XIX ENCONTRO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA, São Paulo, 2009, pp. 1-17 QUAL FOI A TRAVESSIA?: UM PERCURSO HISTÓRICO DA REVISTA DO MIGRANTE Lúcia Cavalieri Doutoranda do Departamento de Geografia da USP [email protected] Tânia Biazioli Mestranda da Faculdade de Psicologia da USP tâ[email protected] Resumo: Este texto se propõe a apresentar uma leitura histórica dos 20 anos da Travessia – Revista do Migrante. Ao longo de seu percurso, a revista, cujo tema principal é migração, passou por diferentes momentos. Um dos objetivos do texto é apresentar, além do percurso histórico da Revista, a atuação da Igreja junto aos movimentos migratórios que enlaçam campo-cidade. Palavras-Chave: CEM, SPM, movimentos migratórios, Revista Travessia Abstract: This work aims to present a historical view on the 20 years of Travessia – Revista do Migrante (Journal). Throughout this time, the journal, which main theme is migration, went through different moments. One of the goals of this work is to present, along with the historical memory of the journal, the Church’s action related to the migratory movements intertwining town and countryside. keywords: CEM, SPM, migratory movements, Revista Travessia 2 XIX ENGA, São Paulo, 2009 CAVALIERI, L. e BIAZIOLI, T. Este texto, com alguma modificação, foi apresentado para o curso “Migração e Dinâmicas Territoriais nos Processos de Modernização” ministrado pelo Professor Dieter Heidemann no primeiro semestre de 2008 na Faculdade de Geografia – USP. O objetivo da disciplina consistia em discutir e apresentar as várias leituras e discussões sobre a questão migratória. Para tanto, lemos e discutimos em seminários diversos autores e materiais diferentes para nos acercamos da complexidade da questão e das diferentes abordagens epistemológicas sobre o tema. A Igreja, notoriamente, realiza um trabalho a partir da pastoral do migrante Serviço Pastoral do Migrante (SPM) e do Centro de Estudos Migratórios (CEM) atuando nos lugares de destino e de origem dos migrantes. No Brasil o envolvimento da Igreja com a migração data da chegada dos imigrantes italianos no final do século XIX com os irmãos scalabrinianos que viajaram para todos os países os quais receberam os imigrantes. A Travessia – revista do migrante editada pelo CEM, ligado atualmente à Pastoral da Mobilidade Humana, foi nosso objeto de estudo por ser uma publicação nacional de referência sobre a migração e por revelar a ação de uma parcela de Igreja católica. Nosso desafio naquele momento era analisar as transformações pelas quais a Revista passou ao longo de seus 20 anos. No início da pesquisa, nossa metodologia de trabalho consistiu na colheita de temas dos números da revista e a leitura de alguns editoriais. Pretendíamos desprender desta tarefa um panorama histórico da revista. Logo vimos, contudo, que o conhecimento das temáticas e dos editoriais não lançavam luz para uma ampliação desta história. Muitos editoriais eram apresentações dos artigos da revista. Poucos foram àqueles dedicados a discorrer de maneira teórica ou crítica sobre o tema elegido para a revista. Nossa pesquisa então tomou outros rumos após acompanharmos a formulação de algumas hipóteses para uma leitura histórica da revista, com o Prof. Dieter Heidemann. Houve, então, o re-direcionamento de nosso olhar para a diferença entre as primeiras revistas e as publicações dos últimos 10 anos levando em conta três indicadores: (1) O auge da Teologia da Libertação e seu declínio e a atuação de uma parcela da Igreja; (2) A mudança do Centro de Estudos Migratórios (CEM) do Ipiranga para o Glicério. A hipótese era que a separação física do Serviço Pastoral do 2 Qual foi a travessia?: um percurso histórico da revista do migrante, 1-17 3 Migrante (SPM) da sede do CEM revelava uma cisão das ações políticas no interior da Igreja. A partir desta separação, o CEM parecia