como seu espaço social.
Isso faz com que a instituição especial veicule, de diferentes formas, a
imagem do indivíduo com deficiência mental como aquele que necessariamente deve
ser alvo da piedade humana. O apelo à caridade para angariar fundos na sociedade
civil reforça fortemente esta concepção de deficiência, criando uma relação de
dependência entre a instituição e essa imagem.
Assim, conforme nos mostra D’Antino (1996, p. 47),
se, por um lado, os fatores que originam as “instituições de pais” estão
atrelados a uma concepção social de indivíduo portador de deficiência
mental como um ser incapaz das mais simples formas de expressão,
autonomia e participação social, por outro lado a esse mesmo indivíduo é
imputada a tarefa de “carregar o estandarte” da benemerência e
filantropia encontrada nos muros cristalizados (e não muito cristalinos)
das instituições que insistem em se aprisionar em seu próprio cárcere.
Assim, a imagem da pessoa com deficiência pela força desses valores que
resistem ao tempo, permanece atrelada à piedade humana.
33
Nesse sentido, a instituição depende, necessariamente, da manutenção do
vínculo do aluno com deficiência mental com o espaço institucional; o que reforça, e
muito, sua imagem de incapaz e sua segregação.
Essa imagem da deficiência mental reforça também o caráter de movimento
em prol da excepcionalidade, colocando a instituição como a “guardiã” da deficiência
mental. Isso resulta não só na arrecadação de fundos junto à sociedade civil mas
também em um trabalho institucional que privilegia a causa do excepcional em
detrimento das especificidades da população atendida e de sua educação.
Isso faz com que o caráter pedagógico da instituição especial, que justifica
inclusive
grande
parte
das
verbas
advindas
do
poder
público,
possa
ser
descaracterizado e relegado a um plano secundário.
Conforme nos mostra D’Antino (1996), o fato da instituição especial e das
relações nela instituídas estarem (des)equilibradas no pilar da filantropia, faz com
esta se configure como um poder oculto que domina e aliena os diferentes atores
institucionais, indiferenciando suas relações e seus papéis. Tendo, também, a função
de deslocar e de cristalizar o eixo do trabalho da competência para atributos
pessoais de caráter afetivo.
A descrença em relação à clientela que “educa” parece travestir-se do
incondicional amor. Ora, se não se crê na capacidade potencial de
aprendizagem dos educandos, o melhor que se tem a oferecer é mesmo
o abrigo, o carinho e a superproteção (D’ANTINO, 1996, p.168).
Assim, temos a relação entre a sociedade e a deficiência mental se
estruturando a partir de sua institucionalização. Significa dizer que ao longo da
história a instituição especial foi se constituindo como a instância legítima da
deficiência mental. Em nossa história mais recente, foi se legitimando como
responsável pela educação dessa população, seja por assumi-la em função da
inexistência de práticas a ela destinadas, seja por ser responsabilizada pela
34
sociedade civil e pelo Estado como locus social do indivíduo social com deficiência
mental.
Esta estruturação da relação entre a sociedade e a deficiência mental a partir
de sua institucionalização denota o caráter totalitário das instituições especiais
privadas de caráter filantrópico.
Para analisar o caráter totalitário da instituição especial, tomo por base as
reflexões tecidas por Goffman (2003) e por autores da educação especial brasileira,
que investigaram diferentes aspectos do cotidiano institucional, tais como Glat
(1989), Ferreira (1994), D’Antino (1996 e 2001) e De Carlo (1997).
Inicio apresentando que no presente trabalho, o homem é entendido como um
ser histórico, produtor e produto de seu contexto social, que se constituí na interação
com outros homens, portanto na coletividade, o que implica a compreensão de que
as relações humanas estão circunscritas a diferentes instituições sociais (família,
escola, local de trabalho, igreja...) nas quais é possível apreender aspectos da
própria sociedade, à medida que reproduzem e transmitem em seu interior valores,
crenças, normas, regras etc. A instituição, qualquer que seja sua natureza, é um
espaço de agregação e formação social dos sujeitos.
Nesse sentido, compartilhando com as reflexões de D’Antino (2001, pp. 209210), aponto que
a dimensão institucional é construída em contexto sócio-histórico
determinado, pré-existente ao sujeito e presentifica-se através da
manifestação do chamado sujeito social. Ou seja, é “pela mão” dos
sujeitos, embrionariamente instituídos, que as ações e relações são
determinadas, uma vez que a instituição, qualquer que seja ela, não
existe senão na concretude da existência humana. [...] Assim, é
importante lembrar que a instituição, como micro sistema que é, reflete a
ideologia do contexto social mais amplo, e o sistema de idéias que a
instituição faz circular é o mesmo que faz respirar quase todos os demais
sujeitos, de um dado tempo e espaço social.
Encontramos também em Goffman (2003) o entendimento de que o indivíduo
se constitui em suas constantes interações sociais e que é por meio de sua inserção
35
em diferentes instituições, com grupos diversificados e sob autoridades diferenciadas
que essa constituição se dá. Assim, um mesmo sujeito pode estar inserido em
diferentes espaços sociais, cuja delimitação lhe permite representar papéis distintos.
Para ele, as instituições atuam como reguladoras das relações e dos papéis sociais.
Por outro lado, existem situações em que uma única instituição se configura
como o único espaço de interação e, conseqüentemente, de constituição do sujeito
social, as quais o autor denomina “instituições totais”.
Para Goffman (2003, p.11)
uma instituição total pode ser definida como um local de residência e
trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante,
separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo,
levam uma vida fechada e formalmente administrada.
O autor acrescenta que o seu aspecto central e totalizante é a desintegração
das barreiras que comumente separam as diversas esferas da vida de cada indivíduo,
reduzindo drasticamente seus espaços de interação, já que todos os aspectos de sua
vida são conduzidos em um mesmo local e sob uma única autoridade.
No caso das instituições totais isso assume um significado peculiar na medida
em que a segregação impede que o indivíduo institucionalizado se insira e participe
de outros espaços sociais. Nesse sentido, sua singularidade, sua particularidade fica
circunscrita às (im)possibilidades institucionais, tanto no que se refere à constituição
de sua identidade, quanto principalmente à sua deterioração ou, utilizando as
palavras de Goffman (2003), “mortificação do eu”. Além disso, nestas instituições, as
relações e os papéis sociais são regulados de modo a reduzir as formas de interação
e de restringir a um único papel a atuação do indivíduo institucionalizado.
Conseqüentemente, temos a redução drástica de todas as possibilidades de
constituição social do sujeito e o favorecimento da apropriação de um mundo e de
uma cultura institucionalizados.
36
Goffman (2003), analisando as conseqüências da institucionalização para
pessoas com doença mental, nos mostra que as formas estereotipadas de interação
entre estas e a instituição diz respeito muito mais à condição institucionalizada da
pessoa do que propriamente à sua doença. Entretanto, aos olhos dos profissionais e
dos dirigentes da instituição e da comunidade isso não é verdadeiro; as formas de
interação
e
os
comportamentos
apresentados
no
interior
institucional
são
considerados “típicos” de pessoas com doença mental, justificando, inclusive sua
internação.
Outro aspecto apontado pelo autor, é que, mesmo com seu caráter totalizante,
estas instituições são reconhecidas pela sociedade como organizações racionais,
competentes para os fins a que se destinam. Assim, as instituições totais são
consideradas o espaço social de pessoas que são agrupadas em função de um único
atributo: doenças, deficiências, criminalidade...
Considero que as análises tecidas por Goffman (2003) acerca das instituições
totais podem ser referência para a análise da instituição especializada no
atendimento ao indivíduo com deficiência mental.
Primeiramente, como já vimos, a literatura explicita que historicamente a
instituição especial vem sendo considerada como a principal instância, senão a única,
de atendimento ao indivíduo com deficiência mental. E, quando me refiro a
atendimento, estou considerando as diferentes esferas de sua vida: saúde, educação,
reabilitação e bem estar social.
Isto é, sem ter o caráter asilar (como internatos, conventos) ou de
confinamento (como manicômios, presídios), a instituição especial pode ser
considerada como total na medida em se responsabiliza e é responsabilizada por
todas as esferas da vida do indivíduo com deficiência mental. Ser o locus social da
deficiência mental é que imprime a ela o sentido totalitário.
37
É na instituição especial e por meio de suas ações que a pessoa com
deficiência mental institucionalizada tem acesso a todas as esferas sociais e, com
isso, temos a desintegração das barreira que separam cada uma delas fora dos
muros
institucionais.
Conseqüentemente,
tais
esferas
assumem
um
caráter
específico para o atendimento dessa população: a educação passa a ser a educação
do e para o deficiente mental; a saúde passa a ser a saúde do e para o deficiente
mental; a assistência social passa a buscar o bem estar social do deficiente mental...
Mais,
englobar
todas
as
esferas
sociais
significa
restringir
todas
as
possibilidades de interação pessoal ao cotidiano institucionalizado. Nas palavras de
Jannuzzi (1992, p.57), a permanência em instituições especiais promove a
construção de mecanismos específicos que “incorporam maneiras próprias de existir,
distanciadas da sociedade”.
Nesse ponto, é necessário entender que o caráter totalitário da instituição
especial mantém o distanciamento não só entre o sujeito institucionalizado e um
contexto social mais amplo, mas também dos outros grupos sociais em relação a ele.
Esse distanciamento dá margem à construção de barreiras que se interpõem entre o
indivíduo com deficiência mental e a sociedade e que cristalizam a condição
segregada do primeiro.
Incorporar maneiras próprias de existir significa passar a ser identificado
somente por elas. Assim, essas maneiras passam a ser reconhecidas como “de
deficientes mentais”. Conseqüentemente, a instituição se perpetua como o lugar da
deficiência mental, como a responsável por aqueles que apresentam tal condição,
sedimentando ainda mais seu caráter totalitário, fechado e dependente da
manutenção de suas próprias maneiras de existir.
De acordo com Jannuzzi (1995, p. 07), isso faz com que, no caso da
deficiência mental, haja o risco de
se perder os parâmetros universais do ser humano que nele estão
presentes, considerando-o em tudo como diferente, anormal.
38
Pode haver a tendência ao isolamento do deficiente em ambientes
confinados, fora do convívio com os diferentes dele, levando-nos a
esquecer
que
o
homem
também
é
fruto
do
conjunto
de
suas
circunstâncias e, assim tomá-lo como responsável pela falta de certos
atributos, quando isto é resultado da situação em que é obrigado a viver.
Além disso, ter suas interações restritas a uma instituição reconhecida como o
espaço social da deficiência mental, significa reduzir drasticamente as possibilidades
de constituição individual para além da própria condição, pela impossibilidade de ser
reconhecido como uma pessoa e não como um deficiente mental.
O caráter totalitário da instituição especial pode ser apreendido também na
análise de estudos que investigaram o cotidiano de pessoas com deficiência mental
institucionalizadas, como os realizados por Glat (1989), Ferreira (1994), D’Antino
(1996, 2001) e De Carlo (1997). Todos apresentam, sob diferentes perspectivas e
por meio da análise de diferentes objetos, as conseqüências negativas que a
permanência em instituições especializadas pode trazer.
Glat (1989), analisou a vida de mulheres com deficiência mental a partir de
seus relatos sobre elas mesmas, sobre seu cotidiano institucionalizado, sobre suas
interações, sobre suas percepções de mundo, buscando apreender o significado do
estigma de deficiente mental em suas experiências e identidade pessoal. A autora
conclui, entre outros aspectos, que
pelo que pôde ser observado, a vida cotidiana desse grupo de mulheres
se desenrola entre três espaços bem definidos: a casa, a instituição e a
rua. A casa e a instituição são os espaços onde elas vivem suas práticas
diárias rotineiras, ritualizadas, repetitivas. São campos seguros onde elas
têm uma posição definida, onde sabem como agir e o que esperar do
relacionamento com as outras pessoas. Em suma é o mundo que lhes
pertence. [...] A rua, por outro lado, representa o mundo “de fora”, onde
elas transitam ocasionalmente, mais onde não possuem um conjunto de
relações e funções definidas. É um mundo estranho, onde algumas
sonham penetrar um dia (quando conseguirem “trabalhar fora”), mas que
para a maioria tem um significado ameaçador e violento. (GLAT, 1989, p.
207)
A autora nos mostra, ainda, que o lugar que a casa, a instituição e a rua
ocupam na vida dessas mulheres, como sendo o “mundo de dentro” e o “mundo de
39
fora”, é, em parte, conseqüência da restrição que a institucionalização impõe: ao
invés de “desempenhar uma função educadora, supervisionando e facilitando seu
ingresso na comunidade aberta, na prática exercem uma pressão centrípeta,
reforçando a dependência e a marginalização”.
Outro aspecto ressaltado pela autora, diz respeito à intensa infantilização das
mulheres que participaram do estudo. Nas palavras de Glat (1989, p. 207),
os relatos das entrevistadas mostraram inúmeras situações em que as
famílias ou profissionais da instituição lidavam com elas como se fossem
crianças pequenas, tomando decisões sobre suas vidas sem consultá-las,
e determinando o curso de ação a ser seguido.
Vale ressaltar, apropriando-me uma vez mais das reflexões de Goffman (2003)
e de D’Antino (1996), que o mundo da casa está circunscrito ao mundo da instituição,
como um de seus tentáculos. Ou seja, o mundo da casa, familiar, também está
submetido à autoridade institucional e ao seu poder. Isso denota sobremaneira o
caráter totalitário das instituições em apreço.
As instituições especiais se configuram como totalitárias também quando
analisamos as práticas institucionais, especificamente as pedagógicas, como nos
mostra o estudo conduzido por Ferreira (1994). Segundo a autora, a prática
educacional
na
instituição
especial
analisada
apresentou-se
fragmentada,
artificializada, enfatizando o treino das funções elementares, restringindo as
possibilidades de apropriação de formas culturais maduras de atividade humana,
ancorada em concepções de desenvolvimento que reduz o desenvolvimento humano
a uma somatória de aprendizagens, e reservando ao indivíduo com deficiência
mental uma posição social infantilizada. Outro aspecto apontado é que as atividades
desenvolvidas no interior da instituição são descontextualizadas, sem um significado
cultural, isentas de sentido pessoal e, por serem conduzidas preferencialmente por
meio de ações individualizadas, restritivas das interações pessoais. O que é ensinado
é sem sentido, não condiz com a realidade do deficiente e muito menos com a do
40
contexto do qual ele está excluído. A autora nos mostra, por exemplo, que as
atividades pedagógicas propostas para o ensino de jovens e adultos com deficiência
mental reproduziam as atividades pré-escolares.
Podemos perceber que a forma como a prática educacional (que deveria ser o
eixo central do trabalho institucional) está implementada na instituição especial,
além de se distanciar de outras experiências de ensino destinadas às pessoas não
deficientes, favorece sobremaneira o entendimento de que somente naquele
contexto é que o indivíduo com deficiência mental pode ser ensinado, visto suas
especificidades e reconhecimento da instituição como o único local apto a educar o
indivíduo com deficiência mental. Além disso, evidencia-se o favorecimento de
interações pessoais que não possibilitam a apropriação de um mundo e de uma
cultura não restritos ao cotidiano institucional. O que denota o caráter de locus da
deficiência mental à instituição especial.
De Carlo (1997), em estudo realizado numa instituição asilar para deficientes
mentais, objetivou analisar em que medida as condições institucionais são
favorecedoras da emergência de processos de funcionamento psicológico superior,
especificamente reflexivos e imaginários, em adultos com deficiência mental
institucionalizados. A autora nos mostra que as condições institucionais, além de
empobrecidas e restritivas de oportunidades que favoreçam o desenvolvimento de
atividades práticas e de funções psíquicas complexas, subordinam os internos a
procedimentos de infantilização, segregação e disciplinarização. Por outro lado,
ressalta as possibilidades de vida e de desenvolvimento da pessoa com deficiência
mental, apreendidas em suas interações com os internos, desde que submetidas a
condições sociais favoráveis ao desenvolvimento de suas capacidades.
Este estudo se distingue dos outros não só pelo seu objeto mas também por
ser conduzido em uma instituição especial asilar. Aqui, evidencia-se de forma
marcante
o
caráter
totalitário
institucional,
principalmente
pela
ênfase
na
41
disciplinarização e pela impossibilidade de manutenção de qualquer tipo de contato
com o mundo não institucional. Conseqüentemente, há no cotidiano da instituição
um
campo
fértil
para
a
despersonalização
e
para
o
empobrecimento
das
possibilidades de vida dos internos, conforme ressaltado por Goffman (2003).
Vale ressaltar a intensa infantilização do indivíduo com deficiência mental que
tem suas interações sociais restritas ao cotidiano institucional, também como
decorrente do caráter totalitário da instituição especial.
Goffman (2003) analisa a infantilização do interno como conseqüência do
rígido controle, da disciplinarização e da submissão (imposta) à autoridade. Isso faz
com que o adulto perca a possibilidade de agir e interagir em seu meio de forma
autônoma, segundo suas próprias necessidades e desejos, sendo despido de toda e
qualquer forma de singularidade.
No caso da pessoa com deficiência mental, é considerado que a infantilização
se dá como conseqüência de uma concepção que ignora qualquer possibilidade de
atuação e de interação social de forma autônoma e independente. Ou seja, essa
possibilidade não é retirada do adulto com deficiência mental; ela, simplesmente,
não está posta em seu cotidiano por ser considerada como incapacidade inerente à
condição de deficiência. Como conseqüência, temos o cotidiano institucional se
estruturando a partir dessa concepção, haja visto a ênfase em atividades
pedagógicas comumente destinadas à infância, como apresentado anteriormente.
Não pode deixar de ser mencionado que as formas utilizadas pela instituição
especial de caráter filantrópico e assistencial para sua manutenção e sua
perpetuação como locus social da deficiência mental, também denotam sua condição
totalitária. Conforme discutido anteriormente, apropriando-me das reflexões tecidas
por D’Antino (1996, 2001), o poder oculto da filantropia mantém a imagem do
indivíduo com deficiência mental atrelada à piedade humana, conferindo à instituição
42
especial o status de responsável por tudo aquilo que se refere à condição de
deficiência.
Paralelamente, a ideologia que permeia o cotidiano das associações
apresenta-se como estratégia de manutenção da segregação da pessoa
com deficiência. O imperativo da instituição é manter o aluno vinculado
ao espaço instituído. [...] Assim, ao mesmo tempo que essa estratégia
possibilita o acesso educacional a uma parcela da comunidade, também
dificulta e/ou impede o processo de integração social desta, uma vez que
integrar implica, necessariamente, na possibilidade de aprender a
participar e até mesmo se representar enquanto expressão de desejos,
necessidades
e
vontade
própria.
Assim
sendo,
parece
que
nas
associações em apreço, a participação dos alunos no cotidiano se dá
através do pensar, sentir e fazer dos demais atores institucionais que em
seu nome falam, lutam, brigam e os abrigam (D'ANTINO, 2001 p. 167 –
168).
Diante do exposto, fica evidenciado o caráter totalitário da instituição especial
privada de cunho filantrópico, assim como as conseqüências da institucionalização
das pessoas com deficiência mental, principalmente as relacionadas à restrição de
suas possibilidades de vida.
Todavia, na década de 1990 vamos perceber uma mudança tanto no discurso
da educação brasileira como também na educação especial. A referida década vem
sendo considerada como um marco na Educação Especial brasileira em função das
alterações legais que se processaram, principalmente após 1994 com a adesão do
país à Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas
especiais (CORDE, 1994), resultado da Conferência Mundial Sobre Necessidades
Educacionais Especiais.
Para analisar as alterações que se processaram na educação brasileira na
referida década é necessário discorrer sobre a forma como o Estado e sua relação
com a sociedade civil são compreendidos no presente trabalho.
O Estado é aqui entendido em uma perspectiva multidimensional, que
segundo Borón (1994) deve ser considerada sem haver uma valorização de uma das
43
dimensões em detrimento de outra. Assim, para o autor, o Estado é de maneira
concomitante:
1. Um “pacto de dominação” mediante o qual uma determinada aliança de
classes constrói um sistema hegemônico suscetível de gerar um bloco
histórico; 2. uma aliança dotada de seus correspondentes aparatos
burocráticos e capaz de transformar-se, sob determinadas circunstâncias,
em um “ator corporativo”; 3. um cenário da luta pelo poder social, um
terreno onde se dirimem conflitos entre distintos projetos sociais que
definem um padrão
de
organização econômica e social; e 4.
o
representante dos “interesses universais” da sociedade e, enquanto tal, a
expressão orgânica da comunidade nacional (BORÓN, 1994, p. 254).
