UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SILVIA MÁRCIA FERREIRA MELETTI Educação escolar da pessoa com deficiência mental em instituições de educação especial: da política à instituição concreta São Paulo 2006 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. SILVIA MÁRCIA FERREIRA MELETTI Educação escolar da pessoa com deficiência mental em instituições de educação especial: da política à instituição concreta Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Para obtenção do título de Doutor em Psicologia. Área de concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Orientadora: Profa. Dra. Maria Helena de Souza Patto São Paulo 2006 AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE. Catalogação na publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Meletti, Silvia Márcia Ferreira. Educação escolar da pessoa com deficiência mental em instituições de educação especial: da política à instituição concreta / Silvia Márcia Ferreira Meletti; orientadora Maria Helena de Souza Patto. -- São Paulo, 2006. 125 p. Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 1. Retardo mental 2. Educação especial 3. Institucionalização 4. Política educacional 5. Inclusão escolar I. Título. RC570 FOLHA DE APROVAÇÃO Silvia Márcia Ferreira Meletti Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor. Área de concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano Aprovado em: Banca Examinadora: Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição _________________________ Assinatura: _______________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição _________________________ Assinatura: _______________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição _________________________ Assinatura: _______________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição _________________________ Assinatura: _______________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição _________________________ Assinatura: _______________________ Aos meus pais, por me ensinarem a essência da vida; Aos meus tios Júlio e Cecília, por me ensinarem, entre tantas outras coisas, a essência da Educação, do Conhecimento; À Ligia, que com sua sabedoria me ensinou a essência do respeito às diferenças; Ao Paulo, à Laura, à Ana e à Luísa, essências de minha vida AGRADECIMENTOS Certamente cometeria injustiças se tentasse nominar todos aqueles que me acompanharam durante todo o percurso de elaboração deste trabalho. Por isso, optei por não fazê-lo neste espaço, salvo algumas exceções. Foram cinco anos envolvida com o doutorado. Cinco anos marcados por grandes tristezas e grandes alegrias. Como foi duro perder a companhia e a interlocução da amiga e Professora Lígia Assumpção Amaral, que me orientou no início deste trabalho. Como foi decisivo o apoio do Paulo, de nossas famílias e de nossos grandes amigos para que eu conseguisse resgatar meu trabalho e chegar até aqui. Assim como foi decisivo o percurso acompanhado pelo Professor José Leon Crochik e, em um segundo momento, o acompanhamento da Professora Maria Helena de Souza Patto, juntamente com as valiosas considerações e direcionamentos dos Professores José Geraldo Bueno e Adriana Machado Marcondes na ocasião do Exame de Qualificação. Agradeço ao Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina pelo apoio e pela compreensão com o percurso atípico de meu doutoramento. À Instituição Especial que abriu suas portas me permitindo a realização deste estudo e aos profissionais que participaram da pesquisa. A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho. Para que fazemos teses? ...Penso que muitos de nós, ao considerarmos que perguntas formuladas, fazendo sair fantasmas escondidos, certamente das sombras podem iluminar novos recantos e, assim, quem sabe propiciar respostas para um bem viver. Já disse Moscovici que toda pesquisa começa por um gesto de indignação – alguma coisa não é como deveria ser, aos olhos do pesquisador. Algo nos incomoda, nos inquieta, e nos encaminha para o desafio de penetrarmos na tal espiral sem fim, tentando, por maniqueístas um do lado, mundo nos e, livrarmos por de visões outro, nelas mergulharmos para as questionar. Penso mesmo que uma pesquisa tem como horizonte último indignações, novas perguntas, novas espirais. Lígia Assumpção Amaral (2001) novas MELETTI, S. M. F. Educação escolar da pessoa com deficiência mental em instituições de educação especial: da política à instituição concreta. 2006. f. 125. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Resumo O presente trabalho teve como objetivo analisar os mecanismos utilizados pela instituição especial para se adequar às exigências legais e normativas no sentido de assumir a educação escolar como eixo central de seu trabalho, compatibilizando-o com as necessidades especiais de seus educandos. Para isso, optou-se por analisar os documentos institucionais que nortearam o movimento de adequação e a percepção dos profissionais que compõem a equipe técnica de uma instituição especial em processo de mudança. Os documentos analisados foram: as diretrizes curriculares elaboradas pela Federação Nacional das APAES APAE Educadora: a escola que buscamos, o currículo da instituição especial e seu relatório de atividades. A análise consistiu em buscar nos documentos e no discurso dos profissionais a forma como as dimensões Educação Especial, Deficiência Mental e Instituição Especial eram concebidas e se as concepções contemplavam as novas configurações de cada uma delas, previstas na legislação educacional: a educação especial como uma modalidade de ensino, a deficiência mental como uma necessidade educacional especial e a instituição especial como uma escola do sistema regular de ensino. Para isso, o recurso metodológico utilizado foi a Análise de Discurso. Os resultados indicaram que os mecanismos utilizados foram: apropriação do discurso oficial; reinterpretação das normas de flexibilização curricular e de terminalidade específica; reorganização formal e aparente da estrutura institucional. Com base na análise dos resultados foi possível concluir que os mecanismos utilizados pela instituição especial sustentam uma transformação institucional aparente que mantém o caráter totalitário e conservador da instituição e da educação especial por meio da manutenção da pessoa com deficiência mental no âmbito da filantropia; da indistinção entre reabilitação e educação e o não acesso a processos efetivos de escolarização; e da manutenção da condição segregada da pessoa com deficiência mental na instituição especial, reconhecida como escola do sistema regular de ensino. Meletti, S.M.F. School Education of a handicapped person at special care education institutes : from school policies to real-life institution - 2006 – p. 125. Doctorate thesis – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. Abstract The aim of this work was to analyze the devices used by the special care institution to fit in with the legal and standard demands of regular school education by adjusting it with the special needs of their students .In order to do so, both, the school documents used in the adjusting process as well as the professional awareness of the group in charge of the special care institution which is going through a changing process, were analyzed .The documents taken into account were the following: curriculum constraints, worked out by the Federação Nacional das Apaes/ Apae Educadora: a escola que buscamos (The school we search for); the special care institute curriculum and their activity report.The analysis searched for the way Special Education, Handicapped People and Special Care Institution were thought of and whether their basic ideas regarded the new shapes each one of them has nowadays according to the school rules: Special Education as a modality of teaching, Handicapped as a special education need and the Special Institute as a regular teaching school.In order to do so, the methodology used was Discourse Analysis. The results of the research showed that the devices used were the following: formal discourse appropriation; a re-interpretation of the rules for curriculum flexibility and specific bounds; formal reorganization of the institutional structure. According to the data analysis it was possible to conclude that the devices used by the special care institution support a seemingly institutional change that still retains a conservative and totalitarian character. The same occurs with Special Care Education because handicapped people are regarded within the scope of philanthropy, they are maintained at the indistinct boundaries between restoring and regular education; regular school access is denied for handicapped people.The isolation of handicapped people remains at the special care institution which is seen as a school of the regular teaching system. Sumário Resumo Abstract A construção do problema de pesquisa 01 Capítulo 01 - Referenciais Teóricos para Uma Análise do Discurso sobre Escola Especial para Pessoas com Deficiência Mental Capítulo 02 - Apontamentos sobre a Metodologia da Pesquisa 13 58 Capítulo 03 - Os sentidos e os mecanismos presentes na reestruturação da Instituição Especial 64 3.1 - A construção do perfil educacional da instituição especial expressa nos documentos institucionais e na perspectiva de seus profissionais. 80 Considerações Finais 111 Referências 120 1 A construção do problema de pesquisa É muito difícil reconstruir os caminhos e descaminhos que percorri para formular as perguntas que desencadearam a elaboração deste trabalho. Parece impossível, como nos mostra Amaral (2001, p. xii), delimitar o início deste caminho, dessa “espiral infinita que une as coisas da vida, alternando e imbricando início e fim”. Por isso, a tentativa de reconstrução que aqui se inicia pode não contemplar todo este trajeto constituído por minhas experiências pessoais e profissionais sempre tão recheadas de preocupações e indagações. Meu contato com pessoas com deficiência mental se iniciou, juntamente com minha graduação em Psicologia, por meio do trabalho que desenvolvi em instituições especializadas no atendimento a esta população. Em um segundo momento, quando do desenvolvimento de minha pesquisa de mestrado, meu contato se deu especificamente no setor profissionalizante de uma instituição especial. No Mestrado em Educação Especial a pesquisa foi conduzida buscando conhecer o significado que o processo de profissionalização tinha para a pessoa com deficiência mental. Para realização do estudo, acompanhei o cotidiano de uma oficina abrigada 1 que mantinha convênios com empresas nas quais os aprendizes 2 trabalhavam em condição de estagiários. O referencial teórico 3 que sustentou as análises indicava, por um lado, o trabalho como uma via de integração social da pessoa com deficiência mental e, por outro, que os processos de profissionalização oferecidos por instituições especiais não estavam viabilizando a preparação, o acesso e a permanência desta população ao mercado de trabalho regular. Além disso, a literatura especializada (AMARAL, 1994; MANZINI, 1989) destacava a estigmatização da pessoa com deficiência mental e sua preparação para o trabalho em condição 1 Local supervisionado, situado em instituições especiais ou como apêndices destas, que atende o indivíduo com deficiência proporcionando atividades consideradas profissionalizantes [...] Geralmente, é considerado parte do processo de formação [...] representando uma escala a mais em sua trajetória educativa (MELETTI, 1997, p. 20) 2 Modo como as pessoas com deficiência mental eram denominadas na oficina abrigada. 3 Especialmente, Amaral (1994, 1995), Goyos (1995), Manzini (1989), Giordano (1994). 2 segregada como entraves para sua integração. Os resultados da pesquisa indicaram que para as pessoas com deficiência mental que participaram do estudo o processo de profissionalização significava: continuidade ao atendimento educacional, pois que inserido na instituição especial; alternativa ao ócio e ao desemprego; locus de aquisição de comportamentos socialmente adequados; e via de estigmatização em função da permanência em uma instituição especial para deficientes mentais. Além disso, na análise da estrutura institucional, dos procedimentos de trabalho adotados, dos tipos de contratos firmados com empresas, não foi possível perceber um movimento institucional no sentido de integrar a pessoa com deficiência mental no mercado competitivo de trabalho. Concluiu-se que o processo de profissionalização não se constituía em uma via de integração social, ao contrário, reiterava a segregação da pessoa com deficiência mental na instituição especial (MELETTI, 1997). Ao final daquela pesquisa, as constatações começaram a iluminar outros questionamentos acerca do processo de institucionalização da pessoa com deficiência mental, e outras possibilidades de estudo foram se configurando. Especificamente, direcionei meu interesse e meus estudos para o fato da educação desta população ocorrer quase que exclusivamente em condição segregada e circunscrita à instituição especial. As delimitações subseqüentes foram possíveis a partir da literatura especializada que analisa a segregação da pessoa com deficiência mental como algo sustentado, ao mesmo tempo em que sustenta, o modo de conceber o fenômeno da deficiência em nossa sociedade. Aqui, considero oportuno discorrer sobre como a deficiência mental é concebida no presente trabalho: um fenômeno multifacetado e multideterminado em seus aspectos físicos, neurológicos, intelectuais que, dependendo do contexto social, histórico e cultural no qual está inserido adquire significados específicos de 3 atraso, de incapacidade de atividade mental que sustentarão formas específicas de lidar com a condição em si. Ser identificado como deficiente mental em alguns contextos pode ser mais restritivo das interações entre a pessoa identificada e seu grupo que a identifica do que a condição de deficiência propriamente dita. O impacto da condição de deficiência mental em um determinado indivíduo depende mais da leitura social que é feita desta condição do que das condições orgânicas propriamente ditas. Foi em Vigotski (1989) que encontrei a análise da necessidade de se considerar uma determinada deficiência para além de suas manifestações orgânicas, individuais. Sustentado pelos postulados do materialismo histórico e dialético, Vigotski, nos Fundamentos da Defectologia, nos mostra que a cegueira e a surdez como defeito físico permanecerão ainda por muito tempo na Terra. O cego seguirá sendo cego e o surdo, surdo, mas eles deixarão de ser pessoas com defeito, porque a deficiência é um conceito social [...] A cegueira por si só não faz da criança uma pessoa com defeito, não é uma deficiência, quer dizer uma insuficiência, uma menosvalia, uma enfermidade. A cegueira se converte em deficiência só em certas condições sociais de existência do cego (VYGOTSKY, 1989, p. 60). Nesta mesma linha, encontramos nas análises tecidas por Jannuzzi (1992, 2004), por Amaral (1995), por Bueno (1997a) e por Garcia (2004) a sustentação de que o fenômeno da deficiência é constituído por meio de múltiplas determinações que não se restringem a manifestações orgânicas. O fenômeno da deficiência também é constituído e determinado pelas dimensões sociais, históricas e culturais, constitutivas da vida humana. Bueno (1997a, pp. 163-164) nos mostra que ... a deficiência mental, tal como a conhecemos hoje, não apenas só passou a ser identificada a partir do final do século XVIII, como foi construída na trajetória histórica de determinadas formações sociais que, gradativamente, foram exigindo determinadas formas de produtividade intelectual, as quais culminaram na caracterização de um determinado tipo de indivíduos – os deficientes mentais – que não conseguiam, em relação a essas exigências do meio (produtividade intelectual), se constituir como normativos. 4 Isso porque, em uma sociedade capitalista, marcada pela hegemonia ideológica do liberalismo e sustentada pelo ideário iluminista com sua valorização da razão empírica e culto à racionalidade humana, é possível o entendimento de que a “improdutividade intelectual” seguida de outras improdutividades decorrentes da primeira, é algo que coloca a pessoa identificada como deficiente mental em uma condição de profundo desvio. É, portanto, no conjunto das relações sociais que uma determinada característica individual passa a ser identificada como deficiência, dependendo das expectativas depositadas em cada sujeito de um determinado grupo e das conseqüências que as diferenças acarretam às possibilidades de sua participação em seu contexto social, histórico e cultural. Nesse sentido, o entendimento é de que podemos encontrar pessoas consideradas como deficientes mentais em função exclusivamente das condições de vida nas quais se encontram 4 , o que direciona as formas de lidar, de significar, de interagir, enfim, de participação nesse mesmo contexto. Ou seja, a condição de deficiência mental é algo que não se restringe ao indivíduo e que depende do julgamento do outro para se efetivar. Julgamento este sustentado pelo conjunto de normas e valores utilizados para caracterizar tal condição em um determinado momento histórico. E como a deficiência mental é julgada e caracterizada em nosso contexto? Como algo que expressa a falta, o atraso, o distanciamento de atributos considerados importantes e que compõem o modelo idealizado de homem vigente. Mas, que idealização é essa? Como o homem deve ser, qual é o ideal de indivíduo almejado e a partir de quais referenciais ele é idealizado? 4 Podemos encontrar exemplos de como pessoas são identificadas e classificadas como deficientes mentais em função das condições sociais que lhes são impostas nas análises tecidas sobre o fracasso escolar (Patto, 1997; Moysés e Collares 1992) sobre os procedimentos de avaliação e encaminhamentos de alunos para as classes especiais (Denari, 1994; Dal Pogetto, 1987) e também em estudo anterior (Meletti, 1997) em que pude constatar jovens desempregados e com problemas de comportamento na escola sendo diagnosticados como deficientes mentais leves para trabalharem em oficinas abrigadas. 5 O ideal de homem é uma abstração, uma referência que traz consigo um conjunto de características e atributos (papéis sociais, competências, valores, crenças, expectativas) que se configura como parâmetro do que deve ser considerado normal, melhor, desejável em um dado contexto. O ideal de homem assume contornos e formas distintas em cada grupo social e em cada contexto histórico e cultural, dependendo das transformações sociais que vão se processando, das relações de poder instituídas, das idealizações (abstrações) que se tem de mundo, de sociedade e das expectativas sociais depositadas em cada segmento e em cada indivíduo. Por ser uma abstração, o padrão ideal não pode ser atingido em sua totalidade pelo indivíduo singular e, por isso, assume o papel daquilo que deve ser almejado por cada um. Para Amaral (1998, p. 14) a aproximação ou semelhança com essa idealização em sua totalidade ou particularidades é perseguida, consciente ou inconscientemente, por todos nós, uma vez que o afastamento dela caracteriza a diferença significativa, o desvio, a anormalidade. E o fato é que muitos e muitos de nós, embora não correspondendo a esse protótipo ideologicamente construído, o utilizamos em nosso cotidiano para a categorização/validação do outro. Nesse sentido, o ideal de homem é também uma referência para identificação e julgamento do que não é condizente com aquilo que se almeja para cada indivíduo em seu grupo social. O ideal de homem é utilizado para qualificar sua própria negação, sustentando as formas de significar determinadas condições, atributos e papéis sociais que caracterizam o distanciamento do indivíduo daquilo que é idealizado e das expectativas nele depositadas em um dado contexto. Em outras palavras, o ideal de homem sustenta a produção do distanciamento, da incompletude, de seres humanos faltosos. Ser identificado como não correspondente ao padrão idealizado faz com que seu lugar social, seu status, seus papéis, suas interações sejam permeadas e 6 validadas por essa idealização. O que significa, inclusive, ser considerado como não digno daquilo que compõe a sociedade na qual está inserido. Significa dizer que as condições de vida de um determinado indivíduo ou grupo são também criadas e sustentadas pelas idealizações postas em cada contexto e pelos julgamentos desencadeados por elas. No que se refere à pessoa com deficiência mental, podemos observar que suas condições de vida foram e ainda o são sustentadas pela leitura social que é feita de sua condição, qual seja, de que sua deficiência é algo que se afasta de modo preponderante daquilo considerado normal. A conseqüência disso pode ser observada nas formas de significar e de lidar com a pessoa com deficiência mental ao longo da nossa história. Formas estas caracterizadas, quase que exclusivamente, pelo descrédito, pela discriminação e pela segregação daqueles considerados deficientes. De acordo com Jannuzzi (1996, p. 107) O referencial histórico valorizando as necessidades sociais específicas a um modelo de homem incorporado ao imaginário coletivo, a grosso modo, sempre esteve presente nas sociedades, pois que os indivíduos apresentando aspectos considerados divergentes, de uma forma ou de outra foram sempre segregados. [...] O que tem variado historicamente é o ponto de “corte” entre “normalidade” e “anormalidade” em função dos parâmetros mínimos considerados necessários ao funcionamento da organização social. Assim, quanto mais a pessoa se aproximar dos padrões de normalidade de um determinado grupo, mais normal será considerada e, por isso, mais aceita. Quanto mais se distanciar destes, mais desviante e menos aceita será. É nesse contexto de interações permeadas e sustentadas por padrões ideologicamente construídos e mantidos, que à condição de deficiência é dado um significado de desvio. O desvio é aqui considerado, compartilhando com as análises de Goffman (1982), como constructo social, como algo que se efetiva no julgamento social do que se identifica como desviante. 7 Este julgamento social se efetiva nas interações estabelecidas socialmente. Considero, compartilhando das reflexões tecidas por Goffman (1982) e por Amaral (1994, 1995, 1998), que as relações sociais são permeadas por referências que permitem a categorização das pessoas e dos atributos considerados normais e naturais para cada uma dessas categorias. Quando em minhas relações sociais encontro um desconhecido, é através do reconhecimento de determinadas características ou atributos que consigo incluí-lo em uma determinada categoria. Com isso, o desconhecido deixa de ser, ao menos temporária e aprioristicamente, um estranho e uma ameaça em potencial. No entanto, quando um de seus atributos o torna significativamente diferente (de modo negativo) daqueles indivíduos que se encontram a princípio na mesma categoria, esse atributo se transforma em seu estigma (marca, sinal). Em outras palavras, de acordo com Goffman (1982), a diferença significativa pode ser transformada em um estigma quando se constitui em um atributo julgado depreciativo e que se distancia daquilo considerado ideal ou normal em um determinado contexto social. A estigmatização de um indivíduo determina a qualidade das interações entre ele e seu grupo social, que passam a ser mediadas pelo rótulo a ele impingido. Ocorre a coisificação e desumanização do estigmatizado, já que o indivíduo é transformado em sua própria diferença, passa a ser reconhecido unicamente em função desta e sua deficiência passa a ser seu único atributo, com uma carga social de desvantagem e descrédito. Com isso, ocorre o que Amaral (1995) chamou de “generalização indevida” e, conseqüentemente, o que temos é a impossibilidade de outros atributos serem reconhecidos e direcionarem de forma distinta a interação. A generalização indevida também está presente na visão homogênea que se tem de um grupo de pessoas que recebem o mesmo rótulo, já que o estigma traz consigo um rol de características que qualifica a pessoa rotulada. Assim, ao identificar em uma pessoa um traço que remeta ao estigma da deficiência mental 8 passo a considerar que sei tudo a seu respeito pois o rótulo “deficiente” traz consigo todas as suas características: incapaz, incompetente, dependente... A homogeneização reside no fato de que todos os rotulados serão qualificados da mesma forma independentemente de suas singularidades. A conseqüência disso é o entendimento de que todos os identificados como deficientes mentais são iguais, possuem as mesmas necessidades, devem ser alvo dos mesmos serviços, métodos de trabalho etc. Conceber a deficiência mental a partir do rótulo de deficiente faz com que as possibilidades e as potencialidades do indivíduo rotulado sejam desconsideradas e, acima de tudo, faz com que a pessoa não seja considerada para além de sua deficiência. No que se refere à educação da pessoa com deficiência mental o que pode ser observado é que uma das conseqüências que permanecem ao longo da história é a segregação em ambientes especiais como melhor forma de educá-la. Ambientes educacionais estes que assumiram características próprias e se distanciaram da educação comum. Bueno (1997a) analisa que o processo de institucionalização da pessoa com deficiência contribuiu e contribui para a constituição tanto das concepções sociais acerca da condição quanto da identidade do próprio deficiente. Assim, o autor nos mostra que a crença na ineducabilidade, na dependência, na imaturidade, na improdutividade e na necessidade de uma educação segregada tem sustentação nos modos como foi se constituindo a educação institucionalizada da pessoa com deficiência em nosso país. Merece destaque a indicação de que a ampliação das instituições especiais ao longo do século XX no país não incorpora grande parte da população elegível para tal atendimento. Ao não incorporar a maior parcela das crianças anormais, a educação especial contribui decisivamente para a disseminação da concepção de irreversibilidade da anormalidade, na medida em que, por não deixar explícita que essa ampliação não significou, de fato, a oportunidade de acesso à maioria dos deficientes, os quais permanecem sem atendimento e conseqüentemente com grandes dificuldades de integração social, 9 contribui para que a sociedade em geral os encare como incapazes de adquirirem autonomia. (BUENO, 1997a, p. 175, grifos do autor) A isso podemos acrescentar que, por outro lado, a não incorporação da maioria das crianças anormais, mesmo com a ampliação das instituições especiais, sustenta também a crença de que o trabalho especializado só pode ser oferecido na e pela instituição especial, visto o grau de comprometimento da população atendida. Na contra-mão desta história, podemos observar a partir da segunda metade do século XX, especificamente após a segunda guerra mundial, o início de movimentos sociais anti-segregacionistas e anti-discriminatórios que desencadearam a reavaliação dos direitos humanos e resultaram na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Esta Declaração proclama os direitos humanos fundamentais a “Todo Homem” sem enfatizar grupos específicos e ... tece em pontos firmes direitos individuais e coletivos, especialmente no âmbito civil. Inspira constituições e tratados internacionais, desdobrase pelo mundo, disseminando eixos de legitimidade e respeito. Claro está que nada disso garantiu (ou garante) o pleno respeito a esses direitos e, por exemplo, a Anistia Internacional aí está para denunciar abusos e transgressões. Mas, de qualquer forma, passamos a ter uma grande pauta ética que já não podemos mais ignorar ou apelar para sua ignorância. (AMARAL 1999, p. 36) Por outro lado, a autora enfatiza que o fato da Declaração não explicitar necessidades e direitos de grupos específicos, entre eles o das pessoas com deficiência, contribuiu para que estas permanecessem, até a década de 1970 quase invisíveis aos olhos da comunidade e não consideradas verdadeiramente humanas. Analisa que a invisibilidade e a desumanidade daqueles com algum tipo de deficiência se confirmam nos diferentes âmbitos de nosso contexto, afirmando: Sim: invisíveis para a sociedade em geral, pois guardados a “sete chaves” em instituições ou em suas casas; invisíveis para a legislação, que deles só se ocupava em termos de restrições ou sanções; invisíveis para as instituições educacionais regulares, que sequer os viam como sujeitos da educação; invisíveis para os meios de comunicação não sensacionalistas; invisíveis para os produtos culturais de qualidade. E mais: quando tornados visíveis o eram, muitas e muitas vezes, com 10 tonalidades e características drasticamente estereotipadas e des- humanizadas. (AMARAL, 1999, p. 36) Em 12 de dezembro de 1975 a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprova a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes. Com esta Declaração, pela primeira vez, as pessoas com deficiência têm suas necessidades explicitadas, seus direitos, seus deveres e sua condição específica reconhecidos. Neste momento, a pessoa com deficiência “pôde começar a ser olhada, e a olhar para si mesma, de forma menos maniqueísta: nem herói nem vítima, nem deus nem demônio, nem melhor nem pior, nem super-homem nem animal. Pessoa” (AMARAL, 1994, pp. 14-15). A partir de então, os movimentos sociais e as políticas públicas referentes às pessoas com deficiência, em especial quanto à sua educação, enfatizam sua participação na educação escolar regular como um meio de romper com sua condição segregada e ascender a maiores níveis de escolarização, o que materializa seu direito à educação letrada. No Brasil este movimento e as políticas dele decorrentes indicam que a educação desta população deve ocorrer preferencialmente na rede regular de ensino sendo a instituição especial uma opção educacional, caso as pessoas com deficiência e/ou suas famílias assim decidirem (Brasil, 1997, 2001a). Nesse sentido, há a exigência de uma pedagogização da instituição especial que deve se caracterizar como escola para fins de educação escolar. Educação escolar aqui entendida como o desenvolvimento por escolas de objetivos comuns a todos os alunos da educação básica como previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n° 9394/96 (LDBEN 96): Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem Ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. § 1º Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa e da matemática, o 11 conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente no Brasil. (BRASIL, 1996) Para o cumprimento de tais objetivos da LDBEN 96 e as diretrizes e planos a ela associados determinam uma série de outros requisitos para o reconhecimento da instituição especial como escola. Sob estas exigências e frente à história de educação da população com deficiência mental em instituições especiais, que se constituiu à parte do sistema comum de ensino e sob a égide de outros princípios educacionais que não os da educação geral, temos a constituição de um espaço propício ao embate de forças contrárias. Diante deste embate, as questões que se colocam são: 1) que direções as mudanças exigidas, presentes na política educacional, estão imprimindo no movimento de adequação das instituições especiais? 2) as exigências feitas no âmbito legal e normativo são suficientes para alavancar a transformação da instituição especial no sentido indicado? 3) está havendo uma organização e uma atuação institucional no sentido de garantir a escolarização das pessoas com deficiência mental institucionalizadas? 4) quais os mecanismos utilizados pela instituição especial nos processos de mudança para lidar com as exigências legais e normativas no sentido de assumir a educação escolar como o eixo central de seu trabalho, compatibilizando-o com as necessidades especiais de seus educandos? O presente texto se inicia nesta apresentação na qual foi definido o problema de pesquisa e delimitado um objeto de estudo que se expressa por meio de quatro questões. No Capítulo I, apresento o referencial teórico que sustenta a compreensão e a análise do objeto de estudo. No Capítulo II, faço os apontamentos metodológicos do estudo e apresento os procedimentos de coleta e análise dos dados empíricos. No Capítulo III, analiso os referenciais político pedagógicos que nortearam a reestruturação de uma instituição especial e a percepção dos profissionais acerca das 12 mudanças institucionais, assim como os sentidos e os mecanismos presentes nesta reestruturação. Na última parte, teço algumas considerações que este estudo me suscitou. 