se desligar da Pastoral do Migrante – vertente política, ligada à CNBB e às pastorais sociais, tais como a Pastoral Operária e a Comissão Pastoral da Terra, e se identificar com a Pastoral da Mobilidade Humana – vertente religiosapastoral, centrada nas discussões das políticas migratórias do Estado; (3) A edição especial, dedicada a Abdelmalek Sayad1. A hipótese era que tal edição representou um redirecionamento na perspectiva teórica da revista. A Travessia partiu de leituras sociológicas e marxistas, tendo em José de Souza Martins um de seus expoentes, para análises culturalistas, inspiradas em Pierre Bourdieu e Abdelmalek Sayad. Outra expressão possível desta mudança está nas capas da revista. As primeiras, com inspiração soviética, apresentam trabalhadores com enxada na mão. Já as mais novas mostram capas coloridas para homenagear as festas folclóricas, no mesmo estilo das revistas vendidas em bancas de jornal. Estes três indicadores se tornaram o guia da pesquisa. Passamos, então, a investigar e analisar algumas destas hipóteses. Visitamos o Centro de Estudos Migratórios para conversar com Dirceu Cutti, o editor da Travessia e fomos conhecer o Serviço Pastoral do Migrante, onde conversamos com Nelson e Ary. Apresentaremos o material recolhido dividido em partes. A primeira parte traz o depoimento de Dirceu Cutti e será entrelaçada com artigos do número 52 da Travessia2 para compreendermos o legado do bispo Scalabrini e a história do Centro de Estudos Migratórios, o contexto eclesial e as relações entre CEM e o SPM. A segunda parte traz o depoimento de Nelson e Ary sobre o Serviço Pastoral do Migrante praticamente por inteiro, sem enxertos. A terceira parte apresenta algumas considerações sobre o surgimento da revista, segundo Cutti. Por fim, passamos em exame as hipóteses surgidas no início da pesquisa. 1 2 A edição especial dedicada a Sayad localiza-se entre a 35ª e 36ª edição no início do ano 2000. Travessia – revista do migrante, n. 52, mai-ago/2005. Edição dedicada ao exame do legado Scalabrini. 3 4 XIX ENGA, São Paulo, 2009 CAVALIERI, L. e BIAZIOLI, T. 1. Depoimento de Dirceu Cutti Iniciamos a entrevista com três grandes ‘blocos’ de perguntas para Dirceu: a importância e a história da revista, a relação da revista com a igreja e as relações da revista com o Centro de Estudos Migratórios. Dirceu começou a entrevista com o histórico da Congregação Scalabrini para explicar os passos do Centro de Estudos Migratórios. 1.1 O legado de Scalabrini A Igreja Católica na Itália, desde a unificação do país em 1871, perdeu seu lugar de prestígio e poder, o país encontrava-se em uma crise política e econômica e muitos italianos se viram forçados a buscar o sonho da América, migrar para algum dia voltar à Itália. No Brasil, no final do século 19, a preocupação com a substituição da mão-deobra escrava já era grande, em 1886 foi fundada a Hospedaria dos Imigrantes no Brás com o intuito de receber os imigrantes, tratá-los na quarentena e distribui-los para o interior do estado para as fazendas de café. Alguns grandes cafeicultores como o Visconde de Parnaíba tomaram frente no negócio de substituição da mão-de-obra escrava para a livre no Brasil. O bispo Scalabrini, natural da Itália, descobriu em Milão na estação ferroviária o drama da emigração. Sensível à grande emigração de italianos, fundou uma congregação de missionários para acolher os italianos no local de partida e na América, local de chegada. Fundava assim o ideal de assistência os imigrantes no lugar de origem e de destino. Devido a sua boa oratória, atraiu industriais para financiar sua causa e missionários para entrar na congregação. Assim, conseguiu eliminar mais de 700 coyotes, chamados por Scalabrini de “agenciadores de carne humana”3. No editorial da revista dedicada ao exame do legado Scalabrini, no ano de seu centenário, Dirceu enfatizou o carisma de