Nesta mesma perspectiva, é possível o entendimento de que o Estado nasce
nas relações engendradas na e pela sociedade civil. É esta relação que delimita a
medida e os limites do Estado.
O entendimento de que o Estado se constitui nas relações com a sociedade
civil evidencia a necessidade de refletir sobre o papel desta em nosso contexto.
Podemos acrescentar aqui as análises de Bottomore (1997, p. 134) que nos
mostra a necessidade de explorar e explicar a “autonomia relativa” do Estado “e as
complexidades que envolvem suas relações com a sociedade”. Segundo o autor, o
Estado pode ser concebido como “um instituição independente, com interesses e
propósitos próprios” ao mesmo tempo em que
serve aos propósitos e interesses da classe ou classes dominantes: o que
está em causa, como efeito, é uma associação entre os que controlam o
Estado e os que possuem e controlam os meios da atividade econômica.
Mas não há uma fusão das instâncias política e econômica, ao passo que a
articulação real é a de uma associação em que as instâncias política e
econômica conservam suas respectivas identidades e pela qual o Estado
pode agir com considerável independência para manter e defender a
ordem social da qual a classe economicamente dominante é a principal
beneficiária (BOTTOMORE, 1997, pp. 134-135)
Esta configuração do Estado como uma instituição independente, mas que
serve a interesses de determinados grupos ou classes, sustenta uma relação com a
sociedade na qual o interesse público é sobreposto pelos interesses privados. Assim,
44
o que temos é a esfera pública sendo reduzida à estatal e se confundindo, então,
com os interesses privados.
Para melhor entendimento desta relação entre público/estatal/privado, focarei
o âmbito da educação brasileira, no qual explicitamente o público é tomado como
sinônimo de estatal. Contudo, Sanfelice (2005, pp. 178-179) nos mostra que,
rigorosamente, “escola estatal não é escola pública, a não ser no sentido derivado
pelo qual o adjetivo “público” se relaciona ao governo de um país ou estado: o poder
público”.
E acrescenta:
Enquanto Estado defensor dos interesses da propriedade privada, a
educação estatal pode estar, portanto, atrelada aos mesmos objetivos. O
que é ideologicamente explicitado como educação pública na realidade
destina-se ao interesse privado, e a educação estatal assim deve ser
denominada pois não é do interesse comum, do público mas do privado.
Com
base
nesta
referência,
podemos
analisar
o
Estado
brasileiro,
especificamente no que se refere às mudanças processadas, a partir da década de
1980, que culminaram na Reforma do Estado, implementada em 1995, no governo
de Fernando Henrique Cardoso.
Podemos considerar que as alterações que se processaram ao longo da
década de 1990 foram se estruturando ao longo da de 1980, que culmina, por um
lado com promulgação da Constituição Federal de 1988, considerada constituição
“cidadã”, pela ênfase nos direitos sociais; e, por outro, com a eleição de Fernando
Collor de Mello para a Presidência da República, sustentado por um projeto de
caráter neoliberal e pela ênfase na necessidade de uma reforma do Estado. Assim,
temos a polarização de discursos e propostas sobre o papel do Estado na
organização econômica e a sua função nas áreas sociais (ARELARO, 2003).
É neste governo que os organismos internacionais condicionam o recebimento
de empréstimos financeiros à melhoria dos índices de desempenho educacional e à
adesão ao compromisso de “Educação para Todos”. Neste período se intensifica,
45
também, o embate em torno dos Projetos de Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional.
É também no governo de Collor de Mello que as instituições assistenciais
ganham o estatuto de Organizações não Governamentais “e a ambigüidade entre os
setores públicos e privados é apresentada como uma necessária e fundamental
“parceria” para o desenvolvimento do país” (KASSAR, 1999, p. 35).
No governo de Itamar Franco, que assume a Presidência da República após o
impeachment de Collor em 1992, temos a discussão do Plano Nacional de Educação
já evidenciando, na área da educação, a submissão do governo às exigências das
agências de financiamento internacionais.
Mas, é no governo de Fernando Henrique Cardoso que, em 1995, se inicia a
Reforma do Aparelho do Estado, desencadeada pelo Plano Diretor organizado pelo
então ministro da Administração Federal e Reforma do Estado, Luis Carlos Bresser
Pereira. A Reforma priorizava a redução do aparato do Estado e do financiamento
das áreas sociais, privatização, proteção aos bancos, redução de direitos trabalhistas
e redefinição das esferas pública e privada com a transferência da responsabilidade
do Estado para instituições privadas e para organizações não governamentais. Neste
contexto há uma redefinição do papel do Estado que deixa de “ser o responsável
direto pelo desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e
serviços,
para
fortalecer-se
na
função
de
promotor
e
regulador
desse
desenvolvimento” (BRASIL, 1995, p.11).
O Plano Diretor propõe a divisão do Aparelho de Estado em quatro setores: 1)
Núcleo Estratégico: “setor que define as leis e as políticas e cobra seu cumprimento”;
2) Atividades Exclusivas: são os serviços que apenas o Estado pode realizar
“cobrança e fiscalização de impostos, a polícia, a previdência social básica [...] o
subsídio à educação básica”, entre outros; 3) Serviços Não Exclusivos: são aqueles
nos quais o “Estado atua simultaneamente com outras organizações públicas não
46
estatais e privadas” sua presença se justifica “porque os serviços envolvem direitos
humanos fundamentais, como os da educação e da saúde...”; 4) Produção de Bens e
Serviços para o Mercado: o setor “é caracterizado pelas atividades econômicas
voltadas para o lucro que ainda permanecem no aparelho do Estado, como, por
exemplo, as do setor de infra-estrutura” (BRASIL, 1995, pp. 39-40).
Para efeito das reflexões realizadas neste trabalho, focaremos o terceiro setor
do Aparelho do Estado “Serviços Não Exclusivos” por considerar que as instituições
especiais privadas de caráter filantrópico estão aqui circunscritas e também que é
nesta esfera que se dá a redefinição dos setores Público e Privado de modo mais
explícito.
Os “Serviços Não Exclusivos” são aqueles que devem ser descentralizados,
administrados pelo setor público não estatal, mas não privatizados. Isso é possível
em função do Estado a renunciar alguns serviços e estabelecer contrato com as
organizações sociais, que são entendidas como “entidades de direito privado que ,
por iniciativa do Poder Executivo, obtêm autorização legislativa para celebrar
contrato de gestão com esse poder, e assim ter direito a dotação orçamentária”
(BRASIL, 1995).
Instala-se
um
processo
de
publicização
que,
juntamente
com
o
de
privatização sustentam o redimensionamento do Estado no sentido de abandono do
papel “de executor ou prestador direto de serviços, mantendo-se, entretanto, no
papel de regulador e provedor ou promotor destes, principalmente dos serviços
sociais como educação e saúde” (BRASIL, 1995, p. 12).
Contudo, a publicização no âmbito da educação da pessoa com deficiência
mental reitera o caráter assistencialista, que tem sido historicamente sua marca, já
que a responsabilidade por este atendimento permanece circunscrita a instituições
privadas de caráter filantrópico. Bueno e Kassar (2005, p. 128) nos mostram que:
No contexto de Reforma do Estado, as “parcerias” entre os serviços
público e privados fortalecem-se, diante da necessidade apresentada pelo
47
projeto de modernização do país, que propõe a assunção de ações no
campo da educação, pelo chamado “terceiro setor”. No âmbito do terceiro
setor, o discurso assistencialista que permeia a história da educação
especial brasileira hoje é consoante ao discurso da democracia, uma vez
que o envolvimento da sociedade, na formação de associações civis, é
visto como fundamental para o seu estabelecimento. [...] O acesso aos
direitos construídos historicamente pelas sociedades, cujo cerne está na
organização econômica de um país, passa a ser enfocado como de
responsabilidade da sociedade, de “boa vontade” e da filantropia.
No que se refere à educação da pessoa com deficiência mental o que pode ser
observado é a insistente omissão e descompromisso do Estado quanto à organização
de serviços nas redes públicas de ensino e a “parceria” estabelecida com o setor
privado, especialmente o de caráter assistencialista, no sentido deste ocupar o
espaço deixado por aquele. A contrapartida do Estado é o estabelecimento de
auxílios técnico e financeiro e de incentivos fiscais com a isenção e redução de
impostos.
A “parceria” não é criada na década de 1990, ao contrário, se constituiu na
história da Educação Especial brasileira, sempre lastreada pelo descompromisso do
Estado quanto à educação das pessoas com deficiência mental. Neste processo de
constituição o que pode ser observado é que as instituições especiais privadas de
caráter filantrópico se legitimam e são legitimadas como as responsáveis pela
educação desta população. O que pode ser constatado nas referências feitas em
documentos oficiais, que reiteram o espaço por elas ocupado.
Em 1994, o MEC, por meio da Secretaria de Educação Especial publica a
Política Nacional de Educação Especial, na qual o papel das instituições especiais é
reafirmado:
Tais
associações
tomaram
vulto,
representando,
até
hoje,
papel
significativo no atendimento educacional especializado. Na maioria dos
municípios brasileiros são elas que, em convênio com o Governo, prestam
o atendimento educacional. Têm igualmente atuado na conscientização da
comunidade. Essa atuação tem provocado, em última instância, uma
mudança
de
atitude
na
sociedade
brasileira,
tornando-a
lenta
e
progressivamente mais receptiva à conquista da cidadania dos portadores
de deficiências.
48
As
organizações
não-governamentais
filantrópicas
que
prestam
atendimento educacional especializado são contempladas com verbas
estaduais e federais, além de recursos humanos cedidos pela rede pública
governamental. (BRASIL, 1994, pp. 21-22)
Já o Plano Nacional de Educação de 2001 afirma que:
Longe de diminuir a responsabilidade do Poder Público para com a
educação especial, o apoio do governo a tais organizações visa tanto a
continuidade de sua colaboração quanto à maior eficiência por contar com
a participação dos pais nessa tarefa. Justifica-se, portanto, o apoio do
governo a essas instituições como parcerias no processo educacional dos
educandos com necessidades especiais. (BRASIL, 2001 pp. 47-52)
É preciso ressaltar que a “parceria” é um “bom negócio” para ambos os lados.
Para as instituições por seu favorecimento e para o Estado pelos gastos reduzidos já
que o custo do sustentação da instituição especial privada assistencial é inferior ao
custo de implementar serviços de educação especial para toda população com
deficiência na rede regular de ensino. Isto pode ser constatado na avaliação feita
pelo
Ministério
a
Educação
(MEC),
Educação
Especial
no
Brasil:
Perfil
do
Financiamento e das Despesas, publicada em 1996. Na análise da Educação Especial
no Paraná, o relatório indica a relação entre o estado e as organizações não
governamentais (ONGs) como importante parceria:
Tem-se considerado que a secretaria não deve ter funções executivas em
todas as áreas, mas deve valer-se da capacidade executiva e gerencial
das ONGs. Por isso mesmo havia, em setembro de 1995, 272 convênios
na área da Educação Especial, dos quais 210 com APAEs. Tais convênios
envolvem não só a transferência de recursos financeiros, como também a
cessão de funcionários docentes e não docentes, além da capacitação de
pessoal. Um entrevistado estimou que, em 1995, o estado destinou cerca
de US$ 1,094 mil para as ONGs (fora a cessão de pessoal), que atende a
aproximadamente 23 mil alunos, correspondendo à despesa média anual
de US$47.57. Comparado com o repasse anual de US$324.00 por aluno
para os municípios e com o custo aluno/ano do estado de US$ 390.00,
mesmo que aquele valor seja subestimado, observamos que essa espécie
de “terceirização” é financeiramente vantajosa para o estado. (BRASIL B,
1996, p. 85)
49
Além das alterações indicadas na LDBEN 96 no que se refere à educação
especial analisadas anteriormente, podemos acrescentar a substituição do princípio
de escola integradora pelo de escola inclusiva.
Inclusão, educação inclusiva, escola inclusiva são expressões que ganharam
destaque nos discursos políticos, educacionais e acadêmicos de diferentes países a
partir da segunda metade da década de 1990, sustentados por diferentes correntes
político-ideológicas. No Brasil, o conceito inclusão tem sido enfatizado nas políticas
educacionais, nos documentos norteadores da educação e, particularmente, da
educação especial.
O conceito inclusão aparece nos debates que analisam as condições sociais e
educacionais dos chamados excluídos e que indicam a necessidade de superação da
exclusão social destas pessoas. Assim, podemos perceber que o conceito inclusão
aparece atrelado ao entendimento de que incluir é a forma de superar a exclusão; de
que inclusão se configurou como um novo paradigma social capaz de direcionar a
transformação da sociedade excludente em seu oposto e; que a inclusão escolar
seria a garantia de inclusão social posterior, em um resgate do ideário da escola
como um mecanismo de equalização social 10 .
No caso da pessoa com deficiência mental, a inclusão em ambientes regulares
de educação aparece como o grande objetivo da área de educação especial. A
indicação é a de que o acesso e permanência na escola regular são a via de ruptura
com a condição de segregação e de exclusão social historicamente impostas a essa
população.
Contudo, tal debate parece desconsiderar que em uma sociedade sustentada
pelo modo de produção capitalista exclusão e inclusão são partes constitutivas de um
mesmo processo, submerso em uma trama social que sustenta sua interdependência.
Assim, para analisar o conceito inclusão é necessário considerar também o seu
10
Estou me baseando nas análises tecidas por Garcia (2004).
50
suposto
contrário,
o
conceito
exclusão.
Para
isso,
me
reporto
às
análises
desenvolvidas por Martins (1997, 2002) e Sawaia (2001).
Para Martins (1997) exclusão é uma categoria vaga e indefinida que passou a
ser utilizada de forma mecânica para explicar todos os problemas sociais. O autor
também aponta que
a categoria exclusão é resultado de uma metamorfose nos conceitos que
procuravam explicar a ordenação social que resultou do desenvolvimento
capitalista. Mais que uma definição precisa de problemas, ela expressa
uma incerteza e uma grande insegurança teórica na compreensão dos
problemas sociais da sociedade contemporânea. (MARTINS, 2002, p. 27)
Da mesma forma podemos analisar o conceito inclusão: como uma categoria
vaga e indefinida que passou a ser utilizada de forma mecânica para indicar e
qualificar a solução para todos os problemas sociais que assolam a maioria da
população do chamado Terceiro Mundo que vive em condições miseráveis de vida e
da população pobre (os imigrantes árabes, asiáticos, latinos e os negros) dos países
de Primeiro Mundo 11 .
Sawaia (2001, p. 09) nos mostra que
... a exclusão é processo complexo e multifacetado, uma configuração de
dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e
dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela.
Não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por
inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única forma e não é
uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a
ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema.
Nesse sentido, pensar em inclusão não é pensar em um processo avesso à
exclusão, como se estivéssemos em face de um dualismo cujas alternativas fossem a
de excluídos ou incluídos. É sim pensar em um processo que depende da exclusão
para se constituir. Martins (1997, p.26, grifos do autor) nos mostra que
o que vocês estão chamando de exclusão é, na verdade, o contrário de
exclusão. Vocês chamam de exclusão aquilo que constitui o conjunto de
dificuldades, dos modos e dos problemas de uma inclusão precária e
11
Não me refiro à pobreza apenas como carência material, “as pobrezas se multiplicaram em todos os planos e contaminaram
até mesmo âmbitos da vida que nunca reconheceríamos como expressões de carências vitais” (Martins, 2002).
51
instável, marginal. A inclusão daqueles que estão sendo alcançados pela
nova
desigualdade
social
produzida
pelas
grandes
transformações
econômicas e para os quais não há senão, na sociedade, lugares residuais.
A sociedade exclui para incluir, mas incluir de forma precária,
sustentando modos desumanos de participação (MARTINS, 2002). E o que significa
esta inclusão precária e esta participação social desumana?
Significa se inserir em um espaço social já existente e essencialmente
excludente. A inclusão é precária e perversa porque o que se busca é a inserção na
sociedade que exclui, o que se reivindica é aquilo que reproduz e conforma a
sociedade atual. Martins (2002, p. 38, grifos do autor) nos mostra que
a contradição de que o excluído é produto e expressão não é contradição
constitutiva de sua condição de marginalizado. [...] Não é contradição
constitutiva porque ela se resolve na reprodução ampliada e não na
transformação da sociedade que o vitima.
Esta forma de inclusão nos dá a indicação do porque sustenta modos de
participação sociais desumanos, já que tal participação se dá numa sociedade que
visivelmente secundariza as pessoas fazendo delas seres descartáveis que vivenciam
formas extremas de alienação e de coisificação (MARTINS, 2002).
Nesse sentido, incluir não significa superação ou ruptura com uma condição
de exclusão, visto que todos estamos incluídos nas relações sociais que reiteram a
ordem social vigente. Mesmo quando inseridos por meio de privações, de processos
de coisificação e de anulação, de modo precário, desumano e indigno.
Outro aspecto relevante para a discussão proposta é a indicação de que as
análises feitas sobre exclusão
enfocam apenas uma de suas características em detrimento das demais,
como as análises centradas no econômico, que abordam a exclusão como
sinônimo de pobreza, e as centradas no social, que privilegiam o conceito
de
discriminação,
minimizando
o
escopo
analítico
fundamental
exclusão, que é o da injustiça social. (SAWAIA, 2001, p. 07)
da
52
Desconsidera-se que outros aspectos estão presentes e são constitutivos
tanto da categoria exclusão quanto da inclusão. Dentre estes aspectos, podemos
observar a diferenciação social sendo sustentada pela idéia de que
as diferenças sociais não são apenas diferenças de riqueza, mas
diferenças de qualidade social das pessoas. [...] As pessoas estão
separadas sobretudo qualitativamente e não quantitativamente. Há como
que a restauração da idéia de qualidade social da pessoa como meio de
classificação social. (MARTINS, 2002, p. 132-133)
Com base nesta referência é possível analisar que a inclusão não se constitui
como uma via de transformação das condições de vida, ao contrário, é parte
constitutiva de sua criação e, sobretudo, de sua conservação.
Cabe aqui acrescentar as análises tecidas por Arelaro (2003) e Bueno (2005)
acerca das políticas educacionais brasileira sustentadas pelos pressupostos de
educação para todos e de escola inclusiva.
Arelaro (2003) nos mostra que o governo brasileiro, a partir de 1997,
sustenta suas ações nas premissas de que o país não tem problema de atendimento
da demanda escolar e de que os recursos financeiros investidos em educação são
suficientes. A autora contesta estas premissas por meio da análise dos dados
estatísticos da educação e aponta que, segundo os dados oficiais, cerca de 50
milhões de pessoas (30% da população brasileira) se encontram sem qualquer tipo
de atendimento escolar.
Se considerarmos que a demanda está atendida, mesmo quando os dados
demonstram que não está, isto significa que se considera que os “tantos”
que estão sendo atendidos em escolas são os “todos” que deveriam estar,
não se pretendendo ampliar, em conseqüência, esse atendimento escolar.
(ARELARO, 2003, pp. 20-21)
Nesta mesma linha, Bueno (2005) analisa que:
Se o norte é a educação inclusiva como meta a ser alcançada, isto
significa que a projeção política que se faz do futuro é de que continuará a
existir alunos excluídos, que deverão receber atenção especial para
deixarem de sê-lo. Isto é, a meu juízo, esta nova bandeira, vira de cabeça
para
baixo
aquilo
que
era
uma
proposição
política
efetivamente
53
democrática (mesmo com perspectivas diferentes), na medida em que o
que deveria se constituir na política de fato – a incorporação de todos pela
escola, para se construir uma escola de qualidade para todos – se
transmuta num horizonte sempre móvel, porque nunca alcançado.
Assim, é possível o entendimento de as políticas de educação para todos e de
escola inclusiva, do ponto de vista conceitual, econômico e legal apresentam-se de
forma reduzida e ambígua em relação à educação das pessoas com deficiência
mental e à concretude das relações institucionais.
Na linha de materializar a educação para todos e a escola inclusiva, a
educação especial passa a ser identificada como uma modalidade de educação
escolar a ser oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, a partir da
educação infantil e que, apenas em casos excepcionais – aqueles que em função dos
comprometimentos do aluno – em que a escola não tiver recursos para o
atendimento é que este poderá ocorrer em instâncias consideradas especiais: classes
ou escolas. Há a indicação na LDBEN 96, em seu artigo 59, de que os sistemas de
ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais, entre outros
aspectos:
currículos,
métodos,
técnicas,
recursos
educativos
e
organização
específicos, para atender às suas necessidades; terminalidade específica para
aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino
fundamental, em virtude de suas deficiências.