13 Capítulo I Referenciais Teóricos para Uma Análise do Discurso Sobre Escola Especial para Pessoas com Deficiência Mental A exigência de mudança das instituições especiais conforme as diretrizes da educação comum, propostas na LDBEN 96 e diretrizes específicas dos níveis escolares, indica a necessidade de um movimento institucional de adequação às normas legais cuja natureza é preciso investigar. Nessa investigação consideramos o impacto de uma política que aponta para mudanças em dois sentidos que são divergentes perante a história da educação desta população: o primeiro, de ruptura da segregação da pessoa com deficiência mental ao indicar a escola comum como espaço educacional onde preferencialmente todos devem ser educados; o segundo, a exigência de pedagogização da instituição especial para reconhecê-la como instância de educação escolar. É possível perceber a complexidade do processo de transformação das instituições especiais no resgate de sua constituição histórica. Começamos este resgate por meio de uma breve análise histórica da Educação Especial no Brasil, breve por já ter sido alvo de valiosas investigações 5 das quais me aproprio para apresentar alguns fragmentos históricos necessários para situar sua atual configuração. Especificamente este resgate se refere ao fato da educação das pessoas com deficiência mental, estar ancorada na necessidade de uma educação especial implementada em um locus específico – instituição especial – que se constituiu com uma função também específica: oferecer educação especializada para pessoas com deficiência mental. Para isso, inicio resgatando que: A educação especial, desde o seu surgimento no final do século XVIII, atende a dois interesses contraditórios: o de oferecer escolaridade a 5 Tais como as desenvolvidas, entre outros, por Jannuzzi (1992, 2004), por Bueno (1993), por Ferreira (1995), Mazzotta (1996) e por Kassar (1999). 14 crianças anormais, ao mesmo tempo em que serve de instrumento básico para a segregação do indivíduo deficiente. (BUENO, 1997b, p.38) Podemos observar que no Brasil a educação especial, principalmente a direcionada à pessoa com deficiência mental, apresenta ao longo de seu processo de constituição estes dois traços desde o início da preocupação com o atendimento desta população que, de forma incipiente, tem seu início nos primeiros anos do século XX. Neste período, surgem os primeiros registros sobre a educação da pessoa com deficiência mental no Brasil destacando sua vinculação com a medicina. Os registros também vão rompendo com o silêncio acerca dessa população e mostrando que as pessoas com maior grau de comprometimento encontravam-se confinadas nos hospitais psiquiátricos juntamente com todos os tipos de desvalidos que estas instituições abrigavam na época. Essa situação começa a ser modificada através da iniciativa de alguns médicos que criam alas anexas aos hospitais com o objetivo de atender exclusivamente as crianças. 6 Jannuzzi (1992) analisa o quanto a implantação dos pavilhões para as crianças nos hospitais psiquiátricos é ambivalente, pois ao mesmo tempo que se reitera a segregação do deficiente, há a percepção da importância da educação e de não limitar o atendimento ao campo médico. Nesta perspectiva, a educação especial era sustentada por teorias sensualistas e se efetiva na perspectiva da medicina moral. Conforme nos mostra Ferreira (1995, p. 19), os trabalhos eram desenvolvidos 6 Em 1905, temos no Rio de Janeiro a criação do Pavilhão Bourneville, anexo ao Hospício da Praia Vermelha. Esta prática se repete em Petrópolis, 1920 e em São Paulo, no Hospício de Juqueri, em 1921. 15 na linha de treino psicomotor, com imposição de hábitos regulares e freqüentes, como oposição à anomalia fisiológica. Experiências concretas, atividades sensoriais, rotina, consistências, menos punição. Temos aqui o início do trabalho pedagógico destinado às pessoas com deficiência mental fortemente direcionado por uma concepção médico-pedagógica de educação, centrada nas causas e manifestações orgânicas da deficiência que pretendia, dentro dos preceitos da ortopedia mental, ajustar e corrigir os danos causados por ela (JANNUZZI, 2004). Além do trabalho desenvolvido nos hospitais nas duas primeiras décadas do século XX, temos a criação de classes especiais para atender crianças que apresentavam problemas na escola regular. Segundo Jannuzzi (1992, p. 32), em São Paulo, o Serviço de Higiene e Saúde Pública deu origem “à inspeção médico-escolar que em 1911 foi a responsável pela criação de classes especiais e formação de pessoal para trabalhar com essa clientela” . Kassar (1999, p.23) nos mostra que, as classes especiais públicas vão surgir pautadas na necessidade científica da separação dos alunos normais e anormais, na pretensão da organização de salas de aula homogêneas, sob a supervisão de organismos de inspeção sanitária que incorporam o discurso da ortopedia, a partir dos preceitos da racionalidade e da modernidade. Outro aspecto a ser destacado é que com o surgimento das classes especiais inaugura-se um novo espaço educacional que cumprirá com o papel de educar e de segregar as crianças que apresentassem características que fossem identificadas como uma deficiência. Nesta época, temos o advento do movimento escolanovista e, com ele, a psicologia e a sociologia, em suas vertentes funcionalistas, se consolidam como as ciências que instrumentalizam a educação. Concomitantemente, temos a educação brasileira buscando legitimar-se como nova, moderna, científica e experimental. 16 Carvalho (1997) nos mostra que nessa busca a escola moderna se consolida como uma “instituição intrinsecamente disciplinar”, tanto no sentido preventivo quanto no sentido de correção. A autora apresenta a criação do Laboratório de Pedagogia Experimental, no Gabinete de Psicologia e Antropologia Pedagógica, anexo à Escola Normal Secundária de São Paulo, em 1914, como a expressão mais ambiciosa dessa busca pela implantação de práticas consideradas científicas no campo da Pedagogia. Considero que a criação do Laboratório também seja um exemplo significativo da forma como os desvios e os desviantes eram concebidos na época e do quanto a busca da pedagogia científica deixa marcas profundas na educação do deficiente em nosso país, na medida em que por meio de várias práticas “de indagação e de medição” buscava “construir um conhecimento científico do indivíduo” (CARVALHO, 1997 p. 272). A autora, analisando o discurso de Oscar Thompson no texto O Futuro da Pedagogia é Científico, explicita que a idéia de que as diferenças entre os educandos requerem “meios absolutamente vários de educação”, devendo ser “objeto de um estudo e tratamento particular” é que, desse ponto de vista, comanda a constituição de uma pedagogia científica. Assentada em uma pluralidade de práticas de medição, tal pedagogia se contrapunha à “velha pedagogia, [...] abstrata, dogmática, absoluta”. (CARVALHO, 1997, p. 272) A elaboração de um conhecimento específico do indivíduo visava a possibilidade de discriminar as crianças normais das anormais ou degeneradas para que cada uma fosse encaminhada e cuidada de acordo com suas necessidades. Desse modo, a pedagogia científica constitui-se como recurso de seleção e composição do grupo de crianças que pode freqüentar a escola. Esta prática era entendida como necessária e humanitária. Carvalho (1997, p. 277, grifos da autora) analisa que a prática humanitária de distribuição científica das crianças por escolas, casas de correção, hospícios ou prisões, [...] a organização de classes 17 homogêneas, um dos objetivos da prática de medição, era recurso de maximização dos resultados do ensino simultâneo e seriado. [...] Mas, contraditoriamente, o intuito “humanitário” de seleção da clientela escolar indicia o horizonte ideológico em que se inscreviam as intenções políticas republicanas de levar a educação a todos os cidadãos. Nesse contexto, temos o eixo da educação se deslocando da medicina para a psicologia e o trabalho pedagógico destinado às pessoas com deficiência mental passando a ser sustentado por uma concepção psicopedagógica da educação e a ser fortemente influenciado pelas teorias de aprendizagem psicológicas. A ênfase do trabalho pedagógico recai sobre os métodos e técnicas de ensino. É nessa atmosfera que temos a criação da primeira instituição especializada no atendimento da pessoa com deficiência mental no Brasil, o Instituto Pestalozzi de Canoas, no Rio Grande do Sul, em 1926. As instituições especiais surgem submersas em contexto educacional e social marcado pela hegemonia da ideologia liberal, pelos preceitos das ciências naturais e pelo ideal de racionalidade humana. Da mesma forma que a educação regular, a educação especial implementada nas instituições também é uma expressão, ao mesmo tempo em que é conseqüência, da incorporação de tais concepções por uma pedagogia que se pretendia científica e que, instrumentalizada pela psicologia, objetivava observar, medir, classificar, prevenir, corrigir. Em todas essas operações, a remissão à norma é uma constante. A pedagogia científica, as práticas que a constituíam e as que derivavam dela, caracterizavam-se, assim, por essa remissão constante a cânones de normalidade produzidos, pelo avesso, na leitura de sinais de anormalidade ou degenerescência que a ciência contemporânea colecionava em seu afã de justificar as desigualdades sociais e de explicar o progresso e o atraso dos povos pela existência de determinações inscritas na natureza do homem. (CARVALHO, 1997, p. 278) É também sustentada por essas idéias que Helena Antipoff, “na década de 30, marca a educação especial, provendo ao Instituto Pestallozzi de Minas Gerais, tanto 18 uma base científica, quanto uma idéia ligada ao exercício do assistencialismo” (KASSAR, 1999, p. 24). A base científica é constituída de acordo com os preceitos da Escola Nova, que reitera a crença de que seja possível “reconstruir a sociedade por meio da educação de cada pessoa; e, ainda, na esperança liberal de que o talento pessoal – respeitado e promovido na escola – tenha o poder de determinar a posição social futura dos educandos” (CUNHA, 1995, p. 42). O enaltecimento do individualismo no movimento escolanovista é terreno fértil para a consolidação da crença no sucesso ou fracasso individual como naturalmente dado e como uma conseqüência direta das diferenças individuais. Isso faz com que o papel da psicologia como uma ciência instrumental da educação se consolide, especificamente no que se refere à sua condição de, através de medidas psicométricas, classificar e agrupar os alunos de acordo com suas aptidões e potencialidades. Acredita-se que o agrupamento dos alunos em classes homogêneas de acordo com o resultado dos testes favorece o aprendizado. Por outro lado, o que temos é a possibilidade de separação e conseqüente segregação daqueles identificados como anormais se consolidando. É com base nestes preceitos que Helena Antipoff organiza o trabalho desenvolvido no Instituto Pestalozzi. Jannuzzi (2004) analisa que, para Antipoff, o trabalho pedagógico da educação especial deveria ser sustentado pela medicina e pela psicologia, inclusive no que tange à atuação do professor. A educação especial é pois uma tentativa de abrangência do total pedagógico, em que a instrução permaneceria como horizonte que, para ser atingido, exigiria toda essa complexificação da formação do professor e do aparelhamento escolar (JANNUZZI, 2004, p. 125) A criação da primeira instituição especial e das posteriormente fundadas pode ser entendida como conseqüência do movimento de grupos específicos, particularmente grupos de pais, com o objetivo de preencher uma lacuna existente 19 no sistema educacional brasileiro, referente ao atendimento de pessoas com deficiência (D’ANTINO, 1996). Por outro lado, não podemos desconsiderar que a criação das instituições especiais privadas foi favorecida pelas reformas educacionais que se processaram no país a partir da segunda metade da década de 1920, prevendo e favorecendo a implementação do ensino privado em todas as suas modalidades. De acordo com Jannuzzi (1997, p. 184), o estabelecimento do setor privado no campo educacional foi amplamente favorecido após as reformas, especialmente com a Reforma Francisco Campos “que facilitou a equiparação dos estabelecimentos escolares privados com os públicos pela prescrição do currículo mínimo em âmbito nacional”. Isso também favoreceu a transferência da responsabilidade da educação das pessoas com deficiência mental para o setor privado, especialmente para aquele de caráter filantrópico. Na Constituição Brasileira de 1946, o favorecimento do ensino privado mais uma vez é evidente com a proibição de cobrança de impostos a instituições de educação ou de assistência social. Da mesma forma, temos no modo de implementar políticas sociais outra via de transferência da responsabilidade do atendimento às pessoas com deficiência do Estado para a iniciativa privada. De acordo com Sposati (1995, p. 13) ... no Brasil a assistência social, como área de ação governamental, longe de ser ação complementar, constitui forma específica e estratégica de atribuir alguns serviços sociais a determinados segmentos da população. Destaca-se aqui a criação, por parte do Estado, da Fundação Legião Brasileira de Assistência – LBA – em 1942 7 , com o objetivo de “congregar brasileiros de boa vontade para promover, por todas as formas, serviços de assistência social, prestados diretamente ou em colaboração com o poder público e as entidades 7 Inicialmente seu objetivo foi “assistir às famílias dos convocados na II Guerra Mundial, passou a partir de 1945, a dar prioridade à assistência materna e à infância” no que se refere às áreas de saúde e de educação. (Rizzini, 1995 p. 291) 20 privadas” (SPOSATI, 1995, p. 87). A indicação era de que os serviços deveriam abranger, entre outros, a assistência aos excepcionais. Assim, na ampliação do setor privado e no afastamento do Estado de questões relacionadas à educação e à assistência social, temos a consolidação de um campo fértil para criação das instituições especiais privadas de cunho filantrópico como a instância social responsável pelo atendimento à pessoa com deficiência mental em nossa sociedade. O que ficará evidente a partir da década de 1950, com a necessidade de ampliação do serviço educacional especializado, que passa a atender, inclusive, as deficiências mais leves e menos evidentes, devido ao aparecimento da excepcionalidade nas escolas regulares (JANNUZZI, 1992). É submersa neste contexto que, em 1954, é fundada a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), na cidade do Rio de Janeiro, nos moldes da “National Association for Retarded Children” (NARC), organização criada em 1950 nos Estados Unidos. Silva (1995), nos mostra que, desse modo, o surgimento da APAE está marcado por um modelo de associação que busca se desenvolver como uma rede nacional, “como um movimento em prol da criança excepcional”, que não objetivava, inicialmente, o atendimento direto dessa população, conforme os objetivos do primeiro estatuto da APAE-Rio, de 1954. A partir da análise dos objetivos estabelecidos na fundação da APAE-Rio, é possível compreender como essa instituição surge inicialmente para assessorar o atendimento aos excepcionais e, em seguida, se constitui como entidade prestadora de serviços diretos aos portadores de deficiências. Seus fundadores mantém uma interlocução com entidades públicas e privadas, nacionais e internacionais. Essa visão ampliada lhe confere o status de organizadora das experiências realizadas na área do atendimento ao excepcional (SILVA, 1995, pp. 43-44). O surgimento da APAE está intimamente relacionado à ausência de um serviço especializado ampliado na rede regular de ensino, que se destinasse às pessoas com deficiência mental. Nesse sentido, Silva (1995, p. 41) nos mostra que a APAE se 21 coloca no cenário educacional nacional, de expansão da iniciativa privada e de crítica ao monopólio do Estado, como uma “instituição privada que busca atender às necessidades da educação especial pública”. O atendimento direto é implantado gradativamente fazendo com que a instituição vá se constituindo e se consolidando como uma rede nacional destinada a atender esta população. Nos anos seguintes temos a ampliação do movimento apaeano com a fundação das APAEs de Volta Redonda, em 1956, São Lourenço, Goiânia, Niterói, Jundiaí, João Pessoa e Caxias do Sul, em 1957, Natal, em 1959, Muriaré, em 1960 e São Paulo, em 1961 (SILVA, 1995). Neste mesmo período, podemos perceber uma alteração no foco da educação especial devido à ênfase na valorização da educação como necessária para o progresso da sociedade, por possibilitar que o indivíduo se adapte ao seu meio. A alteração se dá no sentido de que, a partir do pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade, essa pedagogia advoga a reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e operacional. (SAVIANI, 1997, p. 15) Nesse contexto temos a manutenção da psicologia, em sua vertente comportamental, como uma das bases de sustentação teórica da educação especial. O Behaviorismo surge no início do século XX através dos trabalhos desenvolvidos por Watson (1878 - 1958) e se consolida através dos postulados elaborados por Skinner. Esta escola da Psicologia busca as relações entre o meio material e o meio social, o que, dada sua herança biológica, enfatiza o naturalismo do meio social e a necessidade de adaptação do indivíduo a ele, para que a sociedade possa se elevar harmoniosamente, tendo no seu seio indivíduos que, bem ajustados, contribuem para o estado de progresso permanente. [...] A premissa básica do behaviorismo - previsão, controle, seleção e orientação de comportamentos com vista ao ajustamento daqueles comportamentos não desejáveis. Seu método é objetivo e seu objetivo é o comportamento. (CAMBAÚVA, 1988, p. 64) 22 Nesta perspectiva o comportamento é considerado como toda e qualquer forma de responder a estímulos do ambiente e é na análise desta relação entre o homem e seu meio, na seleção e controle de variáveis que interferem nas respostas dadas, que o comportamento pode ser previsto, controlado, modificado ou extinto. É na aquisição de comportamentos mais complexos e adequados que o indivíduo se desenvolve. É na análise do repertório comportamental do indivíduo, buscando apreender o seu nível de desenvolvimento, que se estabelece o quanto ele se desvia ou não do padrão definido. Podemos encontrar as bases epistemológicas da psicologia behaviorista no positivismo e no funcionalismo na medida em que o conceito de ciência implícito nesta abordagem "é o da busca das causas, das relações de efeito de variáveis sobre um fenômeno, de forma a dizer que conhecemos o fenômeno se identificarmos suas causas se o definirmos operacionalmente em sentido único" (FERREIRA, 1994, pp. 24-25). A influência dessa abordagem psicológica na educação especial é profunda e marca as formas de lidar com a deficiência mental, reiterando a idéia de que a segregação em instâncias educacionais especiais é necessária e benéfica ao desenvolvimento da pessoa que apresenta tal condição. Ferreira (1994, p. 25) nos mostra que nesta perspectiva o desenvolvimento do aluno com deficiência mental é reduzido a um conjunto de dados mensuráveis, delimitado, isolado, dividido em partes que passam a compor o sistema de variáveis na relação funcional com a deficiência. [...] A tomada de decisão educacional baseia-se na operacionalidade e mensurabilidade do objetivo de ensino e deve se orientar pela adequação do comportamento ao meio, pelo desenvolvimento de habilidades linearmente organizadas, segundo uma cronologia ou sistemas previamente definidos nas suas relações temporais ou funcionais. O desenvolvimento, então, reduz-se ao conjunto originado pela soma das aquisições ou habilidades aprendidas e é visto como um fenômeno cujo processo é de natureza externa à pessoa, dentro de uma perspectiva totalmente ambientalista. 23 Nesse sentido, a educação especial concentra seus esforços educacionais na recuperação das etapas que faltariam ao aluno. Podemos perceber a sustentação da educação da pessoa com deficiência mental como emendativa e compensatória, pois que “significa corrigir falta, tirar defeito” decorrentes da deficiência (JANNUZZI, 2004, p.70). Acredita-se que ao instalar comportamentos menos aberrantes e mais adaptados à normalidade está se reduzindo sua condição de deficiente e dando-lhe condições de convívio em sociedade de forma mais adequada. A institucionalização da educação especial que ocorre no país a partir da década de 1950 consolida não só o distanciamento do Estado no que se refere à educação das pessoas consideradas com deficiência mas também, e principalmente, a privatização do ensino, da assistência social e da saúde dessa população, na medida em que agrega à sua especialidade um atendimento global. Mais que isso, ao assumir o status de “especializada em” e, principalmente, de instituição privada de caráter público, passa a ser reconhecida e responsabilizada como tal. Assim, em 1961, quando é promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (Lei 4.024/61), que explicita o compromisso com a educação especial, esta já está relativamente implementada nas instituições privadas de caráter filantrópico. Em seu artigo 88, a LDB de 1961 apresenta a necessidade de integrar as crianças excepcionais à comunidade e aponta a escola regular como uma das principais vias de integração. Por outro lado, seu artigo 89 explicita o compromisso de dispensar “tratamento especial mediante bolsas de estudos, empréstimos e subvenções” às instituições privadas de atendimento aos excepcionais, desde que consideradas eficientes pelos Conselhos Estaduais de Educação. Mazzotta (2001, pp. 68-69) analisa que nesse compromisso ou “comprometimento” dos Poderes Públicos com a iniciativa privada não fica esclarecida a condição de ocorrência da educação dos excepcionais; se por serviços especializados ou comuns, se no “sistema geral de educação” ou fora dele. Esta circunstância acarretou, 24 na realidade, uma série de implicações políticas, técnicas e legais, na medida em que quaisquer serviços de atendimento educacional aos excepcionais, mesmo aqueles não incluídos como escolares, uma vez considerados eficientes pelos Conselhos Estaduais de Educação, tornavam-se elegíveis ao tratamento especial, isto é, bolsas de estudos, empréstimos e subvenções. Podemos dizer que a LDB de 1961 consolida a educação especial como um sistema paralelo de ensino, que se estrutura fora da escola pública e que não seria assumida diretamente pelo Estado, ficando circunscrita ao espaço privado das instituições especiais. Além disso, evidencia-se o fato do caráter educacional da educação das pessoas com deficiência não ser destacado. Esta ambigüidade entre o público e o privado, assim como o distanciamento da educação especial do sistema regular de ensino, sustenta o alargamento da prestação de serviços que deveriam ser públicos pelas instituições especializadas e da influência que estas passam a exercer sobre o Estado. Isso é apontado por Silva (1995) na análise histórica da constituição do movimento apaeano no Brasil. Na primeira reunião nacional das APAEs ocorrida em novembro de 1962, um dos temas discutidos foi “Legislação”. Silva (1995) nos mostra que entre os aspectos apontados como prioritários está a necessidade: de incluir as pessoas com deficiência mental entre os cidadãos com direito à assistência social; de defender junto aos órgãos e autoridades competentes, principalmente os Conselhos Federal e Estaduais de Educação, a ampliação dos recursos destinados a essa população, por meio de medidas que assegurem, nos Planos de Educação, o financiamento da educação especial implementada nas instituições. A partir de então, podemos perceber que os limites não muito delimitados entre o público e o privado no atendimento às pessoas com deficiência mental vai moldando não só as legislações educacionais mas também a estruturação das instituições especiais. Temos o apoio direto do Estado às instituições privadas de ensino especial, financiando, inclusive, a ampliação das estruturas física e material 25 de várias APAEs. Em contrapartida, as instituições se consolidam como responsáveis pelo atendimento global a esta população. Desse modo, instituições especiais dessa natureza foram se constituindo como a referência social, como o locus da deficiência mental em nosso país, preenchendo a lacuna deixada por um Estado que reduz os investimentos com a educação geral pública, que intensifica o incentivo à iniciativa privada e que e se distancia das questões relativas à educação especial. Jannuzzi (1997, p. 185) acrescenta que “há assim uma parcial simbiose entre o público e o privado, que permite ao segundo exercer influência na determinação da política pública na área”. O que pode ser amplamente observado no caso das instituições especiais, desde o primeiro estatuto da APAE-Rio, de 1954, que explicita como um de seus objetivos “promover junto aos órgãos oficiais a obtenção de medidas legislativas e administrativas visando o interesse dos excepcionais” (SILVA, 1995, p. 43). A perspectiva tecnicista analisada anteriormente se intensifica tanto na educação geral quanto na especial a partir de meados da década de 1960. Segundo Jannuzzi (2004), neste período ocorre a implantação da corrente da Economia da Educação ou Teoria do Capital Humano. Seria esta teoria a expressão mais explícita de vincular a educação ao desenvolvimento econômico do país, tal como ele se manifestava. Seria a procura de, pela educação, formar o aluno para os postos de trabalho existentes. Uma subordinação da educação ao projeto de desenvolvimento implantado. A escola como necessária à produção, produtora de “recursos humanos” entendidos como mão-de-obra (JANNUZZI, 2004, p. 13). A autora ainda nos mostra que o Plano Setorial de Educação e Cultura de 1971 explicitava: “Enquanto não se puder abrir largamente as portas da educação a cada um, o interesse nacional recomenda que se favoreça a ascensão cultural dos mais talentosos, os mais capazes de mobilizar a ciência e a técnica em favor do progresso social. O único bem que nação alguma está em condições de desperdiçar é o talento de seus filhos”. E continuava: “Mas o mesmo interesse social exige que se eduquem os deficientes, no 26 sentido de torná-los, quanto possível, participantes de atividades produtivas”. E num rasgo de generosidade acrescentava: “E, nesse caso, o interesse fala mais baixo que os reclamos da eqüidade e da justiça”. (JANNUZZI, 2004, pp. 13-14) No caso da educação especial, o que observamos é que a ênfase no treino de habilidades específicas é ampliada. A educação especial passa a ter como objetivo tornar, de alguma forma, o indivíduo útil à sociedade. Ainda durante a década de 1970, temos a ampliação do sistema nacional de ensino e sua intensa tecnicização. Temos também os índices de fracasso escolar aumentando na mesma proporção que aumentava o acesso das crianças advindas das classes populares à escola. Nesse contexto a educação especial converte-se em prioridade para o Ministério da Educação e a ela é atribuída, conforme nos mostra Kassar (1999, p. 31), a responsabilidade de atendimento de crianças sem a necessidade de diagnóstico de deficiência ou, em outras palavras, torna-se legítima a transformação de crianças “atrasadas” em relação à idade escolar de matrícula em “deficientes mentais educáveis”. O sucesso ou fracasso dessa clientela é respaldado pelo discurso das “potencialidades inatas” e pela implementação e utilização de técnicas especializadas. Entre as décadas de 1960 e 1970 o “espaço vazio” da educação especial pública foi efetivamente ocupado pelas instituições especiais privadas, principalmente pelas APAEs. A rede nacional se consolida não só no número de instituições fundadas 8 , mas também na criação da Federação Nacional das APAEs em 1962. Silva (1995, p.90) nos mostra que o rápido desenvolvimento das APAEs se dará pela capacidade de responder às necessidades de atendimento às pessoas portadoras de deficiência mental ao lado da carência do serviço público. Além de tornar-se empreendedora de iniciativas nas áreas da medicina, da psicologia e pedagogia junto às demais instituições, a APAE obteve êxito na relação estabelecida com o poder público, seja por intermédio de acordos econômicos ou políticos. 8 Segundo Silva (1995, p. 96), “na década de 50 a APAE constituiu-se com 07 associações, na década de 60 contava com 118, na década seguinte com 428 e chegando à década de 80 com 775 associações”. 27 Cabe citar como exemplo do êxito obtido na relação com o poder público a influência exercida em duas esferas: na criação do Centro Nacional de Educação Especial – CENESP – em 1973 e na garantia de financiamento das instituições especiais filantrópicas por parte do poder público nas políticas educacionais e sociais. A influência na criação do CENESP pode ser analisada como um movimento de pressão decorrente das recomendações feitas por organizações internacionais direcionadas à criação de um órgão para definir a política em relação aos deficientes mentais. Frisava-se que a ONU, através de seus organismos especiais [...], tinha possibilidade de auxiliar o desenvolvimento de assistência aos excepcionais através do auxílio técnico aos governos nacionais (JANNUZZI, 2004, p. 139). No que se refere ao financiamento público das instituições especiais, podemos observar que a influência destas está presente inclusive na legislação educacional que, a partir de 1961 com a Lei 4024/61, explicita o apoio financeiro às instituições especiais privadas de caráter filantrópico em todas as Constituições, Planos Nacionais de Educação, Diretrizes Educacionais etc. O fato é que as instituições especiais absorvem uma expressiva parte da verba pública destinada à educação especial no Brasil. Silva (2003, p. 91) nos mostra que o Plano Nacional de Educação Especial para 1977/1979, estipulou destinar no triênio “para a Cooperação Técnica e Financeira aos Sistemas Estaduais de Ensino, o valor de Cr$ 21.520,00, em contrapartida aos Cr$ 87.148,00 para a Cooperação Técnica e Financeira às Instituições Privadas, uma diferença de aproximadamente 404%”. A década de 1970 pode ser considerada um marco para a educação especial brasileira, tanto em função da ampliação do Estado na área quanto pelo crescimento das instituições especiais, com apoio público decisivo. De acordo com dados apresentados por Silva (1995), na década de 1970 o crescimento das instituições 28 especiais filiadas à Federação Nacional das APAEs foi de aproximadamente de 363% em relação à década anterior, principalmente nas regiões mais desenvolvidas do país. Bueno (1993) analisa que esta ampliação refletiu, em primeiro lugar, a importância cada vez maior que essas entidades foram assumindo dentro da educação especial. Essa influência crescente ocorreu pela sua organização em nível nacional, como são os casos das Federações Nacionais das Sociedades Pestallozzi e das APAEs, que passaram a exercer influência crescente nas políticas da educação especial, bem como pela qualificação técnica das equipes de algumas entidades assistenciais de ponta (como as Sociedades Pestallozzi de Minas Gerais e de São Paulo e as APAEs do Rio de Janeiro e de São Paulo) e das empresas prestadoras de serviços de alto nível (ao contrário das escolas públicas que enfrentam o grave problema de falta de condições de trabalho) e que passaram a estabelecer os padrões de qualidade com relação à educação do excepcional. O padrão de qualidade é grandemente dependente da amplitude dos atendimentos às necessidades dos seus educandos. A ampliação das esferas de atendimento faz com que as instituições especiais de caráter privado-filantrópico se constituem como o espaço social responsável pela pessoa com deficiência mental. O atendimento global incorporado abrange todas as áreas, especialmente aquelas relacionadas à prevenção, reabilitação e bem estar social da pessoa com deficiência mental e a subvenção o Estado se dá também nestas esferas. Um exemplo a ser citado é a Portaria Interministerial n. 186 de 1978, na qual, segundo Mazzotta (2001) os serviços especializados eram distribuídos da seguinte forma: educacionais, prestados por órgãos ou entidades ligados ao CENESP/MEC; de reabilitação, prestado pela LBA/MPAS 9 ; de saúde da Previdência Social e dos serviços de reabilitação profissional do INPS/MPAS. Mazzotta (2001, p. 72), ao analisar a citada Portaria, nos mostra que o atendimento educacional, como competência “do MEC através do CENESP, em ação integrada com outros órgãos do setor de educação, é caracterizado como seguindo uma linha preventiva e corretiva”. Para o encaminhamento aos serviços especializados de natureza educacional, é 9 Segundo Sposati (1995), neste mesmo ano a LBA funda o “Programa de Assistência aos excepcionais” com o objetivo de “reabilitar portadores de doenças físicas, mentais, sensoriais, congênitas, ou adquiridas e prevenção de deficiências do excepcional” e para o qual foram destinadas verbas para atendimento de aproximadamente 400.000 pessoas (p.98). 