João Batista Scalabrini que com 36 anos tornou-se bispo no norte da Itália e procurou dialogar com a “modernidade” que assolava o país. Foi definido por Dirceu como “homem de ação e diálogo.” Seu maior legado, no entanto, encontra-se no campo da migração. Em 1887, estava fundada a Congregação para acompanhar os italianos no exterior. Inicialmente rejeitado pelo Parlamento Italiano teve posteriormente um projeto de lei transformado em lei acerca da migração o que revela a importância política que a Congregação passou a ter. 3 As aspas referem-se as falas na íntegra dos entrevistados. 4 Qual foi a travessia?: um percurso histórico da revista do migrante, 1-17 5 “Sclabrini foi sim, um homem de seu tempo, mas do ponto de vista da mobilidade humana, o ultrapassou ao afirmar: ‘Para o migrante a pátria é a terra que lhe dá o pão.” (depoimento de Dirceu Cutti) O bispo esteve no Brasil em 1904 por cinco meses. O pano de fundo da ação dos padres e seu diferencial era criar uma pastoral supra-paroquial, permitir a entrada de brasileiros na Congregação e estudar o fenômeno migratório. A Congregação surgiu assim junto com o grande fluxo migratório italiano do final do século 19. Foi organizada em províncias em que as decisões eram votadas em assembléias e foi determinado que cada província deveria ter um CEM – Centro de Estudos Migratórios. Muitas províncias tiveram importantes CEM como Nova Iorque, Paris, Basiléia, Buenos Aires, Filipinas, Caracas e alguns CEM foram chamados para assessorar os rumos da política migratória nos parlamentos. O CEM São Paulo teve sua origem ligada à distribuição histórica-geográfica dos irmãos carlistas (scalabrinianos) no mundo porém, aqui, surgiu com o “cordão umbilical” ligado às lutas sociais das décadas de 60 e 70. O CEM de São Paulo foi fundado em 1969 nas dependências do Seminário João XXIII. 1.2 O Contexto Eclesial O momento eclesial vivido com João XXIII (1958 a 1963) e com João Paulo VI (1963 a 1978) difere em muito do vivido com João Paulo II (1978 a 2003) e mais ainda com Bento XVI (2004 até o presente). O momento atual é apontado como o de uma involução na pastoral. As determinações da cúria romana e o peso do bispado também se refletem na atual gestão da CNBB. O contexto eclesial vivido na década de 60 teve importantes marcos: a) auge da Teologia da Libertação Nomes como Gutiérrez, Juan Luis Segundo, Boff (Leonardo e Clodovis), Joan Sobrinho passam a fazer parte dos estudos no Instituto Teológico de São Paulo - ITESP e dos estudos nas comunidades periféricas. Segundo Iokoi (1996), os mais atuantes propositores foram Gutiérrez (bispo no Peru) e Leonardo Boff (São Paulo). Os grupos religiosos da América Latina, ainda que com diferentes formas de atuação, chamaram para a Teologia da Libertação a discussão sobre a possibilidade que os sujeitos sociais possuíam para alterar a realidade a partir da nova prática dos cristãos; 5 6 XIX ENGA, São Paulo, 2009 CAVALIERI, L. e BIAZIOLI, T. b) auge das CEB´s As Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s) foram inspiradas pela Pedagogia da ação católica, uma nova leitura da Bíblia promoveria reflexões sobre os problemas sociais, Paulo Freire foi o grande inspirador desta nova pedagogia. A inspiração do agir fundase na busca por soluções coletivas. Práxis e teoria estabelecem uma ação hermenêutica. CUT, PT, Pastoral Operária, CPT nasceram profundamente relacionadas às CEB´s; c) atuação da CNBB O episcopado brasileiro, na figura de alguns bispos, dava suporte às práticas cristãs mais politizadas. Dom Paulo Evaristo Arns esteve à frente da CNBB por muitos anos e transformou a entidade religiosa em um órgão à frente de seu tempo dada a sua opção política; d) surgimento e ação das pastorais sociais no seio da CNBB Algumas pastorais oferecem serviços e discussões mais específicas como a CPT, a Pastoral Operária.... Para Pe Alfredo, “Uma