Já a definição da educação especial como uma modalidade de educação
escolar é ampliada apenas em 2001 nas Diretrizes Nacionais para a Educação
Especial na Educação Básica, conforme exposto a seguir:
Por educação especial, modalidade de educação escolar [...] entende-se
um
processo
educacional
definido
em
uma
proposta
pedagógica,
assegurando um conjunto de recursos e serviços educacionais especiais,
organizados institucionalmente para apoiar, complementar, suplementar
e, em alguns casos, substituir os serviços educacionais comuns, de modo
a garantir a educação escolar e promover o desenvolvimento das
potencialidades dos educados que apresentam necessidades educacionais
especiais, em todos os níveis, etapas e modalidades da educação.
(MEC/SEESP, 2001, pp. 27-28)
54
Sendo que apoiar, complementar, suplementar e substituir são assim
definidos:
a) Apoiar: prestar auxílio ao professor e ao aluno no processo de ensino e
aprendizagem, tanto nas classes comuns quanto em salas de recursos;
complementar: completar o currículo para viabilizar o acesso à base
comum nacional; suplementar: ampliar, aprofundar ou enriquecer a base
nacional comum. Essas formas de atuação visam assegurar
resposta
educativa de qualidade às necessidades educacionais especiais dos
alunos nos serviços educacionais comuns.
b)
Substituir:
educacional
colocar
em
especializado
lugar
realizado
de.
em
Compreende
classes
o
atendimento
especiais,
escolas
especiais, classes hospitalares e atendimento domiciliar. (MEC/SEESP,
2001, pp. 27-28, nota de rodapé)
Neste mesmo aparato legal, as categorias de deficiência se diluem no conceito
de necessidades educacionais especiais.
O termo é utilizado inicialmente na Declaração de Salamanca para caracterizar
crianças com deficiência e crianças bem dotadas; crianças que vivem nas ruas e que
trabalham; crianças de populações distantes ou nômades; crianças de minorias
lingüísticas, étnicas ou culturais e crianças de outros grupos ou zonas desfavorecidos
ou marginalizados (CORDE, 1994). Isto indica que a deficiência mental é entendida
como uma expressão a mais da diversidade que compõe as chamadas necessidades
educativas especiais.
No Brasil, a Declaração de Salamanca passa a ser citada como um marco na
educação especial e a ser considerada referência básica para as discussões da área.
O conceito necessidade educacional especial passa a designar a condição de
deficiência em nosso contexto, imprimindo-lhe um “novo” sentido. A inovação estaria
no fato de trabalhar na perspectiva da inclusão, ampliando a ação da educação
especial que agora contempla
não apenas as dificuldades de aprendizagem relacionadas a condições,
disfunções, limitações e deficiências, mas também aquelas não vinculadas
a uma causa orgânica específica, considerando que, por dificuldades
cognitivas, psicomotoras e de comportamento, alunos são freqüentemente
negligenciados ou mesmo excluídos dos apoios escolares. (B, 2001, p. 19)
55
Novo, mas não a ponto de transformar, como anunciado, a concepção da
deficiência. Isso porque, conforme análises tecidas por Bueno (1997b), a adoção do
termo necessidades educacionais especiais, por um lado, pode representar um
avanço no sentido de minimizar a estigmatização e a pejoratividade de termos
anteriores, mas, por outro,
como conceito portador de necessidades educativas especiais abrange
uma diversidade de sujeitos, ao ganhar na amplitude e na quebra da
estigmatização, perde na precisão. Tanto é assim que, ao lado do termo
em questão, é preciso acrescentar a espécie de sujeitos sobre a qual
estamos nos referindo. (BUENO, 1997b, p. 41)
Ou seja, ao termo necessidade educacional especial é acrescentado deficiência
mental, com toda sua carga pejorativa e estigmatizante.
Outro aspecto presente na legislação educacional vigente e que merece
destaque é a indicação da possibilidade de flexibilização curricular e da terminalidade
específica como alternativas favorecedoras do trabalho educacional da escola
inclusiva com pessoas com deficiência.
A flexibilização é a possibilidade de efetuar
adaptações
curriculares,
que
considerem
o
significado
prático
e
instrumental dos conteúdos básicos, metodologias de ensino e recursos
didáticos
diferenciados
e
processos
de
avaliação
adequados
ao
desenvolvimento dos alunos que apresentam necessidades educacionais
especiais, em consonância com projeto pedagógico da escola, respeitada
a freqüência obrigatória. (BRASILc, 2001, p. 47)
Tomando como referência o subsídio oferecido às escolas pelo governo de
Fernando Henrique Cardoso: Parâmetros Curriculares Nacionais, subsídios estes
significativamente valorizados, divulgados e aceitos pelas escolas da rede regular de
ensino, vamos encontrar um tomo que versa sobre as adaptações curriculares e
sobre estratégias para educação de alunos com necessidades educacionais especiais.
Neste, a flexibilização curricular é apresentada como uma forma de contemplar as
diferenças
individuais
oferecendo
tratamento
diversificado
dentro
do
mesmo
56
currículo. Mas, ao invés de direcionar o debate no sentido de indicar estratégias e
métodos pedagógicos diversificados, a indicação é na linha da “eliminação de
conteúdos básicos o currículo” e “eliminação de objetivos básicos – quando
extrapolam as condições do aluno para atingi-lo, temporária ou permanentemente
(BRASIL, 1998, p. 38-39).
Outro componente da modalidade de educação especial é a terminalidade
específica entendida como
uma certificação de conclusão de escolaridade – fundamentada em
avaliação pedagógica – com histórico escolar que apresente, de forma
descritiva, as habilidades e competências atingidas pelos educandos com
grave deficiência mental ou múltipla. É o caso dos alunos cujas
necessidades educacionais especiais não lhes possibilitaram alcançar o
nível de conhecimento exigido para a conclusão do ensino fundamental.
[...] O teor da referida certificação de escolaridade deve possibilitar
novas alternativas educacionais, tais como o encaminhamento para
cursos de educação de jovens e adultos e de educação profissional, bem
como a inserção no mundo do trabalho, seja ele competitivo ou protegido.
(MEC/SEESP, 2001, p. 59)
Garcia (2004, p.172) analisa que a proposta de flexibilização curricular “pode
ser lida como incentivo à redução dos conteúdos a serem apreendidos, conforme as
condições individuais dos alunos com necessidades educacionais especiais”. O que é
evidenciado no caso dos alunos com deficiência mental para os quais o documento
indica como uma das possibilidades de adaptações que favoreçam o acesso ao
currículo o desenvolvimento de habilidades adaptativas sociais, de comunicação, de
cuidado pessoal e de autonomia.
A terminalidade específica pode ser entendida como a possibilidade de
certificar que ao indivíduo com deficiência mental basta o aprendizado de condutas
adaptativas, de independência, de auto cuidado e de noções rudimentares dos
conteúdos acadêmicos.
Por outro lado, podemos observar que, mesmo apresentando a educação
especial como dever constitucional do Estado e como modalidade de educação
57
escolar, a LDBEN 96 mantém a valorização da iniciativa privada por meio do apoio
técnico e financeiro do Poder Público às instituições especializadas, desde que sejam
sem fins lucrativos, que atuem exclusivamente em educação especial e que atendam
aos critérios estabelecidos pelos órgãos normativos dos sistemas de ensino (art. 60).
No âmbito destas políticas eivadas de um otimismo pedagógico que coloca a
escola inclusiva no papel de redentora das injustiças sociais (JANNUZZI, 2004;
GARCIA, 2004) fica aberta, contraditoriamente, a possibilidade da educação das
pessoas com deficiência mental ser plenamente oferecida no âmbito de uma escola
especial pedagogizada e eivada, por sua vez, de um “otimismo pedagógico especial”
(FERREIRA, 1992, p. 105).
Neste sentido as mudanças vão se processando.
Com o intuito de buscar ampliar o conhecimento sobre as instituições
especiais de educação das pessoas com deficiência mental neste processo de
mudança, me aproximei de uma escola especial e procurei captar e analisar os
aspectos definidos como objeto deste estudo.
58
Capítulo II
Apontamentos sobre a Metodologia da Pesquisa
E, ainda nessas digressões que venho aqui me permitindo,
enfatizo o quanto acredito, cada vez mais, numa Ciência
que tenha a preocupação de aliar conhecimento científico à
dignidade de viver – não em um sentido pragmático, de
aplicação imediata (ou outras prescrições eivadas de
utilitarismo), mas em um sentido último de aliança entre
uma construção científica e a criação de oportunidade para
sua ressonância na vida – e este é um compromisso social.
Mas há, ainda, um terceiro integrante dessa aliança: o
pensar
filosófico,
legítimo
porta-voz
de
reflexões
“descompromissadas” (as aspas são importantes, em sua
ironia) que, em meu entender, precisa permear e imbricarse
no
perene
desafio
presente
nos
andaimes
que
sustentam a construção do conhecimento.
Lígia Assumpção Amaral (2001)
O estudo foi realizado em uma Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais
(APAE) 12 . Para analisar os mecanismos utilizados pela instituição especial para se
adequar às exigências legais e normativas no sentido de assumir a educação escolar
como eixo central de seu trabalho, compatibilizando-o com as necessidades especiais
de seus educandos, o primeiro passo foi delimitar a Educação Especial, a Instituição
Especial e a Deficiência Mental como as dimensões da realidade a serem analisadas
neste estudo. Esta opção se deu em função destas dimensões serem representativas
da nova configuração da educação especial expressa na legislação educacional
brasileira.
Mas, para a viabilização da análise das dimensões foi necessário eleger alguns
eixos representativos de cada uma delas. As dimensões e seus respectivos eixos
estão descritos no Quadro I.
12
Por solicitação da direção da instituição, o nome e a cidade onde está localizada a Escola não serão divulgados. A escola
especial onde a pesquisa foi realizada será denominada no trabalho “APAE” e estará destacada em itálico.
59
Quadro I: Dimensões da realidade segundo seus eixos de análise
Dimensões
Eixos de Análise
- modalidade de educação escolar a ser desenvolvida
Educação Especial
preferencialmente na rede regular de ensino;
- flexibilização e adaptação curricular;
- certificação de terminalidade específica.
- necessidade educacional especial;
Deficiência Mental
- níveis de apoio;
- atendimento preferencial em escolas comuns.
- escola organizada de modo similar às escolas comuns;
Instituição Especial
- atendimento exclusivo em educação especial;
- substituição da escola comum, quando necessário.
Assim, busquei apreender o sentido da Educação Especial, da Instituição
Especial e da Deficiência Mental, segundo os eixos de análise, nos documentos que
apresentam as diretrizes curriculares de uma instituição especial. Nesse sentido, os
documentos selecionados foram: a proposta curricular elaborada pela Federação
Nacional das APAEs (FENAPAES), APAE Educadora: a escola que buscamos, o
currículo elaborado pela instituição especial pesquisada, filiada à FENAPAES, e o seu
Relatório de Atividades do ano de 2002.
Contudo, considerei que a análise documental por si só não seria suficiente
para apreensão dos mecanismos utilizados pela instituição especial. Era preciso
eleger outra esfera institucional que expressasse tais mecanismos. A opção foi
analisar o discurso dos profissionais da equipe técnica da instituição por considerar
que uma mudança no sentido de implementar um perfil educacional necessariamente
incide sobre a atuação destes, haja visto a centralidade do papel das equipes
técnicas nas instituições especiais.
A decisão por analisar o discurso dos profissionais da instituição foi
confirmada após o primeiro encontro com a coordenadora pedagógica, no qual pedi
permissão para realizar o estudo naquela instituição. Nesta ocasião, a coordenadora
60
pedagógica me informou que a instituição especial passara recentemente por
algumas mudanças, entre as quais se destacavam a elaboração do currículo da
escola conforme exigências do Conselho Estadual de Educação e a alteração do
trabalho da equipe técnica que passou a atender os alunos nas salas de aula como
decorrência da orientação contida na proposta da APAE Educadora: a escola que
buscamos.
Considerei, então, que focar estas duas mudanças seria uma das vias de
análise já que ali residia, explicitamente, o foco da transformação institucional para o
seu reconhecimento como escola.
Outro aspecto a ser ressaltado é que as análises foram tecidas não só por
meio do discurso expresso nos documentos e no relato dos profissionais. Alguns
aspectos sustentam as análises em sua materialidade, por exemplo: carga horária do
trabalho educacional na instituição especial, conteúdos trabalhados, critérios de
agrupamento dos alunos na instituição especial etc.
No primeiro contato com a APAE a proposta do trabalho foi apresentada à
direção com o objetivo de definir a trajetória da pesquisa na instituição especial, que
se iniciou com a análise dos arquivos, conforme apresentado anteriormente.
O conhecimento do cotidiano institucional se deu por meio da análise das
concepções dos profissionais que vivenciam e que compõem o cotidiano institucional
acerca de suas experiências profissionais, principalmente no que se refere ao seu
papel na construção do trabalho pedagógico. Optei, então, por adotar a Análise de
Discurso como procedimento de investigação das concepções dos profissionais, por
conceber
a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade
natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a
permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação
do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do
discurso está na base da produção da existência humana. (ORLANDI,
2003, p. 15)
61
Por outro lado, dependendo dos procedimentos de investigação adotados, o
discurso poderia apenas reproduzir aspectos presentes nos discursos oficiais e
institucionais acerca das dimensões de análise Educação Especial, Instituição
Especial e Deficiência Mental. Então, a opção foi por tentar apreender as concepções
nas entrelinhas do discurso, propondo como ponto de partida a colocação: "gostaria
que você me falasse um pouco sobre o seu trabalho, sobre o que você quiser me
contar a respeito de seu papel aqui na instituição”. Adotando, assim, o procedimento
de investigação utilizado e analisado em trabalhos anteriores (MELETTI, 1997, 2003).
Inicia-se, assim, o segundo momento da investigação no qual os profissionais
que integram a equipe técnica da instituição participaram de uma seqüência de
entrevistas que objetivaram conhecer seu trabalho na instituição. Primeiramente, foi
feito um contato com cada um dos profissionais para que a proposta de trabalho e os
procedimentos da investigação fossem esclarecidos e para saber de sua vontade e
disponibilidade para participar da pesquisa. Todos os profissionais concordaram em
participar e, a partir desse momento, foram definidos local, data e horário de
realização de nossos encontros.
Participaram a diretora da instituição, a coordenadora do setor escolar, uma
psicóloga, uma assistente social, uma terapeuta ocupacional, uma fisioterapeuta e
uma fonoaudióloga, responsáveis pelo trabalho desenvolvido na instituição como um
todo.
O procedimento adotado consistiu em realizar entrevistas recorrentes nas
quais foi solicitado a cada participante que falasse sobre seu trabalho, a partir da
colocação já apresentada.
As entrevistas foram registradas em áudio gravador, o que possibilitou a
transcrição integral de seu conteúdo. Após a transcrição das entrevistas foi feita a
textualização do relato oral, com o objetivo de deixar o texto mais compreensível,
62
sem aspectos da linguagem oral que ao serem transcritos podem tornar o texto
ilegível para quem não tem acesso ao relato original.
Em seguida, os relatos foram organizados em um caderno de trabalho de
acordo com os diferentes assuntos abordados na primeira entrevista, para que
pudessem ser apresentados aos participantes nos encontros posteriores. O referido
caderno teve como objetivo a reapresentação cumulativa dos conteúdos para que
cada participante tivesse a oportunidade de completar, incluir novas informações ou
alterar as iniciais, explicar ou corrigir o que havia dito, dando assim continuidade ao
tema inicialmente proposto. A reapresentação foi feita oralmente de forma que os
conteúdos do encontro anterior fossem narrados ao participante e este pôde
interromper a narração quando achou conveniente.
Após a apresentação do conteúdo do caderno, quando o participante não teve
mais nada a acrescentar, foi solicitado a ele que relacionasse seu trabalho com o
trabalho pedagógico da escola analisando em que medida um sustenta o outro.
Cada sessão de entrevista foi encerrada quando o participante disse não ter
mais o que falar.
O procedimento de coleta do material empírico – entrevista recorrente –
auxiliou de forma preponderante a análise dos relatos. A organização dos relatos que
possibilitaram
a
seqüência
das
entrevistas,
também
foi
responsável
pelo
agrupamento dos conteúdos para posterior análise.
Primeiramente, os relatos foram divididos em falas.
As falas podem ser constituídas por uma ou mais palavras, expressões e
frases. Foram formadas a partir das entrevistas, tendo como base os assuntos
tratados por cada participante, e selecionadas de acordo com sua pertinência com o
interesse do estudo.
Posteriormente, foram realizadas sucessivas leituras das entrevistas e das
falas selecionadas (tendo sempre a transcrição da entrevista na íntegra como
63
suporte) com o objetivo de identificar os temas dominantes a partir do exame dos
dados e de sua contextualização. Vale ressaltar que os temas não foram elaborados
a priori, eles representaram os diversos assuntos discutidos por cada um
participantes. Os temas dominantes foram: Estrutura e organização institucional;
Caracterização dos alunos; Atuação profissional; Critérios de avaliação dos alunos;
Critérios de agrupamento dos alunos; Atendimento às famílias; Relação com a
comunidade; Encaminhamento dos alunos para outras instâncias sociais.
Identificados os temas, selecionou-se e agrupou-se as falas pertinentes a cada
um deles. Este procedimento foi realizado para cada um dos temas tratados por cada
participante.
O passo seguinte foi a construção de um dispositivo de interpretação que,
segundo Orlandi (2003, p. 59),
tem como característica colocar o dito em relação ao não dito, o que o
sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de
um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o
sujeito diz, aquilo que ele não diz mas que constitui igualmente os
sentidos de suas palavras.
Para isso, a mediação teórica é essencial, já que
não há análise de discurso sem a mediação teórica permanente, em todos
os passos da análise, trabalhando a intermitência entre descrição e
interpretação que constituem, ambas, o processo de compreensão do
analista. (ORLANDI, 2003, p. 62)
Buscou-se, então, apreender o sentido das dimensões Educação Especial,
Instituição Especial e Deficiência Mental, segundo cada um dos eixos de análise
propostos, no discurso dos profissionais que participaram do estudo.
Este
procedimento
permitiu
apreender
os
mecanismos
utilizados
pela
instituição especial para se adequar às exigências legais e normativas no sentido de
assumir a educação escolar como eixo central de seu trabalho, conforme será
apresentado a seguir.
64
Capítulo III
Os sentidos e os mecanismos presentes na
reestruturação da Instituição Especial
A promulgação da LDBEN 96 com a nova configuração da educação especial e
com a exigência das instituições especiais apresentarem atuação exclusivamente
educacional para fins de estabelecimento de convênios com o Poder Público
desencadeou uma reação imediata das instituições especiais filantrópicas que, por
meio de suas Federações e de seus representantes no poder legislativo, teceram
críticas veementes à nova Lei. Especificamente, a crítica incidiu sobre o fato do
financiamento destas por parte do Poder Público ficar condicionado ao atendimento
educacional,
exclusivamente.
Assim,
passaram
a
reivindicar
alterações
que
beneficiassem o que denominaram de “rede já existente de educação especial”.
A reação das instituições especiais está explicitada no Ofício 2010/97 enviado
pela Federação Nacional das APAEs (FENAPAES, 1997, p.01) à Secretaria de
Educação Especial do Ministério da Educação (MEC), que apresenta o “parecer
técnico sobre as questões da Educação Especial e do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental, que estão sendo abordados pela LDB”,
assinado pelo presidente da Federação, Deputado Eduardo Barbosa.
O documento expressa a preocupação da FENAPAES com o financiamento de
instituições especiais que atuem exclusivamente na área educacional. Primeiramente,
o documento afirma:
A lei determina que serão objeto do apoio governamental as de atuação
exclusiva na área de educação especial, criando a necessidade destas
instituições se reordenarem limitando a sua atuação, uma vez que
diversas delas atuam também na área de reabilitação, habilitação, saúde
e
assistência
social.
Este
fato
traz
um
novo
complicador
na
conceituação dos serviços de educação especial. (FENAPAES, 1997,
p. 02, grifos meus)
65
A indicação de que atuar exclusivamente na área educacional limita a atuação
das instituições especiais além de ser um complicador na conceituação dos serviços
de educação especial permite o entendimento de que as exigências legais colocam
em risco seu espaço social. A consideração de que a atuação educacional é restritiva
do trabalho confirma reabilitação, saúde e assistência social como eixos da atuação
da instituição, assim como o quanto as especificidades do atendimento de pessoas
com deficiência mental não se referem à educação escolar.