29 estabelecida a exigência de diagnóstico da excepcionalidade, a “ser feito, sempre que possível, em serviços especializados da LBA/MPAS”. Onde não houver tais serviços, recomenda-se que sejam aproveitados “os serviços de natureza médico-psicossocial e educacional oferecidos pela comunidade”. Podemos considerar que os “serviços oferecidos pela comunidade” são implementados prioritariamente nas instituições especiais que ofereciam, já nesta época, um atendimento global. Mas, se considerarmos o caráter preventivo/corretivo do atendimento educacional fica patenteado um posicionamento que atribui um sentido clínico e/ou terapêutico à educação especial (MAZZOTTA, 2001). No final da década de 1970, início dos anos 80, podemos perceber que a área de educação especial, mesmo sem romper com o entendimento de educação atrelada ao desenvolvimento econômico do país, passa a explicitar uma preocupação de cunho pedagógico, incorporando em seu discurso os princípios de normalização e de integração. O entendimento era o de que a educação especial deveria proporcionar ao indivíduo com deficiência condições de vida tão semelhantes quanto a de pessoas não deficientes, seja na escola, no trabalho ou no contexto social geral. Para isso, defendia-se a normalização das condições de vida e não do deficiente, a quem deveria ser ensinado beneficiar-se daquilo que a sociedade pode lhe oferecer (PEREIRA et al., 1980). Tais princípios se consolidam como o pano de fundo das investigações da área de Educação Especial (NUNES et al., 1998) e passam a direcionar programas políticos e educacionais referentes a esta população. No âmbito das práticas educacionais especiais, a escola regular passou a representar o local onde a integração poderia ser concretizada. Ampliam-se as classes especiais públicas como forma de colocação do deficiente na escola regular, mas com metodologias de ensino diferenciadas para atender suas necessidades. Por outro lado, é preciso salientar que o esforço da normalização se centrou de modo preponderante no sentido de neutralizar a deficiência (AMARAL, 1994). Ao 30 invés de construir condições de vida “tão semelhantes quanto” o que se observou foi o esforço em tornar o indivíduo com deficiência “tão normal quanto”. As investigações mostram que, mesmo com os princípios de normalização e integração norteando a área da Educação Especial, as práticas integracionistas contribuíram para a manutenção da condição em que a pessoa com deficiência mental se encontrava anteriormente. Por exemplo, Ferreira (1995, 1998) aponta que as classes especiais se constituíram como um local de segregação e, ao invés de favorecer a integração dos deficientes vindos de seus lares ou de instituições especiais, favoreceram a exclusão, de modo preponderante, de alunos do ensino regular, especialmente aqueles que combinavam condições de pobreza e de fracasso escolar; demonstrando inclusive que a simples colocação neste ambiente adaptado não garantiu a integração desta população. Isso porque, a partir desses princípios, os espaços considerados restritivos tais como as instituições especiais e as classes especiais, são analisados como um momento necessário de segregação para uma posterior integração mais eficiente, como se fosse possível abstrair a pessoa portadora de deficiência de seu contexto social, “consertá-la” ou torná-la menos diferente, e depois devolvê-la a este contexto de forma que não haveria ou haveria menos motivo para estigmatizá-la e excluí-la. (FERREIRA, 1995, p. 7) Na busca desse "conserto" ou dessa normalização, o ensino especial tem se orientado por abordagens educacionais que, reduzidas a uma dimensão técnica de ensino, priorizam o treino do indivíduo objetivando o desenvolvimento de competências e habilidades específicas a fim possibilitar sua integração nos espaços sociais dos quais foi excluído em função de sua diferença (FERREIRA, 1994). Outro aspecto a ser salientado é que esta maneira de conceber o processo educativo de pessoas com deficiência mental (segregar → preparar → integrar) não atende suas reais necessidades além de colocá-las em permanente “preparo para”, 31 já que só estará preparado na medida em que estiver menos deficiente, o que não se dá. Outrossim, o fracasso em integrar o deficiente em qualquer instância social é atribuído à própria deficiência e não ao processo educacional. O que percebemos é a manutenção das noções de adaptação e de ajustamento, da visão reducionista e psicologizante da deficiência como eixos centrais da educação especial (CAMBAÚVA, 1988). O que explicita a não ruptura com as concepções sobre a educação das pessoas com deficiência mental analisadas anteriormente. Outro aspecto a ser destacado na consolidação das instituições especiais e na omissão do Estado é que, especialmente no que se refere ao atendimento da pessoa com deficiência mental, o assistencialismo é entendido como forma de tratar os direitos sociais, reiterando a indistinção entre o público e o privado. Silva (2003, p. 86) nos mostra que em alguns setores das políticas sociais esta indistinção se confunde com a própria forma de conceber, praticar e analisar este campo de atuação. [...] Uma forma de desdobramento da relação público-privado, [...] trata da legitimação de determinadas formas de serviços a serem destinadas a determinadas clientelas. A identidade criada entre a instituição e o homem, nestas relações acaba por traçar uma compreensão a respeito desse próprio homem. Mas, se por um lado o apoio do Estado é decisivo para consolidação das instituições especiais de cunho privado-filantrópico como responsáveis pelo atendimento ao indivíduo com deficiência mental, por outro, ele por si só, não é suficiente tanto para justificar a amplitude do espaço social por elas ocupado, quanto para suprir suas necessidades econômicas. Assim, conforme nos mostra D’Antino (1996, p.04), muito embora o Estado canalize recursos públicos para iniciativa privada, mesmo que de caráter filantrópico, estes não se constituem em solução econômica para as instituições, uma vez que o custo da prestação de seus serviços é sempre muito superior à verba recebida, bem como os recursos públicos destinados à iniciativa privada são pulverizados pelo grande número de instituições, cabendo, 32 então, à sociedade civil a responsabilidade da complementação do orçamento institucional. Complementação esta advinda de recursos arrecadados junto à sociedade civil, representada pelos sócios beneméritos, pelos diversos contribuintes das campanhas promocionais e pelas empresas privadas e que se sustenta nos pilares da filantropia, do assistencialismo e da caridade. Esta forma de angariar fundos para a manutenção institucional traz conseqüências para o trabalho desenvolvido na instituição especial como um todo, visto que o apelo à caridade, à piedade e ao amor cristão se sustenta em uma concepção de deficiência mental que coloca o indivíduo com tal condição como aquele que depende do outro para as questões mais básicas da vida, como aquele incapaz de aprender, de expressar seus desejos, suas necessidades... E a instituição depende desse apelo e dessa imagem do deficiente mental para se manter e para se perpetuar como seu espaço social. Isso faz com que a instituição especial veicule, de diferentes formas, a imagem do indivíduo com deficiência mental como aquele que necessariamente deve ser alvo da piedade humana. O apelo à caridade para angariar fundos na sociedade civil reforça fortemente esta concepção de deficiência, criando uma relação de dependência entre a instituição e essa imagem. Assim, conforme nos mostra D’Antino (1996, p. 47), se, por um lado, os fatores que originam as “instituições de pais” estão atrelados a uma concepção social de indivíduo portador de deficiência mental como um ser incapaz das mais simples formas de expressão, autonomia e participação social, por outro lado a esse mesmo indivíduo é imputada a tarefa de “carregar o estandarte” da benemerência e filantropia encontrada nos muros cristalizados (e não muito cristalinos) das instituições que insistem em se aprisionar em seu próprio cárcere. Assim, a imagem da pessoa com deficiência pela força desses valores que resistem ao tempo, permanece atrelada à piedade humana. 33 Nesse sentido, a instituição depende, necessariamente, da manutenção do vínculo do aluno com deficiência mental com o espaço institucional; o que reforça, e muito, sua imagem de incapaz e sua segregação. Essa imagem da deficiência mental reforça também o caráter de movimento em prol da excepcionalidade, colocando a instituição como a “guardiã” da deficiência mental. Isso resulta não só na arrecadação de fundos junto à sociedade civil mas também em um trabalho institucional que privilegia a causa do excepcional em detrimento das especificidades da população atendida e de sua educação. Isso faz com que o caráter pedagógico da instituição especial, que justifica inclusive grande parte das verbas advindas do poder público, possa ser descaracterizado e relegado a um plano secundário. Conforme nos mostra D’Antino (1996), o fato da instituição especial e das relações nela instituídas estarem (des)equilibradas no pilar da filantropia, faz com esta se configure como um poder oculto que domina e aliena os diferentes atores institucionais, indiferenciando suas relações e seus papéis. Tendo, também, a função de deslocar e de cristalizar o eixo do trabalho da competência para atributos pessoais de caráter afetivo. A descrença em relação à clientela que “educa” parece travestir-se do incondicional amor. Ora, se não se crê na capacidade potencial de aprendizagem dos educandos, o melhor que se tem a oferecer é mesmo o abrigo, o carinho e a superproteção (D’ANTINO, 1996, p.168). Assim, temos a relação entre a sociedade e a deficiência mental se estruturando a partir de sua institucionalização. Significa dizer que ao longo da história a instituição especial foi se constituindo como a instância legítima da deficiência mental. Em nossa história mais recente, foi se legitimando como responsável pela educação dessa população, seja por assumi-la em função da inexistência de práticas a ela destinadas, seja por ser responsabilizada pela 34 sociedade civil e pelo Estado como locus social do indivíduo social com deficiência mental. Esta estruturação da relação entre a sociedade e a deficiência mental a partir de sua institucionalização denota o caráter totalitário das instituições especiais privadas de caráter filantrópico. Para analisar o caráter totalitário da instituição especial, tomo por base as reflexões tecidas por Goffman (2003) e por autores da educação especial brasileira, que investigaram diferentes aspectos do cotidiano institucional, tais como Glat (1989), Ferreira (1994), D’Antino (1996 e 2001) e De Carlo (1997). Inicio apresentando que no presente trabalho, o homem é entendido como um ser histórico, produtor e produto de seu contexto social, que se constituí na interação com outros homens, portanto na coletividade, o que implica a compreensão de que as relações humanas estão circunscritas a diferentes instituições sociais (família, escola, local de trabalho, igreja...) nas quais é possível apreender aspectos da própria sociedade, à medida que reproduzem e transmitem em seu interior valores, crenças, normas, regras etc. A instituição, qualquer que seja sua natureza, é um espaço de agregação e formação social dos sujeitos. Nesse sentido, compartilhando com as reflexões de D’Antino (2001, pp. 209210), aponto que a dimensão institucional é construída em contexto sócio-histórico determinado, pré-existente ao sujeito e presentifica-se através da manifestação do chamado sujeito social. Ou seja, é “pela mão” dos sujeitos, embrionariamente instituídos, que as ações e relações são determinadas, uma vez que a instituição, qualquer que seja ela, não existe senão na concretude da existência humana. [...] Assim, é importante lembrar que a instituição, como micro sistema que é, reflete a ideologia do contexto social mais amplo, e o sistema de idéias que a instituição faz circular é o mesmo que faz respirar quase todos os demais sujeitos, de um dado tempo e espaço social. Encontramos também em Goffman (2003) o entendimento de que o indivíduo se constitui em suas constantes interações sociais e que é por meio de sua inserção 35 em diferentes instituições, com grupos diversificados e sob autoridades diferenciadas que essa constituição se dá. Assim, um mesmo sujeito pode estar inserido em diferentes espaços sociais, cuja delimitação lhe permite representar papéis distintos. Para ele, as instituições atuam como reguladoras das relações e dos papéis sociais. Por outro lado, existem situações em que uma única instituição se configura como o único espaço de interação e, conseqüentemente, de constituição do sujeito social, as quais o autor denomina “instituições totais”. Para Goffman (2003, p.11) uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada. O autor acrescenta que o seu aspecto central e totalizante é a desintegração das barreiras que comumente separam as diversas esferas da vida de cada indivíduo, reduzindo drasticamente seus espaços de interação, já que todos os aspectos de sua vida são conduzidos em um mesmo local e sob uma única autoridade. No caso das instituições totais isso assume um significado peculiar na medida em que a segregação impede que o indivíduo institucionalizado se insira e participe de outros espaços sociais. Nesse sentido, sua singularidade, sua particularidade fica circunscrita às (im)possibilidades institucionais, tanto no que se refere à constituição de sua identidade, quanto principalmente à sua deterioração ou, utilizando as palavras de Goffman (2003), “mortificação do eu”. Além disso, nestas instituições, as relações e os papéis sociais são regulados de modo a reduzir as formas de interação e de restringir a um único papel a atuação do indivíduo institucionalizado. Conseqüentemente, temos a redução drástica de todas as possibilidades de constituição social do sujeito e o favorecimento da apropriação de um mundo e de uma cultura institucionalizados. 36 Goffman (2003), analisando as conseqüências da institucionalização para pessoas com doença mental, nos mostra que as formas estereotipadas de interação entre estas e a instituição diz respeito muito mais à condição institucionalizada da pessoa do que propriamente à sua doença. Entretanto, aos olhos dos profissionais e dos dirigentes da instituição e da comunidade isso não é verdadeiro; as formas de interação e os comportamentos apresentados no interior institucional são considerados “típicos” de pessoas com doença mental, justificando, inclusive sua internação. Outro aspecto apontado pelo autor, é que, mesmo com seu caráter totalizante, estas instituições são reconhecidas pela sociedade como organizações racionais, competentes para os fins a que se destinam. Assim, as instituições totais são consideradas o espaço social de pessoas que são agrupadas em função de um único atributo: doenças, deficiências, criminalidade... Considero que as análises tecidas por Goffman (2003) acerca das instituições totais podem ser referência para a análise da instituição especializada no atendimento ao indivíduo com deficiência mental. Primeiramente, como já vimos, a literatura explicita que historicamente a instituição especial vem sendo considerada como a principal instância, senão a única, de atendimento ao indivíduo com deficiência mental. E, quando me refiro a atendimento, estou considerando as diferentes esferas de sua vida: saúde, educação, reabilitação e bem estar social. Isto é, sem ter o caráter asilar (como internatos, conventos) ou de confinamento (como manicômios, presídios), a instituição especial pode ser considerada como total na medida em se responsabiliza e é responsabilizada por todas as esferas da vida do indivíduo com deficiência mental. Ser o locus social da deficiência mental é que imprime a ela o sentido totalitário. 37 É na instituição especial e por meio de suas ações que a pessoa com deficiência mental institucionalizada tem acesso a todas as esferas sociais e, com isso, temos a desintegração das barreira que separam cada uma delas fora dos muros institucionais. Conseqüentemente, tais esferas assumem um caráter específico para o atendimento dessa população: a educação passa a ser a educação do e para o deficiente mental; a saúde passa a ser a saúde do e para o deficiente mental; a assistência social passa a buscar o bem estar social do deficiente mental... Mais, englobar todas as esferas sociais significa restringir todas as possibilidades de interação pessoal ao cotidiano institucionalizado. Nas palavras de Jannuzzi (1992, p.57), a permanência em instituições especiais promove a construção de mecanismos específicos que “incorporam maneiras próprias de existir, distanciadas da sociedade”. Nesse ponto, é necessário entender que o caráter totalitário da instituição especial mantém o distanciamento não só entre o sujeito institucionalizado e um contexto social mais amplo, mas também dos outros grupos sociais em relação a ele. Esse distanciamento dá margem à construção de barreiras que se interpõem entre o indivíduo com deficiência mental e a sociedade e que cristalizam a condição segregada do primeiro. Incorporar maneiras próprias de existir significa passar a ser identificado somente por elas. Assim, essas maneiras passam a ser reconhecidas como “de deficientes mentais”. Conseqüentemente, a instituição se perpetua como o lugar da deficiência mental, como a responsável por aqueles que apresentam tal condição, sedimentando ainda mais seu caráter totalitário, fechado e dependente da manutenção de suas próprias maneiras de existir. De acordo com Jannuzzi (1995, p. 07), isso faz com que, no caso da deficiência mental, haja o risco de se perder os parâmetros universais do ser humano que nele estão presentes, considerando-o em tudo como diferente, anormal. 38 Pode haver a tendência ao isolamento do deficiente em ambientes confinados, fora do convívio com os diferentes dele, levando-nos a esquecer que o homem também é fruto do conjunto de suas circunstâncias e, assim tomá-lo como responsável pela falta de certos atributos, quando isto é resultado da situação em que é obrigado a viver. Além disso, ter suas interações restritas a uma instituição reconhecida como o espaço social da deficiência mental, significa reduzir drasticamente as possibilidades de constituição individual para além da própria condição, pela impossibilidade de ser reconhecido como uma pessoa e não como um deficiente mental. O caráter totalitário da instituição especial pode ser apreendido também na análise de estudos que investigaram o cotidiano de pessoas com deficiência mental institucionalizadas, como os realizados por Glat (1989), Ferreira (1994), D’Antino (1996, 2001) e De Carlo (1997). Todos apresentam, sob diferentes perspectivas e por meio da análise de diferentes objetos, as conseqüências negativas que a permanência em instituições especializadas pode trazer. Glat (1989), analisou a vida de mulheres com deficiência mental a partir de seus relatos sobre elas mesmas, sobre seu cotidiano institucionalizado, sobre suas interações, sobre suas percepções de mundo, buscando apreender o significado do estigma de deficiente mental em suas experiências e identidade pessoal. A autora conclui, entre outros aspectos, que pelo que pôde ser observado, a vida cotidiana desse grupo de mulheres se desenrola entre três espaços bem definidos: a casa, a instituição e a rua. A casa e a instituição são os espaços onde elas vivem suas práticas diárias rotineiras, ritualizadas, repetitivas. São campos seguros onde elas têm uma posição definida, onde sabem como agir e o que esperar do relacionamento com as outras pessoas. Em suma é o mundo que lhes pertence. [...] A rua, por outro lado, representa o mundo “de fora”, onde elas transitam ocasionalmente, mais onde não possuem um conjunto de relações e funções definidas. É um mundo estranho, onde algumas sonham penetrar um dia (quando conseguirem “trabalhar fora”), mas que para a maioria tem um significado ameaçador e violento. (GLAT, 1989, p. 207) A autora nos mostra, ainda, que o lugar que a casa, a instituição e a rua ocupam na vida dessas mulheres, como sendo o “mundo de dentro” e o “mundo de 39 fora”, é, em parte, conseqüência da restrição que a institucionalização impõe: ao invés de “desempenhar uma função educadora, supervisionando e facilitando seu ingresso na comunidade aberta, na prática exercem uma pressão centrípeta, reforçando a dependência e a marginalização”. Outro aspecto ressaltado pela autora, diz respeito à intensa infantilização das mulheres que participaram do estudo. Nas palavras de Glat (1989, p. 207), os relatos das entrevistadas mostraram inúmeras situações em que as famílias ou profissionais da instituição lidavam com elas como se fossem crianças pequenas, tomando decisões sobre suas vidas sem consultá-las, e determinando o curso de ação a ser seguido. Vale ressaltar, apropriando-me uma vez mais das reflexões de Goffman (2003) e de D’Antino (1996), que o mundo da casa está circunscrito ao mundo da instituição, como um de seus tentáculos. Ou seja, o mundo da casa, familiar, também está submetido à autoridade institucional e ao seu poder. Isso denota sobremaneira o caráter totalitário das instituições em apreço. As instituições especiais se configuram como totalitárias também quando analisamos as práticas institucionais, especificamente as pedagógicas, como nos mostra o estudo conduzido por Ferreira (1994). Segundo a autora, a prática educacional na instituição especial analisada apresentou-se fragmentada, artificializada, enfatizando o treino das funções elementares, restringindo as possibilidades de apropriação de formas culturais maduras de atividade humana, ancorada em concepções de desenvolvimento que reduz o desenvolvimento humano a uma somatória de aprendizagens, e reservando ao indivíduo com deficiência mental uma posição social infantilizada. Outro aspecto apontado é que as atividades desenvolvidas no interior da instituição são descontextualizadas, sem um significado cultural, isentas de sentido pessoal e, por serem conduzidas preferencialmente por meio de ações individualizadas, restritivas das interações pessoais. O que é ensinado é sem sentido, não condiz com a realidade do deficiente e muito menos com a do 40 contexto do qual ele está excluído. A autora nos mostra, por exemplo, que as atividades pedagógicas propostas para o ensino de jovens e adultos com deficiência mental reproduziam as atividades pré-escolares. Podemos perceber que a forma como a prática educacional (que deveria ser o eixo central do trabalho institucional) está implementada na instituição especial, além de se distanciar de outras experiências de ensino destinadas às pessoas não deficientes, favorece sobremaneira o entendimento de que somente naquele contexto é que o indivíduo com deficiência mental pode ser ensinado, visto suas especificidades e reconhecimento da instituição como o único local apto a educar o indivíduo com deficiência mental. Além disso, evidencia-se o favorecimento de interações pessoais que não possibilitam a apropriação de um mundo e de uma cultura não restritos ao cotidiano institucional. O que denota o caráter de locus da deficiência mental à instituição especial. De Carlo (1997), em estudo realizado numa instituição asilar para deficientes mentais, objetivou analisar em que medida as condições institucionais são favorecedoras da emergência de processos de funcionamento psicológico superior, especificamente reflexivos e imaginários, em adultos com deficiência mental institucionalizados. A autora nos mostra que as condições institucionais, além de empobrecidas e restritivas de oportunidades que favoreçam o desenvolvimento de atividades práticas e de funções psíquicas complexas, subordinam os internos a procedimentos de infantilização, segregação e disciplinarização. Por outro lado, ressalta as possibilidades de vida e de desenvolvimento da pessoa com deficiência mental, apreendidas em suas interações com os internos, desde que submetidas a condições sociais favoráveis ao desenvolvimento de suas capacidades. Este estudo se distingue dos outros não só pelo seu objeto mas também por ser conduzido em uma instituição especial asilar. Aqui, evidencia-se de forma marcante o caráter totalitário institucional, principalmente pela ênfase na 41 disciplinarização e pela impossibilidade de manutenção de qualquer tipo de contato com o mundo não institucional. Conseqüentemente, há no cotidiano da instituição um campo fértil para a despersonalização e para o empobrecimento das possibilidades de vida dos internos, conforme ressaltado por Goffman (2003). Vale ressaltar a intensa infantilização do indivíduo com deficiência mental que tem suas interações sociais restritas ao cotidiano institucional, também como decorrente do caráter totalitário da instituição especial. Goffman (2003) analisa a infantilização do interno como conseqüência do rígido controle, da disciplinarização e da submissão (imposta) à autoridade. Isso faz com que o adulto perca a possibilidade de agir e interagir em seu meio de forma autônoma, segundo suas próprias necessidades e desejos, sendo despido de toda e qualquer forma de singularidade. No caso da pessoa com deficiência mental, é considerado que a infantilização se dá como conseqüência de uma concepção que ignora qualquer possibilidade de atuação e de interação social de forma autônoma e independente. Ou seja, essa possibilidade não é retirada do adulto com deficiência mental; ela, simplesmente, não está posta em seu cotidiano por ser considerada como incapacidade inerente à condição de deficiência. Como conseqüência, temos o cotidiano institucional se estruturando a partir dessa concepção, haja visto a ênfase em atividades pedagógicas comumente destinadas à infância, como apresentado anteriormente. Não pode deixar de ser mencionado que as formas utilizadas pela instituição especial de caráter filantrópico e assistencial para sua manutenção e sua perpetuação como locus social da deficiência mental, também denotam sua condição totalitária. Conforme discutido anteriormente, apropriando-me das reflexões tecidas por D’Antino (1996, 2001), o poder oculto da filantropia mantém a imagem do indivíduo com deficiência mental atrelada à piedade humana, conferindo à instituição 42 especial o status de responsável por tudo aquilo que se refere à condição de deficiência. Paralelamente, a ideologia que permeia o cotidiano das associações apresenta-se como estratégia de manutenção da segregação da pessoa com deficiência. O imperativo da instituição é manter o aluno vinculado ao espaço instituído. [...] Assim, ao mesmo tempo que essa estratégia possibilita o acesso educacional a uma parcela da comunidade, também dificulta e/ou impede o processo de integração social desta, uma vez que integrar implica, necessariamente, na possibilidade de aprender a participar e até mesmo se representar enquanto expressão de desejos, necessidades e vontade própria. Assim sendo, parece que nas associações em apreço, a participação dos alunos no cotidiano se dá através do pensar, sentir e fazer dos demais atores institucionais que em seu nome falam, lutam, brigam e os abrigam (D'ANTINO, 2001 p. 167 – 168). Diante do exposto, fica evidenciado o caráter totalitário da instituição especial privada de cunho filantrópico, assim como as conseqüências da institucionalização das pessoas com deficiência mental, principalmente as relacionadas à restrição de suas possibilidades de vida. Todavia, na década de 1990 vamos perceber uma mudança tanto no discurso da educação brasileira como também na educação especial. A referida década vem sendo considerada como um marco na Educação Especial brasileira em função das alterações legais que se processaram, principalmente após 1994 com a adesão do país à Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais (CORDE, 1994), resultado da Conferência Mundial Sobre Necessidades Educacionais Especiais. Para analisar as alterações que se processaram na educação brasileira na referida década é necessário discorrer sobre a forma como o Estado e sua relação com a sociedade civil são compreendidos no presente trabalho. O Estado é aqui entendido em uma perspectiva multidimensional, que segundo Borón (1994) deve ser considerada sem haver uma valorização de uma das 43 dimensões em detrimento de outra. Assim, para o autor, o Estado é de maneira concomitante: 1. Um “pacto de dominação” mediante o qual uma determinada aliança de classes constrói um sistema hegemônico suscetível de gerar um bloco histórico; 2. uma aliança dotada de seus correspondentes aparatos burocráticos e capaz de transformar-se, sob determinadas circunstâncias, em um “ator corporativo”; 3. um cenário da luta pelo poder social, um terreno onde se dirimem conflitos entre distintos projetos sociais que definem um padrão de organização econômica e social; e 4. o representante dos “interesses universais” da sociedade e, enquanto tal, a expressão orgânica da comunidade nacional (BORÓN, 1994, p. 254). Nesta mesma perspectiva, é possível o entendimento de que o Estado nasce nas relações engendradas na e pela sociedade civil. É esta relação que delimita a medida e os limites do Estado. O entendimento de que o Estado se constitui nas relações com a sociedade civil evidencia a necessidade de refletir sobre o papel desta em nosso contexto. Podemos acrescentar aqui as análises de Bottomore (1997, p. 134) que nos mostra a necessidade de explorar e explicar a “autonomia relativa” do Estado “e as complexidades que envolvem suas relações com a sociedade”. Segundo o autor, o Estado pode ser concebido como “um instituição independente, com interesses e propósitos próprios” ao mesmo tempo em que serve aos propósitos e interesses da classe ou classes dominantes: o que está em causa, como efeito, é uma associação entre os que controlam o Estado e os que possuem e controlam os meios da atividade econômica. Mas não há uma fusão das instâncias política e econômica, ao passo que a articulação real é a de uma associação em que as instâncias política e econômica conservam suas respectivas identidades e pela qual o Estado pode agir com considerável independência para manter e defender a ordem social da qual a classe economicamente dominante é a principal beneficiária (BOTTOMORE, 1997, pp. 134-135) Esta configuração do Estado como uma instituição independente, mas que serve a interesses de determinados grupos ou classes, sustenta uma relação com a sociedade na qual o interesse público é sobreposto pelos interesses privados. Assim, 44 o que temos é a esfera pública sendo reduzida à estatal e se confundindo, então, com os interesses privados. Para melhor entendimento desta relação entre público/estatal/privado, focarei o âmbito da educação brasileira, no qual explicitamente o público é tomado como sinônimo de estatal. Contudo, Sanfelice (2005, pp. 178-179) nos mostra que, rigorosamente, “escola estatal não é escola pública, a não ser no sentido derivado pelo qual o adjetivo “público” se relaciona ao governo de um país ou estado: o poder público”. E