conclusão se impõe: o trabalho pastoral nas comunidades da periferia, a participação nos movimentos estudantis, a contribuição à organização dos operários e o estudo da teologia constituíam dimensões distintas de uma mesma ação social. Como pano de fundo descortinava-se o horizonte da transformação social, política, econômica e cultural. Enquanto os instrumentos de análise vinculavamse à matriz marxista, as motivações vitais provinham do clamor dos pobres e da experiência bíblica, especialmente na leitura dos Livros do Êxodo e dos profetas. Por isso que a vida social e política que fervia lá fora, nas ruas, fábricas e comunidades, repercutia com força e intensidade dentro do seminário, tanto na liturgia comunitária quanto nas salas de aula do ITESP.” (Travessia, nº52, p.21/22) 6 Qual foi a travessia?: um percurso histórico da revista do migrante, 1-17 7 Pe Alfredo deixa no final de seu artigo uma pergunta: “(...) continuará sendo o Seminário João XXIII, junto com o CEM, o SPM e o ITESP uma oficina de uma ação pastoral voltada, simultaneamente, para os apelos de Deus e os desafios da história na pessoa dos migrantes?” (idem, p.24) Tanto Dirceu Cutti como o depoimento de Pe Alfredo na Revista apontam que a atuação específica da Igreja no Brasil foi forjada junto à contestação que se vivia durante a ditadura militar. 1.3 Seminário João XXIII e CEM O atendimento aos imigrantes italianos, no pós-guerra, perdeu sua intensidade e os padres, com formação e tradição voltada para os imigrantes/emigrantes, voltaram-se às migrações internas do Brasil. Os seminaristas do Seminário João XXIII começaram a desenvolver uma ação pastoral em três frentes: (a) algumas viagens às regiões onde a migração representava um grande desafio; (b) ‘Operação Periferia’ para estar nos locais em que chegavam grandes levas de migrantes internos; (c) contatos com os padres que estavam à frente do Centro de Estudos Migratórios. Num artigo da revista nº 52, dedicado aos relatos de viagens pelas ferrovias Central do Brasil e Alta Sorocabana, os padres Alberto Romano Zambiazi e Alvírio Mores4 descrevem todo o ‘trabalho de campo’ realizado na origem e no destino dos migrantes, defendendo-os como pessoas dignas e não como preguiçosos e vagabundos. Expõem a chaga da migração nos trilhos das ferrovias que vinham e saiam de São Paulo: “Apenas escurece, as mães vão acomodando as crianças sobre os assentos e os adultos procuram um lugar para deitar-se debaixo dos mesmos. (...) Assim, aquele chão sujo, imundo, repleto de escarros torna-se o leito comum onde a maioria descansa em sono profundo... Durante toda a noite não se abre uma janela. Por isso, o óxido de carbono produzido por tão elevado número de pessoas, e o mau odor causado pela grande falta de higiene dos viajantes, provocam constantes dores de cabeça e mal-estar nos passageiros. (...) Não 4 Zambiasi, A. R e Morés, A. “A realidade sobre a migração brasileira. Relato de viagens pelas ferrovias Central do Brasil – 1968 e Alta Sorocabana – 1969”. Na época eram seminaristas no Seminário Maior João XXII. Zambiazi interrompeu seus estudos de teologia para estudar sociologia. 7 8 XIX ENGA, São Paulo, 2009 CAVALIERI, L. e BIAZIOLI, T. faltam os que acordaram molhados pelas crianças que dormiram sobre os assentos.” “O trem não poderá ultrapassar os 15 km horários para chegar ao destino sem haver sofrido acidentes. (...) Os animais e minérios ocupam os vagões mais protegidos, e os migrantes os que têm maior probabilidade de descarrilamento.” 