O
documento
também
explicita
a
preocupação
com
a
ameaça
de
descaracterizar e de inviabilizar o atendimento institucional na indicação de
ampliação da oferta de educação especial na rede regular de ensino:
A Lei 9.394/96 determina, ainda, que o poder público adotará, como
alternativa preferencial, a ampliação do atendimento aos educandos com
necessidades especiais na própria rede pública regular de ensino,
independente do apoio às instituições filantrópicas. Este parágrafo pode
levar à interpretação que não haverá nenhuma ampliação do
atendimento nas instituições não governamentais apoiada pelo
poder público. A ampliação só se dará na rede pública. Isto poderá
paralisar o atendimento. Ou reconceituamos o que é serviço de
educação especial público para além do tradicional serviço estatal
ou iremos prejudicar a rede existente. (FENAPAES 1997, p.02, grifos
meus)
Além disso, a Federação expressa a preocupação com a indicação de
municipalização da educação especial. Segundo o documento:
por interpretação, ao nosso entender dúbio da LDB e do papel das
instituições filantrópicas privadas, diversos municípios vêm colocando não
ser mais necessário apoiar trabalhos das APAEs ou de outras instituições
filantrópicas, uma vez que deverão criar rede especializada pública.
Adotam a política de eliminação ou investem na rede pública de educação
especial e deixam de investir na rede filantrópica, ou vão investir apenas
nos atendimentos de apoio aos alunos integrados. Não há uma visão
global sobre o assunto que contribua para a complementação de serviços
e parceria entre as redes para cumprir o desafio de oferecer
escola para todos. (FENAPAES 1997, p.03, grifos meus)
A interpretação de que assumir o caráter educacional se faz em detrimento
dos outros trabalhos aponta para a concepção de que a especificidade da educação
66
das pessoas com deficiência mental reside exatamente no não pedagógico, assim é
contraditório solicitar da instituição especial o atendimento daqueles que a escola
comum não consegue educar ao mesmo tempo em que exige-se sua pedagogização
para manutenção da parceria com o Estado no “desafio de oferecer escola para
todos”.
Assim a FENAPAES reivindica que as instituições especiais filantrópicas sejam
reconhecidas como entidades públicas de educação especial; que não fiquem
circunscritas às verbas municipais, já que a educação especial se insere em todos os
níveis educacionais, “desde que para responder às necessidades do educando e de
acordo com os princípios de inclusão” (FENAPAES, 1997, p. 02). Garantindo, assim,
os recursos para manutenção de seus quadros e de sua natureza de “especializada
em” sob o discurso de educação para todos.
Assim, o documento, considerando a amplitude dos serviços especializados
prestados à pessoa com deficiência, o dever constitucional do Estado para com a
Educação Especial, a precariedade quantitativa do atendimento oferecido pela rede
pública e os custos da educação especial, defende como linha de ação da Secretaria
de Educação Especial do MEC,
a publicação de formas alternativas para inclusão das instituições
filantrópicas de atendimento à educação especial no artigo segundo da
Lei 9.424, ou a ampliação do conceito de serviço público de
educação especial. Sugere-se uma regulamentação deste artigo ou
uma lei específica sobre o assunto, que contenha artigo com a seguinte
redação: poderão ser consideradas como entidades públicas de educação
especial as instituições filantrópicas regularmente registradas junto ao
MEC, que prestam serviços de natureza pública, têm controle comunitário
das verbas e não têm fins lucrativos. (FENAPAES, 1997, p. 05, grifos
meus)
Esta reivindicação, apesar de garantir o caráter totalitário das instituições
especiais, é coerente com atual configuração do Estado brasileiro no que se refere ao
seu processo de publicização, ou seja, a solicitação é de que estas entidades sejam
67
reconhecidas como instituições privadas de caráter público, pertinente aos “serviços
não exclusivos” do Estado.
Mesmo assim, o Estado não atende explicitamente as reivindicações da
FENAPAES e esta passa, então, a construir uma linha de ação cujo principal objetivo
é a estruturação de uma atuação prioritariamente educacional em suas instituições.
Assim, em 1997, iniciam-se as discussões desencadeadas pelo Plano Estratégico –
Projeto Águia, que teve por objetivo a elaboração de um “Eixo Referencial de
Atuação”, que estabelecesse “linhas gerais norteadoras para o Movimento Apaeano
quanto ao seu compromisso social frente à atual política educacional brasileira, de
possibilitar programas educacionais ofertados pelas escolas das APAEs” (FENAPAES,
1997, p. 11).
Como resultado do Projeto Águia, em 2001, é lançado pela FENAPAES a APAE
Educadora: a Escola que Buscamos, que sintetiza a proposta de unificação das ações
educacionais de todas as instituições federadas.
A APAE Educadora é uma proposta de ações educacionais elaborada pela
FENAPAES que tem por objetivo:
a inserção oficial das Escolas das APAEs na estrutura da educação
nacional, ofertando educação básica nos níveis de educação infantil e
fases iniciais do ensino fundamental, de forma interativa com as
modalidades de educação de jovens e adultos e educação profissional.
(FENAPAES, 2001, p.32)
A proposta busca unificar as ações pedagógicas das APAEs e estabelece como
ponto de partida
a construção de uma escola que tenha um compromisso social para com
todas as pessoas portadoras de deficiência mental. Além disso, visa
suprir a necessidade de atender às demandas sociais latentes e
sistematizar, na medida do possível, as ações pedagógicas das APAEs,
dentro de uma perspectiva formal de escolarização para a vida. A
proposta a APAE Educadora caracteriza-se como um instrumento de
identidade das ações educacionais do Movimento Apaeano, expressa pelo
compromisso de materializar “o direito de todos a uma educação de
qualidade”. (FENAPAES, 2001, p. 12)
68
A proposta focaliza a construção do projeto político pedagógico e a
organização do currículo como seu principal eixo. Apresenta a estrutura da APAE
Educadora no contexto da Educação Nacional, “expressando o objetivo de oferecer
oportunidades de experiências de aprendizagem e o reconhecimento oficial dessas
aprendizagens, sem discriminação de espaço e organização em que a mesma ocorre”
(FENAPAES, 2001, p.13).
A APAE Educadora: a escola que buscamos apresenta os princípios de
Educação para Todos e de Escola Inclusiva como norteadores da proposta, mas com
uma configuração bastante diferenciada.
Primeiramente, é preciso ressaltar que essa afirmação só é possível a partir
do entendimento que a proposta da APAE Educadora está estruturada sobre a
premissa de que viabilizará a construção de uma escola. Nesse sentido, pensar em
educação para todos e em escola inclusiva assume um outro contorno.
O documento apresenta o Movimento Apaeano como o responsável pela
educação das pessoas com deficiência mental no Brasil e como aquele que supre as
lacunas sociais e educacionais referentes a essa população. O que está posto é que o
seu reconhecimento como instância educacional contribui para que a oferta de uma
educação de qualidade para todos seja uma realidade em nosso contexto. Ou seja, o
direito à educação está garantido à pessoa com deficiência mental, mesmo que seja
o direito a uma educação não comum a todos e que não se insere em instâncias
educacionais também comuns a todos.
O entendimento de que o reconhecimento da instituição especial como
instância educacional é favorecedor da oferta de educação para todos, atribui ao
princípio escola inclusiva também um outro sentido. A APAE é considerada também
como uma instância favorecedora da inclusão social de pessoas com deficiência
mental na medida em que proporciona o acesso e a permanência dessa população à
escola.
69
Em todo o documento, a inclusão social é apresentada como um objetivo,
principalmente para aqueles inseridos nos programas de educação para o trabalho.
Por outro lado, a inclusão no sistema regular de ensino é colocada apenas como uma
possibilidade existente caso o aluno se desenvolva (em função do trabalho
institucional) e possa dar prosseguimento à sua escolarização em escolas comuns do
ensino regular. Cabendo à instituição especial avaliar e encaminhar o aluno, sendo
ressaltada a necessidade de considerar o sistema de progressão e de avaliação
adotado pela escola que irá recebê-lo.
Além disso, temos na proposta o entendimento de que a pessoa com
deficiência mental é aquela que, em função de suas condições específicas, não pode
estar preferencialmente na rede regular de ensino, como proclama a LDBEN 96. E
isso é utilizado como justificativa da necessidade da escola especial oferecer todos os
níveis educacionais, da educação infantil à educação para o trabalho. Conferindo à
escola especial o caráter de instância responsável e competente para oferecer a
modalidade de Educação Especial para pessoas com deficiência mental.
A APAE Educadora não indica em que circunstâncias o aluno com deficiência
mental deve ser considerado elegível para o ensino especial ou para outras
instâncias educacionais. Não faz a diferenciação de níveis de comprometimentos, não
indica as necessidades educacionais especiais acarretadas pela deficiência mental e
nem os níveis de apoio necessários. Assim, é possível o entendimento de que a
condição de deficiência mental, por si só, justifica o acesso e a permanência do aluno
em escolas especiais. Mais, a deficiência mental é considerada a necessidade
especial do aluno.
Assim, o que temos é a indicação de que todas as pessoas com deficiência
mental são elegíveis para a instituição especial. Ou, invertendo o sentido, toda
pessoa
com
deficiência
mental
pode
ser
considerada
como
aquela
que
preferencialmente não poderá freqüentar a escola comum. De um modo ou de outro,
70
o que temos é a condição de deficiência mental sendo o único critério a ser
considerado para que a pessoa seja institucionalizada.
Assim, a APAE Educadora apresenta uma proposta de organização e
estruturação cujo objetivo é a construção de uma escola de educação especial
inserida no sistema regular de ensino.
As diretrizes curriculares da APAE Educadora: a escola que buscamos adotam
o conceito de Educação Especial presente nas políticas educacionais, especialmente
na LDBEN 96. Assim, a Educação Especial é entendida como uma modalidade da
educação escolar, constituída por
um conjunto de recursos e serviços educacionais especiais organizados
para apoiar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços
educacionais comuns, de modo a garantir a educação formal dos
educandos que apresentem necessidades educacionais muito diferentes
da maioria das crianças e jovens. [...] A Educação Especial se insere na
transversalidade dos diferentes níveis de formação escolar (educação
infantil, ensino fundamental, médio e superior) e na interatividade com as
modalidades da educação escolar como a educação de jovens e adultos e
a educação profissional. (FENAPAEs, 2001, p. 27)
Este conceito subsidia a elaboração da proposta pedagógica apresentada pela
APAE Educadora que visa implementar a educação escolar nas instituições especiais
do Movimento Apaeano, entendendo que os serviços de apoio especializados são
aqueles ofertados pelas escolas especiais de atuação na área da educação especial,
realizado em parceira com as áreas da saúde, da assistência social e do trabalho.
Salienta, ainda, a importância de se considerar como serviços de apoio especializado
aqueles oferecidos para atender às especificidades dos educandos portadores de
deficiência, contudo, sem definir as características de tais serviços e como estariam
articulados em cada um dos níveis e das modalidades educacionais ofertados.
71
A Figura I apresenta as áreas de abrangência dos serviços ofertados pelas
APAEs.
FIGURA I: Abrangências dos serviços – APAES. Fonte: FENAPAES, 2001, p.25
A abrangência dos serviços ofertados pelas instituições especiais evidencia seu
caráter totalitário, haja visto que todas as esferas da vida estão circunscritas ao
espaço institucional, inclusive aquelas mais elementares, como a saúde, e aquelas
em que não há relação alguma com comprometimentos ou especificidades
decorrentes da condição de deficiência mental, como o lazer.
No que se refere à implementação da educação escolar nas APAEs, merece
destaque o fato da área educacional ser um componente associado a outros que não
caracterizam uma escola e da proposta da APAE Educadora se circunscrever a
apenas uma área de abrangência da instituição especial. Nesse sentido, o documento
sugere que
72
a proposta APAE Educadora: A Escola que Buscamos expressa as
aspirações e expectativas do Movimento Apaeano quanto à sua atuação
educacional, por meio de um projeto político-pedagógico voltado para
educandos portadores de deficiência mental e outras(s) associada(s),
atuando com a modalidade de educação especial na oferta dos seguintes
níveis e modalidades de ensino: Educação Básica, integrada pelos níveis
de educação infantil; ensino fundamental (fases iniciais); educação de
jovens e adultos; educação profissional. (FENAPAES, 2001, p. 36)
Assim, é possível o entendimento de que a educação especial é uma
modalidade de ensino a ser ofertada em uma instituição especial, de atendimento
global, a pessoas com deficiência mental. Não há referência quanto ao papel da
instituição especial como instância educacional destinada a substituir a escola regular
em casos extraordinários nos quais se evidencie a falta de condições desta em lidar
com as especificidades dos alunos.
No entanto, acredito que na ausência da referência explícita, no silenciamento
podemos apreender a concepção de educação especial, à medida que “há um modo
de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido” (Orlandi, 1995
p. 11). Os outros aspectos que compõem a forma como a educação especial é
concebida estão implícitos no “silêncio” da APAE Educadora.
Assim, a não indicação da instituição especial como um espaço de substituição
da escola comum denota o sentido de que para esta proposta educacional a
educação especial no que se refere à pessoa com deficiência mental é uma
modalidade de ensino a ser ofertada na instituição especializada que se organizará
de modo a oferecer todas as modalidades e níveis da educação básica. É possível
também apreender neste silenciamento o sentido da educação especial como um
sistema paralelo de ensino e também de que a educação da pessoa com deficiência
mental só pode ocorrer em instâncias que substituem a escola regular. Na proposta
da APAE Educadora, conforme apresentado na Figura II, a escola regular representa
a instância educacional para onde o aluno pode vir a ser encaminhado.
73
FIGURA II: Estrutura organizacional da APAE Educadora. Fonte: FENAPAES, 2001 p. 35
Vale ressaltar que pela quase inexistente menção a encaminhamentos para o
ensino regular, pode-se inferir que o “movimento” do aluno por esta estrutura
organizacional provavelmente se dê em seu sentido horizontal. Assim, a abrangência
da APAE Educadora como responsável pela modalidade de educação especial seria
melhor representada, conforme exposto na Figura III.
74
FIGURA III: Estrutura da Educação Nacional SENAC – SP e a abrangência da APAE
Educadora. Fonte: FENAPAES, 2001 p. 32.
A estrutura proposta enfatiza a identificação da APAE Educadora com a
Educação Especial. Da forma como a abrangência da APAE Educadora é apresentada,
é possível apreender que o reconhecimento da instituição especial como escola do
sistema regular de educação, associado ao seu caráter substitutivo da escola comum
em se tratando do atendimento à pessoa com deficiência mental, significa a não
necessidade de encaminhamento para outras instâncias educacionais. Ou seja, não é
preciso encaminhar o aluno, pois a escola especial oferece todos os níveis e
modalidades educacionais com as devidas especificidades garantidas. Nesse sentido,
educação especial é concebida como o trabalho institucional e a educação da pessoa
com deficiência mental é reduzida à educação especial implementada na escola
especial.
Outro destaque é o fato de serem oferecidos pela APAE Educadora apenas os
conteúdos elementares do ensino básico, o que permite a compreensão de que a
75
pessoa com deficiência mental não tem condições ou não necessita de outros níveis
de conteúdo. E mais, a oferta de todos os níveis e modalidades educacionais
reduzem ainda mais as possibilidades da pessoa com deficiência mental sair da
instituição especial e se inserir em instâncias regulares de ensino.
A modalidade de educação especial na instituição especial deveria contemplar
em sua proposta curricular as especificidades que a escola comum não consegue
abarcar, sem prejuízo daquilo que o aluno deveria receber na rede regular, e que
estão presentes no trabalho institucional. E qual seria a especificidade da educação
oferecida pela instituição especial, como apreendê-la?
Mais uma vez o olhar teve que ser direcionado para o silenciamento, para a
apreensão dos sentidos implícitos.
Os documentos oficiais, conforme apresentado anteriormente, indicam que a
substituição da escola comum por outra instância educacional se dá quando o grau
de comprometimento do aluno e suas conseqüentes necessidades educacionais
especiais forem de tal proporção que sejam inviáveis a flexibilização e adaptações
curriculares para atendê-las. Assim, é de se esperar que as instituições especiais,
substitutas
por
excelência,
desenvolvam
as
adaptações
e
as
flexibilizações
necessárias. Da mesma forma, a expectativa era encontrar na proposta curricular da
APAE Educadora a indicação de tais estratégias.
No que se refere à flexibilização curricular, há apenas a indicação de que “as
escolas das APAEs devem basear-se no currículo da rede regular de ensino,
flexibilizando-o
e
realizando
adequações
que
atendam
às
potencialidades
e
necessidades dos educandos” (FENAPAES, 2001, p. 34). Não há indicação de quais
seriam as adequações, de como seria feita a flexibilização e nem apontamentos ou
críticas do que seria necessário modificar nas estruturas curriculares e nas práticas
institucionais para se conseguir a inversão da instituição reabilitadora em escola.
Isso permite inferir o entendimento de que o trabalho já implementado na instituição
76
especial é por si só adequado e flexibilizado. Ou seja, o trabalho institucional já é
especializado no atendimento à pessoa com deficiência mental, centrado nas
condições e nas necessidades do aluno com deficiência mental.
O único caso em que adaptações curriculares são explicitadas é na
apresentação dos Programas Pedagógicos Específicos. Estes
inserem-se na proposta curricular da APAE Educadora destinando-se aos
educando a partir de 14 anos de idade portadores de deficiência mental,
associada, ou não, a outras deficiências. São
alunos
que
por
possuírem alterações profundas no processo de desenvolvimento,
aprendizagem
educacional
e
adaptação
diferenciada
social
que
requerem
atenda
às
uma
suas
proposta
necessidades
específicas. (FENAPAES, 2001, p.47, grifos meus)
Todavia, o objetivo da instituição especial não pode se reduzir a programas
específicos que são impossíveis à escola comum.
Aqui, merece destaque o fato dos programas pedagógicos específicos só se
inserirem na proposta curricular como uma possibilidade de trabalho educacional
para alunos a partir de quatorze anos de idade, quando se encerra o período de
obrigatoriedade da Educação Básica. Até atingir esta idade o aluno com “alterações
profundas no processo de desenvolvimento, aprendizagem e adaptação social” está
inserido em qual programa educacional, com qual adaptação curricular?
Parece que o caráter substitutivo não está na troca da escola comum pela
instituição especial, mas da última por ela mesma. Nisso está implícito que a partir
de determinada idade e de determinado grau de comprometimento o caráter
educacional não precise ser a tônica (inclusive documental) do trabalho institucional.
A terminalidade específica já é citada no documento de modo mais explícito. É
considerada conforme previsto no capítulo V, artigo 59, da LDBEN de 1996:
“terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para
a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências...”. É indicada
como o meio de certificação do aluno com deficiência mental, e o sentido
77
apreendido é de que esta é a única forma de conclusão de algum nível ensino para
esta população.
Operacionalizado o currículo nas dimensões estabelecidas pela presente
proposta, a certificação de conclusão de escolaridade ocorrerá,
através da terminalidade específica com características codificada
e/ou
descritiva,
desenvolvidas
explicitando
pelos
educandos
as
habilidades
portadores
de
e
competências
deficiência
mental,
observando os dispositivos legais vigentes e o regimento da instituição
(FENAPAES, 2001, p. 31, grifos meus).
Para isso, indica que é necessário que a escola se organize em “ciclos” ao
invés de adotar o sistema seriado. A vantagem apontada é que tal organização
permite a expansão do tempo para mais que os oito anos mínimos previstos na lei.
Segundo a APAE Educadora,
no contexto da educação especial, essa ampliação é muitas vezes
necessária
para
a
escolarização
de
educandos
portadores
de
deficiência(s). Quando isso ocorre, os sistemas de ensino podem se valer
dos programas da modalidade de educação de jovens e adultos para os
que não tiveram acesso à educação ou não deram continuidade aos
estudos na idade própria e, ainda, para educandos que levaram mais
tempo
no
período
escolar
em
decorrência
de
suas
necessidades
educacionais especiais/ deficiência(s). (FENAPAES, 2001, p. 33)
É interessante notar uma alteração no sentido dos “ciclos mais longos”. Ao
invés de uma alternativa à seriação, o sistema de ciclos é apresentado na instituição
especial como uma justificativa para o trabalho institucional destinado aos adultos
com deficiência mental. Além disso, fica subentendido que as pessoas com
deficiência mental necessitam apenas de um tempo mais longo para adquirirem os
conteúdos elementares do ensino fundamental. Na extensão do tempo reside outra
especificidade da educação especial na proposta curricular da APAE Educadora.