acrescenta: Enquanto Estado defensor dos interesses da propriedade privada, a educação estatal pode estar, portanto, atrelada aos mesmos objetivos. O que é ideologicamente explicitado como educação pública na realidade destina-se ao interesse privado, e a educação estatal assim deve ser denominada pois não é do interesse comum, do público mas do privado. Com base nesta referência, podemos analisar o Estado brasileiro, especificamente no que se refere às mudanças processadas, a partir da década de 1980, que culminaram na Reforma do Estado, implementada em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Podemos considerar que as alterações que se processaram ao longo da década de 1990 foram se estruturando ao longo da de 1980, que culmina, por um lado com promulgação da Constituição Federal de 1988, considerada constituição “cidadã”, pela ênfase nos direitos sociais; e, por outro, com a eleição de Fernando Collor de Mello para a Presidência da República, sustentado por um projeto de caráter neoliberal e pela ênfase na necessidade de uma reforma do Estado. Assim, temos a polarização de discursos e propostas sobre o papel do Estado na organização econômica e a sua função nas áreas sociais (ARELARO, 2003). É neste governo que os organismos internacionais condicionam o recebimento de empréstimos financeiros à melhoria dos índices de desempenho educacional e à adesão ao compromisso de “Educação para Todos”. Neste período se intensifica, 45 também, o embate em torno dos Projetos de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. É também no governo de Collor de Mello que as instituições assistenciais ganham o estatuto de Organizações não Governamentais “e a ambigüidade entre os setores públicos e privados é apresentada como uma necessária e fundamental “parceria” para o desenvolvimento do país” (KASSAR, 1999, p. 35). No governo de Itamar Franco, que assume a Presidência da República após o impeachment de Collor em 1992, temos a discussão do Plano Nacional de Educação já evidenciando, na área da educação, a submissão do governo às exigências das agências de financiamento internacionais. Mas, é no governo de Fernando Henrique Cardoso que, em 1995, se inicia a Reforma do Aparelho do Estado, desencadeada pelo Plano Diretor organizado pelo então ministro da Administração Federal e Reforma do Estado, Luis Carlos Bresser Pereira. A Reforma priorizava a redução do aparato do Estado e do financiamento das áreas sociais, privatização, proteção aos bancos, redução de direitos trabalhistas e redefinição das esferas pública e privada com a transferência da responsabilidade do Estado para instituições privadas e para organizações não governamentais. Neste contexto há uma redefinição do papel do Estado que deixa de “ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e serviços, para fortalecer-se na função de promotor e regulador desse desenvolvimento” (BRASIL, 1995, p.11). O Plano Diretor propõe a divisão do Aparelho de Estado em quatro setores: 1) Núcleo Estratégico: “setor que define as leis e as políticas e cobra seu cumprimento”; 2) Atividades Exclusivas: são os serviços que apenas o Estado pode realizar “cobrança e fiscalização de impostos, a polícia, a previdência social básica [...] o subsídio à educação básica”, entre outros; 3) Serviços Não Exclusivos: são aqueles nos quais o “Estado atua simultaneamente com outras organizações públicas não 46 estatais e privadas” sua presença se justifica “porque os serviços envolvem direitos humanos fundamentais, como os da educação e da saúde...”; 4) Produção de Bens e Serviços para o Mercado: o setor “é caracterizado pelas atividades econômicas voltadas para o lucro que ainda permanecem no aparelho do Estado, como, por exemplo, as do setor de infra-estrutura” (BRASIL, 1995, pp. 39-40). Para efeito das reflexões realizadas neste trabalho, focaremos o terceiro setor do Aparelho do Estado “Serviços Não Exclusivos” por considerar que as instituições especiais privadas de caráter filantrópico estão aqui circunscritas e também que é nesta esfera que se dá a redefinição dos setores Público e Privado de modo mais explícito. Os “Serviços Não Exclusivos” são aqueles que devem ser descentralizados, administrados pelo setor público não estatal, mas não privatizados. Isso é possível em função do Estado a renunciar alguns serviços e estabelecer contrato com as organizações sociais, que são entendidas como “entidades de direito privado que , por iniciativa do Poder Executivo, obtêm autorização legislativa para celebrar contrato de gestão com esse poder, e assim ter direito a dotação orçamentária” (BRASIL, 1995). Instala-se um processo de publicização que, juntamente com o de privatização sustentam o redimensionamento do Estado no sentido de abandono do papel “de executor ou prestador direto de serviços, mantendo-se, entretanto, no papel de regulador e provedor ou promotor destes, principalmente dos serviços sociais como educação e saúde” (BRASIL, 1995, p. 12). Contudo, a publicização no âmbito da educação da pessoa com deficiência mental reitera o caráter assistencialista, que tem sido historicamente sua marca, já que a responsabilidade por este atendimento permanece circunscrita a instituições privadas de caráter filantrópico. Bueno e Kassar (2005, p. 128) nos mostram que: No contexto de Reforma do Estado, as “parcerias” entre os serviços público e privados fortalecem-se, diante da necessidade apresentada pelo 47 projeto de modernização do país, que propõe a assunção de ações no campo da educação, pelo chamado “terceiro setor”. No âmbito do terceiro setor, o discurso assistencialista que permeia a história da educação especial brasileira hoje é consoante ao discurso da democracia, uma vez que o envolvimento da sociedade, na formação de associações civis, é visto como fundamental para o seu estabelecimento. [...] O acesso aos direitos construídos historicamente pelas sociedades, cujo cerne está na organização econômica de um país, passa a ser enfocado como de responsabilidade da sociedade, de “boa vontade” e da filantropia. No que se refere à educação da pessoa com deficiência mental o que pode ser observado é a insistente omissão e descompromisso do Estado quanto à organização de serviços nas redes públicas de ensino e a “parceria” estabelecida com o setor privado, especialmente o de caráter assistencialista, no sentido deste ocupar o espaço deixado por aquele. A contrapartida do Estado é o estabelecimento de auxílios técnico e financeiro e de incentivos fiscais com a isenção e redução de impostos. A “parceria” não é criada na década de 1990, ao contrário, se constituiu na história da Educação Especial brasileira, sempre lastreada pelo descompromisso do Estado quanto à educação das pessoas com deficiência mental. Neste processo de constituição o que pode ser observado é que as instituições especiais privadas de caráter filantrópico se legitimam e são legitimadas como as responsáveis pela educação desta população. O que pode ser constatado nas referências feitas em documentos oficiais, que reiteram o espaço por elas ocupado. Em 1994, o MEC, por meio da Secretaria de Educação Especial publica a Política Nacional de Educação Especial, na qual o papel das instituições especiais é reafirmado: Tais associações tomaram vulto, representando, até hoje, papel significativo no atendimento educacional especializado. Na maioria dos municípios brasileiros são elas que, em convênio com o Governo, prestam o atendimento educacional. Têm igualmente atuado na conscientização da comunidade. Essa atuação tem provocado, em última instância, uma mudança de atitude na sociedade brasileira, tornando-a lenta e progressivamente mais receptiva à conquista da cidadania dos portadores de deficiências. 48 As organizações não-governamentais filantrópicas que prestam atendimento educacional especializado são contempladas com verbas estaduais e federais, além de recursos humanos cedidos pela rede pública governamental. (BRASIL, 1994, pp. 21-22) Já o Plano Nacional de Educação de 2001 afirma que: Longe de diminuir a responsabilidade do Poder Público para com a educação especial, o apoio do governo a tais organizações visa tanto a continuidade de sua colaboração quanto à maior eficiência por contar com a participação dos pais nessa tarefa. Justifica-se, portanto, o apoio do governo a essas instituições como parcerias no processo educacional dos educandos com necessidades especiais. (BRASIL, 2001 pp. 47-52) É preciso ressaltar que a “parceria” é um “bom negócio” para ambos os lados. Para as instituições por seu favorecimento e para o Estado pelos gastos reduzidos já que o custo do sustentação da instituição especial privada assistencial é inferior ao custo de implementar serviços de educação especial para toda população com deficiência na rede regular de ensino. Isto pode ser constatado na avaliação feita pelo Ministério a Educação (MEC), Educação Especial no Brasil: Perfil do Financiamento e das Despesas, publicada em 1996. Na análise da Educação Especial no Paraná, o relatório indica a relação entre o estado e as organizações não governamentais (ONGs) como importante parceria: Tem-se considerado que a secretaria não deve ter funções executivas em todas as áreas, mas deve valer-se da capacidade executiva e gerencial das ONGs. Por isso mesmo havia, em setembro de 1995, 272 convênios na área da Educação Especial, dos quais 210 com APAEs. Tais convênios envolvem não só a transferência de recursos financeiros, como também a cessão de funcionários docentes e não docentes, além da capacitação de pessoal. Um entrevistado estimou que, em 1995, o estado destinou cerca de US$ 1,094 mil para as ONGs (fora a cessão de pessoal), que atende a aproximadamente 23 mil alunos, correspondendo à despesa média anual de US$47.57. Comparado com o repasse anual de US$324.00 por aluno para os municípios e com o custo aluno/ano do estado de US$ 390.00, mesmo que aquele valor seja subestimado, observamos que essa espécie de “terceirização” é financeiramente vantajosa para o estado. (BRASIL B, 1996, p. 85) 49 Além das alterações indicadas na LDBEN 96 no que se refere à educação especial analisadas anteriormente, podemos acrescentar a substituição do princípio de escola integradora pelo de escola inclusiva. Inclusão, educação inclusiva, escola inclusiva são expressões que ganharam destaque nos discursos políticos, educacionais e acadêmicos de diferentes países a partir da segunda metade da década de 1990, sustentados por diferentes correntes político-ideológicas. No Brasil, o conceito inclusão tem sido enfatizado nas políticas educacionais, nos documentos norteadores da educação e, particularmente, da educação especial. O conceito inclusão aparece nos debates que analisam as condições sociais e educacionais dos chamados excluídos e que indicam a necessidade de superação da exclusão social destas pessoas. Assim, podemos perceber que o conceito inclusão aparece atrelado ao entendimento de que incluir é a forma de superar a exclusão; de que inclusão se configurou como um novo paradigma social capaz de direcionar a transformação da sociedade excludente em seu oposto e; que a inclusão escolar seria a garantia de inclusão social posterior, em um resgate do ideário da escola como um mecanismo de equalização social 10 . No caso da pessoa com deficiência mental, a inclusão em ambientes regulares de educação aparece como o grande objetivo da área de educação especial. A indicação é a de que o acesso e permanência na escola regular são a via de ruptura com a condição de segregação e de exclusão social historicamente impostas a essa população. Contudo, tal debate parece desconsiderar que em uma sociedade sustentada pelo modo de produção capitalista exclusão e inclusão são partes constitutivas de um mesmo processo, submerso em uma trama social que sustenta sua interdependência. Assim, para analisar o conceito inclusão é necessário considerar também o seu 10 Estou me baseando nas análises tecidas por Garcia (2004). 50 suposto contrário, o conceito exclusão. Para isso, me reporto às análises desenvolvidas por Martins (1997, 2002) e Sawaia (2001). Para Martins (1997) exclusão é uma categoria vaga e indefinida que passou a ser utilizada de forma mecânica para explicar todos os problemas sociais. O autor também aponta que a categoria exclusão é resultado de uma metamorfose nos conceitos que procuravam explicar a ordenação social que resultou do desenvolvimento capitalista. Mais que uma definição precisa de problemas, ela expressa uma incerteza e uma grande insegurança teórica na compreensão dos problemas sociais da sociedade contemporânea. (MARTINS, 2002, p. 27) Da mesma forma podemos analisar o conceito inclusão: como uma categoria vaga e indefinida que passou a ser utilizada de forma mecânica para indicar e qualificar a solução para todos os problemas sociais que assolam a maioria da população do chamado Terceiro Mundo que vive em condições miseráveis de vida e da população pobre (os imigrantes árabes, asiáticos, latinos e os negros) dos países de Primeiro Mundo 11 . Sawaia (2001, p. 09) nos mostra que ... a exclusão é processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única forma e não é uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema. Nesse sentido, pensar em inclusão não é pensar em um processo avesso à exclusão, como se estivéssemos em face de um dualismo cujas alternativas fossem a de excluídos ou incluídos. É sim pensar em um processo que depende da exclusão para se constituir. Martins (1997, p.26, grifos do autor) nos mostra que o que vocês estão chamando de exclusão é, na verdade, o contrário de exclusão. Vocês chamam de exclusão aquilo que constitui o conjunto de dificuldades, dos modos e dos problemas de uma inclusão precária e 11 Não me refiro à pobreza apenas como carência material, “as pobrezas se multiplicaram em todos os planos e contaminaram até mesmo âmbitos da vida que nunca reconheceríamos como expressões de carências vitais” (Martins, 2002). 51 instável, marginal. A inclusão daqueles que estão sendo alcançados pela nova desigualdade social produzida pelas grandes transformações econômicas e para os quais não há senão, na sociedade, lugares residuais. A sociedade exclui para incluir, mas incluir de forma precária, sustentando modos desumanos de participação (MARTINS, 2002). E o que significa esta inclusão precária e esta participação social desumana? Significa se inserir em um espaço social já existente e essencialmente excludente. A inclusão é precária e perversa porque o que se busca é a inserção na sociedade que exclui, o que se reivindica é aquilo que reproduz e conforma a sociedade atual. Martins (2002, p. 38, grifos do autor) nos mostra que a contradição de que o excluído é produto e expressão não é contradição constitutiva de sua condição de marginalizado. [...] Não é contradição constitutiva porque ela se resolve na reprodução ampliada e não na transformação da sociedade que o vitima. Esta forma de inclusão nos dá a indicação do porque sustenta modos de participação sociais desumanos, já que tal participação se dá numa sociedade que visivelmente secundariza as pessoas fazendo delas seres descartáveis que vivenciam formas extremas de alienação e de coisificação (MARTINS, 2002). Nesse sentido, incluir não significa superação ou ruptura com uma condição de exclusão, visto que todos estamos incluídos nas relações sociais que reiteram a ordem social vigente. Mesmo quando inseridos por meio de privações, de processos de coisificação e de anulação, de modo precário, desumano e indigno. Outro aspecto relevante para a discussão proposta é a indicação de que as análises feitas sobre exclusão enfocam apenas uma de suas características em detrimento das demais, como as análises centradas no econômico, que abordam a exclusão como sinônimo de pobreza, e as centradas no social, que privilegiam o conceito de discriminação, minimizando o escopo analítico fundamental exclusão, que é o da injustiça social. (SAWAIA, 2001, p. 07) da 52 Desconsidera-se que outros aspectos estão presentes e são constitutivos tanto da categoria exclusão quanto da inclusão. Dentre estes aspectos, podemos observar a diferenciação social sendo sustentada pela idéia de que as diferenças sociais não são apenas diferenças de riqueza, mas diferenças de qualidade social das pessoas. [...] As pessoas estão separadas sobretudo qualitativamente e não quantitativamente. Há como que a restauração da idéia de qualidade social da pessoa como meio de classificação social. (MARTINS, 2002, p. 132-133) Com base nesta referência é possível analisar que a inclusão não se constitui como uma via de transformação das condições de vida, ao contrário, é parte constitutiva de sua criação e, sobretudo, de sua conservação. Cabe aqui acrescentar as análises tecidas por Arelaro (2003) e Bueno (2005) acerca das políticas educacionais brasileira sustentadas pelos pressupostos de educação para todos e de escola inclusiva. Arelaro (2003) nos mostra que o governo brasileiro, a partir de 1997, sustenta suas ações nas premissas de que o país não tem problema de atendimento da demanda escolar e de que os recursos financeiros investidos em educação são suficientes. A autora contesta estas premissas por meio da análise dos dados estatísticos da educação e aponta que, segundo os dados oficiais, cerca de 50 milhões de pessoas (30% da população brasileira) se encontram sem qualquer tipo de atendimento escolar. Se considerarmos que a demanda está atendida, mesmo quando os dados demonstram que não está, isto significa que se considera que os “tantos” que estão sendo atendidos em escolas são os “todos” que deveriam estar, não se pretendendo ampliar, em conseqüência, esse atendimento escolar. (ARELARO, 2003, pp. 20-21) Nesta mesma linha, Bueno (2005) analisa que: Se o norte é a educação inclusiva como meta a ser alcançada, isto significa que a projeção política que se faz do futuro é de que continuará a existir alunos excluídos, que deverão receber atenção especial para deixarem de sê-lo. Isto é, a meu juízo, esta nova bandeira, vira de cabeça para baixo aquilo que era uma proposição política efetivamente 53 democrática (mesmo com perspectivas diferentes), na medida em que o que deveria se constituir na política de fato – a incorporação de todos pela escola, para se construir uma escola de qualidade para todos – se transmuta num horizonte sempre móvel, porque nunca alcançado. Assim, é possível o entendimento de as políticas de educação para todos e de escola inclusiva, do ponto de vista conceitual, econômico e legal apresentam-se de forma reduzida e ambígua em relação à educação das pessoas com deficiência mental e à concretude das relações institucionais. Na linha de materializar a educação para todos e a escola inclusiva, a educação especial passa a ser identificada como uma modalidade de educação escolar a ser oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, a partir da educação infantil e que, apenas em casos excepcionais – aqueles que em função dos comprometimentos do aluno – em que a escola não tiver recursos para o atendimento é que este poderá ocorrer em instâncias consideradas especiais: classes ou escolas. Há a indicação na LDBEN 96, em seu artigo 59, de que os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais, entre outros aspectos: currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades; terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências. Já a definição da educação especial como uma modalidade de educação escolar é ampliada apenas em 2001 nas Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, conforme exposto a seguir: Por educação especial, modalidade de educação escolar [...] entende-se um processo educacional definido em uma proposta pedagógica, assegurando um conjunto de recursos e serviços educacionais especiais, organizados institucionalmente para apoiar, complementar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços educacionais comuns, de modo a garantir a educação escolar e promover o desenvolvimento das potencialidades dos educados que apresentam necessidades educacionais especiais, em todos os níveis, etapas e modalidades da educação. (MEC/SEESP, 2001, pp. 27-28) 54 Sendo que apoiar, complementar, suplementar e substituir são assim definidos: a) Apoiar: prestar auxílio ao professor e ao aluno no processo de ensino e aprendizagem, tanto nas classes comuns quanto em salas de recursos; complementar: completar o currículo para viabilizar o acesso à base comum nacional; suplementar: ampliar, aprofundar ou enriquecer a base nacional comum. Essas formas de atuação visam assegurar resposta educativa de qualidade às necessidades educacionais especiais dos alunos nos serviços educacionais comuns. b) Substituir: educacional colocar em especializado lugar realizado de. em Compreende classes o atendimento especiais, escolas especiais, classes hospitalares e atendimento domiciliar. (MEC/SEESP, 2001, pp. 27-28, nota de rodapé) Neste mesmo aparato legal, as categorias de deficiência se diluem no conceito de necessidades educacionais especiais. O termo é utilizado inicialmente na Declaração de Salamanca para caracterizar crianças com deficiência e crianças bem dotadas; crianças que vivem nas ruas e que trabalham; crianças de populações distantes ou nômades; crianças de minorias lingüísticas, étnicas ou culturais e crianças de outros grupos ou zonas desfavorecidos ou marginalizados (CORDE, 1994). Isto indica que a deficiência mental é entendida como uma expressão a mais da diversidade que compõe as chamadas necessidades educativas especiais. No Brasil, a Declaração de Salamanca passa a ser citada como um marco na educação especial e a ser considerada referência básica para as discussões da área. O conceito necessidade educacional especial passa a designar a condição de deficiência em nosso contexto, imprimindo-lhe um “novo” sentido. A inovação estaria no fato de trabalhar na perspectiva da inclusão, ampliando a ação da educação especial que agora contempla não apenas as dificuldades de aprendizagem relacionadas a condições, disfunções, limitações e deficiências, mas também aquelas não vinculadas a uma causa orgânica específica, considerando que, por dificuldades cognitivas, psicomotoras e de comportamento, alunos são freqüentemente negligenciados ou mesmo excluídos dos apoios escolares. (B, 2001, p. 19) 55 Novo, mas não a ponto de transformar, como anunciado, a concepção da deficiência. Isso porque, conforme análises tecidas por Bueno (1997b), a adoção do termo necessidades educacionais especiais, por um lado, pode representar um avanço no sentido de minimizar a estigmatização e a pejoratividade de termos anteriores, mas, por outro, como conceito portador de necessidades educativas especiais abrange uma diversidade de sujeitos, ao ganhar na amplitude e na quebra da estigmatização, perde na precisão. Tanto é assim que, ao lado do termo em questão, é preciso acrescentar a espécie de sujeitos sobre a qual estamos nos referindo. (BUENO, 1997b, p. 41) Ou seja, ao termo necessidade educacional especial é acrescentado deficiência mental, com toda sua carga pejorativa e estigmatizante. Outro aspecto presente na legislação educacional vigente e que merece destaque é a indicação da possibilidade de flexibilização curricular e da terminalidade específica como alternativas favorecedoras do trabalho educacional da escola inclusiva com pessoas com deficiência. A flexibilização é a possibilidade de efetuar adaptações curriculares, que considerem o significado prático e instrumental dos conteúdos básicos, metodologias de ensino e recursos didáticos diferenciados e processos de avaliação adequados ao desenvolvimento dos alunos que apresentam necessidades educacionais especiais, em consonância com projeto pedagógico da escola, respeitada a freqüência obrigatória. (BRASILc, 2001, p. 47) Tomando como referência o subsídio oferecido às escolas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso: Parâmetros Curriculares Nacionais, subsídios estes significativamente valorizados, divulgados e aceitos pelas escolas da rede regular de ensino, vamos encontrar um tomo que versa sobre as adaptações curriculares e sobre estratégias para educação de alunos com necessidades educacionais especiais. Neste, a flexibilização curricular é apresentada como uma forma de contemplar as diferenças individuais oferecendo tratamento diversificado dentro do mesmo 56 currículo. Mas, ao invés de direcionar o debate no sentido de indicar estratégias e métodos pedagógicos diversificados, a indicação é na linha da “eliminação de conteúdos básicos o currículo” e “eliminação de objetivos básicos – quando extrapolam as condições do aluno para atingi-lo, temporária ou permanentemente (BRASIL, 1998, p. 38-39). Outro componente da modalidade de educação especial é a terminalidade específica entendida como uma certificação de conclusão de escolaridade – fundamentada em avaliação pedagógica – com histórico escolar que apresente, de forma descritiva, as habilidades e competências atingidas pelos educandos com grave deficiência mental ou múltipla. É o caso dos alunos cujas necessidades educacionais especiais não lhes possibilitaram alcançar o nível de conhecimento exigido para a conclusão do ensino fundamental. [...] O teor da referida certificação de escolaridade deve possibilitar novas alternativas educacionais, tais como o encaminhamento para cursos de educação de jovens e adultos e de educação profissional, bem como a inserção no mundo do trabalho, seja ele competitivo ou protegido. (MEC/SEESP, 2001, p. 59) Garcia (2004, p.172) analisa que a proposta de flexibilização curricular “pode ser lida como incentivo à redução dos conteúdos a serem apreendidos, conforme as condições individuais dos alunos com necessidades educacionais especiais”. O que é evidenciado no caso dos alunos com deficiência mental para os quais o documento indica como uma das possibilidades de adaptações que favoreçam o acesso ao currículo o desenvolvimento de habilidades adaptativas sociais, de comunicação, de cuidado pessoal e de autonomia. A terminalidade específica pode ser entendida como a possibilidade de certificar que ao indivíduo com deficiência mental basta o aprendizado de condutas adaptativas, de independência, de auto cuidado e de noções rudimentares dos conteúdos acadêmicos. Por outro lado, podemos observar que, mesmo apresentando a educação especial como dever constitucional do Estado e como modalidade de educação 57 escolar, a LDBEN 96 mantém a valorização da iniciativa privada por meio do apoio técnico e financeiro do Poder Público às instituições especializadas, desde que sejam sem fins lucrativos, que atuem exclusivamente em educação especial e que atendam aos critérios estabelecidos pelos órgãos normativos dos sistemas de ensino (art. 60). No âmbito destas políticas eivadas de um otimismo pedagógico que coloca a escola inclusiva no papel de redentora das injustiças sociais (JANNUZZI, 2004; GARCIA, 2004) fica aberta, contraditoriamente, a possibilidade da educação das pessoas com deficiência mental ser plenamente oferecida no âmbito de uma escola especial pedagogizada e eivada, por sua vez, de um “otimismo pedagógico especial” (FERREIRA, 1992, p. 105). Neste sentido as mudanças vão se processando. Com o intuito de buscar ampliar o conhecimento sobre as instituições especiais de educação das pessoas com deficiência mental neste processo de mudança, me aproximei de uma escola especial e procurei captar e analisar os aspectos definidos como objeto deste estudo. 58 Capítulo II Apontamentos sobre a Metodologia da Pesquisa E, ainda nessas digressões que venho aqui me permitindo, enfatizo o quanto acredito, cada vez mais, numa Ciência que tenha a preocupação de aliar conhecimento científico à dignidade de viver – não em um sentido pragmático, de aplicação imediata (ou outras prescrições eivadas de utilitarismo), mas em um sentido último de aliança entre uma construção científica e a criação de oportunidade para sua ressonância na vida – e este é um compromisso social. Mas há, ainda, um terceiro integrante dessa aliança: o pensar filosófico, legítimo porta-voz de reflexões “descompromissadas” (as aspas são importantes, em sua ironia) que, em meu entender, precisa permear e imbricarse no perene desafio presente nos andaimes que sustentam a construção do conhecimento. Lígia Assumpção Amaral (2001) O estudo foi realizado em uma Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) 12 . Para analisar os mecanismos utilizados pela instituição especial para se adequar às exigências legais e normativas no sentido de assumir a educação escolar como eixo central de seu trabalho, compatibilizando-o com as necessidades especiais de seus educandos, o primeiro passo foi delimitar a Educação Especial, a Instituição Especial e a Deficiência Mental como as dimensões da realidade a serem analisadas neste estudo. Esta opção se deu em função destas dimensões serem representativas da nova configuração da educação especial expressa na legislação educacional brasileira. Mas, para a viabilização da análise das dimensões foi necessário eleger alguns eixos representativos de cada uma delas. As dimensões e seus respectivos eixos estão descritos no Quadro I. 12 Por solicitação da direção da instituição, o nome e a cidade onde está localizada a Escola não serão divulgados. A escola especial onde a pesquisa foi realizada será denominada no trabalho “APAE” e estará destacada em itálico. 59 Quadro I: Dimensões da realidade segundo seus eixos de análise Dimensões Eixos de Análise - modalidade de educação escolar a ser desenvolvida Educação Especial preferencialmente na rede regular de ensino; - flexibilização e adaptação curricular; - certificação de terminalidade específica. - necessidade educacional especial; Deficiência Mental - níveis de apoio; - atendimento preferencial em escolas comuns. - escola organizada de modo similar às escolas comuns; Instituição Especial - atendimento exclusivo em educação especial; - substituição da escola comum, quando necessário. Assim, busquei apreender o sentido da Educação Especial, da Instituição Especial e da Deficiência Mental, segundo os eixos de análise, nos documentos que apresentam as diretrizes curriculares de uma instituição especial. Nesse sentido, os documentos selecionados foram: a proposta curricular elaborada pela Federação Nacional das APAEs (FENAPAES), APAE Educadora: a escola que buscamos, o currículo elaborado pela instituição especial pesquisada, filiada à FENAPAES, e o seu Relatório de Atividades do ano de 2002. Contudo, considerei que a análise documental por si só não seria suficiente para apreensão dos mecanismos utilizados pela instituição especial. Era preciso eleger outra esfera institucional que expressasse tais mecanismos. A opção foi analisar o discurso dos profissionais da equipe técnica da instituição por considerar que uma mudança no sentido de implementar um perfil educacional necessariamente incide sobre a atuação destes, haja visto a centralidade do papel das equipes técnicas nas instituições especiais. A decisão por analisar o discurso dos profissionais da instituição foi confirmada após o primeiro encontro com a coordenadora pedagógica, no qual pedi permissão para realizar o estudo naquela instituição. Nesta ocasião, a coordenadora 60 pedagógica me informou que a instituição especial passara recentemente por algumas mudanças, entre as quais se destacavam a elaboração do currículo da escola conforme exigências do Conselho Estadual de Educação e a alteração do trabalho da equipe técnica que passou a atender os alunos nas salas de aula como decorrência da orientação contida na proposta da APAE Educadora: a escola que buscamos. Considerei, então, que focar estas duas mudanças seria uma das vias de análise já que ali residia, explicitamente, o foco da transformação institucional para o seu reconhecimento como escola. Outro aspecto a ser ressaltado é que as análises foram tecidas não só por meio do discurso expresso nos documentos e no relato dos profissionais. Alguns aspectos sustentam as análises em sua materialidade, por exemplo: carga horária do trabalho educacional na instituição especial, conteúdos trabalhados, critérios de agrupamento dos alunos na instituição especial etc. No primeiro contato com a APAE a proposta do trabalho foi apresentada à direção com o objetivo de definir a trajetória da pesquisa na instituição especial, que se iniciou com a análise dos arquivos, conforme apresentado anteriormente. O conhecimento do cotidiano institucional se deu por meio da análise das concepções dos profissionais que vivenciam e que compõem o cotidiano institucional acerca de suas experiências profissionais, principalmente no que se refere ao seu papel na construção do trabalho pedagógico. Optei, então, por adotar a Análise de Discurso como procedimento de investigação das concepções dos profissionais, por conceber a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana. (ORLANDI, 2003, p. 15) 61 Por outro lado, dependendo dos procedimentos de investigação adotados, o discurso poderia apenas reproduzir aspectos presentes nos discursos oficiais e institucionais acerca das dimensões de análise Educação Especial, Instituição Especial e Deficiência Mental. Então, a opção foi por tentar apreender as concepções nas entrelinhas do discurso, propondo como ponto de partida a colocação: "gostaria que você me falasse um pouco sobre o seu trabalho, sobre o que você quiser me contar a respeito de seu papel aqui na instituição”. Adotando, assim, o procedimento de investigação utilizado e analisado em trabalhos anteriores (MELETTI, 1997, 2003). Inicia-se, assim, o segundo momento da investigação no qual os profissionais que integram a equipe técnica da instituição participaram de uma seqüência de entrevistas que objetivaram conhecer seu trabalho na instituição. Primeiramente, foi feito um contato com cada um dos profissionais para que a proposta de trabalho e os procedimentos da investigação fossem esclarecidos e para saber de sua vontade e disponibilidade para participar da pesquisa. Todos os profissionais concordaram em participar e, a partir desse momento, foram definidos local, data e horário de realização de nossos encontros. Participaram a diretora da instituição, a coordenadora do setor escolar, uma psicóloga, uma assistente social, uma terapeuta ocupacional, uma fisioterapeuta e uma fonoaudióloga, responsáveis pelo trabalho desenvolvido na instituição como um todo. O procedimento adotado consistiu em realizar entrevistas recorrentes nas quais foi solicitado a cada participante que falasse sobre seu trabalho, a partir da colocação já apresentada. As entrevistas foram registradas em áudio gravador, o que possibilitou a transcrição integral de seu conteúdo. Após a transcrição das entrevistas foi feita a textualização do relato oral, com o objetivo de deixar o texto mais compreensível, 62 sem aspectos da linguagem oral que ao serem transcritos podem tornar o texto ilegível para quem não tem acesso ao relato original. Em seguida, os relatos foram organizados em um caderno de trabalho de acordo com os diferentes assuntos abordados na primeira entrevista, para que pudessem ser apresentados aos participantes nos encontros posteriores. O referido caderno teve como objetivo a reapresentação cumulativa dos conteúdos para que cada participante tivesse a oportunidade de completar, incluir novas informações ou alterar as iniciais, explicar ou corrigir o que havia dito, dando assim continuidade ao tema inicialmente proposto. A reapresentação foi feita oralmente de forma que os conteúdos do encontro anterior fossem narrados ao participante e este pôde interromper a narração quando achou conveniente. Após a apresentação do conteúdo do caderno, quando o participante não teve mais nada a acrescentar, foi solicitado a ele que relacionasse seu trabalho com o trabalho pedagógico da escola analisando em que medida um sustenta o outro. Cada sessão de entrevista foi encerrada quando o participante disse não ter mais o que falar. O procedimento de coleta do material empírico – entrevista recorrente – auxiliou de forma preponderante a análise dos relatos. A organização dos relatos que possibilitaram a seqüência das entrevistas, também foi responsável pelo agrupamento dos conteúdos para posterior análise. Primeiramente, os relatos foram divididos em falas. As falas podem ser constituídas por uma ou mais palavras, expressões e frases. Foram formadas a partir das entrevistas, tendo como base os assuntos tratados por cada participante, e selecionadas de acordo com sua pertinência com o interesse do estudo. Posteriormente, foram realizadas sucessivas leituras das entrevistas e das falas selecionadas (tendo sempre a transcrição da entrevista na íntegra como 63 suporte) com o objetivo de identificar os temas dominantes a partir do exame dos dados e de sua contextualização. Vale ressaltar que os temas não foram elaborados a priori, eles representaram os diversos assuntos discutidos por cada um participantes. Os temas dominantes foram: Estrutura e organização institucional; Caracterização dos alunos; Atuação profissional; Critérios de avaliação dos alunos; Critérios de agrupamento dos alunos; Atendimento às famílias; Relação com a comunidade; Encaminhamento dos alunos para outras instâncias sociais. Identificados os temas, selecionou-se e agrupou-se as falas pertinentes a cada um deles. Este procedimento foi realizado para cada um dos temas tratados por cada participante. O passo seguinte foi a construção de um dispositivo de interpretação que, segundo Orlandi (2003, p. 59), tem como característica colocar o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras. Para isso, a mediação teórica é essencial, já que não há análise de discurso sem a mediação teórica permanente, em todos os passos da análise, trabalhando a intermitência entre descrição e interpretação que constituem, ambas, o processo de compreensão do analista. (ORLANDI, 2003, p. 62) Buscou-se, então, apreender o sentido das dimensões Educação Especial, Instituição Especial e Deficiência Mental, segundo cada um dos eixos de análise propostos, no discurso dos profissionais que participaram do estudo. Este procedimento permitiu apreender os mecanismos utilizados pela instituição especial para se adequar às exigências legais e normativas no sentido de assumir a educação escolar como eixo central de seu trabalho, conforme será apresentado a seguir. 64 Capítulo III Os sentidos e os mecanismos presentes na reestruturação da Instituição Especial A promulgação da LDBEN 96 com a nova configuração da educação especial e com a exigência das instituições especiais apresentarem atuação exclusivamente educacional para fins de estabelecimento de convênios com o Poder Público desencadeou uma reação imediata das instituições especiais filantrópicas que, por meio de suas Federações e de seus representantes no poder legislativo, teceram críticas veementes à nova Lei. Especificamente, a crítica incidiu sobre o fato do financiamento destas por parte do Poder Público ficar condicionado ao atendimento educacional, exclusivamente. Assim, passaram a reivindicar alterações que beneficiassem o que denominaram de “rede já existente de educação especial”. A reação das instituições especiais está explicitada no Ofício 2010/97 enviado pela Federação Nacional das APAEs (FENAPAES, 1997, p.01) à Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação (MEC), que apresenta o “parecer técnico sobre as questões da Educação Especial e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental, que estão sendo abordados pela LDB”, assinado pelo presidente da Federação, Deputado Eduardo Barbosa. O documento expressa a preocupação da FENAPAES com o financiamento de instituições especiais que atuem exclusivamente na área educacional. Primeiramente, o documento afirma: A lei determina que serão objeto do apoio governamental as de atuação exclusiva na área de educação especial, criando a necessidade destas instituições se reordenarem limitando a sua atuação, uma vez que diversas delas atuam também na área de reabilitação, habilitação, saúde e assistência social. Este fato traz um novo complicador na conceituação dos serviços de educação especial. (FENAPAES, 1997, p. 02, grifos meus) 65 A indicação de que atuar exclusivamente na área educacional limita a atuação das instituições especiais além de ser um complicador na conceituação dos serviços de educação especial permite o entendimento de que as exigências legais colocam em risco seu espaço social. A consideração de que a atuação educacional é restritiva do trabalho confirma reabilitação, saúde e assistência social como eixos da atuação da instituição, assim como o quanto as especificidades do atendimento de pessoas com deficiência mental não se referem à educação escolar. O documento também explicita a preocupação com a ameaça de descaracterizar e de inviabilizar o atendimento institucional na indicação de ampliação da oferta de educação especial na rede regular de ensino: A Lei 9.394/96 determina, ainda, que o poder público adotará, como alternativa preferencial, a ampliação do atendimento aos educandos com necessidades especiais na própria rede pública regular de ensino, independente do apoio às instituições filantrópicas. Este parágrafo pode levar à interpretação que não haverá nenhuma ampliação do atendimento nas instituições não governamentais apoiada pelo poder público. A ampliação só se dará na rede pública. Isto poderá paralisar o atendimento. Ou reconceituamos o que é serviço de educação especial público para além do tradicional serviço estatal ou iremos prejudicar a rede existente. (FENAPAES 1997, p.02, grifos meus) Além disso, a Federação expressa a preocupação com a indicação de municipalização da educação especial. Segundo o documento: por interpretação, ao nosso entender dúbio da LDB e do papel das instituições filantrópicas privadas, diversos municípios vêm colocando não ser mais necessário apoiar trabalhos das APAEs ou de outras instituições filantrópicas, uma vez que deverão criar rede especializada pública. Adotam a política de eliminação ou investem na rede pública de educação especial e deixam de investir na rede filantrópica, ou vão investir apenas nos atendimentos de apoio aos alunos integrados. Não há uma visão global sobre o assunto que contribua para a complementação de serviços e parceria entre as redes para cumprir o desafio de oferecer escola para todos. (FENAPAES 1997, p.03, grifos meus) A interpretação de que assumir o caráter educacional se faz em detrimento dos outros trabalhos aponta para a concepção de que a especificidade da educação 66 das pessoas com deficiência mental reside exatamente no não pedagógico, assim é contraditório solicitar da instituição especial o atendimento daqueles que a escola comum não consegue educar ao mesmo tempo em que exige-se sua pedagogização para manutenção da parceria com o Estado no “desafio de oferecer escola para todos”. Assim a FENAPAES reivindica que as instituições especiais filantrópicas sejam reconhecidas como entidades públicas de educação especial; que não fiquem circunscritas às verbas municipais, já que a educação especial se insere em todos os níveis educacionais, “desde que para responder às necessidades do educando e de acordo com os princípios de inclusão” (FENAPAES, 1997, p. 02). Garantindo, assim, os recursos para manutenção de seus quadros e de sua natureza de “especializada em” sob o discurso de educação para todos. Assim, o documento, considerando a amplitude dos serviços especializados prestados à pessoa com deficiência, o dever constitucional do Estado para com a Educação Especial, a precariedade quantitativa do atendimento oferecido pela rede pública e os custos da educação especial, defende como linha de ação da Secretaria de Educação Especial do MEC, a publicação de formas alternativas para inclusão das instituições filantrópicas de atendimento à educação especial no artigo segundo da Lei 9.424, ou a ampliação do conceito de serviço público de educação especial. Sugere-se uma regulamentação deste artigo ou uma lei específica sobre o assunto, que contenha artigo com a seguinte redação: poderão ser consideradas como entidades públicas de educação especial as instituições filantrópicas regularmente registradas junto ao MEC, que prestam serviços de natureza pública, têm controle comunitário das verbas e não têm fins lucrativos. (FENAPAES, 1997, p. 05, grifos meus) Esta reivindicação, apesar de garantir o caráter totalitário das instituições especiais, é coerente com atual configuração do Estado brasileiro no que se refere ao seu processo de publicização, ou seja, a solicitação é de que estas entidades sejam 67 reconhecidas como instituições privadas de caráter público, pertinente aos “serviços não exclusivos” do Estado. Mesmo assim, o Estado não atende explicitamente as reivindicações da FENAPAES e esta passa, então, a construir uma linha de ação cujo principal objetivo é a estruturação de uma atuação prioritariamente educacional em suas instituições. Assim, em 1997, iniciam-se as discussões desencadeadas pelo Plano Estratégico – Projeto Águia, que teve por objetivo a elaboração de um “Eixo Referencial de Atuação”, que estabelecesse “linhas gerais norteadoras para o Movimento Apaeano quanto ao seu compromisso social frente à atual política educacional brasileira, de possibilitar programas educacionais ofertados pelas escolas das APAEs” (FENAPAES, 1997, p. 11). Como resultado do Projeto Águia, em 2001, é lançado pela FENAPAES a APAE Educadora: a Escola que Buscamos, que sintetiza a proposta de unificação das ações educacionais de todas as instituições federadas. A APAE Educadora é uma proposta de ações educacionais elaborada pela FENAPAES que tem por objetivo: a inserção oficial das Escolas das APAEs na estrutura da educação nacional, ofertando educação básica nos níveis de educação infantil e fases iniciais do ensino fundamental, de forma interativa com as modalidades de educação de jovens e adultos e educação profissional. (FENAPAES, 2001, p.32) A proposta busca unificar as ações pedagógicas das APAEs e estabelece como ponto de partida a construção de uma escola que tenha um compromisso social para com todas as pessoas portadoras de deficiência mental. Além disso, visa suprir a necessidade de atender às demandas sociais latentes e sistematizar, na medida do possível, as ações pedagógicas das APAEs, dentro de uma perspectiva formal de escolarização para a vida. A proposta a APAE Educadora caracteriza-se como um instrumento de identidade das ações educacionais do Movimento Apaeano, expressa pelo compromisso de materializar “o direito de todos a uma educação de qualidade”. (FENAPAES, 2001, p. 12) 68 A proposta focaliza a construção do projeto político pedagógico e a organização do currículo como seu principal eixo. Apresenta a estrutura da APAE Educadora no contexto da Educação Nacional, “expressando o objetivo de oferecer oportunidades de experiências de aprendizagem e o reconhecimento oficial dessas aprendizagens, sem discriminação de espaço e organização em que a mesma ocorre” (FENAPAES, 2001, p.13). A APAE Educadora: a escola que buscamos apresenta os princípios de Educação para Todos e de Escola Inclusiva como norteadores da proposta, mas com uma configuração bastante diferenciada. Primeiramente, é preciso ressaltar que essa afirmação só é possível a partir do entendimento que a proposta da APAE Educadora está estruturada sobre a premissa de que viabilizará a construção de uma escola. Nesse sentido, pensar em educação para todos e em escola inclusiva assume um outro contorno. O documento apresenta o Movimento Apaeano como o responsável pela educação das pessoas com deficiência mental no Brasil e como aquele que supre as lacunas sociais e educacionais referentes a essa população. O que está posto é que o seu reconhecimento como instância educacional contribui para que a oferta de uma educação de qualidade para todos seja uma realidade em nosso contexto. Ou seja, o direito à educação está garantido à pessoa com deficiência mental, mesmo que seja o direito a uma educação não comum a todos e que não se insere em instâncias educacionais também comuns a todos. O entendimento de que o reconhecimento da instituição especial como instância educacional é favorecedor da oferta de educação para todos, atribui ao princípio escola inclusiva também um outro sentido. A APAE é considerada também como uma instância favorecedora da inclusão social de pessoas com deficiência mental na medida em que proporciona o acesso e a permanência dessa população à escola. 69 Em todo o documento, a inclusão social é apresentada como um objetivo, principalmente para aqueles inseridos nos programas de educação para o trabalho. Por outro lado, a inclusão no sistema regular de ensino é colocada apenas como uma possibilidade existente caso o aluno se desenvolva (em função do trabalho institucional) e possa dar prosseguimento à sua escolarização em escolas comuns do ensino regular. Cabendo à instituição especial avaliar e encaminhar o aluno, sendo ressaltada a necessidade de considerar o sistema de progressão e de avaliação adotado pela escola que irá recebê-lo. Além disso, temos na proposta o entendimento de que a pessoa com deficiência mental é aquela que, em função de suas condições específicas, não pode estar preferencialmente na rede regular de ensino, como proclama a LDBEN 96. E isso é utilizado como justificativa da necessidade da escola especial oferecer todos os níveis educacionais, da educação infantil à educação para o trabalho. Conferindo à escola especial o caráter de instância responsável e competente para oferecer a modalidade de Educação Especial para pessoas com deficiência mental. A APAE Educadora não indica em que circunstâncias o aluno com deficiência mental deve ser considerado elegível para o ensino especial ou para outras instâncias educacionais. Não faz a diferenciação de níveis de comprometimentos, não indica as necessidades educacionais especiais acarretadas pela deficiência mental e nem os níveis de apoio necessários. Assim, é possível o entendimento de que a condição de deficiência mental, por si só, justifica o acesso e a permanência do aluno em escolas especiais. Mais, a deficiência mental é considerada a necessidade especial do aluno. Assim, o que temos é a indicação de que todas as pessoas com deficiência mental são elegíveis para a instituição especial. Ou, invertendo o sentido, toda pessoa com deficiência mental pode ser considerada como aquela que preferencialmente não poderá freqüentar a escola comum. De um modo ou de outro, 70 o que temos é a condição de deficiência mental sendo o único critério a ser considerado para que a pessoa seja institucionalizada. Assim, a APAE Educadora apresenta uma proposta de organização e estruturação cujo objetivo é a construção de uma escola de educação especial inserida no sistema regular de ensino. As diretrizes curriculares da APAE Educadora: a escola que buscamos adotam o conceito de Educação Especial presente nas políticas educacionais, especialmente na LDBEN 96. Assim, a Educação Especial é entendida como uma modalidade da educação escolar, constituída por um conjunto de recursos e serviços educacionais especiais organizados para apoiar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços educacionais comuns, de modo a garantir a educação formal dos educandos que apresentem necessidades educacionais muito diferentes da maioria das crianças e jovens. [...] A Educação Especial se insere na transversalidade dos diferentes níveis de formação escolar (educação infantil, ensino fundamental, médio e superior) e na interatividade com as modalidades da educação escolar como a educação de jovens e adultos e a educação profissional. (FENAPAEs, 2001, p. 27) Este conceito subsidia a elaboração da proposta pedagógica apresentada pela APAE Educadora que visa implementar a educação escolar nas instituições especiais do Movimento Apaeano, entendendo que os serviços de apoio especializados são aqueles ofertados pelas escolas especiais de atuação na área da educação especial, realizado em parceira com as áreas da saúde, da assistência social e do trabalho. Salienta, ainda, a importância de se considerar como serviços de apoio especializado aqueles oferecidos para atender às especificidades dos educandos portadores de deficiência, contudo, sem definir as características de tais serviços e como estariam articulados em cada um dos níveis e das modalidades educacionais ofertados. 71 A Figura I apresenta as áreas de abrangência dos serviços ofertados pelas APAEs. FIGURA I: Abrangências dos serviços – APAES. Fonte: FENAPAES, 2001, p.25 A abrangência dos serviços ofertados pelas instituições especiais evidencia seu caráter totalitário, haja visto que todas as esferas da vida estão circunscritas ao espaço institucional, inclusive aquelas mais elementares, como a saúde, e aquelas em que não há relação alguma com comprometimentos ou especificidades decorrentes da condição de deficiência mental, como o lazer. No que se refere à implementação da educação escolar nas APAEs, merece destaque o fato da área educacional ser um componente associado a outros que não caracterizam uma escola e da proposta da APAE Educadora se circunscrever a apenas uma área de abrangência da instituição especial. Nesse sentido, o documento sugere que 72 a proposta APAE Educadora: A Escola que Buscamos expressa as aspirações e expectativas do Movimento Apaeano quanto à sua atuação educacional, por meio de um projeto político-pedagógico voltado para educandos portadores de deficiência mental e outras(s) associada(s), atuando com a modalidade de educação especial na oferta dos seguintes níveis e modalidades de ensino: Educação Básica, integrada pelos níveis de educação infantil; ensino fundamental (fases iniciais); educação de jovens e adultos; educação profissional. (FENAPAES, 2001, p. 36) Assim, é possível o entendimento de que a educação especial é uma modalidade de ensino a ser ofertada em uma instituição especial, de atendimento global, a pessoas com deficiência mental. Não há referência quanto ao papel da instituição especial como instância educacional destinada a substituir a escola regular em casos extraordinários nos quais se evidencie a falta de condições desta em lidar com as especificidades dos alunos. No entanto, acredito que na ausência da referência explícita, no silenciamento podemos apreender a concepção de educação especial, à medida que “há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido” (Orlandi, 1995 p. 11). Os outros aspectos que compõem a forma como a educação especial é concebida estão implícitos no “silêncio” da APAE Educadora. Assim, a não indicação da instituição especial como um espaço de substituição da escola comum denota o sentido de que para esta proposta educacional a educação especial no que se refere à pessoa com deficiência mental é uma modalidade de ensino a ser ofertada na instituição especializada que se organizará de modo a oferecer todas as modalidades e níveis da educação básica. É possível também apreender neste silenciamento o sentido da educação especial como um sistema paralelo de ensino e também de que a educação da pessoa com deficiência mental só pode ocorrer em instâncias que substituem a escola regular. Na proposta da APAE Educadora, conforme apresentado na Figura II, a escola regular representa a instância educacional para onde o aluno pode vir a ser encaminhado. 73 FIGURA II: Estrutura organizacional da APAE Educadora. Fonte: FENAPAES, 2001 p. 35 Vale ressaltar que pela quase inexistente menção a encaminhamentos para o ensino regular, pode-se inferir que o “movimento” do aluno por esta estrutura organizacional provavelmente se dê em seu sentido horizontal. Assim, a abrangência da APAE Educadora como responsável pela modalidade de educação especial seria melhor representada, conforme exposto na Figura III. 74 FIGURA III: Estrutura da Educação Nacional SENAC – SP e a abrangência da APAE Educadora. Fonte: FENAPAES, 2001 p. 32. A estrutura proposta enfatiza a identificação da APAE Educadora com a Educação Especial. Da forma como a abrangência da APAE Educadora é apresentada, é possível apreender que o reconhecimento da instituição especial como escola do sistema regular de educação, associado ao seu caráter substitutivo da escola comum em se tratando do atendimento à pessoa com deficiência mental, significa a não necessidade de encaminhamento para outras instâncias educacionais. Ou seja, não é preciso encaminhar o aluno, pois a escola especial oferece todos os níveis e modalidades educacionais com as devidas especificidades garantidas. Nesse sentido, educação especial é concebida como o trabalho institucional e a educação da pessoa com deficiência mental é reduzida à educação especial implementada na escola especial. Outro destaque é o fato de serem oferecidos pela APAE Educadora apenas os conteúdos elementares do ensino básico, o que permite a compreensão de que a 75 pessoa com deficiência mental não tem condições ou não necessita de outros níveis de conteúdo. E mais, a oferta de todos os níveis e modalidades educacionais reduzem ainda mais as possibilidades da pessoa com deficiência mental sair da instituição especial e se inserir em instâncias regulares de ensino. A modalidade de educação especial na instituição especial deveria contemplar em sua proposta curricular as especificidades que a escola comum não consegue abarcar, sem prejuízo daquilo que o aluno deveria receber na rede regular, e que estão presentes no trabalho institucional. E qual seria a especificidade da educação oferecida pela instituição especial, como apreendê-la? Mais uma vez o olhar teve que ser direcionado para o silenciamento, para a apreensão dos sentidos implícitos. Os documentos oficiais, conforme apresentado anteriormente, indicam que a substituição da escola comum por outra instância educacional se dá quando o grau de comprometimento do aluno e suas conseqüentes necessidades educacionais especiais forem de tal proporção que sejam inviáveis a flexibilização e adaptações curriculares para atendê-las. Assim, é de se esperar que as instituições especiais, substitutas por excelência, desenvolvam as adaptações e as flexibilizações necessárias. Da mesma forma, a expectativa era encontrar na proposta curricular da APAE Educadora a indicação de tais estratégias. No que se refere à flexibilização curricular, há apenas a indicação de que “as escolas das APAEs devem basear-se no currículo da rede regular de ensino, flexibilizando-o e realizando adequações que atendam às potencialidades e necessidades dos educandos” (FENAPAES, 2001, p. 34). Não há indicação de quais seriam as adequações, de como seria feita a flexibilização e nem apontamentos ou críticas do que seria necessário modificar nas estruturas curriculares e nas práticas institucionais para se conseguir a inversão da instituição reabilitadora em escola. Isso permite inferir o entendimento de que o trabalho já implementado na instituição 76 especial é por si só adequado e flexibilizado. Ou seja, o trabalho institucional já é especializado no atendimento à pessoa com deficiência mental, centrado nas condições e nas necessidades do aluno com deficiência mental. O único caso em que adaptações curriculares são explicitadas é na apresentação dos Programas Pedagógicos Específicos. Estes inserem-se na proposta curricular da APAE Educadora destinando-se aos educando a partir de 14 anos de idade portadores de deficiência mental, associada, ou não, a outras deficiências. São alunos que por possuírem alterações profundas no processo de desenvolvimento, aprendizagem educacional e adaptação diferenciada social que requerem atenda às uma suas proposta necessidades específicas. (FENAPAES, 2001, p.47, grifos meus) Todavia, o objetivo da instituição especial não pode se reduzir a programas específicos que são impossíveis à escola comum. Aqui, merece destaque o fato dos programas pedagógicos específicos só se inserirem na proposta curricular como uma possibilidade de trabalho educacional para alunos a partir de quatorze anos de idade, quando se encerra o período de obrigatoriedade da Educação Básica. Até atingir esta idade o aluno com “alterações profundas no processo de desenvolvimento, aprendizagem e adaptação social” está inserido em qual programa educacional, com qual adaptação curricular? Parece que o caráter substitutivo não está na troca da escola comum pela instituição especial, mas da última por ela mesma. Nisso está implícito que a partir de determinada idade e de determinado grau de comprometimento o caráter educacional não precise ser a tônica (inclusive documental) do trabalho institucional. A terminalidade específica já é citada no documento de modo mais explícito. É considerada conforme previsto no capítulo V, artigo 59, da LDBEN de 1996: “terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências...”. É indicada como o meio de certificação do aluno com deficiência mental, e o sentido 77 apreendido é de que esta é a única forma de conclusão de algum nível ensino para esta população. Operacionalizado o currículo nas dimensões estabelecidas pela presente proposta, a certificação de conclusão de escolaridade ocorrerá, através da terminalidade específica com características codificada e/ou descritiva, desenvolvidas explicitando pelos educandos as habilidades portadores de e competências deficiência mental, observando os dispositivos legais vigentes e o regimento da instituição (FENAPAES, 2001, p. 31, grifos meus). Para isso, indica que é necessário que a escola se organize em “ciclos” ao invés de adotar o sistema seriado. A vantagem apontada é que tal organização permite a expansão do tempo para mais que os oito anos mínimos previstos na lei. Segundo a APAE Educadora, no contexto da educação especial, essa ampliação é muitas vezes necessária para a escolarização de educandos portadores de deficiência(s). Quando isso ocorre, os sistemas de ensino podem se valer dos programas da modalidade de educação de jovens e adultos para os que não tiveram acesso à educação ou não deram continuidade aos estudos na idade própria e, ainda, para educandos que levaram mais tempo no período escolar em decorrência de suas necessidades educacionais especiais/ deficiência(s). (FENAPAES, 2001, p. 33) É interessante notar uma alteração no sentido dos “ciclos mais longos”. Ao invés de uma alternativa à seriação, o sistema de ciclos é apresentado na instituição especial como uma justificativa para o trabalho institucional destinado aos adultos com deficiência mental. Além disso, fica subentendido que as pessoas com deficiência mental necessitam apenas de um tempo mais longo para adquirirem os conteúdos elementares do ensino fundamental. Na extensão do tempo reside outra especificidade da educação especial na proposta curricular da APAE Educadora. Assim, é possível o entendimento de que a educação especial é concebida na proposta da APAE Educadora como uma modalidade de ensino a ser ofertada extraordinariamente nas escolas comuns, sendo prioritariamente, no caso da deficiência mental, ofertada na instituição especial reconhecida como escola 78 pertencente ao sistema regular de ensino. Estas indicações e suas conseqüências podem ser melhor analisadas na estrutura curricular da instituição especial alvo desta pesquisa, conforme será apresentado posteriormente. A necessidade de ofertar os diferentes níveis e modalidades de ensino da Educação Básica na APAE, que permite o seu reconhecimento como instância educacional e que garante o seu financiamento por parte do poder público, implica a implementação de uma prática educacional efetiva, que deve se caracterizar como o eixo central do trabalho institucional. Para isso, o documento orienta que: as escolas das APAEs, de acordo com a proposta da APAE Educadora, devem se organizar de modo a construir seu Projeto Político-Pedagógico, garantindo sua autonomia e identidade institucional. O projeto deve ser elaborado com a participação da comunidade escolar, como preconiza a legislação, e deve ser convergente às características dos educandos e às peculiaridade do contexto local. (FENAPAES, 2001, p. 34) E, para a elaboração e operacionalização da proposta pedagógica orienta que: as escolas das APAEs devem basear-se no currículo da rede regular de ensino, flexibilizando-o e realizando adequações que atendem às potencialidades e necessidades dos educandos, tendo como referências curriculares: Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (MEC/SEF, 1998); os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental, compatíveis com os níveis de ensino com os quais atua (MEC/SEF, 1998); a Proposta Curricular da Educação de Jovens e Adultos (Ribeiro, 1999); os Parâmetros Curriculares Nacionais – Adaptações Curriculares: Estratégias para a Educação de Alunos com Necessidades Educacionais Especiais (FENAPAES, 2001, p. 34) Sugere, ainda, que esses documentos trazem referências para a construção não só do projeto pedagógico e da proposta curricular da escola, mas também dos planos de ensino e dos projetos educacionais de cada escola. Assim, a elaboração dos programas e dos procedimentos educacionais, da flexibilização e das adaptações curriculares fica a cargo de cada APAE. Vale destacar o fato das Diretrizes Curriculares da Educação Nacional, que são os documentos regulamentam a educação, não são citados como referências. oficiais que 79 A APAE Educadora traz diretrizes para a elaboração do Projeto Pedagógico da escola e de seu Regimento Escolar, apresentando os itens que devem compor cada um. Além disso, a APAE Educadora traz volumes específicos sobre Arte e Cultura e sobre Educação Física como subsídios para a “construção de uma proposta pedagógica, integrando as áreas de Arte, Educação Física e Educação Profissional, como suporte para a oferta de um atendimento educacional de qualidade”. (FENAPAES, 2001, apresentação de cada volume). Cada um dos volumes apresenta conteúdos referentes às áreas específicas e como devem estar distribuídos em cada um dos níveis e modalidades educacionais ofertados nas escolas das APAEs. Destaca-se, aqui, a ausência de conteúdos referentes às áreas de conhecimento básico, visto que estão contemplados no Currículo da rede regular de ensino, que deve ser a base da proposta pedagógica da escola especial. Outro aspecto a ser destacado é o fato das diretrizes não apresentarem a instituição especial como a instância que pode substituir a escola comum caso esta não tenha condições de atender o aluno em função de suas necessidades educacionais especiais. Assim, como já analisado anteriormente, o que pode ser apreendido é o entendimento de que instituição especial e educação especial são sinônimas. O caráter escolar é citado na APAE Educadora como algo a ser “buscado”, construído. Para isso, a indicação é de que cada instituição especial deve se organizar para oferecer todos os níveis e modalidades de ensino da educação básica. O desdobramento desta orientação pôde ser analisado na forma como uma instituição especial federada se organizou para ser reconhecida como instância do sistema regular de ensino, conforme apresentado a seguir. 