Assim, é possível o entendimento de que a educação especial é concebida na
proposta da APAE Educadora como uma modalidade de ensino a ser ofertada
extraordinariamente nas escolas comuns, sendo prioritariamente, no caso da
deficiência mental, ofertada na instituição especial reconhecida como escola
78
pertencente ao sistema regular de ensino. Estas indicações e suas conseqüências
podem ser melhor analisadas na estrutura curricular da instituição especial alvo
desta pesquisa, conforme será apresentado posteriormente.
A necessidade de ofertar os diferentes níveis e modalidades de ensino da
Educação Básica na APAE, que permite o seu reconhecimento como instância
educacional e que garante o seu financiamento por parte do poder público, implica a
implementação de uma prática educacional efetiva, que deve se caracterizar como o
eixo central do trabalho institucional.
Para isso, o documento orienta que:
as escolas das APAEs, de acordo com a proposta da APAE Educadora,
devem se organizar de modo a construir seu Projeto Político-Pedagógico,
garantindo sua autonomia e identidade institucional. O projeto deve ser
elaborado com a participação da comunidade escolar, como preconiza a
legislação, e deve ser convergente às características dos educandos e às
peculiaridade do contexto local. (FENAPAES, 2001, p. 34)
E, para a elaboração e operacionalização da proposta pedagógica orienta que:
as escolas das APAEs devem basear-se no currículo da rede regular de
ensino,
flexibilizando-o
e
realizando
adequações
que
atendem
às
potencialidades e necessidades dos educandos, tendo como referências
curriculares: Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
(MEC/SEF, 1998); os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino
Fundamental, compatíveis com os níveis de ensino com os quais atua
(MEC/SEF, 1998); a Proposta Curricular da Educação de Jovens e Adultos
(Ribeiro, 1999); os Parâmetros Curriculares Nacionais – Adaptações
Curriculares: Estratégias para a Educação de Alunos com Necessidades
Educacionais Especiais (FENAPAES, 2001, p. 34)
Sugere, ainda, que esses documentos trazem referências para a construção
não só do projeto pedagógico e da proposta curricular da escola, mas também dos
planos de ensino e dos projetos educacionais de cada escola. Assim, a elaboração
dos programas e dos procedimentos educacionais, da flexibilização e das adaptações
curriculares fica a cargo de cada APAE. Vale destacar o fato das Diretrizes
Curriculares
da
Educação
Nacional,
que
são
os
documentos
regulamentam a educação, não são citados como referências.
oficiais
que
79
A APAE Educadora traz diretrizes para a elaboração do Projeto Pedagógico da
escola e de seu Regimento Escolar, apresentando os itens que devem compor cada
um.
Além disso, a APAE Educadora traz volumes específicos sobre Arte e Cultura e
sobre Educação Física como subsídios para a “construção de uma proposta
pedagógica, integrando as áreas de Arte, Educação Física e Educação Profissional,
como suporte para a oferta de um atendimento educacional de qualidade”.
(FENAPAES, 2001, apresentação de cada volume).
Cada um dos volumes apresenta conteúdos referentes às áreas específicas e
como devem estar distribuídos em cada um dos níveis e modalidades educacionais
ofertados nas escolas das APAEs. Destaca-se, aqui, a ausência de conteúdos
referentes às áreas de conhecimento básico, visto que estão contemplados no
Currículo da rede regular de ensino, que deve ser a base da proposta pedagógica da
escola especial.
Outro aspecto a ser destacado é o fato das diretrizes não apresentarem a
instituição especial como a instância que pode substituir a escola comum caso esta
não tenha condições de atender o aluno em função de suas necessidades
educacionais especiais. Assim, como já analisado anteriormente, o que pode ser
apreendido é o entendimento de que instituição especial e educação especial são
sinônimas.
O caráter escolar é citado na APAE Educadora como algo a ser “buscado”,
construído. Para isso, a indicação é de que cada instituição especial deve se
organizar para oferecer todos os níveis e modalidades de ensino da educação básica.
O desdobramento desta orientação pôde ser analisado na forma como uma
instituição especial federada se organizou para ser reconhecida como instância do
sistema regular de ensino, conforme apresentado a seguir.
80
3.1 – A construção do perfil educacional da instituição especial expressa nos
documentos institucionais e na perspectiva de seus profissionais
A APAE foi fundada em 28 de agosto de 1964 por um grupo de pessoas
interessadas na causa das pessoas portadoras de deficiência. Até 1971, teve sua
existência apenas estatutária e, em maio de 1972, passa a ser mantenedora de uma
Escola Especial para pessoas com deficiência mental. Em 1999, por deteminação da
Secretaria Estadual de Educação, passou a ser denominada Escola de Educação
Especial... que está registrada na Secretaria de Educação do Estado, reconhecida
pela Resolução 842/93, obteve a primeira autorização de funcionamento pelo
Decreto Estadual N° 3179 de 07/03/1973, renovada em 19/07/2002, pela Resolução
N° 2963/2002.
Tem como missão:
Promover e articular ações de defesa de direitos, prevenção, orientações,
prestação de serviços e apoio à família direcionados à melhoria da
qualidade de vida da pessoa portadora de deficiência e a construção de
uma sociedade justa e solidária. (APAE, 2002, p. 03)
Destaca-se o fato de não apresentar como missão a educação da pessoa com
deficiência mental, mesmo em um documento elaborado em 2002, após seu
reconhecimento como escola regular.
Seu reconhecimento como instância de educação escolar pertencente à rede
regular de ensino se deu após sua reestruturação segundo os moldes do ensino
regular. Para isso, se baseou nos parâmetros curriculares da educação infantil, do
ensino fundamental e das diretrizes da APAE Educadora. A organização atual da
APAE nos mostra reflexos de tais parâmetros 13 .
A APAE, conforme seu Currículo de 2002, tem por objetivos:
-
Proporcionar atendimento educacional e de reabilitação à pessoa portadora de
deficiência mental, com fins de desenvolver suas potencialidades tornando-a
uma pessoa produtiva e integrada ao seu meio familiar e social.
13
A caracterização apresentada foi elaborada baseada nas informações obtidas no Relatório de Atividades da APAE de 2002 e
nas entrevistas realizadas (entre agosto de 2002 e fevereiro de 2003) com seus profissionais.
81
-
Proporcionar atenção integral à criança e ao adolescente através da construção
de uma filosofia de linha metodológica interdisciplinar.
-
Desenvolver os sub-programas de forma integrada, sem a prevalência de um
sobre o outro, utilizando-se todos os meios e recursos disponíveis para o
alcance das ações de caráter sócio educativo de atenção integral.
-
Proporcionar ao educando atendimento complementar, através do serviço social,
da psicologia, da fonoaudiologia, da fisioterapia e da terapia ocupacional, uma
vez que seja considerado necessário pelo setor responsável.
-
Resgatar a pessoa enquanto membro da sociedade em crise, preparando-a para
o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
-
Orientar pais e outros familiares, a fim de que possam integrar-se e colaborar
ativamente no processo de educação e reabilitação do indivíduo.
-
Formar e esclarecer a sociedade em geral, quanto às questões inerentes às
pessoas portadoras de deficiência mental e a parcela que lhe cabe no processo
de educação e reabilitação dessas pessoas.
-
Conceder estágios a estudantes e profissionais de áreas afins a educação e
reabilitação da pessoa portadora de deficiência mental no regulamento de
estágio da Escola de Educação Especial.
É interessante notar que os objetivos da escola especial não contemplam
especificamente a formação acadêmica do aluno e nem o seu caráter eminentemente
educacional, conforme exigência legal. Os objetivos apresentados convergem mais
aos do Movimento Apaeano, inclusive aos inicialmente propostos na ocasião da
inauguração da primeira APAE, em 1954, do que para aqueles expressos nos textos
oficiais que regulamentam a educação e a educação especial em nosso país.
No que se refere ao alunado, a Instituição Especial tem por objetivo educar e
reabilitar pessoas com deficiência mental. Os objetivos não expressam graus de
comprometimentos elegíveis para o atendimento especializado, isso será indicado
em outros momentos do documento, assim como no discurso dos profissionais,
segundo os quais a APAE atende pessoas com deficiência mental com grau de
comprometimento moderado e severo. O grau de comprometimento é definido pela
equipe técnica no processo de avaliação de triagem. Assim, se o grau de
comprometimento é leve, segundo a coordenadora pedagógica, o aluno é
encaminhado para o ensino regular ou suponhamos para uma creche,
uma pré-escola. Se ele é deficiente mental severo ou moderado ele fica
para nós, mas, suponhamos que ele tem um comprometimento motor
severíssimo, que ele não consiga nem ficar sentado, então a gente vai
82
ver junto com a fisioterapeuta, qual o prognóstico dele estar sentando, se
isto é possível, se ele nunca vai sentar... se ele nunca vai ter controle de
cabeça, ele vai ter, ele não vai ter, quanto tempo… da viabilidade dele
estar freqüentando uma escola, que são 4h de atendimento, com todas
as perspectivas educacionais e não só de manutenção de vida. Isso aqui
dentro da APAE, isso é uma especificidade nossa, não atende criança
portadora de deficiência mental profunda, por que?
Exige-se um
atendimento muito mais específico... até certo ponto clínico, e a gente
sabe que a sua condição cognitiva de aprendizagem acadêmica é mínima
e a sua estrutura de manutenção de vida é grande, visto que aqui é uma
escola e não um centro de atendimento. (Entrevista 01, Coordenadora
Pedagógica)
Não há referências às necessidades educacionais especiais e aos níveis de
apoio. Mais uma vez, no silenciamento temos implícitos os sentidos. Vale resgatar a
análise de Bueno (1997b) no que se refere ao termo necessidades educacionais
especiais e à sua imprecisão. O autor alerta para a necessidade de acrescentar a
espécie de sujeitos a qual estamos nos referindo.
No caso da deficiência mental, o que é acrescentado oficialmente ao termo
necessidades educacionais especiais é:
Deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à
média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas
a
duas
ou
comunicação;
mais
áreas
cuidado
de
pessoal;
habilidades
adaptativas,
habilidades
sociais;
tais
como:
utilização
da
comunidade; saúde e segurança; habilidades acadêmicas; lazer; e
trabalho. (BRASIL, 1999)
Ou seja, ao termo necessidade educacional especial é acrescentado uma
definição que não rompe com a concepção de associação dos déficits intelectual e
comportamental. O déficit intelectual significativamente abaixo da média mantém a
mensuração do quociente de inteligência como o eixo central de definição da
deficiência, o déficit no comportamento adaptativo mantém o entendimento de
comparação a um determinado grupo padrão cujo repertório comportamental seja
condizente com determinada faixa etária; o grau de afastamento destes padrões é a
indicação do grau de comprometimento; nisso não há nada de novo.
83
Jannuzzi (1996) aponta que esta associação entre déficit intelectual e
comportamental é um traço comum, presente de algum modo, em todas as formas
de conceituar a deficiência mental. As análises tecidas por Mendes (1995) também
indicam isso.
Contudo, o termo deficiência mental quando associado ao de necessidades
educacionais especiais, pode nos remeter a conceitos anteriores, como acontece na
APAE, ao definir que o aluno elegível para freqüentar a escola especial é aquele que
apresenta comprometimento mental moderado e severo. O que revela mais do que
graus de comprometimento.
O resgate do conceito de deficiência mental que classifica a condição em
níveis profundo, severo, moderado e leve nos mostra uma associação entre déficits
intelectual e de conduta adaptativa, sendo que “a inteligência é o foco central do
problema e, desse ponto de vista, o critério psicométrico para classificar é o mais
usado” (FOGUEL, 1972, p.39).
Foguel (1972, p. 40) nos mostra que em 1968 a Organização Mundial da
Saúde agrupou a deficiência mental em quatro níveis:
1 – Profunda, com QI abaixo de 20;
2 – Severa, entre 20 e 35;
3 – Moderada, entre 36 e 52;
4 – Leve, entre 53 e 70.
Os profundos necessitam de assistência permanente. São sempre
dependentes. Os severos requerem os mesmos cuidados, mas são
passíveis de treinamento simples. Os moderados são susceptíveis de
treinamento sistematizado para os hábitos de vida diária. Quanto aos
levemente retardados, constituem o maior grupo. São considerados
educáveis por meio de métodos especiais.
Encontramos um detalhamento de cada um dos níveis em Queiroz e PerezRamos (1979, p. 70). Para os autores, cada um dos níveis de comprometimento
pode ser caracterizado, segundo a faixa etária, de acordo com o Quadro II.
84
Quadro II: Níveis de retardo em função dos períodos evolutivos. Fonte:
adaptação de Queiroz e Perez-Ramos (1979, p. 70).
Níveis
Propor-
Maturidade e desenvolvi-
Educação
ção
mento (idade pré-es-colar:
profissional (idade escolar
fissional (adultos: 21 anos
0 a 6 anos
7 a 20 anos
em diante
-
Moderado
(treinável)
6%
QI: 40-54
atraso
acentuado
no
-
e
treinamento
beneficia-se
do
treina-
Adaptação
-
social
possui
e
pro-
habilidade
para
desenvolvimento intelectual
mento da comunicação ver-
desempenhar ocupações sim-
motor e da linguagem;
bal;
ples de trabalho produtivo,
- capacidade insuficiente de
- pode adquirir atitudes so-
com supervisão imediata;
adaptação social;
ciais e primárias;
-
- responde ao treinamento
- é capaz de desenvolver
para participar de atividades
das habilidades básicas e
hábitos de higiene pessoal;
recreativas na comunidade;
dos hábitos de auto-ajuda.
- tem possibilidades de ad-
-
quirir habilidades vocacio-
operar
nais primárias;
tenção;
- pode reconhecer palavras
- pode andar e viajar sozinho
simples escritas e adquirir
em
conceitos básicos de núme-
familiares.
conta
com
possibilidade
possui condições
para
lugares
de
sua
que
co-
manu-
lhe
são
ros.
Severo
(subtreinável)
- marcado atraso no de-
- aprende cumprir ordens
- tem possibilidade de realizar
senvolvimento
simples e comunicar-se a-
atividades
sensorial e motor;
través de sentenças curtas;
rotina diária;
- habilidade mínima para
-
-
comunicar-se;
mento sistemático de hábi-
dades para proteção de si
tos de convivência;
mesmo, em ambiente contro-
-
QI: 25-39
3,5%
pode
intelectual,
responder
treinamento
de
ao
hábitos
beneficia-se
do
treina-
pode
repetitivas
desenvolver
e
da
habili-
- locomove-se com inde-
lado.
simples de auto-ajuda (ex.
pendência
- pode contribuir, de alguma
alimentar-se)
mente;
forma, para sua própria ma-
- pode ser treinado em
nutenção, sempre que haja
algumas habilidades manu-
supervisão constante.
e
intencional-
ais simples.
Assim,
estamos
diante
de
um
conceito
e
de
uma
classificação
de
comprometimento mental que afirmam a não educabilidade da pessoa com
deficiência mental moderada e severa, nem em ambientes especiais de ensino.
Evidencia que o aprendizado está limitado a aspectos de hábitos diários, de rotina e
de cuidados pessoais, além da dependência quase constante de supervisão de outras
pessoas.
Vale destacar que para freqüentar a instituição, a pessoa com deficiência
mental pode ser encaminhada por qualquer membro da comunidade: família,
profissionais
das
áreas
de
saúde,
educação
e
serviço
social,
vizinhos
etc.
85
Primeiramente, é feita uma sondagem pela direção da instituição para verificar se é
ou não um caso para ser avaliado. Se sim, a pessoa fica em uma lista de espera e, à
medida que surgem vagas na escola, inicia-se o processo de triagem e avaliação.
Via de regra, a pessoa já vem diagnosticada como deficiente mental, cabendo
à instituição especial avaliar o grau de comprometimento Os setores de psicologia,
pedagogia e assistência social realizam entrevistas com a família e avaliação do
aluno. Cabe aos setores de psicologia e de pedagogia diagnosticar e classificar o grau
de comprometimento da pessoa e definir se é caso para a instituição ou não. O
diagnóstico do grau de comprometimento é feito através de avaliação psicométrica
com a aplicação testes de inteligência, de personalidade, de prontidão e com o uso
de escalas de desenvolvimento. Quando não existe a possibilidade de usar
instrumentos de testagem, os profissionais realizam observações em situações
variadas.
Após a avaliação psicológica, caso esteja com mais de seis anos, o candidato
passa por uma avaliação pedagógica para avaliação do nível cognitivo. Para esta
avaliação são utilizadas escalas de desenvolvimento (Portage, Provas Operatórias...).
Quando é definido que o candidato é uma pessoa que apresenta deficiência
mental em nível moderado ou severo, associada ou não a outros comprometimentos,
os outros profissionais realizam suas avaliações.
Também foi possível apreender que a deficiência mental é analisada a partir
dos déficits dos alunos e entendida como uma condição que apresenta peculiaridades
que demandam atendimento especializado de saúde, de educação, de reabilitação e
de assistência social. Os sentidos de imaturidade e de dependência da pessoa com
deficiência mental como características inerentes à condição estão presentes, de
diferentes formas, nos discursos de todos os profissionais. Somam-se a isso as
premissas do assistencialismo e da filantropia que sustentam o entendimento de que
86
lidar com esta condição de deficiência mental é algo que só a Instituição Especial faz
e pode fazer.
A crença na dependência da pessoa com deficiência mental está presente no
entendimento de que o deficiente não tem autonomia para lidar com situações
básicas de sua vida (alimentação, higiene pessoal), o que é coerente com alguns
níveis de comprometimento. Por outro lado, ela está expressa na compreensão de
que
esta
condição
impede
a
pessoa
de
atuar
no
seu
próprio
cotidiano,
independentemente do grau de comprometimento.
Porque, o que é que acontece? Os nossos alunos não vão chegar numa
chefia e falar: o professor não está dando nada, eu estou vendo revistas
4h, eu estou só pintando... Então, felizmente ou infelizmente esse é o
meu padrão. Eu
tenho
que
ser
os
olhos,
os
ouvidos
e
a
reivindicação dos nossos alunos. Porque o professor fecha a porta
dele e lá ele dá o que quer. E ele pode me mostrar um planejamento
belíssimo, mas e daí? Porque realmente os nossos alunos eles não vão
reivindicar. (Entrevista n° 02 Coordenadora Pedagógica)
Esta forma de conceber a deficiência mental acentua “a sua subordinação aos
outros, esmaecendo a própria identidade, tornando-o até aquele que precisa
emprestar a voz de outrem para se fazer ouvir” (Jannuzzi, 1994 p. 22).
A crença na imaturidade e na permanência de uma condição intelectual e
comportamental infantilizada também pôde ser apreendida. Destaca-se a ênfase na
utilização de parâmetros curriculares da educação infantil (0 a 6 anos) como
referência inclusive para os alunos dos níveis escolares (7 a 16 anos); a utilização de
atividades pré-escolares tendo por base mais o nível cognitivo do que a faixa etária
do aluno; a referência constante às “crianças” da escola mesmo para designar
pessoas com 19, 20 anos.
Mas a infantilização do deficiente mental não é algo circunscrito a esta
instituição especial. Conforme discutido no primeiro capítulo do presente trabalho, a
infantilização foi destaque nas análises de várias pesquisas da área e também é um
componente marcante do caráter totalitário da instituição especial. Mesmo assim,
considero oportuno tecer uma consideração sobre esta crença.
87
O fato de termos a deficiência mental definida a partir da mensuração da
inteligência (déficit intelectual) e da análise do comportamento adaptativo evidencia
dois parâmetros de comparação entre normalidade e anormalidade.
O primeiro, mensuração da inteligência, tem como parâmetro a razão entre
idade cronológica e a chamada idade mental da pessoa testada. Assim, quando há
um distanciamento acentuado entre ambas, temos o afastamento da média
considerada normal, para mais ou para menos. Significa dizer que alunos com
deficiência mental moderada apresentam idade mental inferior à cronológica de
modo acentuado, haja vista a estimativa de QI, conforme resgatamos anteriormente.
Contudo, esta forma de compreender a deficiência mental se traduz no cotidiano
institucional como a necessidade de planejar o trabalho direcionando-o para a “idade
mental” do aluno ao invés de para a cronológica.
O segundo, comportamento adaptativo, nos remete à associação entre idade
cronológica e o repertório comportamental do aluno. Assim, o descompasso entre a
idade do aluno e a forma como atua em seu ambiente é que determina seu grau de
comprometimento. Nesta perspectiva o trabalho é planejado tendo por base o déficit
no repertório comportamental.
Em ambos os casos o que temos é a condição de deficiência mental, ou seja o
déficit, direcionando as formas de significar e de lidar com o aluno.