80 3.1 – A construção do perfil educacional da instituição especial expressa nos documentos institucionais e na perspectiva de seus profissionais A APAE foi fundada em 28 de agosto de 1964 por um grupo de pessoas interessadas na causa das pessoas portadoras de deficiência. Até 1971, teve sua existência apenas estatutária e, em maio de 1972, passa a ser mantenedora de uma Escola Especial para pessoas com deficiência mental. Em 1999, por deteminação da Secretaria Estadual de Educação, passou a ser denominada Escola de Educação Especial... que está registrada na Secretaria de Educação do Estado, reconhecida pela Resolução 842/93, obteve a primeira autorização de funcionamento pelo Decreto Estadual N° 3179 de 07/03/1973, renovada em 19/07/2002, pela Resolução N° 2963/2002. Tem como missão: Promover e articular ações de defesa de direitos, prevenção, orientações, prestação de serviços e apoio à família direcionados à melhoria da qualidade de vida da pessoa portadora de deficiência e a construção de uma sociedade justa e solidária. (APAE, 2002, p. 03) Destaca-se o fato de não apresentar como missão a educação da pessoa com deficiência mental, mesmo em um documento elaborado em 2002, após seu reconhecimento como escola regular. Seu reconhecimento como instância de educação escolar pertencente à rede regular de ensino se deu após sua reestruturação segundo os moldes do ensino regular. Para isso, se baseou nos parâmetros curriculares da educação infantil, do ensino fundamental e das diretrizes da APAE Educadora. A organização atual da APAE nos mostra reflexos de tais parâmetros 13 . A APAE, conforme seu Currículo de 2002, tem por objetivos: - Proporcionar atendimento educacional e de reabilitação à pessoa portadora de deficiência mental, com fins de desenvolver suas potencialidades tornando-a uma pessoa produtiva e integrada ao seu meio familiar e social. 13 A caracterização apresentada foi elaborada baseada nas informações obtidas no Relatório de Atividades da APAE de 2002 e nas entrevistas realizadas (entre agosto de 2002 e fevereiro de 2003) com seus profissionais. 81 - Proporcionar atenção integral à criança e ao adolescente através da construção de uma filosofia de linha metodológica interdisciplinar. - Desenvolver os sub-programas de forma integrada, sem a prevalência de um sobre o outro, utilizando-se todos os meios e recursos disponíveis para o alcance das ações de caráter sócio educativo de atenção integral. - Proporcionar ao educando atendimento complementar, através do serviço social, da psicologia, da fonoaudiologia, da fisioterapia e da terapia ocupacional, uma vez que seja considerado necessário pelo setor responsável. - Resgatar a pessoa enquanto membro da sociedade em crise, preparando-a para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. - Orientar pais e outros familiares, a fim de que possam integrar-se e colaborar ativamente no processo de educação e reabilitação do indivíduo. - Formar e esclarecer a sociedade em geral, quanto às questões inerentes às pessoas portadoras de deficiência mental e a parcela que lhe cabe no processo de educação e reabilitação dessas pessoas. - Conceder estágios a estudantes e profissionais de áreas afins a educação e reabilitação da pessoa portadora de deficiência mental no regulamento de estágio da Escola de Educação Especial. É interessante notar que os objetivos da escola especial não contemplam especificamente a formação acadêmica do aluno e nem o seu caráter eminentemente educacional, conforme exigência legal. Os objetivos apresentados convergem mais aos do Movimento Apaeano, inclusive aos inicialmente propostos na ocasião da inauguração da primeira APAE, em 1954, do que para aqueles expressos nos textos oficiais que regulamentam a educação e a educação especial em nosso país. No que se refere ao alunado, a Instituição Especial tem por objetivo educar e reabilitar pessoas com deficiência mental. Os objetivos não expressam graus de comprometimentos elegíveis para o atendimento especializado, isso será indicado em outros momentos do documento, assim como no discurso dos profissionais, segundo os quais a APAE atende pessoas com deficiência mental com grau de comprometimento moderado e severo. O grau de comprometimento é definido pela equipe técnica no processo de avaliação de triagem. Assim, se o grau de comprometimento é leve, segundo a coordenadora pedagógica, o aluno é encaminhado para o ensino regular ou suponhamos para uma creche, uma pré-escola. Se ele é deficiente mental severo ou moderado ele fica para nós, mas, suponhamos que ele tem um comprometimento motor severíssimo, que ele não consiga nem ficar sentado, então a gente vai 82 ver junto com a fisioterapeuta, qual o prognóstico dele estar sentando, se isto é possível, se ele nunca vai sentar... se ele nunca vai ter controle de cabeça, ele vai ter, ele não vai ter, quanto tempo… da viabilidade dele estar freqüentando uma escola, que são 4h de atendimento, com todas as perspectivas educacionais e não só de manutenção de vida. Isso aqui dentro da APAE, isso é uma especificidade nossa, não atende criança portadora de deficiência mental profunda, por que? Exige-se um atendimento muito mais específico... até certo ponto clínico, e a gente sabe que a sua condição cognitiva de aprendizagem acadêmica é mínima e a sua estrutura de manutenção de vida é grande, visto que aqui é uma escola e não um centro de atendimento. (Entrevista 01, Coordenadora Pedagógica) Não há referências às necessidades educacionais especiais e aos níveis de apoio. Mais uma vez, no silenciamento temos implícitos os sentidos. Vale resgatar a análise de Bueno (1997b) no que se refere ao termo necessidades educacionais especiais e à sua imprecisão. O autor alerta para a necessidade de acrescentar a espécie de sujeitos a qual estamos nos referindo. No caso da deficiência mental, o que é acrescentado oficialmente ao termo necessidades educacionais especiais é: Deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou comunicação; mais áreas cuidado de pessoal; habilidades adaptativas, habilidades sociais; tais como: utilização da comunidade; saúde e segurança; habilidades acadêmicas; lazer; e trabalho. (BRASIL, 1999) Ou seja, ao termo necessidade educacional especial é acrescentado uma definição que não rompe com a concepção de associação dos déficits intelectual e comportamental. O déficit intelectual significativamente abaixo da média mantém a mensuração do quociente de inteligência como o eixo central de definição da deficiência, o déficit no comportamento adaptativo mantém o entendimento de comparação a um determinado grupo padrão cujo repertório comportamental seja condizente com determinada faixa etária; o grau de afastamento destes padrões é a indicação do grau de comprometimento; nisso não há nada de novo. 83 Jannuzzi (1996) aponta que esta associação entre déficit intelectual e comportamental é um traço comum, presente de algum modo, em todas as formas de conceituar a deficiência mental. As análises tecidas por Mendes (1995) também indicam isso. Contudo, o termo deficiência mental quando associado ao de necessidades educacionais especiais, pode nos remeter a conceitos anteriores, como acontece na APAE, ao definir que o aluno elegível para freqüentar a escola especial é aquele que apresenta comprometimento mental moderado e severo. O que revela mais do que graus de comprometimento. O resgate do conceito de deficiência mental que classifica a condição em níveis profundo, severo, moderado e leve nos mostra uma associação entre déficits intelectual e de conduta adaptativa, sendo que “a inteligência é o foco central do problema e, desse ponto de vista, o critério psicométrico para classificar é o mais usado” (FOGUEL, 1972, p.39). Foguel (1972, p. 40) nos mostra que em 1968 a Organização Mundial da Saúde agrupou a deficiência mental em quatro níveis: 1 – Profunda, com QI abaixo de 20; 2 – Severa, entre 20 e 35; 3 – Moderada, entre 36 e 52; 4 – Leve, entre 53 e 70. Os profundos necessitam de assistência permanente. São sempre dependentes. Os severos requerem os mesmos cuidados, mas são passíveis de treinamento simples. Os moderados são susceptíveis de treinamento sistematizado para os hábitos de vida diária. Quanto aos levemente retardados, constituem o maior grupo. São considerados educáveis por meio de métodos especiais. Encontramos um detalhamento de cada um dos níveis em Queiroz e PerezRamos (1979, p. 70). Para os autores, cada um dos níveis de comprometimento pode ser caracterizado, segundo a faixa etária, de acordo com o Quadro II. 84 Quadro II: Níveis de retardo em função dos períodos evolutivos. Fonte: adaptação de Queiroz e Perez-Ramos (1979, p. 70). Níveis Propor- Maturidade e desenvolvi- Educação ção mento (idade pré-es-colar: profissional (idade escolar fissional (adultos: 21 anos 0 a 6 anos 7 a 20 anos em diante - Moderado (treinável) 6% QI: 40-54 atraso acentuado no - e treinamento beneficia-se do treina- Adaptação - social possui e pro- habilidade para desenvolvimento intelectual mento da comunicação ver- desempenhar ocupações sim- motor e da linguagem; bal; ples de trabalho produtivo, - capacidade insuficiente de - pode adquirir atitudes so- com supervisão imediata; adaptação social; ciais e primárias; - - responde ao treinamento - é capaz de desenvolver para participar de atividades das habilidades básicas e hábitos de higiene pessoal; recreativas na comunidade; dos hábitos de auto-ajuda. - tem possibilidades de ad- - quirir habilidades vocacio- operar nais primárias; tenção; - pode reconhecer palavras - pode andar e viajar sozinho simples escritas e adquirir em conceitos básicos de núme- familiares. conta com possibilidade possui condições para lugares de sua que co- manu- lhe são ros. Severo (subtreinável) - marcado atraso no de- - aprende cumprir ordens - tem possibilidade de realizar senvolvimento simples e comunicar-se a- atividades sensorial e motor; través de sentenças curtas; rotina diária; - habilidade mínima para - - comunicar-se; mento sistemático de hábi- dades para proteção de si tos de convivência; mesmo, em ambiente contro- - QI: 25-39 3,5% pode intelectual, responder treinamento de ao hábitos beneficia-se do treina- pode repetitivas desenvolver e da habili- - locomove-se com inde- lado. simples de auto-ajuda (ex. pendência - pode contribuir, de alguma alimentar-se) mente; forma, para sua própria ma- - pode ser treinado em nutenção, sempre que haja algumas habilidades manu- supervisão constante. e intencional- ais simples. Assim, estamos diante de um conceito e de uma classificação de comprometimento mental que afirmam a não educabilidade da pessoa com deficiência mental moderada e severa, nem em ambientes especiais de ensino. Evidencia que o aprendizado está limitado a aspectos de hábitos diários, de rotina e de cuidados pessoais, além da dependência quase constante de supervisão de outras pessoas. Vale destacar que para freqüentar a instituição, a pessoa com deficiência mental pode ser encaminhada por qualquer membro da comunidade: família, profissionais das áreas de saúde, educação e serviço social, vizinhos etc. 85 Primeiramente, é feita uma sondagem pela direção da instituição para verificar se é ou não um caso para ser avaliado. Se sim, a pessoa fica em uma lista de espera e, à medida que surgem vagas na escola, inicia-se o processo de triagem e avaliação. Via de regra, a pessoa já vem diagnosticada como deficiente mental, cabendo à instituição especial avaliar o grau de comprometimento Os setores de psicologia, pedagogia e assistência social realizam entrevistas com a família e avaliação do aluno. Cabe aos setores de psicologia e de pedagogia diagnosticar e classificar o grau de comprometimento da pessoa e definir se é caso para a instituição ou não. O diagnóstico do grau de comprometimento é feito através de avaliação psicométrica com a aplicação testes de inteligência, de personalidade, de prontidão e com o uso de escalas de desenvolvimento. Quando não existe a possibilidade de usar instrumentos de testagem, os profissionais realizam observações em situações variadas. Após a avaliação psicológica, caso esteja com mais de seis anos, o candidato passa por uma avaliação pedagógica para avaliação do nível cognitivo. Para esta avaliação são utilizadas escalas de desenvolvimento (Portage, Provas Operatórias...). Quando é definido que o candidato é uma pessoa que apresenta deficiência mental em nível moderado ou severo, associada ou não a outros comprometimentos, os outros profissionais realizam suas avaliações. Também foi possível apreender que a deficiência mental é analisada a partir dos déficits dos alunos e entendida como uma condição que apresenta peculiaridades que demandam atendimento especializado de saúde, de educação, de reabilitação e de assistência social. Os sentidos de imaturidade e de dependência da pessoa com deficiência mental como características inerentes à condição estão presentes, de diferentes formas, nos discursos de todos os profissionais. Somam-se a isso as premissas do assistencialismo e da filantropia que sustentam o entendimento de que 86 lidar com esta condição de deficiência mental é algo que só a Instituição Especial faz e pode fazer. A crença na dependência da pessoa com deficiência mental está presente no entendimento de que o deficiente não tem autonomia para lidar com situações básicas de sua vida (alimentação, higiene pessoal), o que é coerente com alguns níveis de comprometimento. Por outro lado, ela está expressa na compreensão de que esta condição impede a pessoa de atuar no seu próprio cotidiano, independentemente do grau de comprometimento. Porque, o que é que acontece? Os nossos alunos não vão chegar numa chefia e falar: o professor não está dando nada, eu estou vendo revistas 4h, eu estou só pintando... Então, felizmente ou infelizmente esse é o meu padrão. Eu tenho que ser os olhos, os ouvidos e a reivindicação dos nossos alunos. Porque o professor fecha a porta dele e lá ele dá o que quer. E ele pode me mostrar um planejamento belíssimo, mas e daí? Porque realmente os nossos alunos eles não vão reivindicar. (Entrevista n° 02 Coordenadora Pedagógica) Esta forma de conceber a deficiência mental acentua “a sua subordinação aos outros, esmaecendo a própria identidade, tornando-o até aquele que precisa emprestar a voz de outrem para se fazer ouvir” (Jannuzzi, 1994 p. 22). A crença na imaturidade e na permanência de uma condição intelectual e comportamental infantilizada também pôde ser apreendida. Destaca-se a ênfase na utilização de parâmetros curriculares da educação infantil (0 a 6 anos) como referência inclusive para os alunos dos níveis escolares (7 a 16 anos); a utilização de atividades pré-escolares tendo por base mais o nível cognitivo do que a faixa etária do aluno; a referência constante às “crianças” da escola mesmo para designar pessoas com 19, 20 anos. Mas a infantilização do deficiente mental não é algo circunscrito a esta instituição especial. Conforme discutido no primeiro capítulo do presente trabalho, a infantilização foi destaque nas análises de várias pesquisas da área e também é um componente marcante do caráter totalitário da instituição especial. Mesmo assim, considero oportuno tecer uma consideração sobre esta crença. 87 O fato de termos a deficiência mental definida a partir da mensuração da inteligência (déficit intelectual) e da análise do comportamento adaptativo evidencia dois parâmetros de comparação entre normalidade e anormalidade. O primeiro, mensuração da inteligência, tem como parâmetro a razão entre idade cronológica e a chamada idade mental da pessoa testada. Assim, quando há um distanciamento acentuado entre ambas, temos o afastamento da média considerada normal, para mais ou para menos. Significa dizer que alunos com deficiência mental moderada apresentam idade mental inferior à cronológica de modo acentuado, haja vista a estimativa de QI, conforme resgatamos anteriormente. Contudo, esta forma de compreender a deficiência mental se traduz no cotidiano institucional como a necessidade de planejar o trabalho direcionando-o para a “idade mental” do aluno ao invés de para a cronológica. O segundo, comportamento adaptativo, nos remete à associação entre idade cronológica e o repertório comportamental do aluno. Assim, o descompasso entre a idade do aluno e a forma como atua em seu ambiente é que determina seu grau de comprometimento. Nesta perspectiva o trabalho é planejado tendo por base o déficit no repertório comportamental. Em ambos os casos o que temos é a condição de deficiência mental, ou seja o déficit, direcionando as formas de significar e de lidar com o aluno. Diante do exposto é possível a análise de que a deficiência mental é concebida a partir do rótulo de deficiente, sustentado por conceitos e sistemas de classificação, fazendo com que as possibilidades e as potencialidades do aluno sejam desconsideradas e, acima de tudo, fazendo com que a pessoa não seja considerada para além de sua deficiência. E mais: sustentada pela crença na ineducabilidade do aluno, seja em instâncias especiais ou comuns de ensino. Isso reforça o entendimento da impossibilidade de estruturar outro trabalho que não o já instituído. Daí a ênfase na reabilitação em detrimento da educação e o entendimento de que ela 88 é condição para o trabalho pedagógico, o que é coerente com a preocupação expressa no Ofício 2010/97 da FENAPAES de que a implantação do perfil educacional limitaria o atendimento já ofertado. No que se refere à estrutura institucional, temos a divisão da escola em dois setores: setor escolar e setor profissionalizante. O Setor Escolar atende alunos de zero a dezesseis anos de idade em programas de educação precoce, pré-escola, escolar e de educação para o trabalho. Segundo o Relatório de Atividades, o objetivo do setor escolar é: Proporcionar ao aluno de 0 a 16 anos, atendimento educacional que seja adequado às suas necessidades, favorecendo desta forma o seu desenvolvimento global, bem como as suas habilidades e competências, possibilitando assim a sua independência, a integração social e a construção da cidadania (p. xxx). No ano de 2002, a APAE em seu setor escolar atendeu a 124 alunos distribuídos em 21 turmas conforme apresentado no Quadro III. Quadro II: Estrutura do Setor Escolar segundo número de alunos e distribuíção por níveis, programas e modalidades. Fonte: Relatório de Atividades de 2002 da Instituição Especial. NÍVEL Educação Infantil Ensino Fundamental TOTAL IDADE Nº TURMAS Nº ALUNOS Educação Precoce 0 a 04 anos 01 12 Programa Pedagógico Especifico I 04 a 06 anos 01 14 PROGRAMAS MODALIDADES PréEscolar Fase I, II, III 04 a 06 anos 03 07 Escolar Ciclo I Fase I e II 07 a 16 anos 10 58 07 a 16 anos 06 33 0 – 16 anos 21 124 Programa Pedagógico Específico II 05 02 89 Ainda de acordo com o Relatório de Atividades, os objetivos de cada um dos programas desenvolvidos pelo referido setor são: − Educação Precoce: estimular o desenvolvimento do educando de 0 a 4 anos de idade, através de atividades lúdicas, amparadas pela Escala de Desenvolvimento Portage. − Pré-escolar: estimular o desenvolvimento global dos alunos dos níveis maternal, jardim e pré-escolar, através de atividades concretas e lúdicas dentro de uma visão construtiva da aprendizagem. − Programa pedagógico específico I: proporcionar a aquisição de rotina escolar e adaptação do aluno ao grupo através de um atendimento individualizado. − Escolar: proporcionar ao educando a aquisição da leitura e da escrita bem como as operações aritméticas, dentro de uma abordagem construtivista, facilitando desta forma sua aprendizagem. − Programa pedagógico específico II: proporcionar atividades de vida prática e de vida diária bem como a educacional adaptada, visando a independência pessoal e a integração do aluno. O Relatório não apresenta as atividades desenvolvidas nas salas de aula, nem os conteúdos trabalhados em cada um dos níveis e modalidades. Vale ressaltar que o Relatório de Atividades elaborado pela APAE é um documento oficial que serve como base para a avaliação da instituição pelos órgãos do Poder Público. Também é necessário destacar a distinção do que está posto no relatório com relação à estrutura do Setor Escolar e a forma como os profissionais entrevistados o caracteriza. Assim temos que a Educação Precoce segundo a APAE Educadora: a escola que buscamos tem como finalidade precípua promover o desenvolvimento integral e o processo de aprendizagem da criança de modo a ampliar suas perspectivas educacionais, sociais, e culturais [...] O programa objetiva, ainda, evitar o surgimento de seqüelas adicionais (no caso de bebês de risco) e minimizar o efeito de deficiências ou defasagens já existentes. (FENAPAES, 2001, p. 38) São elegíveis para ingresso no programa as crianças consideradas de alto risco 14 , com deficiência mental e outras deficiências associadas a esta, com atraso 14 O conceito adotado pela APAE Educadora é o proposto pela Política Nacional de Educação Especial do MEC (1994). São consideradas crianças de alto risco “as que têm o desenvolvimento ameaçado por condições de vulnerabilidade decorrentes de fatores de natureza somática, como determinadas doenças adquiridas durante a gestação, alimentação”. 90 no desenvolvimento neuropsicomotor. O programa se inicia após o nascimento e pode prosseguir até os três anos e onze meses. Na APAE os atendimentos são individualizados e realizados duas vezes por semana com profissionais das áreas da pedagogia (quarenta e cinco minutos), da fisioterapia (trinta minutos), da fonoaudiologia (uma vez por semana com duração de trinta minutos) e da terapia ocupacional quando há necessidade. O trabalho pedagógico é norteado pela Escala de Desenvolvimento Portage e pelos Referenciais Curriculares Nacionais (RCN) específicos para a Educação Infantil, buscando desenvolver as áreas cognitiva, motora, da linguagem, de independência e de socialização. Os conteúdos são apresentados de forma sintetizada sem que haja indicação de como podem ser trabalhados e nem por quais áreas. A título de ilustração, transcrevo os conteúdos indicados para o trabalho da área de linguagem: Linguagem: sons guturais; balbucio; imitação; ordem simples/complexa; linguagem receptiva (expressiva); sons onomatopaicos; interpretação de cenas. (APAE, 2002) A família é orientada pela equipe e a mãe, sempre que necessário, acompanha os atendimentos do filho, que ocorrem concentrados em dois dias da semana. Esta forma de implementar o atendimento no programa de Educação Precoce é justificada pela condição sócio-econômica das famílias e também como uma forma de evitar o desgaste dos bebês. O entendimento é que se os atendimentos estivessem diluídos no decorrer da semana para que a criança freqüentasse a instituição todos os dias, as famílias abandonariam os atendimentos já que isso interferiria na rotina de trabalho das mães. Quando a criança tem aproximadamente dois anos e meio, são organizados subgrupos e o trabalho individual passa a ser feito com duas ou mais crianças no mesmo horário, mantendo-se os objetivos individuais. Um dos critérios utilizados para este agrupamento é o tipo de deficiência que a criança apresenta (por exemplo, mesma síndrome). Assim, prolonga-se o atendimento e prepara-se as crianças para 91 freqüentarem o maternal. Esta preparação é feita até a criança atingir quatro anos e passar a freqüentar os programas de Educação Infantil. Caso não haja condições de agrupamento, nesta idade a criança começa a freqüentar alguns espaços coletivos da instituição, como o refeitório e o parque, com a supervisão de um dos profissionais. Já a Educação Pré-Escolar tem por objetivo “proporcionar condições adequadas e favoráveis ao seu desenvolvimento nas dimensões física, emocional, cognitiva e social” (FENAPAES, 2001 p. 40). Atende crianças de quatro a seis anos nos níveis Maternal, Jardim 1 e Préescola. São elegíveis para ingressar no programa crianças egressas do programa de educação precoce da Instituição Especial e de outras instituições, com deficiência mental associada, ou não, a outras deficiências e com atraso no desenvolvimento. O trabalho pedagógico é orientado pelos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Infantil, criando-se estratégias de ensino diferenciadas que respeitem o ritmo de aprendizagem do aluno. As atividades são mais diversificadas e com curta duração, o trabalho concreto e em partes é priorizado. As áreas a serem trabalhadas com a criança se mantêm, ampliando-se seu tempo de permanência na instituição: quatro horas diárias. O trabalho é realizado em conjunto com os profissionais das áreas de psicologia, fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional. De acordo com a proposta da APAE Educadora ao finalizar a educação pré-escolar, o aluno, mediante um processo avaliativo, poderá ser encaminhado para o ensino fundamental nas escolas regulares da comunidade. Se indicado pela avaliação, ele pode permanecer matriculado na escola especial da APAE para continuidade de seu processo educacional (FENAPAES, 2001, P. 40). A avaliação é feita pela equipe de profissionais da APAE e prioriza os aspectos cognitivos da criança. Alguns aspectos merecem destaque em função dos objetivos do presente trabalho. 92 O primeiro deles se refere ao início do atendimento ser proposto a partir do nascimento da criança. Isso indica que quando a deficiência é identificada o encaminhamento para instituição especial é imediato sem que se considere a possibilidade de atendimento em outras instâncias da comunidade, principalmente da saúde. Por outro lado, pode indicar também que em vários locais as instituições especiais sejam a única opção de atendimento o que denota o afastamento do Estado no que se refere não só à educação, mas também à saúde desta população. O segundo diz respeito ao caráter quase que exclusivamente clínico do atendimento desenvolvido no programa de educação precoce. Aqui, inclusive o atendimento pedagógico tem este perfil, que é também sustentado pelo caráter preventivo da educação especial, explicitado nos documentos. Nas práticas da APAE, esse atendimento, assim caracterizado e circunscrito ao espaço institucional significa a “institucionalização precoce” da pessoa com deficiência mental. Os profissionais da APAE relatam o acompanhamento de uma criança que se iniciou em seu décimo dia de vida. Isso pode ser analisado sob duas perspectivas: a primeira é a de que a criança é encaminhada por não haver o atendimento em outras instâncias da comunidade, denotando a omissão do Estado que engendra e é engendrada pelo atendimento oferecido na instituição especial; a segunda é a de que o encaminhamento é feito em função da instituição especial ser identificada como o local mais adequado para atender a esta população. O que pode ser apreendido é que a instituição se constitui como o locus social da deficiência mental e adquire o status de especializada no atendimento global desta população. A LDBEN 96 em seu artigo 58 §3º indica que a educação especial, dever constitucional do Estado, tem início na faixa etária de zero a seis anos, durante a educação infantil. Área, segundo Ferreira (1998, p. 11), “em que o atendimento educacional ao aluno com necessidades especiais é ao mesmo tempo tão escasso 93 quanto importante”. Importante em dois sentidos: das necessidades especiais da criança, decorrentes da condição de deficiência e da possibilidade de antecipar a inserção no sistema comum de ensino para os primeiros meses de vida, por exemplo em Centros de Educação Infantil que oferecem o atendimento em berçários. Por outro lado, ao analisarmos a implementação da educação infantil na APAE o que pôde ser apreendido foi a constituição do caminho inverso: o da institucionalização precoce, significando uma verticalização (para baixo) da segregação da criança com deficiência, que é retirada da escola comum antes mesmo de chegar lá. O que reitera e potencializa a possibilidade de não encaminhamento para o ensino regular. Mas apreendemos um outro sentido do trabalho implementado no programa de educação precoce na Instituição especial. As poucas crianças que são encaminhadas para a escola comum saem ... da educação precoce. Então lá na educação precoce a gente já começa... geralmente são crianças de alto risco tipo PC (com paralisia cerebral), você vê que ele tem um comprometimento motor, mas a parte cognitiva está preservada. Então o atendimento vai compensando essa parte motora que não funciona com a parte cognitiva. Aí a gente encaminha para a escola. O grosso do nosso encaminhamento é PC da educação precoce. [...] Nós temos claro que não podemos ficar segurando ele por muito tempo, porque ele vai acabar de certa forma perdendo algumas coisas, por mais que a professora trabalhe diferenciado, lá fora ele vai ter muitos modelos, ele vai ter um conteúdo mais profundo. (Entrevista n. 01 Psicóloga) Mas, não há consenso entre os profissionais e as críticas incidem sobre este mesmo aspecto. Eu já interroguei todo mundo aqui na escola é bebê de risco, risco do que? De deficiência mental? Aí a criança fica numa APAE quatro anos, e aí aos quatro anos ela vai para o ensino regular, se não tiver a deficiência mental. Só que como ex-aluno da APAE e a gente sabe o que isso significa... Mas, a gente vê que tem PCs aqui pequenos de três, cinco anos que dão resposta de criança normal, que não tem atraso cognitivo e que estão na instituição com a justificativa que ele precisa adquirir rotina de escola para ser encaminhado. Como é que vai aprender rotina de escola aqui 94 com os atendimentos do jeito que são feitos? (Entrevista n. 02 Fisioterapeuta) Aqui evidencia-se uma contradição: o programa de educação precoce da APAE é ao mesmo tempo uma via de institucionalização precoce e uma das poucas portas de saída da Instituição Especial, já que são raríssimos os casos de alunos eu encaminhei que já freqüentavam um ano de sala de aula ou freqüentaram no máximo dois anos e já foram encaminhados. (Entrevista n. 02 Psicóloga) Outro aspecto que merece destaque é a proposta da APAE Educadora enfatizar a omissão do Estado no atendimento precoce da população com deficiência mental para reiterar o seu papel de instituição privada que presta serviço público: o programa de educação precoce não costuma ser oferecido sistematicamente pelo poder público, sendo rara sua oferta, mesmo nas grandes cidades. Constitui, portanto, uma significativa contribuição da APAE Educadora ao cumprimento da Constituição Federal (FENAPAES, 2001, p. 39) O que temos aqui é a explicitação do caráter substitutivo, não da escola comum pela especial, mas do dever do Estado (previsto na lei) pelo “apoio” do favor privado da instituição especial. No nível Escolar a distinção entre o conteúdo do Relatório de Atividades e o discurso dos profissionais se evidencia. Este nível atende alunos de sete a dezesseis anos. O trabalho é direcionado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino fundamental e pelos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Infantil. Vale ressaltar a presença dos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Infantil como um dos parâmetros para o trabalho com alunos de sete a dezesseis anos e os conteúdos presentes no currículo da APAE reiteram a ênfase em atividades pré-escolares para as diferentes faixas etárias. Por exemplo, conteúdos como noção corporal e espacial e discriminação de cores estão previstos no trabalho de treinamento básico, independente da faixa etária. 