Diante do exposto é possível a análise de que a deficiência mental é concebida
a partir do rótulo de deficiente, sustentado por conceitos e sistemas de classificação,
fazendo
com
que
as
possibilidades
e
as
potencialidades
do
aluno
sejam
desconsideradas e, acima de tudo, fazendo com que a pessoa não seja considerada
para além de sua deficiência. E mais: sustentada pela crença na ineducabilidade do
aluno, seja em instâncias especiais ou comuns de ensino. Isso reforça o
entendimento da impossibilidade de estruturar outro trabalho que não o já instituído.
Daí a ênfase na reabilitação em detrimento da educação e o entendimento de que ela
88
é condição para o trabalho pedagógico, o que é coerente com a preocupação
expressa no Ofício 2010/97 da FENAPAES de que a implantação do perfil educacional
limitaria o atendimento já ofertado.
No que se refere à estrutura institucional, temos a divisão da escola em dois
setores: setor escolar e setor profissionalizante.
O Setor Escolar atende alunos de zero a dezesseis anos de idade em
programas de educação precoce, pré-escola, escolar e de educação para o trabalho.
Segundo o Relatório de Atividades, o objetivo do setor escolar é:
Proporcionar ao aluno de 0 a 16 anos, atendimento educacional que seja
adequado
às
suas
necessidades,
favorecendo
desta
forma
o
seu
desenvolvimento global, bem como as suas habilidades e competências,
possibilitando assim a sua independência, a integração social e a
construção da cidadania (p. xxx).
No ano de 2002, a APAE em seu setor escolar atendeu a 124 alunos
distribuídos em 21 turmas conforme apresentado no Quadro III.
Quadro II: Estrutura do Setor Escolar segundo número de alunos e distribuíção por
níveis, programas e modalidades.
Fonte: Relatório de Atividades de 2002 da
Instituição Especial.
NÍVEL
Educação
Infantil
Ensino
Fundamental
TOTAL
IDADE
Nº
TURMAS
Nº
ALUNOS
Educação Precoce
0 a 04 anos
01
12
Programa
Pedagógico
Especifico I
04 a 06 anos
01
14
PROGRAMAS
MODALIDADES
PréEscolar
Fase I, II, III
04 a 06 anos
03
07
Escolar
Ciclo I
Fase I e II
07 a 16 anos
10
58
07 a 16 anos
06
33
0 – 16 anos
21
124
Programa
Pedagógico
Específico II
05
02
89
Ainda de acordo com o Relatório de Atividades, os objetivos de cada um dos
programas desenvolvidos pelo referido setor são:
− Educação Precoce: estimular o desenvolvimento do educando de 0 a 4
anos de idade, através de atividades lúdicas, amparadas pela Escala de
Desenvolvimento Portage.
− Pré-escolar: estimular o desenvolvimento global dos alunos dos níveis
maternal, jardim e pré-escolar, através de atividades concretas e
lúdicas dentro de uma visão construtiva da aprendizagem.
− Programa pedagógico específico I: proporcionar a aquisição de rotina
escolar e adaptação do aluno ao grupo através de um atendimento
individualizado.
− Escolar: proporcionar ao educando a aquisição da leitura e da escrita
bem como as operações aritméticas, dentro de uma abordagem
construtivista, facilitando desta forma sua aprendizagem.
− Programa pedagógico específico II: proporcionar atividades de vida
prática e de vida diária bem como a educacional adaptada, visando a
independência pessoal e a integração do aluno.
O Relatório não apresenta as atividades desenvolvidas nas salas de aula, nem
os conteúdos trabalhados em cada um dos níveis e modalidades.
Vale ressaltar que o Relatório de Atividades elaborado pela APAE é um
documento oficial que serve como base para a avaliação da instituição pelos órgãos
do Poder Público. Também é necessário destacar a distinção do que está posto no
relatório com relação à estrutura do Setor Escolar e a forma como os profissionais
entrevistados o caracteriza. Assim temos que a Educação Precoce segundo a APAE
Educadora: a escola que buscamos
tem como finalidade precípua promover o desenvolvimento integral e o
processo
de
aprendizagem
da
criança
de
modo
a
ampliar
suas
perspectivas educacionais, sociais, e culturais [...] O programa objetiva,
ainda, evitar o surgimento de seqüelas adicionais (no caso de bebês de
risco) e minimizar o efeito de deficiências ou defasagens já existentes.
(FENAPAES, 2001, p. 38)
São elegíveis para ingresso no programa as crianças consideradas de alto
risco 14 , com deficiência mental e outras deficiências associadas a esta, com atraso
14
O conceito adotado pela APAE Educadora é o proposto pela Política Nacional de Educação Especial do MEC (1994). São
consideradas crianças de alto risco “as que têm o desenvolvimento ameaçado por condições de vulnerabilidade decorrentes de
fatores de natureza somática, como determinadas doenças adquiridas durante a gestação, alimentação”.
90
no desenvolvimento neuropsicomotor. O programa se inicia após o nascimento e
pode prosseguir até os três anos e onze meses.
Na APAE os atendimentos são individualizados e realizados duas vezes por
semana com profissionais das áreas da pedagogia (quarenta e cinco minutos), da
fisioterapia (trinta minutos), da fonoaudiologia (uma vez por semana com duração
de trinta minutos) e da terapia ocupacional quando há necessidade.
O trabalho pedagógico é norteado pela Escala de Desenvolvimento Portage e
pelos Referenciais Curriculares Nacionais (RCN) específicos para a Educação Infantil,
buscando desenvolver as áreas cognitiva, motora, da linguagem, de independência e
de socialização. Os conteúdos são apresentados de forma sintetizada sem que haja
indicação de como podem ser trabalhados e nem por quais áreas. A título de
ilustração, transcrevo os conteúdos indicados para o trabalho da área de linguagem:
Linguagem: sons guturais; balbucio; imitação; ordem simples/complexa;
linguagem receptiva (expressiva); sons onomatopaicos; interpretação de
cenas. (APAE, 2002)
A família é orientada pela equipe e a mãe, sempre que necessário, acompanha
os atendimentos do filho, que ocorrem concentrados em dois dias da semana. Esta
forma de implementar o atendimento no programa de Educação Precoce é justificada
pela condição sócio-econômica das famílias e também como uma forma de evitar o
desgaste dos bebês. O entendimento é que se os atendimentos estivessem diluídos
no decorrer da semana para que a criança freqüentasse a instituição todos os dias,
as famílias abandonariam os atendimentos já que isso interferiria na rotina de
trabalho das mães.
Quando a criança tem aproximadamente dois anos e meio, são organizados
subgrupos e o trabalho individual passa a ser feito com duas ou mais crianças no
mesmo horário, mantendo-se os objetivos individuais. Um dos critérios utilizados
para este agrupamento é o tipo de deficiência que a criança apresenta (por exemplo,
mesma síndrome). Assim, prolonga-se o atendimento e prepara-se as crianças para
91
freqüentarem o maternal. Esta preparação é feita até a criança atingir quatro anos e
passar a freqüentar os programas de Educação Infantil. Caso não haja condições de
agrupamento, nesta idade a criança começa a freqüentar alguns espaços coletivos da
instituição, como o refeitório e o parque, com a supervisão de um dos profissionais.
Já
a
Educação
Pré-Escolar
tem
por
objetivo
“proporcionar
condições
adequadas e favoráveis ao seu desenvolvimento nas dimensões física, emocional,
cognitiva e social” (FENAPAES, 2001 p. 40).
Atende crianças de quatro a seis anos nos níveis Maternal, Jardim 1 e Préescola. São elegíveis para ingressar no programa crianças egressas do programa de
educação precoce da Instituição Especial e de outras instituições, com deficiência
mental associada, ou não, a outras deficiências e com atraso no desenvolvimento.
O trabalho pedagógico é orientado pelos Referenciais Curriculares Nacionais
da Educação Infantil, criando-se estratégias de ensino diferenciadas que respeitem o
ritmo de aprendizagem do aluno. As atividades são mais diversificadas e com curta
duração, o trabalho concreto e em partes é priorizado. As áreas a serem trabalhadas
com a criança se mantêm, ampliando-se seu tempo de permanência na instituição:
quatro horas diárias. O trabalho é realizado em conjunto com os profissionais das
áreas de psicologia, fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional.
De acordo com a proposta da APAE Educadora
ao finalizar a educação pré-escolar, o aluno, mediante um processo
avaliativo, poderá ser encaminhado para o ensino fundamental nas
escolas regulares da comunidade. Se indicado pela avaliação, ele pode
permanecer matriculado na escola especial da APAE para continuidade de
seu processo educacional (FENAPAES, 2001, P. 40).
A avaliação é feita pela equipe de profissionais da APAE e prioriza os aspectos
cognitivos da criança.
Alguns aspectos merecem destaque em função dos objetivos do presente
trabalho.
92
O primeiro deles se refere ao início do atendimento ser proposto a partir do
nascimento da criança. Isso indica que quando a deficiência é identificada o
encaminhamento para instituição especial é imediato sem que se considere a
possibilidade de atendimento em outras instâncias da comunidade, principalmente da
saúde. Por outro lado, pode indicar também que em vários locais as instituições
especiais sejam a única opção de atendimento o que denota o afastamento do
Estado no que se refere não só à educação, mas também à saúde desta população.
O segundo diz respeito ao caráter quase que exclusivamente clínico do
atendimento desenvolvido no programa de educação precoce. Aqui, inclusive o
atendimento pedagógico tem este perfil, que é também sustentado pelo caráter
preventivo da educação especial, explicitado nos documentos. Nas práticas da APAE,
esse atendimento, assim caracterizado e circunscrito ao espaço institucional significa
a “institucionalização precoce” da pessoa com deficiência mental. Os profissionais da
APAE relatam o acompanhamento de uma criança que se iniciou em seu décimo dia
de vida.
Isso pode ser analisado sob duas perspectivas: a primeira é a de que a
criança é encaminhada por não haver o atendimento em outras instâncias da
comunidade, denotando a omissão do Estado que engendra e é engendrada pelo
atendimento
oferecido
na
instituição
especial;
a
segunda
é
a
de
que
o
encaminhamento é feito em função da instituição especial ser identificada como o
local mais adequado para atender a esta população. O que pode ser apreendido é
que a instituição se constitui como o locus social da deficiência mental e adquire o
status de especializada no atendimento global desta população.
A LDBEN 96 em seu artigo 58 §3º indica que a educação especial, dever
constitucional do Estado, tem início na faixa etária de zero a seis anos, durante a
educação infantil. Área, segundo Ferreira (1998, p. 11), “em que o atendimento
educacional ao aluno com necessidades especiais é ao mesmo tempo tão escasso
93
quanto importante”. Importante em dois sentidos: das necessidades especiais da
criança, decorrentes da condição de deficiência e da possibilidade de antecipar a
inserção no sistema comum de ensino para os primeiros meses de vida, por exemplo
em Centros de Educação Infantil que oferecem o atendimento em berçários.
Por outro lado, ao analisarmos a implementação da educação infantil na APAE
o que pôde ser apreendido foi a constituição do caminho inverso: o da
institucionalização
precoce,
significando
uma
verticalização
(para
baixo)
da
segregação da criança com deficiência, que é retirada da escola comum antes
mesmo de chegar lá. O que reitera e potencializa a possibilidade de não
encaminhamento para o ensino regular.
Mas apreendemos um outro sentido do trabalho implementado no programa
de
educação
precoce
na
Instituição
especial.
As
poucas
crianças
que
são
encaminhadas para a escola comum saem
... da educação precoce. Então lá na educação precoce a gente já
começa... geralmente são crianças de alto risco tipo PC (com paralisia
cerebral), você vê que ele tem um comprometimento motor, mas a parte
cognitiva está preservada. Então o atendimento vai compensando essa
parte motora que não funciona com a parte cognitiva. Aí a gente
encaminha para a escola. O grosso do nosso encaminhamento é PC da
educação precoce. [...] Nós temos claro que não podemos ficar segurando
ele por muito tempo, porque ele vai acabar de certa forma perdendo
algumas coisas, por mais que a professora trabalhe diferenciado, lá fora
ele vai ter muitos modelos, ele vai ter um conteúdo mais profundo.
(Entrevista n. 01 Psicóloga)
Mas, não há consenso entre os profissionais e as críticas incidem sobre este
mesmo aspecto.
Eu já interroguei todo mundo aqui na escola é bebê de risco, risco do que?
De deficiência mental? Aí a criança fica numa APAE quatro anos, e aí aos
quatro anos ela vai para o ensino regular, se não tiver a deficiência
mental. Só que como ex-aluno da APAE e a gente sabe o que isso
significa...
Mas, a gente vê que tem PCs aqui pequenos de três, cinco anos que dão
resposta de criança normal, que não tem atraso cognitivo e que estão na
instituição com a justificativa que ele precisa adquirir rotina de escola
para ser encaminhado. Como é que vai aprender rotina de escola aqui
94
com os atendimentos do jeito que são feitos? (Entrevista n. 02
Fisioterapeuta)
Aqui evidencia-se uma contradição: o programa de educação precoce da APAE
é ao mesmo tempo uma via de institucionalização precoce e uma das poucas portas
de saída da Instituição Especial, já que
são raríssimos os casos de alunos eu encaminhei que já freqüentavam um
ano de sala de aula ou freqüentaram no máximo dois anos e já foram
encaminhados. (Entrevista n. 02 Psicóloga)
Outro aspecto que merece destaque é a proposta da APAE Educadora enfatizar
a omissão do Estado no atendimento precoce da população com deficiência mental
para reiterar o seu papel de instituição privada que presta serviço público:
o
programa
de
educação
precoce
não
costuma
ser
oferecido
sistematicamente pelo poder público, sendo rara sua oferta, mesmo nas
grandes cidades. Constitui, portanto, uma significativa contribuição da
APAE Educadora ao cumprimento da Constituição Federal (FENAPAES,
2001, p. 39)
O que temos aqui é a explicitação do caráter substitutivo, não da escola
comum pela especial, mas do dever do Estado (previsto na lei) pelo “apoio” do favor
privado da instituição especial.
No nível Escolar a distinção entre o conteúdo do Relatório de Atividades e o
discurso dos profissionais se evidencia.
Este nível atende alunos de sete a dezesseis anos. O trabalho é direcionado
pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino fundamental e pelos
Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Infantil.
Vale ressaltar a presença dos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação
Infantil como um dos parâmetros para o trabalho com alunos de sete a dezesseis
anos e os conteúdos presentes no currículo da APAE reiteram a ênfase em atividades
pré-escolares para as diferentes faixas etárias. Por exemplo, conteúdos como noção
corporal e espacial e discriminação de cores estão previstos no trabalho de
treinamento básico, independente da faixa etária.
95
Por outro lado, durante o processo de elaboração da proposta curricular da
APAE os profissionais estruturaram programas cujos conteúdos correspondem até ao
terceiro ano do ensino fundamental.
Quando eu pedi para ir até a terceira série, algumas professoras falaram
assim: mas é utópico, imagina... Aí eu falei assim: não é importante a
gente ter um parâmetro maior para não ficar na mesmice? E se o aluno
começar a ir, como que você vai? Você vai ficar no achismo? Não é
melhor a gente já ter alguma coisa pré determinada? Por que, realmente,
se a gente vê que ele está caminhando rápido e se aproximando disso, ele
não vai ficar aqui mesmo, eu vou encaminhar ele rapidinho para a escola
regular. Então, eu quero que vocês tenham o máximo de parâmetros para
não ficar naquilo: ele não vai chegar. A gente não sabe, a gente não pode
determinar. Então, o currículo está muito além mesmo, porque eu acho
que tem que ter um parâmetro. O professor não pode ficar preso naquilo,
olha, o deficiente só aprende isso. (Entrevista n. 01 Coordenadora
Pedagógica)
Assim, a oferta de um grau de escolaridade que corresponde à terceira série
do ensino fundamental acontecerá em casos extremos, nos quais o aluno surpreenda
e supere o nível de ensino implementado na instituição. A indicação de que caso isso
ocorra o aluno será encaminhado para a escola comum permite inferir que os
conteúdos pedagógicos trabalhados na APAE não ultrapassem os níveis elementares
do ensino fundamental, em função do grau de comprometimento dos alunos, já que
aqueles que avançam no processo de escolarização seriam, em tese, encaminhados.
Se resgatarmos as colocações da psicóloga sobre os encaminhamentos feitos para o
ensino regular e contrapormos ao discurso da coordenadora pedagógica, vamos
perceber que a oferta de conteúdos da terceira série do ensino fundamental é algo
hipotético na APAE.
Outro aspecto a ser destacado é a forma como a APAE se organiza para
atender seus alunos no setor escolar. Para melhor compreendê-la, é preciso antes
esclarecer que os critérios adotados pela instituição para o agrupamento dos alunos
são equivalência de faixa etária e, principalmente, de nível cognitivo (leia-se grau de
comprometimento).
96
O setor escolar é composto por cinco níveis denominados de Escolar Um,
Escolar Dois, Escolar Três, Escolar Quatro e Escolar Cinco. Cada um dos níveis possui
diferentes turmas que são montadas no início de cada ano de acordo com as
necessidades da escola. Assim, em um ano o setor pode oferecer o nível Escolar
Cinco com duas turmas e, em outro, não precisar ofertar nenhuma turma pela
ausência de alunos aptos a freqüentá-lo.
O Escolar Um corresponde ao nível mais elementar e atende os alunos com
comprometimento severo. Mas, também, é o primeiro nível após a pré-escola. A
distinção é feita na composição dos grupos (idade e grau de comprometimento) e
também na distribuição destes: mais novos e menos comprometidos no período
matutino e mais velhos e mais comprometidos no período vespertino. Então, pode
ter uma turma de Escolar Um para alunos com comprometimento severo de
aproximadamente doze anos e uma turma de Escolar Um para alunos com
comprometimento moderado de aproximadamente sete anos.
O critério de transferência de um nível para o outro é o desenvolvimento
cognitivo do aluno e pode ocorrer tanto para níveis superiores quanto inferiores. A
transferência não ocorre somente ao final de períodos letivos, a qualquer momento o
aluno pode mudar de nível ou de turma desde que seja considerado oportuno pela
equipe pedagógica. Assim, em um ano o aluno pode freqüentar vários níveis de
acordo com seu desenvolvimento cognitivo, da mesma forma que pode ficar vários
anos em um único nível, mudando apenas de grupo em função de sua idade.
Com relação aos conteúdos ministrados, existe um planejamento específico
para cada turma respeitando as possibilidades dos alunos. O conteúdo acadêmico
formal é oferecido para os alunos com comprometimento moderado e, para aqueles
cujo comprometimento é considerado severo, as atividades são direcionadas para
noções de higiene, cuidados pessoais e atividades de vida diária.
97
O treinamento básico é oferecido também para alunos com comprometimento
moderado/severo
que
não
acompanham
as
atividades
acadêmicas
formais
(matemática, escrita, cores...) em um nível denominado: Educação para o Trabalho.
Este nível prioriza a preparação para entrar no setor profissionalizante da instituição
por meio de atividades funcionais com o objetivo de trabalhar habilidades
ocupacionais. Destaca-se o fato deste ser um programa
que não tem nomenclatura definida, porque a Federação coloca que a
iniciação para o trabalho é uma nomenclatura do profissionalizante e eu
tenho uma turma que de educação para o trabalho dentro da escolaridade
que eu chamo de escolar dois, mais ou menos assim. São aqueles alunos
que sempre foram trabalhados dentro da escolaridade e não eram
totalmente severos. Como que eu posso dizer… sabe aquele meio termo?
Que tem outros alunos, é... e isso é muito desafiador... dentro do meu
processo de orientação, eu procuro dar muita chance para o aluno, eu
prefiro colocar que ele é mais dentro do moderado do que do severo;
então, a gente sempre está investindo mas tem um limite. Suponhamos
que ele está com a gente desde bebê ou com sete anos, ou até os 12, ele
está dentro de um processo de escolaridade, mas a gente está vendo a
limitação cognitiva dele nos cálculos matemáticos, na produção de escrita,
nas cores. Para continuar insistindo, dos 7 aos 16 a gente acha muito... é
uma judiação... Lógico, que nós não vamos abandonar essa escolaridade,
como ela não é abandonada na oficina. Mas, só que a gente modifica um
pouco o nível de exigência, o que acontece? Então, aquele aprendizado
que era... para a construção daquele conhecimento que estava se
exigindo, hoje ele fica mais dentro de fixação de situações, não que não
fosse exigido, mas de situações mais funcionais para ele. O que?, o nome
dele, a linha de ônibus, o número do telefone, o seu endereço… então a
gente divide as 4h aulas dele dessa forma. As duas primeiras horas, é a
fixação dos conteúdos acadêmicos pertinentes a essa independência dele
e também de todos os conteúdos que nós trabalhamos. (Entrevista 01,
Coordenadora Pedagógica)
Aqui, evidencia-se o quanto a APAE precisou construir estratégias para
justificar que o trabalho desenvolvido é educacional. A ênfase na questão da
nomenclatura indica o quanto o trabalho desenvolvido não foi alterado, mesmo
porque o que ocorre é a justificativa de que os conteúdos trabalhados, mesmo que
funcionais, são acadêmicos formais. Evidencia-se que o movimento desencadeado na
APAE não é de transformação e de construção de um perfil eminentemente
98
educacional, mas de tentar justificar que o trabalho ali desenvolvido já é educacional
em todas as suas esferas.
Aqui, novamente o silenciamento nos dá pistas sobre os sentidos. A ausência
de referências aos conteúdos trabalhados, aos métodos de ensino, ao papel do
professor, à proposta de ensino construtuvista expressa apenas no Relatório de
Atividades, ao processo de aprendizagem do aluno, ao processo de avaliação... Isso
denota o caráter não educacional do trabalho desenvolvido. Não significa dizer que o
pedagógico inexista, mas sim que ele não é o eixo central do trabalho institucional,
que deveria ser em uma escola. Podemos perceber este mesmo caráter em outras
esferas institucionais que também devem assumir o caráter educacional.
O Setor Profissionalizante de acordo com o Relatório de Atividades de 2002,
tem por objetivos:
− Proporcionar aos aprendizes acima de 15 anos de idade, ocupação
adequada às suas habilidades e individualidades, através de trabalhos
diversificados;
− Identificar potencialidades e interesses do portador de deficiência e
oferecer programas de educação profissional que visem garantir as
condições de empregabilidade;
− Capacitar e atualizar os seus recursos humanos (aprendizes);
− Coordenar,
inovar
e
promover
programas/parcerias
que
possam
garantir a qualidade das atividades desenvolvidas no Setor;
− Conscientizar a sociedade sobre as potencialidades de trabalho da
pessoa portadora de deficiência (APAE, 2002)
O setor iniciou o ano de 2002, atendendo 109 alunos (denominados de
aprendizes) e terminou o período letivo com 100 alunos, visto que cinco foram
encaminhados para o mercado de trabalho competitivo, dois para postos de estágio
e dois desligados da instituição. Os aprendizes foram atendidos em 15 turmas
distribuídas por diferentes programas, conforme apresentado no Quadro III.
99
Quadro III: Estrutura do Setor Profissionalizate segundo número de alunos e
distribuíção por níveis, programas e modalidades.
Fonte: Relatório de
Atividades de 2002 da Instituição Especial.
PROGRAMAS
Nº DE
Nº DE TURMAS
Programa de Pré – Profissionalização
EDUCAÇÃO
Programas Pedagógicos Específicos
PROFISSIONAL
Programa de Qualificação para o
Trabalho Masculino
Programa de Qualificação para o
Trabalho Feminino
Educação de Jovens e Adultos
APRENDIZES
06
42
05
35
02
15
01
08
01
média de 20 alunos
Segundo o Relatório de Atividades de 2002 os programas desenvolvidos no
setor são assim caracterizados:
− Pré-profissionalização: caracteriza-se pelo atendimento a aprendizes
que iniciam no Setor Profissionalizante e alguns que já freqüentaram,
com o objetivo de sondar habilidades e aptidões para o trabalho e
prepará-los para atividades específicas e, posteriormente, pela oferta
de várias experiências de trabalho em atividades práticas, para que o
aprendiz, através de experiências diversificadas, possa definir seus
interesses e desenvolver suas capacidades e potencialidades para o
trabalho.
− Programa de qualificação para o trabalho – treinamento profissional
feminino e masculino: caracteriza-se por procurar desenvolver
treinamento profissional através do desenvolvimento de habilidades
necessárias ao desempenho de uma tarefa, busca levar o aprendiz a
executar um trabalho com qualidade e responsabilidade. Tem como
objetivo:
preparar
o
aprendiz
para
o
exercício
de
atividades
profissionais; aperfeiçoar conhecimentos básicos necessários para a
profissionalização; treinar os aprendizes para futura colocação no
mercado de trabalho, oferecer condições para o desenvolvimento de
posturas adequadas para o trabalho; encaminhar os aprendizes para
estágios Escola-Empresa e/ou colocação no mercado de trabalho.
− Programas pedagógicos específicos: caracteriza-se pelo atendimento
em grupo, de maneira a proporcionar atividades de vida prática e
atividades de vida diária, visando a independência pessoal e
integração.
− Educação de jovens e adultos: caracteriza-se pelo atendimento em
contra-turno
aos
aprendizes
independentes
e
com
potencial
acadêmico, com o objetivo de oferecer manutenção aos conteúdos de
leitura, escrita e matemática, ou seja, trabalhar com a pré e pósalfabetização. (APAE, 2002)
100
Destaca-se no Setor Profissionalizante a mesma configuração do Escolar no
que se refere a ter diferentes turmas para diferentes graus de comprometimento dos
alunos e também a oferecer uma turma de Educação de Jovens e Adultos na qual
conteúdos acadêmicos formais são trabalhados. Contudo, em 2002, dos 109 alunos
atendidos no setor, apenas 20 tiveram acesso a este programa.
O
número
fica
mais
reduzido
quando
o
foco
de
análise
são
os
encaminhamentos realizados: cinco para o mercado de trabalho regular e dois para
postos de estágios. Mesmo com um número reduzido de encaminhamentos, é
preciso ressaltar que outros setores não fizeram nenhum. O que nos permite inferir
que uma das poucas e estreitas portas de saída da instituição se encontra no Setor
Profissionalizante. Contudo, podemos constatar que a saída da instituição especial é
uma exceção reservada a poucos.
Outro aspecto que merece atenção é o fato do setor manter um trabalho que
dê continuidade ao do Setor Escolar de modo a permitir a permanência dos alunos
na instituição, inclusive daqueles que adquiriram conteúdos acadêmicos formais. O
que denota o seu caráter de “especializada em” e, conseqüentemente, de locus
social da deficiência mental. Mais um vez, não temos a menção a conteúdos
ensinados, a métodos de ensino, a processos avaliativos... Mais uma vez, no
silenciamento a explicitação do não educacional.
Por outro lado, o caráter não educacional não reside apenas no pedagógico
secundarizado em ambos os setores da instituição. Outros dois aspectos denotam tal
caráter: o assistencialismo e o trabalho clínico da equipe muldisciplinar da
instituição.
Para a construção do perfil educacional exigido, uma das recomendações da
proposta da APAE Educadora: a escola que buscamos é um redimensionamento do
trabalho das equipes multidisciplinares das instituições. A proposta enfatiza que
101
o atendimento proposto pela APAE Educadora é de caráter pedagógico,
estando
qualquer
psicopedagógica
intervenção
subordinada
ao
de
natureza
cumprimento
clínica
das
e
metas
educativas previstas e operacionalizadas no currículo escolar.
Desse modo, a proposta desenvolve suas ações, construindo espaços
educacionais
favoráveis
à
escolarização
e
formação
dos
alunos,
focalizando o convívio social e a qualificação para o trabalho. Assim, as
escolas avaliam e planejam condições que favorecem o desenvolvimento,
a aprendizagem e a socialização de seus educandos. (FENAPAES, 2001, p.
36, grifos meus)
Não há qualquer indicação acerca da contribuição que cada um dos
profissionais que tradicionalmente atuam em instituições especiais pode trazer para
o trabalho pedagógico. Ficando a cargo também de cada escola definir como será a
atuação da equipe técnica, que pode ser composta por pedagogo, médico, psicólogo,
fonoaudiólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e assistente social, dependendo
da realidade e da necessidade de cada APAE.
No caso da APAE, a partir do ano de 2002, a equipe técnica deixou de realizar
atendimentos individuais e passou a atender os alunos em sala de aula juntamente
com os professores. Assim, o trabalho das áreas de psicologia, fonoaudiologia e
terapia ocupacional passou a ser desenvolvido tendo, em tese, como objetivo o
suporte ao trabalho pedagógico.
Contudo, a análise do discurso dos profissionais aponta que tal reestruturação
do trabalho foi feita no sentido de alterar o “local” da prática e não seus objetivos. O
que encontramos é o entendimento de que as mudanças descaracterizaram o papel
dos profissionais e não sustentaram a construção de uma prática distinta. Para os
profissionais,
desenvolver
o
trabalho
em
sala
de
aula
não
significou
um
redimensionamento de seus objetivos e de seus procedimentos, ao contrário, a
mudança é concebida como restritiva do papel de cada um. As falas dos profissionais
são ilustrativas:
Porque eu deveria estar fazendo isso na sala de aula, só que na sala de
aula eu ficava tão restrita, que uma vez eu falei para a diretora: eu não
sei o que eu vou fazer, eu vou pedir demissão, porque eu não estou
102
fazendo o meu trabalho aqui dentro. Não estava uma coisa clara para
mim. E no fim, eu via o quadro motor dos alunos piorando cada vez mais,
se agravando... e eu não podia estar retirando ele da sala de aula.
(Entrevista n° 02 Fisioterapeuta)
Então assim, as mudanças que tiveram dentro da psicologia, eu acho que
pecou um pouquinho... porque esse trabalho que eu tinha com o grupo
de alunos a cada quinze dias (não era nem uma vez por semana, era
uma vez cada 15 dias fora da sala de aula) tinha um resultado bom você
entendeu, a gente via resultado, a gente trabalhava coisas que eram... a
gente sabe que o trabalho em grupo é legal porque um ajuda o outro, um
serve de modelo para o outro. Você consegue trabalhar no grupo
algumas coisas que individualmente é difícil trabalhar, mesmo que for em
sala de aula é diferente, o professor está junto... então tem coisas que dá
para trabalhar no grupo longe de professor, que você dá para colocar
algumas coisas... eles às vezes tem vergonha...
Então dentro da
psicologia eu acho que perdeu um pouco sabe... a gente não poder tirar
mais do aluno da sala... até fono teve que ir para atendimento em sala,
perdeu aquela coisa de individual.
Então prejudicou um pouco nesse sentido. A gente colocou que era uma
vez cada quinze dias, mas na época foi colocado que era para passar isso
tudo para o professor. Só que o professor acaba não fazendo...
(Entrevista n° 01 Psicóloga)
Estas falas nos mostram que a transformação do cotidiano institucional não se
dá apenas por meio de rearranjos internos. Solicitar a alteração do trabalho da
equipe multidisciplinar sem redimensionamento dos objetivos de sua atuação e da do
professor, sem a construção conjunta dos objetivos pedagógicos explicitando o apoio
que cada um pode dar, é um exemplo apenas de como a APAE tentou se adequar às
exigências externas.
Normalmente a gente levava a atividade, a proposta para o professor na
hora. Não tinha assim... olhar junto com a professora o que seria
trabalhado esta semana... não tinha um planejamento. Eu acho que nem
na área da fonoaudiologia acaba acontecendo essa troca, eu acho que elas
também não preparam o material e vão para a sala (Entrevista n° 02
Fisioterapeuta).
Por outro lado, temos o trabalho desenvolvido em sala de aula desencadeando
reflexões nos profissionais no que se refere ao seu trabalho na APAE:
Porque a gente chega e a professora fala: "Olha, eu queria que ele
respondesse essas perguntas para mim mas não sei de que forma, vamos
103
pensar numa adaptação". Se ela estivesse dentro da minha sala eu
poderia estar desenvolvendo outra atividade que não fosse essa e jamais
poderia sacar algumas coisas que pudessem dar um insight para ela estar
indo longe. Poderia estar trabalhando a independência dela nas AVDs mas
não investindo no cognitivo, sendo que ela poderia me dar muito mais
retorno na parte cognitiva do que nas AVDs. Então às vezes quando você
dá algum suporte você vê que a criança vai muito além, que talvez se eu
trouxesse ela para dentro da minha sala eu não conseguiria perceber isso,
porque estaria trabalhando outras coisas e não estaria ligada tanto na
parte da alfabetização... E, no início eu não acreditava que este trabalho
em sala de aula seria bom; eu resisti muito no começo. (Entrevista 01,
Terapeuta Ocupacional)
Aqui temos a indicação da possibilidade do trabalho conjunto, desde que com
objetivos estruturados. Outro aspecto é a mudança servindo para refletir sobre o
trabalho realizado anteriormente, colocando em xeque o trabalho realizado em
outros espaços, com outros objetivos. Contudo, as dúvidas, os receios, os conflitos
que surgiram não são trabalhados no sentido de construir juntamente com
profissionais e professores esse novo perfil de atuação e, aos poucos, o espaço do
atendimento individualizado vai sendo recuperado:
É, eu falo que essa semana eu tive uma vitória! Consegui tirar uma turma
da sala e trazer para a minha sala para um atendimento individual. São
adolescentes e não sabem dar laço no sapato, e um faz basquete fora, a
outra participa do grupo GRD e está indo para Fortaleza numa
apresentação de ginástica... e aí eu coloco para você, onde está a autoestima desses adolescentes? Eles não sabem nem amarrar o sapato, se
está num jogo e se o tênis desamarra, eles tem que sair, sentar no banco
para professora pode ir lá e amarrar, então assim foi uma vitória sabe,
conversando, explicando realmente a necessidade da turma, que é uma
turma que está envolvida em várias atividades, e que isso para autoestima deles não é bom. Então eu perguntei se eu poderia estar fazendo
esse trabalho de treinar o amarrar cadarço, colocar o cadarço e daí me
liberaram. (Entrevista n° 02 Terapeuta Ocupacional)
Vale ressaltar que a imposição, o não planejamento, a falta de objetivos
comuns, a
falta de
reuniões
foram amplamente
citados
pelas
profissionais
entrevistadas, o que inviabiliza a implementação de qualquer outra prática que de
distinga do que já era feito. Nesse sentido, o retorno ao trabalho individual, mesmo
104
considerando o trabalho em sala de aula positivo e enriquecedor de sua atuação, é
uma vitória.
Se os objetivos, os procedimentos e as condutas permanecem as mesmas, o
trabalho em sala de aula perde seu sentido. Mais que isso, desta forma o trabalho
destes profissionais na instituição devido à sua descaracterização também perde o
seu sentido. A percepção dos profissionais é a de que do modo como o trabalho foi
implementado dificilmente severia de apoio efetivo à prática pedagógica, ainda que
seja entendido como um dos objetivos da atuação.
Outro aspecto a ser destacado é o caráter assistencialista do trabalho
institucional que pode ser apreendido no trabalho realizado com as famílias que
possuem filhos na instituição.
Primeiramente, é necessário ressaltar que a condição de pobreza da maioria
dos alunos da instituição é enfatizada pelos profissionais como um grande obstáculo
ao trabalho. A precariedade econômica das famílias é traduzida como incompetência
e como inadequação para lidar com a condição de deficiência mental do filho. Deste
modo, cabe aos profissionais suprir as “deficiências” da família por meio de medidas
compensatórias de suas necessidades básicas e por meio da orientação de como
lidar com a deficiência do filho.
No que se refere às formas de orientação das famílias, os profissionais
entendem que o principal objetivo desta prática é oferecer condições destas darem
continuidade ao trabalho desenvolvido na instituição especial em suas casas. O que é
enfatizado pelos profissionais é que tal continuidade é uma condição para o
desenvolvimento do trabalho com os alunos, inclusive o educacional. Isso pode ser
constatado nos relatos de vários profissionais, mas o mais ilustrativo é o da
Terapeuta Ocupacional:
Vamos supor, nós temos várias crianças aqui na faixa etária de 13 a 19
anos que não tomam banho sozinhas. Porque não tiveram uma
orientação da família... a família acha melhor fazer essa atividade pela
criança para facilitar a vida... então muitas vezes tenho um trabalho
105
também com a família de conscientização sabe... Nada se começa aqui
na questão das atividades de vida diária se você não tem... como se diz
assim... uma conversa com a família e assim... um trato. Eu faço aqui e
eles dão continuidade em casa. Então se a família não está disposta, a
gente nem inicia; porque na verdade eu fico aqui segunda, terça e quarta,
são 3 dias; então a família tem que dar continuidade a esse trabalho em
casa na quinta, na sexta, no sábado e no domingo porque senão o
negócio não vai. Então todas as crianças que eu vejo que tem a
necessidade desse treino, antes de iniciar a família é chamada e é
colocado o problema. Aí a família dá autorização e é iniciado o trabalho.
(Entrevista 02, Terapeuta Ocupacional)
Assim, temos a orientação das famílias sobre como posicionar o filho em uma
cadeira, como utilizar uma adaptação, como estimular. Da mesma forma que, como
dar o banho, escovar os dentes, lavar alimentos, dar a comida... E isso é feito tanto
na APAE quanto na residência, por meio das visitas domiciliares, que têm dois
objetivos: orientar e verificar se o que foi orientado está sendo feito; se os
equipamentos e adaptações doados pela instituição estão em bom estado e se estão
sendo utilizados adequadamente; se o aluno está tomando a medicação; se a família
está passando por algum problema que possa justificar a inadequação do aluno na
escola; porque o aluno não está comparecendo à instituição. Para isso:
... eu não costumo marcar horário não, eu vou. Eu acho interessante
assim porque você verá a realidade mesmo; porque se você marcar uma
visita, então não vai ser a realidade que você vai ver. (Entrevista n° 01
Assistente Social)
Toda terça-feira nós técnicos saímos para uma visita domiciliar. Então
tudo que a gente quer descobrir no âmbito familiar, a gente deixa tudo
para terça-feira. Que na parte da tarde os técnicos depois das 3h da
tarde não tem atendimento, é direcionado para isso mesmo, então a
gente faz uma reunião e vê qual o aluno está necessitando de uma visita.
Que nem nessa terça-feira eu visitei a casa de um aluno que nós
estávamos achando que ele não estava tomando a medicação, que a
família não estava dando a medicação. Então nós sentamos em equipe
técnica e decidimos que terça-feira nós iríamos visitar a casa desse
paciente para conferir se a medicação está sendo ou não ingerida. Então,
quando a gente quer fechar alguma coisa, alguma questão de medicação,
a gente não avisa a família que nós estamos indo, a gente chega assim
de supetão para pegar mesmo, para ver se a família está com essa
medicação em mãos, se está sendo administrada... então na terça-feira é
fechado para essas visitas. (Entrevista n° 01 Terapeuta Ocupacional)
106
No que se refere às necessidades básicas da família, a APAE se coloca como
mediadora entre a família e as instâncias sociais responsáveis pelos benefícios e
pelos atendimentos, especificamente públicos, à população de baixa renda em nossa
sociedade. Assim, cabe à assistente social mediar o contato da família com postos de
saúde e da previdência social, com hospitais e ambulatórios, com serviços de ação
social, entre outros. É por meio da atuação da instituição especial que as famílias
têm acesso a benefícios como bolsa família, passe livre para transporte, além de
conseguir medicamentos, consultas médicas e odontológicas, equipamentos para o
filho tais como cadeiras de roda, aparelhos ortopédicos etc. É nesse sentido que a
atuação com a família também é entendida como uma das especificidades da
Educação Especial que só pode ser ofertada na instituição especial.
Estas esferas do trabalho institucional denotam não só o caráter assistencial
da instituição mas, sobretudo, seu caráter totalitário, já que parte das interações
tecidas entre as famílias e a comunidade, especificamente nos aspectos relacionados
à deficiência mental, têm a instituição como única referência.
A referência institucional não diz respeito apenas aos aspectos da assistência
social. Conforme indicado pela psicóloga da instituição,
A gente faz o trabalho também com as mães, mas não para falar de
filhos, é um grupo de mães a cada 15 dias onde são feitas propostas de
lazer, uma palestra, uma coisa bem fora... esquecer um pouquinho que
ela tem filhos. Porque assim ela vivencia isso 24h por dia, então nossa
idéia é dar um tempo para ela. Uma tarde, a cada 15 dias, elas têm o
momento delas; então a gente faz passeio marca... elas querem
conhecer tal lugar... vamos conhecer o aeroporto... Então parte delas o
que elas querem. Querem um profissional para falar... um cardiologista,
um ginecologista... então é o momento para elas. (Entrevista 01,
Psicóloga)
Aqui podemos perceber outras esferas de atendimento à família. Vale
ressaltar que o foco da análise não o trabalho desenvolvido pela psicóloga, visto que,
conforme Amaral (1995) nos ensinou, as relações de uma família que possui um
membro com deficiência é um reinado de ambivalências, perdas, dificuldades, além
107
de implicar em uma reestruturação familiar, especialmente da figura materna. Isso
por si só justifica o trabalho psicológico com esta mãe. Contudo, é necessário
analisar que este tipo de acompanhamento reafirma, também, o caráter totalitário
da instituição, já que contraditoriamente, a mãe precisa do espaço institucional para
obter lazer, informações básicas, descanso etc.