95 Por outro lado, durante o processo de elaboração da proposta curricular da APAE os profissionais estruturaram programas cujos conteúdos correspondem até ao terceiro ano do ensino fundamental. Quando eu pedi para ir até a terceira série, algumas professoras falaram assim: mas é utópico, imagina... Aí eu falei assim: não é importante a gente ter um parâmetro maior para não ficar na mesmice? E se o aluno começar a ir, como que você vai? Você vai ficar no achismo? Não é melhor a gente já ter alguma coisa pré determinada? Por que, realmente, se a gente vê que ele está caminhando rápido e se aproximando disso, ele não vai ficar aqui mesmo, eu vou encaminhar ele rapidinho para a escola regular. Então, eu quero que vocês tenham o máximo de parâmetros para não ficar naquilo: ele não vai chegar. A gente não sabe, a gente não pode determinar. Então, o currículo está muito além mesmo, porque eu acho que tem que ter um parâmetro. O professor não pode ficar preso naquilo, olha, o deficiente só aprende isso. (Entrevista n. 01 Coordenadora Pedagógica) Assim, a oferta de um grau de escolaridade que corresponde à terceira série do ensino fundamental acontecerá em casos extremos, nos quais o aluno surpreenda e supere o nível de ensino implementado na instituição. A indicação de que caso isso ocorra o aluno será encaminhado para a escola comum permite inferir que os conteúdos pedagógicos trabalhados na APAE não ultrapassem os níveis elementares do ensino fundamental, em função do grau de comprometimento dos alunos, já que aqueles que avançam no processo de escolarização seriam, em tese, encaminhados. Se resgatarmos as colocações da psicóloga sobre os encaminhamentos feitos para o ensino regular e contrapormos ao discurso da coordenadora pedagógica, vamos perceber que a oferta de conteúdos da terceira série do ensino fundamental é algo hipotético na APAE. Outro aspecto a ser destacado é a forma como a APAE se organiza para atender seus alunos no setor escolar. Para melhor compreendê-la, é preciso antes esclarecer que os critérios adotados pela instituição para o agrupamento dos alunos são equivalência de faixa etária e, principalmente, de nível cognitivo (leia-se grau de comprometimento). 96 O setor escolar é composto por cinco níveis denominados de Escolar Um, Escolar Dois, Escolar Três, Escolar Quatro e Escolar Cinco. Cada um dos níveis possui diferentes turmas que são montadas no início de cada ano de acordo com as necessidades da escola. Assim, em um ano o setor pode oferecer o nível Escolar Cinco com duas turmas e, em outro, não precisar ofertar nenhuma turma pela ausência de alunos aptos a freqüentá-lo. O Escolar Um corresponde ao nível mais elementar e atende os alunos com comprometimento severo. Mas, também, é o primeiro nível após a pré-escola. A distinção é feita na composição dos grupos (idade e grau de comprometimento) e também na distribuição destes: mais novos e menos comprometidos no período matutino e mais velhos e mais comprometidos no período vespertino. Então, pode ter uma turma de Escolar Um para alunos com comprometimento severo de aproximadamente doze anos e uma turma de Escolar Um para alunos com comprometimento moderado de aproximadamente sete anos. O critério de transferência de um nível para o outro é o desenvolvimento cognitivo do aluno e pode ocorrer tanto para níveis superiores quanto inferiores. A transferência não ocorre somente ao final de períodos letivos, a qualquer momento o aluno pode mudar de nível ou de turma desde que seja considerado oportuno pela equipe pedagógica. Assim, em um ano o aluno pode freqüentar vários níveis de acordo com seu desenvolvimento cognitivo, da mesma forma que pode ficar vários anos em um único nível, mudando apenas de grupo em função de sua idade. Com relação aos conteúdos ministrados, existe um planejamento específico para cada turma respeitando as possibilidades dos alunos. O conteúdo acadêmico formal é oferecido para os alunos com comprometimento moderado e, para aqueles cujo comprometimento é considerado severo, as atividades são direcionadas para noções de higiene, cuidados pessoais e atividades de vida diária. 97 O treinamento básico é oferecido também para alunos com comprometimento moderado/severo que não acompanham as atividades acadêmicas formais (matemática, escrita, cores...) em um nível denominado: Educação para o Trabalho. Este nível prioriza a preparação para entrar no setor profissionalizante da instituição por meio de atividades funcionais com o objetivo de trabalhar habilidades ocupacionais. Destaca-se o fato deste ser um programa que não tem nomenclatura definida, porque a Federação coloca que a iniciação para o trabalho é uma nomenclatura do profissionalizante e eu tenho uma turma que de educação para o trabalho dentro da escolaridade que eu chamo de escolar dois, mais ou menos assim. São aqueles alunos que sempre foram trabalhados dentro da escolaridade e não eram totalmente severos. Como que eu posso dizer… sabe aquele meio termo? Que tem outros alunos, é... e isso é muito desafiador... dentro do meu processo de orientação, eu procuro dar muita chance para o aluno, eu prefiro colocar que ele é mais dentro do moderado do que do severo; então, a gente sempre está investindo mas tem um limite. Suponhamos que ele está com a gente desde bebê ou com sete anos, ou até os 12, ele está dentro de um processo de escolaridade, mas a gente está vendo a limitação cognitiva dele nos cálculos matemáticos, na produção de escrita, nas cores. Para continuar insistindo, dos 7 aos 16 a gente acha muito... é uma judiação... Lógico, que nós não vamos abandonar essa escolaridade, como ela não é abandonada na oficina. Mas, só que a gente modifica um pouco o nível de exigência, o que acontece? Então, aquele aprendizado que era... para a construção daquele conhecimento que estava se exigindo, hoje ele fica mais dentro de fixação de situações, não que não fosse exigido, mas de situações mais funcionais para ele. O que?, o nome dele, a linha de ônibus, o número do telefone, o seu endereço… então a gente divide as 4h aulas dele dessa forma. As duas primeiras horas, é a fixação dos conteúdos acadêmicos pertinentes a essa independência dele e também de todos os conteúdos que nós trabalhamos. (Entrevista 01, Coordenadora Pedagógica) Aqui, evidencia-se o quanto a APAE precisou construir estratégias para justificar que o trabalho desenvolvido é educacional. A ênfase na questão da nomenclatura indica o quanto o trabalho desenvolvido não foi alterado, mesmo porque o que ocorre é a justificativa de que os conteúdos trabalhados, mesmo que funcionais, são acadêmicos formais. Evidencia-se que o movimento desencadeado na APAE não é de transformação e de construção de um perfil eminentemente 98 educacional, mas de tentar justificar que o trabalho ali desenvolvido já é educacional em todas as suas esferas. Aqui, novamente o silenciamento nos dá pistas sobre os sentidos. A ausência de referências aos conteúdos trabalhados, aos métodos de ensino, ao papel do professor, à proposta de ensino construtuvista expressa apenas no Relatório de Atividades, ao processo de aprendizagem do aluno, ao processo de avaliação... Isso denota o caráter não educacional do trabalho desenvolvido. Não significa dizer que o pedagógico inexista, mas sim que ele não é o eixo central do trabalho institucional, que deveria ser em uma escola. Podemos perceber este mesmo caráter em outras esferas institucionais que também devem assumir o caráter educacional. O Setor Profissionalizante de acordo com o Relatório de Atividades de 2002, tem por objetivos: − Proporcionar aos aprendizes acima de 15 anos de idade, ocupação adequada às suas habilidades e individualidades, através de trabalhos diversificados; − Identificar potencialidades e interesses do portador de deficiência e oferecer programas de educação profissional que visem garantir as condições de empregabilidade; − Capacitar e atualizar os seus recursos humanos (aprendizes); − Coordenar, inovar e promover programas/parcerias que possam garantir a qualidade das atividades desenvolvidas no Setor; − Conscientizar a sociedade sobre as potencialidades de trabalho da pessoa portadora de deficiência (APAE, 2002) O setor iniciou o ano de 2002, atendendo 109 alunos (denominados de aprendizes) e terminou o período letivo com 100 alunos, visto que cinco foram encaminhados para o mercado de trabalho competitivo, dois para postos de estágio e dois desligados da instituição. Os aprendizes foram atendidos em 15 turmas distribuídas por diferentes programas, conforme apresentado no Quadro III. 99 Quadro III: Estrutura do Setor Profissionalizate segundo número de alunos e distribuíção por níveis, programas e modalidades. Fonte: Relatório de Atividades de 2002 da Instituição Especial. PROGRAMAS Nº DE Nº DE TURMAS Programa de Pré – Profissionalização EDUCAÇÃO Programas Pedagógicos Específicos PROFISSIONAL Programa de Qualificação para o Trabalho Masculino Programa de Qualificação para o Trabalho Feminino Educação de Jovens e Adultos APRENDIZES 06 42 05 35 02 15 01 08 01 média de 20 alunos Segundo o Relatório de Atividades de 2002 os programas desenvolvidos no setor são assim caracterizados: − Pré-profissionalização: caracteriza-se pelo atendimento a aprendizes que iniciam no Setor Profissionalizante e alguns que já freqüentaram, com o objetivo de sondar habilidades e aptidões para o trabalho e prepará-los para atividades específicas e, posteriormente, pela oferta de várias experiências de trabalho em atividades práticas, para que o aprendiz, através de experiências diversificadas, possa definir seus interesses e desenvolver suas capacidades e potencialidades para o trabalho. − Programa de qualificação para o trabalho – treinamento profissional feminino e masculino: caracteriza-se por procurar desenvolver treinamento profissional através do desenvolvimento de habilidades necessárias ao desempenho de uma tarefa, busca levar o aprendiz a executar um trabalho com qualidade e responsabilidade. Tem como objetivo: preparar o aprendiz para o exercício de atividades profissionais; aperfeiçoar conhecimentos básicos necessários para a profissionalização; treinar os aprendizes para futura colocação no mercado de trabalho, oferecer condições para o desenvolvimento de posturas adequadas para o trabalho; encaminhar os aprendizes para estágios Escola-Empresa e/ou colocação no mercado de trabalho. − Programas pedagógicos específicos: caracteriza-se pelo atendimento em grupo, de maneira a proporcionar atividades de vida prática e atividades de vida diária, visando a independência pessoal e integração. − Educação de jovens e adultos: caracteriza-se pelo atendimento em contra-turno aos aprendizes independentes e com potencial acadêmico, com o objetivo de oferecer manutenção aos conteúdos de leitura, escrita e matemática, ou seja, trabalhar com a pré e pósalfabetização. (APAE, 2002) 100 Destaca-se no Setor Profissionalizante a mesma configuração do Escolar no que se refere a ter diferentes turmas para diferentes graus de comprometimento dos alunos e também a oferecer uma turma de Educação de Jovens e Adultos na qual conteúdos acadêmicos formais são trabalhados. Contudo, em 2002, dos 109 alunos atendidos no setor, apenas 20 tiveram acesso a este programa. O número fica mais reduzido quando o foco de análise são os encaminhamentos realizados: cinco para o mercado de trabalho regular e dois para postos de estágios. Mesmo com um número reduzido de encaminhamentos, é preciso ressaltar que outros setores não fizeram nenhum. O que nos permite inferir que uma das poucas e estreitas portas de saída da instituição se encontra no Setor Profissionalizante. Contudo, podemos constatar que a saída da instituição especial é uma exceção reservada a poucos. Outro aspecto que merece atenção é o fato do setor manter um trabalho que dê continuidade ao do Setor Escolar de modo a permitir a permanência dos alunos na instituição, inclusive daqueles que adquiriram conteúdos acadêmicos formais. O que denota o seu caráter de “especializada em” e, conseqüentemente, de locus social da deficiência mental. Mais um vez, não temos a menção a conteúdos ensinados, a métodos de ensino, a processos avaliativos... Mais uma vez, no silenciamento a explicitação do não educacional. Por outro lado, o caráter não educacional não reside apenas no pedagógico secundarizado em ambos os setores da instituição. Outros dois aspectos denotam tal caráter: o assistencialismo e o trabalho clínico da equipe muldisciplinar da instituição. Para a construção do perfil educacional exigido, uma das recomendações da proposta da APAE Educadora: a escola que buscamos é um redimensionamento do trabalho das equipes multidisciplinares das instituições. A proposta enfatiza que 101 o atendimento proposto pela APAE Educadora é de caráter pedagógico, estando qualquer psicopedagógica intervenção subordinada ao de natureza cumprimento clínica das e metas educativas previstas e operacionalizadas no currículo escolar. Desse modo, a proposta desenvolve suas ações, construindo espaços educacionais favoráveis à escolarização e formação dos alunos, focalizando o convívio social e a qualificação para o trabalho. Assim, as escolas avaliam e planejam condições que favorecem o desenvolvimento, a aprendizagem e a socialização de seus educandos. (FENAPAES, 2001, p. 36, grifos meus) Não há qualquer indicação acerca da contribuição que cada um dos profissionais que tradicionalmente atuam em instituições especiais pode trazer para o trabalho pedagógico. Ficando a cargo também de cada escola definir como será a atuação da equipe técnica, que pode ser composta por pedagogo, médico, psicólogo, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e assistente social, dependendo da realidade e da necessidade de cada APAE. No caso da APAE, a partir do ano de 2002, a equipe técnica deixou de realizar atendimentos individuais e passou a atender os alunos em sala de aula juntamente com os professores. Assim, o trabalho das áreas de psicologia, fonoaudiologia e terapia ocupacional passou a ser desenvolvido tendo, em tese, como objetivo o suporte ao trabalho pedagógico. Contudo, a análise do discurso dos profissionais aponta que tal reestruturação do trabalho foi feita no sentido de alterar o “local” da prática e não seus objetivos. O que encontramos é o entendimento de que as mudanças descaracterizaram o papel dos profissionais e não sustentaram a construção de uma prática distinta. Para os profissionais, desenvolver o trabalho em sala de aula não significou um redimensionamento de seus objetivos e de seus procedimentos, ao contrário, a mudança é concebida como restritiva do papel de cada um. As falas dos profissionais são ilustrativas: Porque eu deveria estar fazendo isso na sala de aula, só que na sala de aula eu ficava tão restrita, que uma vez eu falei para a diretora: eu não sei o que eu vou fazer, eu vou pedir demissão, porque eu não estou 102 fazendo o meu trabalho aqui dentro. Não estava uma coisa clara para mim. E no fim, eu via o quadro motor dos alunos piorando cada vez mais, se agravando... e eu não podia estar retirando ele da sala de aula. (Entrevista n° 02 Fisioterapeuta) Então assim, as mudanças que tiveram dentro da psicologia, eu acho que pecou um pouquinho... porque esse trabalho que eu tinha com o grupo de alunos a cada quinze dias (não era nem uma vez por semana, era uma vez cada 15 dias fora da sala de aula) tinha um resultado bom você entendeu, a gente via resultado, a gente trabalhava coisas que eram... a gente sabe que o trabalho em grupo é legal porque um ajuda o outro, um serve de modelo para o outro. Você consegue trabalhar no grupo algumas coisas que individualmente é difícil trabalhar, mesmo que for em sala de aula é diferente, o professor está junto... então tem coisas que dá para trabalhar no grupo longe de professor, que você dá para colocar algumas coisas... eles às vezes tem vergonha... Então dentro da psicologia eu acho que perdeu um pouco sabe... a gente não poder tirar mais do aluno da sala... até fono teve que ir para atendimento em sala, perdeu aquela coisa de individual. Então prejudicou um pouco nesse sentido. A gente colocou que era uma vez cada quinze dias, mas na época foi colocado que era para passar isso tudo para o professor. Só que o professor acaba não fazendo... (Entrevista n° 01 Psicóloga) Estas falas nos mostram que a transformação do cotidiano institucional não se dá apenas por meio de rearranjos internos. Solicitar a alteração do trabalho da equipe multidisciplinar sem redimensionamento dos objetivos de sua atuação e da do professor, sem a construção conjunta dos objetivos pedagógicos explicitando o apoio que cada um pode dar, é um exemplo apenas de como a APAE tentou se adequar às exigências externas. Normalmente a gente levava a atividade, a proposta para o professor na hora. Não tinha assim... olhar junto com a professora o que seria trabalhado esta semana... não tinha um planejamento. Eu acho que nem na área da fonoaudiologia acaba acontecendo essa troca, eu acho que elas também não preparam o material e vão para a sala (Entrevista n° 02 Fisioterapeuta). Por outro lado, temos o trabalho desenvolvido em sala de aula desencadeando reflexões nos profissionais no que se refere ao seu trabalho na APAE: Porque a gente chega e a professora fala: "Olha, eu queria que ele respondesse essas perguntas para mim mas não sei de que forma, vamos 103 pensar numa adaptação". Se ela estivesse dentro da minha sala eu poderia estar desenvolvendo outra atividade que não fosse essa e jamais poderia sacar algumas coisas que pudessem dar um insight para ela estar indo longe. Poderia estar trabalhando a independência dela nas AVDs mas não investindo no cognitivo, sendo que ela poderia me dar muito mais retorno na parte cognitiva do que nas AVDs. Então às vezes quando você dá algum suporte você vê que a criança vai muito além, que talvez se eu trouxesse ela para dentro da minha sala eu não conseguiria perceber isso, porque estaria trabalhando outras coisas e não estaria ligada tanto na parte da alfabetização... E, no início eu não acreditava que este trabalho em sala de aula seria bom; eu resisti muito no começo. (Entrevista 01, Terapeuta Ocupacional) Aqui temos a indicação da possibilidade do trabalho conjunto, desde que com objetivos estruturados. Outro aspecto é a mudança servindo para refletir sobre o trabalho realizado anteriormente, colocando em xeque o trabalho realizado em outros espaços, com outros objetivos. Contudo, as dúvidas, os receios, os conflitos que surgiram não são trabalhados no sentido de construir juntamente com profissionais e professores esse novo perfil de atuação e, aos poucos, o espaço do atendimento individualizado vai sendo recuperado: É, eu falo que essa semana eu tive uma vitória! Consegui tirar uma turma da sala e trazer para a minha sala para um atendimento individual. São adolescentes e não sabem dar laço no sapato, e um faz basquete fora, a outra participa do grupo GRD e está indo para Fortaleza numa apresentação de ginástica... e aí eu coloco para você, onde está a autoestima desses adolescentes? Eles não sabem nem amarrar o sapato, se está num jogo e se o tênis desamarra, eles tem que sair, sentar no banco para professora pode ir lá e amarrar, então assim foi uma vitória sabe, conversando, explicando realmente a necessidade da turma, que é uma turma que está envolvida em várias atividades, e que isso para autoestima deles não é bom. Então eu perguntei se eu poderia estar fazendo esse trabalho de treinar o amarrar cadarço, colocar o cadarço e daí me liberaram. (Entrevista n° 02 Terapeuta Ocupacional) Vale ressaltar que a imposição, o não planejamento, a falta de objetivos comuns, a falta de reuniões foram amplamente citados pelas profissionais entrevistadas, o que inviabiliza a implementação de qualquer outra prática que de distinga do que já era feito. Nesse sentido, o retorno ao trabalho individual, mesmo 104 considerando o trabalho em sala de aula positivo e enriquecedor de sua atuação, é uma vitória. Se os objetivos, os procedimentos e as condutas permanecem as mesmas, o trabalho em sala de aula perde seu sentido. Mais que isso, desta forma o trabalho destes profissionais na instituição devido à sua descaracterização também perde o seu sentido. A percepção dos profissionais é a de que do modo como o trabalho foi implementado dificilmente severia de apoio efetivo à prática pedagógica, ainda que seja entendido como um dos objetivos da atuação. Outro aspecto a ser destacado é o caráter assistencialista do trabalho institucional que pode ser apreendido no trabalho realizado com as famílias que possuem filhos na instituição. Primeiramente, é necessário ressaltar que a condição de pobreza da maioria dos alunos da instituição é enfatizada pelos profissionais como um grande obstáculo ao trabalho. A precariedade econômica das famílias é traduzida como incompetência e como inadequação para lidar com a condição de deficiência mental do filho. Deste modo, cabe aos profissionais suprir as “deficiências” da família por meio de medidas compensatórias de suas necessidades básicas e por meio da orientação de como lidar com a deficiência do filho. No que se refere às formas de orientação das famílias, os profissionais entendem que o principal objetivo desta prática é oferecer condições destas darem continuidade ao trabalho desenvolvido na instituição especial em suas casas. O que é enfatizado pelos profissionais é que tal continuidade é uma condição para o desenvolvimento do trabalho com os alunos, inclusive o educacional. Isso pode ser constatado nos relatos de vários profissionais, mas o mais ilustrativo é o da Terapeuta Ocupacional: Vamos supor, nós temos várias crianças aqui na faixa etária de 13 a 19 anos que não tomam banho sozinhas. Porque não tiveram uma orientação da família... a família acha melhor fazer essa atividade pela criança para facilitar a vida... então muitas vezes tenho um trabalho 105 também com a família de conscientização sabe... Nada se começa aqui na questão das atividades de vida diária se você não tem... como se diz assim... uma conversa com a família e assim... um trato. Eu faço aqui e eles dão continuidade em casa. Então se a família não está disposta, a gente nem inicia; porque na verdade eu fico aqui segunda, terça e quarta, são 3 dias; então a família tem que dar continuidade a esse trabalho em casa na quinta, na sexta, no sábado e no domingo porque senão o negócio não vai. Então todas as crianças que eu vejo que tem a necessidade desse treino, antes de iniciar a família é chamada e é colocado o problema. Aí a família dá autorização e é iniciado o trabalho. (Entrevista 02, Terapeuta Ocupacional) Assim, temos a orientação das famílias sobre como posicionar o filho em uma cadeira, como utilizar uma adaptação, como estimular. Da mesma forma que, como dar o banho, escovar os dentes, lavar alimentos, dar a comida... E isso é feito tanto na APAE quanto na residência, por meio das visitas domiciliares, que têm dois objetivos: orientar e verificar se o que foi orientado está sendo feito; se os equipamentos e adaptações doados pela instituição estão em bom estado e se estão sendo utilizados adequadamente; se o aluno está tomando a medicação; se a família está passando por algum problema que possa justificar a inadequação do aluno na escola; porque o aluno não está comparecendo à instituição. Para isso: ... eu não costumo marcar horário não, eu vou. Eu acho interessante assim porque você verá a realidade mesmo; porque se você marcar uma visita, então não vai ser a realidade que você vai ver. (Entrevista n° 01 Assistente Social) Toda terça-feira nós técnicos saímos para uma visita domiciliar. Então tudo que a gente quer descobrir no âmbito familiar, a gente deixa tudo para terça-feira. Que na parte da tarde os técnicos depois das 3h da tarde não tem atendimento, é direcionado para isso mesmo, então a gente faz uma reunião e vê qual o aluno está necessitando de uma visita. Que nem nessa terça-feira eu visitei a casa de um aluno que nós estávamos achando que ele não estava tomando a medicação, que a família não estava dando a medicação. Então nós sentamos em equipe técnica e decidimos que terça-feira nós iríamos visitar a casa desse paciente para conferir se a medicação está sendo ou não ingerida. Então, quando a gente quer fechar alguma coisa, alguma questão de medicação, a gente não avisa a família que nós estamos indo, a gente chega assim de supetão para pegar mesmo, para ver se a família está com essa medicação em mãos, se está sendo administrada... então na terça-feira é fechado para essas visitas. (Entrevista n° 01 Terapeuta Ocupacional) 106 No que se refere às necessidades básicas da família, a APAE se coloca como mediadora entre a família e as instâncias sociais responsáveis pelos benefícios e pelos atendimentos, especificamente públicos, à população de baixa renda em nossa sociedade. Assim, cabe à assistente social mediar o contato da família com postos de saúde e da previdência social, com hospitais e ambulatórios, com serviços de ação social, entre outros. É por meio da atuação da instituição especial que as famílias têm acesso a benefícios como bolsa família, passe livre para transporte, além de conseguir medicamentos, consultas médicas e odontológicas, equipamentos para o filho tais como cadeiras de roda, aparelhos ortopédicos etc. É nesse sentido que a atuação com a família também é entendida como uma das especificidades da Educação Especial que só pode ser ofertada na instituição especial. Estas esferas do trabalho institucional denotam não só o caráter assistencial da instituição mas, sobretudo, seu caráter totalitário, já que parte das interações tecidas entre as famílias e a comunidade, especificamente nos aspectos relacionados à deficiência mental, têm a instituição como única referência. A referência institucional não diz respeito apenas aos aspectos da assistência social. Conforme indicado pela psicóloga da instituição, A gente faz o trabalho também com as mães, mas não para falar de filhos, é um grupo de mães a cada 15 dias onde são feitas propostas de lazer, uma palestra, uma coisa bem fora... esquecer um pouquinho que ela tem filhos. Porque assim ela vivencia isso 24h por dia, então nossa idéia é dar um tempo para ela. Uma tarde, a cada 15 dias, elas têm o momento delas; então a gente faz passeio marca... elas querem conhecer tal lugar... vamos conhecer o aeroporto... Então parte delas o que elas querem. Querem um profissional para falar... um cardiologista, um ginecologista... então é o momento para elas. (Entrevista 01, Psicóloga) Aqui podemos perceber outras esferas de atendimento à família. Vale ressaltar que o foco da análise não o trabalho desenvolvido pela psicóloga, visto que, conforme Amaral (1995) nos ensinou, as relações de uma família que possui um membro com deficiência é um reinado de ambivalências, perdas, dificuldades, além 107 de implicar em uma reestruturação familiar, especialmente da figura materna. Isso por si só justifica o trabalho psicológico com esta mãe. Contudo, é necessário analisar que este tipo de acompanhamento reafirma, também, o caráter totalitário da instituição, já que contraditoriamente, a mãe precisa do espaço institucional para obter lazer, informações básicas, descanso etc. Vale ressaltar que os modos de lidar com as famílias estão lastreados pelo rótulo da deficiência mental. Por isso, a casa, o espaço privado da família, é identificado como um apêndice da APAE. E, conforme vimos anteriormente, isso significa que o mundo familiar também está submetido à autoridade institucional e ao seu poder, justificando, inclusive, o controle por meio de “visita surpresa” (Goffman, 2003 e D’Antino 1996). Diante do exposto, cabe sintetizar que a aparente transformação sustentada pela construção de uma escola na instituição especial, esconde a conservação do espaço institucional reiterando seu caráter totalitário. E isso é sustentado por três mecanismos: 1) Apropriação do discurso oficial. A educação especial é apresentada como uma modalidade de ensino. Contudo, o sentido de modalidade de ensino que perpassa todos os níveis e demais modalidades da educação básica, na instituição especial é invertido em escola de educação especial que oferece todos os níveis e modalidades de ensino necessários à pessoa com deficiência mental. Soma-se a isso a apropriação do discurso de pedagogização da instituição especial mesmo quando o que se evidencia é seu caráter reabilitador. A instituição especial é apresentada como escola que contribuirá para atingir a meta de educação para todos mesmo sem oferecer a escolarização básica aos seus alunos. A apropriação também se dá no sentido de reproduzi-lo por meio de járgões que se incorporaram no cotidiano educacional brasileiro: educação para todos, 108 inclusão social, preparação para o mundo do trabalho, diversidade... Isso especialmente presente nas diretrizes da APAE Educadora. O sentido atribuido à educação especial sustenta e é sustentado por um outro mecanismo. 2) Reinterpretação das normas. A flexibilização curricular é exclusivamente apoiada em dois eixos: extensão do tempo de ensino de um mesmo conteúdo e, principalmente, redução/eliminação dos conteúdos e dos objetivos que compõem o currículo básico. Com isso, cria-se o espaço para que os treinos de atividade de vida diária sejam a adaptação do conteúdo de ciências, o treinamento básico de adolescentes por meio de atividades ocupacionais seja entendido como flexibilização da preparação para o trabalho. A certificação da terminalidade específica é incorporada no processo de avaliação dos alunos para definir quais níveis ou setores da própria instituição especial freqüentará. Se resgatarmos que os poucos encaminhamentos feitos pela escola são para pré-escola e para funções que não exigem certificação de escolaridade no mercado de trabalho, percebemos que esta certificação não é apreendida conforme seu sentido na letra da lei. A apropriação do discurso oficial e reinterpretação de suas norma culminam no terceiro mecanismo utilizado pela instituição especial: 3) Reorganização estrutural formal e aparente da instituição especial. A reestruturação da instituição especial acontece de modo que sua estrutura efetiva não seja colocada em xeque. A reorganização dos níveis de ensino e das turmas se dá por meio da renomeação: ao invés de treinamento básico, Escolar Um. Ambos atendem aos mesmos alunos com os mesmos objetivos, programas e métodos. Mantém-se o mesmo critério de avaliação e de agrupamento dos alunos buscando a homogeneidade do grupo, a mesma concepção de que isso favorece o ensino e a aprendizagem. 109 A organização da escola em “ciclos” que se dividem tanto em níveis verticais quanto em horizontais, permitindo que o aluno mude de grupo (turmas) sem mudar de nível ou programa. Por exemplo, o Programa Pedagógico Específico possui sete turmas: uma com quinze alunos de 04 a 06 anos de idade e seis com trinta e três alunos de 07 a 16 anos. Assim, é possível que um aluno entre neste programa com 04 anos e nele permaneça até os 16 mudando de turma de acordo com sua faixa etária. Do mesmo modo, é possível analisar a alteração do trabalho da equipe técnica como uma reorganização aparente, já que a mudança não alavancou a pedagogização da instituição especial e nem um redimensionamento do atendimento clínico. Isso porque o caráter pedagógico da instituição especial é secundarizado não devido à presença de atendimentos clínicos. É necessário ressaltar que o espaço ocupado pelos atendimentos clínicos engendrou e foi engendrado na ausência do pedagógico e no caráter de reabilitação em detrimento do educacional, ambos construídos historicamente. Mais, o caráter reabilitador não reside apenas no atendimento clínico, visto que o pedagógico também se estrutura nesse sentido. Basta resgatar o trabalho da pedagoga da instituição especial na estimulação precoce. Além disso, a não pedagogização da instituição especial se sustenta na crença arraigada de que a pessoa com deficiência mental não tem condições de se apropriar de conteúdos educacionais formais. O pedagógico não tem espaço na educação de uma população que, acredita-se, não tem condições de aprendizado. Daí a centralidade da equipe técnica. A retirada do atendimento clínico e a alocação de profissionais que não o professor em sala de aula não garante a priorização do pedagógico, mas subsidia o reconhecimento da instituição especial como escola do sistema regular de ensino. Mesmo não oferecendo aquilo que a escola comum não oferece. Ou seja, educação 110 da pessoa com deficiência mental é reduzida à educação especial. A instituição não oferece algo a mais que a escola comum poderia oferecer (educação comum + apoios, adaptações), ela oferece menos. Sua pseudo pedagogização não é suficiente para colocar o pedagógico como eixo central do trabalho educacional, mas o é para seu reconhecimento como instância responsável pela educação da pessoa com deficiência mental. Lançando mão destes mecanismos, a instituição especial é reconhecida como escola do sistema regular de ensino, o que a repõe como locus social da deficiência mental em nossa sociedade, agora oficialmente reconhecido como educacional. Ou seja, tal reconhecimento reitera seu caráter totalitário. 111 Considerações Finais Destacamos que na concretude da instituição especial as políticas de educação especial favorecem sua conservação como locus social da pessoa com deficiência mental e seu caráter totalitário. Isso é reiterado pelo reconhecimento da instituição como escola do sistema regular de ensino. Além disso, mereceram destaque os mecanismos utilizados pela instituição especial para, com aparência de mudança instituída, conservar o que estava posto. Todo esse movimento reitera para manutenção de três esferas: 1 – A manutenção da pessoa com deficiência mental no âmbito da filantropia Manter a pessoa com deficiência mental em tal âmbito significa, acima de tudo, mantê-lo no condição de não cidadania. Uma análise da questão da filantropia sustenta a afirmação da não cidadania: nas condições filantrópicas transforma-se direito em uma concessão. Nas considerações tecidas por Ozouf (1989, p. 727) acerca do princípio tríplice liberdade, igualdade, fraternidade: “as duas primeiras são direitos e a terceira é uma obrigação moral”. Assim, é possível o entendimento da filantropia, sustentada nos princípios iluministas, como uma concessão e não como um direito. É nesse sentido que a manutenção da pessoa com deficiência mental no âmbito da filantropia significa mantê-la na condição de não cidadania. Além disso, Ozouf (1989, p. 727) acrescenta: Mas é impressionante ver que as disposições revolucionárias que seguiram o sentido do direito social, as oficinas de assistência, o grande livro de beneficência pública, o projeto robespierrista de imposto para os cidadãos desprovidos de recursos, foram tomadas não em nome da fraternidade, mas em nome da igualdade. O artigo 21 da Declaração adjunta à Constituição montanhesa, que definiu a assistência pública como uma dívida sagrada, encara tal assistência no prolongamento e não na crítica dos direitos individuais. 112 Soma-se a isso que o âmbito da filantropia, neste caso, está circunscrito ao espaço da instituição especial e isso favorece de modo preponderante o descompromisso e a omissão do Estado, que cada vez mais requesita a “parceria” deste tipo de instituição, haja visto o caráter assistencialista e caritativo de suas ações. A omissão do Estado em favor do trabalho institucional revela também a indisponibilidade de investimento efetivo em um grupo que, acredita-se, não tem condição de dar o retorno desejado. Para as pessoas com deficiência mental, então, a filantropia, a caridade, o assistencialismo. A crença na total dependência do deficiente também sustenta esta análise. Se a pessoa com deficiência mental não tem condições de se valer nas esferas mais elementares de sua vida, só poderá conquistar e usufruir de seus direitos por meio do outro ou da instituição. Outro aspecto da manutenção da pessoa com deficiência mental no âmbito da filantropia que denota o caráter conservador das (pseudo) transformações é o entendimento de que o direito à educação está garantido ao deficiente no reconhecimento da instituição especial como uma escola regular. Mas, como a conservação está posta, tal direito não está garantido, haja visto o caráter totalitário, filantrópico e assistencialista da instituição especial. Na base do problema, além da questão economica e política, temos uma questão conceitual a ser elaborada com outros sentidos 2 – A indistinção entre reabilitação e educação e o não acesso a processos efetivos de escolarização Como foi analisado anteriormente tanto as propostas curriculares quanto o discurso dos profissionais indicam o objetivo de construir um perfil educacional 113 formal na instituição especial, mas a não implantação de uma prática efetivamente escolar é o que se evidencia. Mantendo a coerência com as concepções de deficiência mental, de educação especial e de instituição especial, a reabilitação da pessoa com deficiência mental é considerada a condição para sua educação, haja visto o entendimento de que a redução dos danos e dos déficits da deficiência é pré-requisito para aprendizagem. O que corrobora a crença na impossibilidade de educar esta pessoa, já que sua necessidade especial (a deficiência mental) é, acima de tudo, motora, fonoarticulatória, emocional, psicopedagógica, assistencial... Isso faz com que o trabalho educacional seja concebido como a reabilitação, o que reitera a instituição especial como o único espaço onde esta pessoa pode ser atendida, já que na escola este atendimento global, especializado não existe. Mais uma vez a omissão do Estado se evidencia, pois que o fato de não estruturar um atendimento de saúde digno reforça a crença de qua na instituição especial estão os profissionais que podem desenvolver um trabalho especializado. E aqui abro um parêntese para relatar uma conversa que tive com um dos profissionais que participou em um encontro informal, após o término da coleta de dados “não adianta... quando nasce um Síndrome de Down o médico encaminha direto é para a APAE, não é para o posto de saúde. Entra lá bebê e não sai mais; só sai se a gente fizer a inclusão”. Outro aspecto que sustenta a análise de uma das formas de velar a conservação é a indistinção das esferas de reabilitação e de educação é o reconhecimento formal da instituição especial, com a estrutura analisada, como uma escola da rede regular de ensino que lhe confere uma pseudo identidade. Aqui cabe levantar alguns apontamentos que situam esta pseudo identidade: 114 Uma escola de educação infantil não seria reconhecida como tal oferecendo quarenta e cinco minutos de atendimento psicopedagógico, cujo caráter é eminentemente clínico duas vezes por semana aos seus alunos. Uma escola do ensino fundamental não seria reconhecida como tal se estivesso estruturada com apenas uma turma de alfabetização que atende entre dez e quinze dos seus mais de cem alunos em idade escolar, que são distribuídos entre outras dezenove turmas nas quais o pedagógico formal é secundarizado. Essa mesma escola não conseguiria reconhecimento caso oferecesse a seus alunos conteúdos básicos que, extraordinariamente, chegariam ao nível da terceira série do ensino fundamental. Sendo assim, o reconhecimento da instituição especial como escola da rede regular de ensino lhe confere uma pseudo identidade de escola, já que não caracteriza suas funções no padrão instituido para as escolas da educação básica. E é lá que estão os especialistas, os currículos flexibilizados, os métodos de ensino especializados e, acima de tudo, os deficiente mentais. Com o reconhecimento da instituição especial, o que está garantido à pessoa com deficiência mental é o não acesso a processos efetivos de escolarização, nem na intituição, nem fora dela. Isso é justificado pela própria deficiência mental do aluno, pois que sua inserção em processos de escolarização está condicionada à sua normalização. Assim, ele terá acesso à educação à medida que for se tornando menos deficiente. 3 – Manutenção da condição segregada da pessoa com deficiência mental na instituição especial “inclusiva”. O reconhecimento da instituição especial como escola regular é considerado, inclusive pela FENAPAES, como uma contribuição das APAEs para que o Estado cumpra com o seu compromisso de oferecer Educação para Todos. Nesta “parceria”, a instituição especial engrossa as estatísticas de todos na escola, já que os dados 115 institucionais, antes computados como “outros atendimentos” hoje encontram-se diluídos nos diferentes níveis e modalidades de ensino, sem a especificação do atendimento especializado. Além disso, tal reconhecimento reitera a segregação na medida em que “oferece” todos os níveis e modalidades de ensino. Assim sendo, não faz sentido encaminhar o aluno com deficiência mental para a escola comum se na instituição ele tem acesso a todos atendimentos mais o educacional. Também não faz sentido que a escola comum precise se estruturar para receber o aluno com deficiência mental se existe um local reconhecidamente estruturado para atendê-lo. Nesse ponto é preciso enfatizar que a manutenção da segregação está posta inclusive para aqueles alunos que conseguirem avançar até o hipotético conteúdo básico do ensino fundamental. Nesse caso, sua “produtividade intelectual” sustenta o reconhecimento e o conseqüente financiamento da instituição escola. Ou seja, a escola precisa dos alunos produtivos para se manter como escola. Mesmo sendo reconhecida pelo trabalho desenvolvido com a minoria de seus alunos. Isso é a porta de entrada para alunos com necessidades educacionais especiais encaminhados pela escola comum em função de problemas de aprendizagem, comportamento etc. Desse modo, a instituição especial ao ser reconhecida como escola da rede regular de ensino colabora com a estatística da Educação para Todos, que mantém o aluno com deficiência mental longe da escola comum, pode ser reconhecida como “inclusiva”. Em tal reconhecimento temos a consolidação de seu caráter totalitário, visto que a pseudo educação escolar garante sua condição de locus social da deficiência mental. Por outro lado, aqui reside a contradição: para se manter como totalitária precisa ser reconhecida como escola semelhante à comum, mas para manter a pessoa com deficiência mental institucionalizada não pode se assemelhar ao ponto de possibilitar que a escola comum seja igual a ela, haja visto que se isso 116 ocorrer não teríamos a necessidade da instituição especial para educar esta população. Em suma tem que se estruturar como escola sem deixar de ser a Instituição Especial. Embora se perceba uma tendência conservadora nas mudanças implementadas, foi possível apreender a existência de espaços favorecedores do acirramento das contradições necessárias às transformações. Há um desconforto dos profissionais com o novo papel que lhes foi imposto institucionalmente, mas que é acompanhado pelo sentido da necessidade de mudança e da expectativa de sua ocorrência. Este sentimento é captado tanto no desconforto com que falam dos seus papéis frente às novas demandas quanto na perspectiva crítica que imprimem às suas reflexões sobre suas práticas, sejam as antigas ou as novas. Cabe resgatar que os profissionais da equipe técnica, submersos nesse momento de transição institucional, se vêem sem alternativas que não tentar implementar uma nova prática que lhes foi imposta sem que fossem consultados, que não teve suporte institucional em seus desdobramentos e que foi sendo gradativamente suspensa à medida que o processo foi gerando contradições e conflitos. Contudo, este processo imprime nos profissionais um caráter de incompetência, atribuindo a eles o fracasso da nova prática e fazendo com que o estigma da deficiência com sua caracterização de ineficiência e improdutividade se estenda aos profissionais da instituição especial. Por outro lado, o desconforto, a crítica e perspectiva de mudança propiciam o surgimento de conflitos que se trabalhados no sentido inverso poderão favorecer a transformação desejada. A transformação será possível na medida em que os conflitos e as contradições desencadeados forem direcionados para uma ruptura dos condicionantes históricos de ineducabilidade da pessoa com deficiência mental e do 117 caráter totalitário da instituição especial. Para isso, é necessário que as transformações incidam sobre outros espaços sociais que não os institucionais. Ou seja, é preciso uma política e um Estado que não favoreçam exclusivamente as instituições especiais em detrimento da consolidação da educação desta população em outras instâncias educacionais. Nesse sentido, considero que não se trata de um processo de inclusão, mas sim de recuperar a busca de uma escola verdadeiramente democrática. Isto porque, conforme Bueno (2001, p. 27), não se pode deixar de considerar Que a perspectiva de inclusão exige, por um lado, modificações profundas nos sistemas de ensino; que estas modificações [...] demandam ousadia, por um lado e prudência por outro; - que uma política efetiva de educação inclusiva deve ser gradativa, contínua, sistemática e planejada, na perspectiva de oferecer às crianças deficientes educação de qualidade; e que a gradatividade e a prudência não podem servir para o adiamento “ad eternum” para a inclusão [...] mas [...] devem servir de base para a superação de toda e qualquer dificuldade que se interponha à construção de uma escola única e democrática. Ainda que a inserção das pessoas com deficiência mental na escola comum não signifique a ruptura com sua condição de segregação social; ainda que os desafios de sua educação não se esgote no âmbito escolar; ainda assim a educação se configura como espaço fundamental para a constituição da vida e para o exercício dos direitos dessas pessoas. Outro elemento a ser destacado é a necessidade da reflexão acerca do fenômeno da deficiência mental e de todos os conceitos e preconceitos construídos socialmente no sentido de evidenciar suas limitações e imperfeições como condição para construir uma nova rede de significações em torno da pessoa com deficiência mental. Conforme Amaral (1998, p.26) A questão conceitual pode encaminhar novas formas de interação humana, uma vez que se ponham a descoberto os aspectos intimamente vinculados à desvantagem, especialmente em sua vertente social. 118 Esses são os pontos que elejo a partir desta pesquisa tanto para evidenciar as estratégias de conservação da instituição especial como locus social da deficiência mental em nossa sociedade, quanto por considerar que são aqueles necessários a serem aprofundados no sentido de captar os possíveis impactos transformadores acerca do desenvolvimento escolar da pessoa com desenvolvimento mental. Chamo a atenção para algo que me move: [...] que uma sociedade abstrata também não existe, pois cada um de nós a constitui e, portanto, cada um de nós pode subverter alguns dos postulados vigentes, revolucionar a mentalidade hegemônica. Essa seria, para além da própria revolução conceitual, a revolução micropolítica, detonada e exercida no cotidiano, nas interações do dia-a-dia – e talvez especialmente no cotidiano escolar (AMARAL, 1998, p. 26). Nesse sentido considero que o desenvolvimento desta pesquisa contribuiu para contornar uma inquietação. Mas, como toda pesquisa “tem como fim último novas indignações, novas perguntas, novas espirais”, conforme Lígia me ensinou, gostaria de apresentar as novas espirais, que surgem submersas em novas (serão mesmo?) inquietações e indignações. Entre elas, aquelas que apontam para a necessidade de analisar que movimentos foram desencadeados nas escolas comuns pelas políticas educacionais brasileiras que prevêem a educação da pessoa com deficiência mental na rede regular de ensino, buscando apreender se eles criaram um espaço propício ao surgimento de contradições e conflitos que possam vir a sustentar a ruptura da crença de que a pessoa com deficiência mental só pode ser educada em espaços especializados em sua (não) educação passaram a assumir maior destaque em minhas reflexões. Mas isso não significa que as instituições especiais não façam mais parte delas, ao contrário, o entendimento é de que nos movimentos e nas contradições externas a elas reside a possibilidade de sua transformação. Soma-se a isso o fato desta pesquisa ter analisado um momento de transição cujos desdobramentos ainda se processam. Há que se questionar que 119 desdobramentos esta transição trouxe não só para a instituição alvo do estudo, mas também para outras que sofreram o impacto das mesmas exigências legais e da FENAPAES. Talvez, estejamos, mais uma vez, diante da “espiral infinita que une as coisas da vida, alternando e imbricando início e fim”. 120 Referências Bibliográficas Aquino, J. G. Indisciplina: o contraponto das escolas democráticas. São Paulo: Moderna 95 p. 2003. Amaral, L. A. Pensar a diferença/deficiência. Brasília: Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 1994. ___________. Conhecendo a deficiência: em companhia de Hércules. São Paulo: Robe Editorial, 1995. 205 p. ___________. Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação. In: Aquino, J. G. (org.) Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, p. 11-32, 1998. ___________. Alguns apontamentos para reflexão/discussão sobre: diferença/ deficiência/necessidades educacionais especiais. Temas em Desenvolvimento, v.8, n.47, p.17-23, 1999. ___________. Prefácio. In: Padilha, A. M. L. . Práticas pedagógicas na educação especial: a capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do deficiente mental. Campinas: Autores Associados e FAPESP, 194 p. 2001. ___________. Diferenças, estigma e preconceito: o desafio da inclusão. In: Oliveira, M. K.; Rego, T. C.; Souza, D. T. R. (orgs.) Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna, p. 233-248, 2002. Arelaro, L. R. G. Direitos sociais e política educacional: alguns ainda são mais iguais que outros. In: Silva, S. e Vizim, M. (orgs.) Políticas públicas: educação, tecnologias e pessoas com deficiências. Campinas: Mercado das Letras/ALB, p. 13-36, 2003. Brasil. MEC/CENESP. Plano Nacional de Educação Especial 1977/1979. Brasília, 1977. Brasil. Portaria Interministerial, MEC/MPAS, n° 477, de 11 de agosto de 1977 que estabelece diretrizes básicas para a ação integrada no atendimento aos excepcionais. Brasilia, 1977. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Senado Federal, 1948. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Senado Federal, 1988. Brasil. Conselho Nacional de educação. Câmara de Educação Básica. Resolução, de 11 de setembro de 2001. Diretrizes nacionais para educação especial na educação básica. Brasília, 2001c. 121 Brasil. Lei n. 10.172/01. Aprova o Plano Nacional de Educação e dá outras providências. Brasília, 2001b. Brasil. MEC. INEP. LDBEN 9394/96 que estabelece as Diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1996. Brasil. MEC. SEESP. Política nacional de educação especial. Brasília, 1994. Brasil. MEC/SEF/SEESP. Parâmetros curriculares nacionais. Adaptações curriculares. Estratégias para a educação de alunos com necessidades educacionais especiais. Brasília, 1998. Brasil. MEC/SEESP. Política Nacional de Educação Especial. Educação Especial no Brasil. Série Institucional - Livro 2. Brasília: 1994. Brasil. MEC/SEESP. Educação Especial no Brasil: Perfil do Financiamento e das Despesas. Série Institucional - Livro 3. Brasília, 1996. Brasil. Presidência da República. MARE. Câmara da reforma do Estado. Plano diretor da reformado aparelho do Estado. Brasília, 1995. Brasil. Presidência da República. Decreto Presidencial n° 3298/99, que institui a Política nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência. Brasília, 1999. Brasil. Presidência da República. Decreto n° 3.956 de 08 de outrubro de 2001, que aprova o texto da Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência. 2001a. Borón, A. Estadolatria e teorias “estadocentricas” (notas sobre algumas análises do Estado do capitalismo contemporâneo). In: Borón, A. Estado, capitalismo e democracia na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 272p. 1994. Bottomore, T. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997. Bueno, C. C. O.; Kassar, M. C. M. Público e privado: a educação especial na dança das responsabilidades. In: Adrião, T. e Peroni, V. (orgs.) O público e o privado na Educação: interfaces entre o Estado e sociedade. São Paulo: Xamã, p. 119138, 2005. Bueno, J. G. Educação especial brasileira: a integração-segregação do aluno diferente. São Paulo: EDUC/PUC-SP, 150 p. 1993. ___________. A produção social da identidade do anormal. In: Freitas, M. C. (org.) História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, p. 159-182, 1997a. 122 ___________. Práticas institucionais e a exclusão social da pessoa deficiente. In: Educação Especial em Debate. Conselho Regional de Psicologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, p. 37-54, 1997b. ___________. A inclusão de alunos deficientes nas classes comuns do ensino regular. Temas em Desenvolvimento. n° 8, v. 9, p. 21-27, 2001. ___________. Inclusão escolar: uma crítica conceitual e política. In: Anais do I Seminário de Pesquisa em Educação Especial, Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, p. 1-13, 2005. Cambaúva, L. Análise das bases teórico-metodológicas da educação especial. Dissertação (Mestrado em Educação), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 1988. Carvalho, M. M. C. Quando a história da educação é a história da disciplina e da higienização das pessoas. In: Freitas, M. C. (org.) História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, p. 269-288, 1997. Collares, C. A. L.; Moysés, M. A. A. O cotidiano escolar patologizado: ensino e patologização. São Paulo: Cortez, 264 p. 1996. CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS. Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília, CORDE, 1994. Cunha, M. V. A escola contra a família. In: Lopes, E. M. T.; Faria Filho, L. M.; Veiga, C. G. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, p. 447-468. 2000. D'Antino, M. E. F. Instituições educacionais especializadas no atendimento a pessoas com deficiência mental: estudo das relações entre pais-dirigentes/ clientes e profissionais agentes. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996. ___________. Deficiência e a mensagem reveladora da instituição especializada: dimensão imagética e textual. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. Dal Pogetto, M. T. Como professores de classe especial para deficientes mentais da rede estadual de ensino percebem sua atuação profissional. Dissertação (Mestrado em Educação Especial) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 1987. De Carlo, M. M. R. do P. Por detrás dos muros de uma instituição asilar - um estudo sobre o desenvolvimento humano comprometido pela deficiência. Tese 123 (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de Campinas, Campinas, 1997. Denari, F. E. Análise dos critérios e procedimentos para composição de clientela de classes especiais para deficientes mentais educáveis. Dissertação (Mestrado em Educação Especial) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 1984. FENAPAES. Ofício 2010/97. Brasília: FENAPAES, 1997. _________. Projeto Águia. Brasília: FENAPAES, 1997. _________. APAE educadora - a escola que buscamos: proposta orientadora das ações educacionais. Brasília: FENAPAES, 2001. Ferreira, M. C. C. A prática educativa e a concepção de desenvolvimento psicológico de alunos com deficiência mental. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 160 p. 1994. Ferreira, J. R. Notas sobre a evolução dos serviços de educação especial no Brasil. Revista Brasileira de Educação Especial, n°1, v. 1, p. 101-106, 1992. ___________. A exclusão da diferença. 3 ed. Piracicaba: Editora UNIMEP, 94 p. 1995. ___________. A nova LDB e as necessidades educativas especiais. Cadernos Cedes nº 46, v. 1, p. 7-16, 1998. Foguel, R. E. Caracterização do excepcional. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, n° 127, v.58, p. 27-43, 1972. Garcia, R. M. C. Políticas públicas de inclusão: uma análise no campo da educação especial brasileira. Tese (Doutorado em Educação) Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004. Giordano, B. W. (D)eficiência: uma análise das representações do trabalho e do ser trabalhador com deficiência mental. Dissertação (Mestrado em Educação), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1994. Glat, R. Somos iguais a vocês: depoimentos de mulheres com deficiência mental. Rio de Janeiro: Agir, 224 p. 1989. Goffman, I. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 158 p. 1988. _________. Manicômios, prisões e conventos. 7ª ed. São Paulo: Perspectiva, 320 p. 2003. Goyos, A C. N. Profissionalização de deficientes mentais: estudo de verbalizações de professores acerca desta questão. São Carlos: Edufscar, 1995. Januzzi, G. S. M. A luta pela educação do deficiente mental no Brasil. 2ª ed. Campinas: Autores Associados, 123 p. 1992a. 124 ___________. brasileira Oficina abrigada e a “integração” do “deficiente mental”. Revista de educação especial. Piracicaba: Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial, v. 1, n.1, p. 51-64, 1992b. ___________. Escola e trabalho do considerado “deficiente”. In: Anais do II Seminário sobre educação especial: profissionalização e deficiência. Faculdade de Educação, Universidade de Campinas, Campinas, p. 19-28, 1994. ___________. As políticas e os espaços para a criança excepcional. In: Freitas, M. C. (org.) História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, p. 183-224, 1997. ___________. A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XX. 243 p. Kassar, M. C. M. Deficiência múltipla e educação no Brasil: discurso e silêncio na história de sujeitos. Campinas: Autores Associados, 113 p. 1999. Manzini, E. Profissionalização de indivíduos portadores de deficiência mental: visão do agente institucional e visão do egresso. Dissertação (Mestrado em Educação Especial), Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 1989. Martins, J. S. Exclusão Social e a nova desigualdade social. São Paulo: Paulus, 140 p. 1997. _________. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classe social. São Paulo: Vozes, 230 p. 2002. Mazzotta, M. J. S. Educação Especial no Brasil: história e políticas públicas. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 208 p. 2001. Meletti, S.M.F. O significado do processo de profissionalização para o indivíduo com deficiência mental. Dissertação (Mestrado em Educação Especial), Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. 1997. __________. O relato oral como recurso metodológico em educação especial. In Marquezine, M. C.; Almeida, M. A. e Omote, S. Colóquios de pesquisa em educação especial. Londrina: EDUEL, 2003. Mendes, E. G. Deficiência mental: a construção científica de um conceito e a realidade educacional. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1994. Nunes, L. R. P. et al. Pesquisa em educação especial na pós-graduação. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1998. Orlandi, E. P. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. 3ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995. p. 189. 125 _________. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 5ª ed. São Paulo: Pontes, 100 p. 2003. Ozouf, M. Fraternidade. In: Furet, F. e Ozouf, M. Dicionário crítico da revolução francesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 718-728. 1989. Patto, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. 2ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 454 p. 2001. Pereira, O. et al. Educação Especial. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980. Pilotti, F.; Rizzini, I. A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Niño, Editora Universitária Santa Úrsula, 384 p. 1995. Queiroz A. M.; Perez-Ramos, J. Educação Especial: modelos de serviços para o educando com retardo mental. Brasília, Projeto Miniplan-APAE 1/73, Cruzeiro, 259 p. 1976. Sanfelice, J. L. A problemática do público e do privado na história da educação no Brasil. In: Lombardi, J. C., Jacomeli, M. R. M., Silva, T. M. T. O público e o privado na história da educação brasileira: concepções e práticas educativas. Campinas: Autores Associados, p. 177-185, 2005. Saviani, D. Escola e democracia. 35ª ed. Campinas: Autores Associados, 120 p. 1997. Sawaia, B. Exclusão ou inclusão perversa? In: Sawaia, B. (org). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, p.7-15, 2001. Silva, A. G. O movimento apaeano no Brasil: um estudo documental (1954-1994). Dissertação (Mestrado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1995. Silva, S. A política educacional brasileira e as pessoas com deficiências. Como difundir o discurso de uma política pública de direitos e praticar a privatização. In: Silva, S. e Vizim, M. (orgs.) Políticas públicas: educação, tecnologias e pessoas com deficiências. Campinas: Mercado das Letras/ALB, p. 73-100. 2003. Sposati, A. O. et al. Assistência na trajetória das políticas sociais brasileiras: uma questão em análise. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 112 p. 1995. UNESCO. Declaração mundial de educação para todos. Plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem.Tailândia, 1990. Vygotsky, L. S. Fundamentos de defectologia. Obras Completas. v. 5. Havana: Pueblo y Educación, 1989. 126 Livros Grátis ( http://www.livrosgratis.com.br ) Milhares de Livros para Download: Baixar livros de Administração Baixar livros de Agronomia Baixar livros de Arquitetura Baixar livros de Artes Baixar livros de Astronomia Baixar livros de Biologia Geral Baixar livros de Ciência da Computação Baixar livros de Ciência da Informação Baixar livros de Ciência Política Baixar livros de Ciências da Saúde Baixar livros de Comunicação Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE Baixar livros de Defesa civil Baixar livros de Direito Baixar livros de Direitos humanos Baixar livros de Economia Baixar livros de Economia Doméstica Baixar livros de Educação Baixar livros de Educação - Trânsito Baixar livros de Educação Física Baixar livros de Engenharia Aeroespacial Baixar livros de Farmácia Baixar livros de Filosofia Baixar livros de Física Baixar livros de Geociências Baixar livros de Geografia Baixar livros de História Baixar livros de Línguas Baixar livros de Literatura Baixar livros de Literatura de Cordel Baixar livros de Literatura Infantil Baixar livros de Matemática Baixar livros de Medicina Baixar livros de Medicina Veterinária Baixar livros de Meio Ambiente Baixar livros de Meteorologia Baixar Monografias e TCC Baixar livros Multidisciplinar Baixar livros de Música Baixar livros de Psicologia Baixar livros de Química Baixar livros de Saúde Coletiva Baixar livros de Serviço Social Baixar livros de Sociologia Baixar livros de Teologia Baixar livros de Trabalho Baixar livros de Turismo