Vale ressaltar que os modos de lidar com as famílias estão lastreados pelo
rótulo da deficiência mental. Por isso, a casa, o espaço privado da família, é
identificado como um apêndice da APAE. E, conforme vimos anteriormente, isso
significa que o mundo familiar também está submetido à autoridade institucional e
ao seu poder, justificando, inclusive, o controle por meio de “visita surpresa”
(Goffman, 2003 e D’Antino 1996).
Diante do exposto, cabe sintetizar que a aparente transformação sustentada
pela construção de uma escola na instituição especial, esconde a conservação do
espaço institucional reiterando seu caráter totalitário. E isso é sustentado por três
mecanismos:
1) Apropriação do discurso oficial.
A educação especial é apresentada como uma modalidade de ensino. Contudo,
o sentido de modalidade de ensino que perpassa todos os níveis e demais
modalidades da educação básica, na instituição especial é invertido em escola de
educação especial que oferece todos os níveis e modalidades de ensino necessários à
pessoa com deficiência mental.
Soma-se a isso a apropriação do discurso de pedagogização da instituição
especial mesmo quando o que se evidencia é seu caráter reabilitador. A instituição
especial é apresentada como escola que contribuirá para atingir a meta de educação
para todos mesmo sem oferecer a escolarização básica aos seus alunos.
A apropriação também se dá no sentido de reproduzi-lo por meio de járgões
que se incorporaram no cotidiano educacional brasileiro: educação para todos,
108
inclusão
social,
preparação
para
o
mundo
do
trabalho,
diversidade...
Isso
especialmente presente nas diretrizes da APAE Educadora.
O sentido atribuido à educação especial sustenta e é sustentado por um outro
mecanismo.
2) Reinterpretação das normas.
A flexibilização curricular é exclusivamente apoiada em dois eixos: extensão
do tempo de ensino de um mesmo conteúdo e, principalmente, redução/eliminação
dos conteúdos e dos objetivos que compõem o currículo básico. Com isso, cria-se o
espaço para que os treinos de atividade de vida diária sejam a adaptação do
conteúdo de ciências, o treinamento básico de adolescentes por meio de atividades
ocupacionais seja entendido como flexibilização da preparação para o trabalho.
A certificação da terminalidade específica é incorporada no processo de
avaliação dos alunos para definir quais níveis ou setores da própria instituição
especial freqüentará. Se resgatarmos que os poucos encaminhamentos feitos pela
escola são para pré-escola e para funções que não exigem certificação de
escolaridade no mercado de trabalho, percebemos que esta certificação não é
apreendida conforme seu sentido na letra da lei.
A apropriação do discurso oficial e reinterpretação de suas norma culminam
no terceiro mecanismo utilizado pela instituição especial:
3) Reorganização estrutural formal e aparente da instituição especial.
A reestruturação da instituição especial acontece de modo que sua estrutura
efetiva não seja colocada em xeque. A reorganização dos níveis de ensino e das
turmas se dá por meio da renomeação: ao invés de treinamento básico, Escolar Um.
Ambos atendem aos mesmos alunos com os mesmos objetivos, programas e
métodos. Mantém-se o mesmo critério de avaliação e de agrupamento dos alunos
buscando a homogeneidade do grupo, a mesma concepção de que isso favorece o
ensino e a aprendizagem.
109
A organização da escola em “ciclos” que se dividem tanto em níveis verticais
quanto em horizontais, permitindo que o aluno mude de grupo (turmas) sem mudar
de nível ou programa. Por exemplo, o Programa Pedagógico Específico possui sete
turmas: uma com quinze alunos de 04 a 06 anos de idade e seis com trinta e três
alunos de 07 a 16 anos. Assim, é possível que um aluno entre neste programa com
04 anos e nele permaneça até os 16 mudando de turma de acordo com sua faixa
etária.
Do mesmo modo, é possível analisar a alteração do trabalho da equipe técnica
como
uma
reorganização
aparente,
já
que
a
mudança
não
alavancou
a
pedagogização da instituição especial e nem um redimensionamento do atendimento
clínico. Isso porque o caráter pedagógico da instituição especial é secundarizado não
devido à presença de atendimentos clínicos. É necessário ressaltar que o espaço
ocupado pelos atendimentos clínicos engendrou e foi engendrado na ausência do
pedagógico e no caráter de reabilitação em detrimento do educacional, ambos
construídos historicamente. Mais, o caráter reabilitador não reside apenas no
atendimento clínico, visto que o pedagógico também se estrutura nesse sentido.
Basta resgatar o trabalho da pedagoga da instituição especial na estimulação
precoce.
Além disso, a não pedagogização da instituição especial se sustenta na crença
arraigada de que a pessoa com deficiência mental não tem condições de se apropriar
de conteúdos educacionais formais. O pedagógico não tem espaço na educação de
uma população que, acredita-se, não tem condições de aprendizado. Daí a
centralidade da equipe técnica.
A retirada do atendimento clínico e a alocação de profissionais que não o
professor em sala de aula não garante a priorização do pedagógico, mas subsidia o
reconhecimento da instituição especial como escola do sistema regular de ensino.
Mesmo não oferecendo aquilo que a escola comum não oferece. Ou seja, educação
110
da pessoa com deficiência mental é reduzida à educação especial. A instituição não
oferece algo a mais que a escola comum poderia oferecer (educação comum +
apoios, adaptações), ela oferece menos. Sua pseudo pedagogização não é suficiente
para colocar o pedagógico como eixo central do trabalho educacional, mas o é para
seu reconhecimento como instância responsável pela educação da pessoa com
deficiência mental.
Lançando mão destes mecanismos, a instituição especial é reconhecida como
escola do sistema regular de ensino, o que a repõe como locus social da deficiência
mental em nossa sociedade, agora oficialmente reconhecido como educacional. Ou
seja, tal reconhecimento reitera seu caráter totalitário.
111
Considerações Finais
Destacamos que na concretude da instituição especial as políticas de educação
especial favorecem sua conservação como locus social da pessoa com deficiência
mental e seu caráter totalitário. Isso é reiterado pelo reconhecimento da instituição
como escola do sistema regular de ensino. Além disso, mereceram destaque os
mecanismos utilizados pela instituição especial para, com aparência de mudança
instituída, conservar o que estava posto. Todo esse movimento reitera para
manutenção de três esferas:
1 – A manutenção da pessoa com deficiência mental no âmbito da filantropia
Manter a pessoa com deficiência mental em tal âmbito significa, acima de
tudo, mantê-lo no condição de não cidadania.
Uma análise da questão da filantropia sustenta a afirmação da não cidadania:
nas
condições
filantrópicas
transforma-se
direito
em
uma
concessão.
Nas
considerações tecidas por Ozouf (1989, p. 727) acerca do princípio tríplice liberdade,
igualdade, fraternidade: “as duas primeiras são direitos e a terceira é uma obrigação
moral”. Assim, é possível o entendimento da filantropia, sustentada nos princípios
iluministas, como uma concessão e não como um direito. É nesse sentido que a
manutenção da pessoa com deficiência mental no âmbito da filantropia significa
mantê-la na condição de não cidadania.
Além disso, Ozouf (1989, p. 727) acrescenta:
Mas é impressionante ver que as disposições revolucionárias que seguiram
o sentido do direito social, as oficinas de assistência, o grande livro de
beneficência pública, o projeto robespierrista de imposto para os cidadãos
desprovidos de recursos, foram tomadas não em nome da fraternidade,
mas em nome da igualdade. O artigo 21 da Declaração adjunta à
Constituição montanhesa, que definiu a assistência pública como uma
dívida sagrada, encara tal assistência no prolongamento e não na crítica
dos direitos individuais.
112
Soma-se a isso que o âmbito da filantropia, neste caso, está circunscrito ao
espaço
da
instituição
especial
e
isso
favorece
de
modo
preponderante
o
descompromisso e a omissão do Estado, que cada vez mais requesita a “parceria”
deste tipo de instituição, haja visto o caráter assistencialista e caritativo de suas
ações.
A omissão do Estado em favor do trabalho institucional revela também a
indisponibilidade de investimento efetivo em um grupo que, acredita-se, não tem
condição de dar o retorno desejado. Para as pessoas com deficiência mental, então,
a filantropia, a caridade, o assistencialismo.
A crença na total dependência do deficiente também sustenta esta análise. Se
a pessoa com deficiência mental não tem condições de se valer nas esferas mais
elementares de sua vida, só poderá conquistar e usufruir de seus direitos por meio
do outro ou da instituição.
Outro aspecto da manutenção da pessoa com deficiência mental no âmbito da
filantropia que denota o caráter conservador das (pseudo) transformações é o
entendimento de que o direito à educação está garantido ao deficiente no
reconhecimento da instituição especial como uma escola regular. Mas, como a
conservação está posta, tal direito não está garantido, haja visto o caráter totalitário,
filantrópico e assistencialista da instituição especial.
Na base do problema, além da questão economica e política, temos uma
questão conceitual a ser elaborada com outros sentidos
2 – A indistinção entre reabilitação e educação e o não acesso a processos efetivos
de escolarização
Como foi analisado anteriormente tanto as propostas curriculares quanto o
discurso dos profissionais indicam o objetivo de construir um perfil educacional
113
formal na instituição especial, mas a não implantação de uma prática efetivamente
escolar é o que se evidencia.
Mantendo a coerência com as concepções de deficiência mental, de educação
especial e de instituição especial, a reabilitação da pessoa com deficiência mental é
considerada a condição para sua educação, haja visto o entendimento de que a
redução dos danos e dos déficits da deficiência é pré-requisito para aprendizagem. O
que corrobora a crença na impossibilidade de educar esta pessoa, já que sua
necessidade
especial
(a
deficiência
mental)
é,
acima
de
tudo,
motora,
fonoarticulatória, emocional, psicopedagógica, assistencial... Isso faz com que o
trabalho educacional seja concebido como a reabilitação, o que reitera a instituição
especial como o único espaço onde esta pessoa pode ser atendida, já que na escola
este atendimento global, especializado não existe.
Mais uma vez a omissão do Estado se evidencia, pois que o fato de não
estruturar um atendimento de saúde digno reforça a crença de qua na instituição
especial estão os profissionais que podem desenvolver um trabalho especializado. E
aqui abro um parêntese para relatar uma conversa que tive com um dos
profissionais que participou em um encontro informal, após o término da coleta de
dados “não adianta... quando nasce um Síndrome de Down o médico encaminha
direto é para a APAE, não é para o posto de saúde. Entra lá bebê e não sai mais; só
sai se a gente fizer a inclusão”.
Outro aspecto que sustenta a análise de uma das formas de velar a
conservação é a indistinção das esferas de reabilitação e de educação é o
reconhecimento formal da instituição especial, com a estrutura analisada, como uma
escola da rede regular de ensino que lhe confere uma pseudo identidade. Aqui cabe
levantar alguns apontamentos que situam esta pseudo identidade:
114
Uma escola de educação infantil não seria reconhecida como tal oferecendo
quarenta
e
cinco
minutos
de
atendimento
psicopedagógico,
cujo
caráter
é
eminentemente clínico duas vezes por semana aos seus alunos.
Uma escola do ensino fundamental não seria reconhecida como tal se
estivesso estruturada com apenas uma turma de alfabetização que atende entre dez
e quinze dos seus mais de cem alunos em idade escolar, que são distribuídos entre
outras dezenove turmas nas quais o pedagógico formal é secundarizado. Essa
mesma escola não conseguiria reconhecimento caso oferecesse a seus alunos
conteúdos básicos que, extraordinariamente, chegariam ao nível da terceira série do
ensino fundamental.
Sendo assim, o reconhecimento da instituição especial como escola da rede
regular de ensino lhe confere uma pseudo identidade de escola, já que não
caracteriza suas funções no padrão instituido para as escolas da educação básica. E
é lá que estão os especialistas, os currículos flexibilizados, os métodos de ensino
especializados e, acima de tudo, os deficiente mentais.
Com o reconhecimento da instituição especial, o que está garantido à pessoa
com deficiência mental é o não acesso a processos efetivos de escolarização, nem na
intituição, nem fora dela. Isso é justificado pela própria deficiência mental do aluno,
pois que sua inserção em processos de escolarização está condicionada à sua
normalização. Assim, ele terá acesso à educação à medida que for se tornando
menos deficiente.
3 – Manutenção da condição segregada da pessoa com deficiência mental na
instituição especial “inclusiva”.
O reconhecimento da instituição especial como escola regular é considerado,
inclusive pela FENAPAES, como uma contribuição das APAEs para que o Estado
cumpra com o seu compromisso de oferecer Educação para Todos. Nesta “parceria”,
a instituição especial engrossa as estatísticas de todos na escola, já que os dados
115
institucionais, antes computados como “outros atendimentos” hoje encontram-se
diluídos nos diferentes níveis e modalidades de ensino, sem a especificação do
atendimento especializado.
Além disso, tal reconhecimento reitera a segregação na medida em que
“oferece” todos os níveis e modalidades de ensino.
Assim sendo, não faz sentido encaminhar o aluno com deficiência mental para
a escola comum se na instituição ele tem acesso a todos atendimentos mais o
educacional. Também não faz sentido que a escola comum precise se estruturar para
receber o aluno com deficiência mental se existe um local reconhecidamente
estruturado para atendê-lo.
Nesse ponto é preciso enfatizar que a manutenção da segregação está posta
inclusive para aqueles alunos que conseguirem avançar até o hipotético conteúdo
básico do ensino fundamental. Nesse caso, sua “produtividade intelectual” sustenta o
reconhecimento e o conseqüente financiamento da instituição escola. Ou seja, a
escola precisa dos alunos produtivos para se manter como escola. Mesmo sendo
reconhecida pelo trabalho desenvolvido com a minoria de seus alunos. Isso é a porta
de entrada para alunos com necessidades educacionais especiais encaminhados pela
escola comum em função de problemas de aprendizagem, comportamento etc.
Desse modo, a instituição especial ao ser reconhecida como escola da rede
regular de ensino colabora com a estatística da Educação para Todos, que mantém o
aluno com deficiência mental longe da escola comum, pode ser reconhecida como
“inclusiva”. Em tal reconhecimento temos a consolidação de seu caráter totalitário,
visto que a pseudo educação escolar garante sua condição de locus social da
deficiência mental. Por outro lado, aqui reside a contradição: para se manter como
totalitária precisa ser reconhecida como escola semelhante à comum, mas para
manter a pessoa com deficiência mental institucionalizada não pode se assemelhar
ao ponto de possibilitar que a escola comum seja igual a ela, haja visto que se isso
116
ocorrer não teríamos a necessidade da instituição especial para educar esta
população. Em suma tem que se estruturar como escola sem deixar de ser a
Instituição Especial.
Embora
se
perceba
uma
tendência
conservadora
nas
mudanças
implementadas, foi possível apreender a existência de espaços favorecedores do
acirramento das contradições necessárias às transformações.
Há um desconforto dos profissionais com o novo papel que lhes foi imposto
institucionalmente, mas que é acompanhado pelo sentido da necessidade de
mudança e da expectativa de sua ocorrência.
Este sentimento é captado tanto no desconforto com que falam dos seus
papéis frente às novas demandas quanto na perspectiva crítica que imprimem às
suas reflexões sobre suas práticas, sejam as antigas ou as novas.
Cabe resgatar que os profissionais da equipe técnica, submersos nesse
momento de transição institucional, se vêem sem alternativas que não tentar
implementar uma nova prática que lhes foi imposta sem que fossem consultados,
que não teve suporte institucional em seus desdobramentos e que foi sendo
gradativamente suspensa à medida que o processo foi gerando contradições e
conflitos.
Contudo,
este
processo
imprime
nos
profissionais
um
caráter
de
incompetência, atribuindo a eles o fracasso da nova prática e fazendo com que o
estigma da deficiência com sua caracterização de ineficiência e improdutividade se
estenda aos profissionais da instituição especial.
Por outro lado, o desconforto, a crítica e perspectiva de mudança propiciam o
surgimento de conflitos que se trabalhados no sentido inverso poderão favorecer a
transformação desejada.
A transformação será possível na medida em que os conflitos e as
contradições
desencadeados
forem
direcionados
para
uma
ruptura
dos
condicionantes históricos de ineducabilidade da pessoa com deficiência mental e do
117
caráter
totalitário
da
instituição
especial.
Para
isso,
é
necessário
que
as
transformações incidam sobre outros espaços sociais que não os institucionais. Ou
seja, é preciso uma política e um Estado que não favoreçam exclusivamente as
instituições especiais em detrimento da consolidação da educação desta população
em outras instâncias educacionais.
Nesse sentido, considero que não se trata de um processo de inclusão, mas
sim de recuperar a busca de uma escola verdadeiramente democrática. Isto porque,
conforme Bueno (2001, p. 27), não se pode deixar de considerar
Que a perspectiva de inclusão exige, por um lado, modificações
profundas
nos
sistemas
de
ensino;
que
estas
modificações
[...]
demandam ousadia, por um lado e prudência por outro; - que uma
política efetiva de educação inclusiva deve ser gradativa, contínua,
sistemática
e
planejada,
na
perspectiva
de
oferecer
às
crianças
deficientes educação de qualidade; e que a gradatividade e a prudência
não podem servir para o adiamento “ad eternum” para a inclusão [...]
mas [...] devem servir de base para a superação de toda e qualquer
dificuldade que se interponha à construção de uma escola única e
democrática.
Ainda que a inserção das pessoas com deficiência mental na escola comum
não signifique a ruptura com sua condição de segregação social; ainda que os
desafios de sua educação não se esgote no âmbito escolar; ainda assim a educação
se configura como espaço fundamental para a constituição da vida
e para o
exercício dos direitos dessas pessoas.
Outro elemento a ser destacado é a necessidade da reflexão acerca do
fenômeno da deficiência mental e de todos os conceitos e preconceitos construídos
socialmente no sentido de evidenciar suas limitações e imperfeições como condição
para construir uma nova rede de significações em torno da pessoa com deficiência
mental. Conforme Amaral (1998, p.26)
A questão conceitual pode encaminhar novas formas de interação
humana, uma vez que se ponham a descoberto os aspectos intimamente
vinculados à desvantagem, especialmente em sua vertente social.
118
Esses são os pontos que elejo a partir desta pesquisa tanto para evidenciar as
estratégias de conservação da instituição especial como locus social da deficiência
mental em nossa sociedade, quanto por considerar que são aqueles necessários a
serem aprofundados no sentido de captar os possíveis impactos transformadores
acerca do desenvolvimento escolar da pessoa com desenvolvimento mental. Chamo
a atenção para algo que me move:
[...] que uma sociedade abstrata também não existe, pois cada um de
nós a constitui e, portanto, cada um de nós pode subverter alguns dos
postulados vigentes, revolucionar a mentalidade hegemônica. Essa seria,
para além da própria revolução conceitual, a revolução micropolítica,
detonada e exercida no cotidiano, nas interações do dia-a-dia – e talvez
especialmente no cotidiano escolar (AMARAL, 1998, p. 26).
Nesse sentido considero que o desenvolvimento desta pesquisa contribuiu
para contornar uma inquietação. Mas, como toda pesquisa “tem como fim último
novas indignações, novas perguntas, novas espirais”, conforme Lígia me ensinou,
gostaria de apresentar as novas espirais, que surgem submersas em novas (serão
mesmo?) inquietações e indignações. Entre elas, aquelas que apontam para a
necessidade de analisar que movimentos foram desencadeados nas escolas comuns
pelas políticas educacionais brasileiras que prevêem a educação da pessoa com
deficiência mental na rede regular de ensino, buscando apreender se eles criaram
um espaço propício ao surgimento de contradições e conflitos que possam vir a
sustentar a ruptura da crença de que a pessoa com deficiência mental só pode ser
educada em espaços especializados em sua (não) educação passaram a assumir
maior destaque em minhas reflexões. Mas isso não significa que as instituições
especiais não façam mais parte delas, ao contrário, o entendimento é de que nos
movimentos e nas contradições externas a elas reside a possibilidade de sua
transformação.
Soma-se a isso o fato desta pesquisa ter analisado um momento de transição
cujos
desdobramentos
ainda
se
processam.
Há
que
se
questionar
que
119
desdobramentos esta transição trouxe não só para a instituição alvo do estudo, mas
também para outras que sofreram o impacto das mesmas exigências legais e da
FENAPAES.
Talvez, estejamos, mais uma vez, diante da “espiral infinita que une as coisas
da vida, alternando e imbricando início e fim”.
120
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