5 Terminam o artigo afirmando: “Cremos que a principal e mais autêntica característica dessa eficiência de serviço por parte dos scalabrianos, é a preparação para missão profética dentro da Igreja e da sociedade. É impossível que nós queiramos assumir todos os contingentes migratórios no mundo tão atual, tão pluralista. Por isso nossa missão será, como foi a de Scalabrini, o profetismo: conhecermos as situações e condições dos migrantes, estudá-las, analisá-las e compreendê-las. (....) Precisamos ser nós os primeiros migrantes isto é, devemos ser os vanguardeiros nos contingentes migratórios.” (Revista Travessia, nº 52, p.16) Já a campanha ‘Operação Periferia’ foi estimulada na década de 70, pelo cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, sob a orientação do Concílio do Vaticano II e de Medellín. A ação da Igreja chegava às periferias. Num outro artigo da revista, escrito pelo Pe. Alfredo, acompanhamos a relação íntima entre o Seminário João XXIII e a criação e atuação do CEM6. O ano de 1968 é apontado como de entusiasmo, de muita força para a luta não somente para entender o fenômeno migratório mas também para superação da ditadura militar que se instalava. A pastoral deixou de ser ‘autorizada’ no Seminário para se tornar praticamente ‘obrigatória’, integrada à vida comunitária e estudantil. Dirceu conta que sua geração de seminaristas estava envolvida com as lutas políticas e que muitas não cabiam mais nos contornos da Igreja. Quiseram ir, por exemplo, morar nas periferias junto aos migrantes porém, seria muito custoso ter que ‘viajar’ todos os dias para o seminário para continuar o curso de teologia no Ipiranga, sede do Seminário João XXIII. Nesta época, os seminaristas tiveram a opção, devido à saída de seu coordenador, de assumir a direção do Centro de Estudos Migratórios, o que era interessante politicamente Estabeleceram como garantia para assumir o CEM que, após serem ordenados, ao menos dois deles continuariam à frente do Centro. Isto 5 Relato de diário de viagem publicado pela primeira vez no Jornal Arquidiocesano O São Paulo. Gonçalves, A. J. e Cutti, D. “O Seminário João XXIII e Centro de Estudos Migratórios. Memória de um Passado Recente”. Revista Travessia, nº52. 6 8 Qual foi a travessia?: um percurso histórico da revista do migrante, 1-17 9 evitaria que eles se dispersassem. Luiz Bassegio e Dirceu Cutti foram os escolhidos para assumir o CEM, apoiados pelo padre Alfredo. O CEM neste momento caminhava em duas direções: por um lado havia os estudos e os seminários, a biblioteca mais especializada forma-se neste momento; por outro, havia o envolvimento nas pastorais sociais vinculadas à CNBB. Em 1976 iniciamse os cursos de formação da pastoral migratória que se abrem mais a partir de 1979, época em que os seminaristas estavam a frente do CEM. 1.4 Relação CEM/SPM O CEM articulava e assessorava as pastorais, organizava os seminários e firmou-se na divulgação e publicação de material para ser distribuído por todo o país. Em 1980, Padre Alfredo se juntou aos cortadores de cana da região de Ribeirão Preto para compreender a realidade dos migrantes temporários. Toda a reflexão da experiência era realizada no seminário, dentro do CEM, que se tornou uma oficina para compartilhar novos caminhos para a ação pastoral. Foi nestas oficinas que a Pastoral dos Migrantes (SPM) se forjou. Segundo Pe Alfredo, a partir da Campanha da Fraternidade de 1980 cujo lema era “Para onde vais?”, o CEM passou a ser um interlocutor que dinamizou e articulou a Pastoral Migratória, gestando o que seria o atual Serviço Pastoral dos Migrantes. O SPM nasceu em 1985 e não se vinculou à congregação dos scalabrinianos, atrelou-se a chamada linha 6 da CNBB junto com o conjunto das pastorais sociais da Igreja no Brasil. Segundo Pe Alfredo, “Implicitamente ou explicitamente” houve uma certa “divisão de trabalho” entre o CEM e o SPM. O primeiro voltado mais para o estudo e a pesquisa, o segundo dedicado à atividade pastoral. O SPM inicialmente abrigava-se nas dependências do João XXIII, posteriormente passou para uma sede própria. O CEM mudou-se para o complexo da Igreja Nossa Senhora da Paz onde se encontra atualmente. Em 2004/2005, com a nova reestruturação da CNBB, formou-se o Setor de Mobilidade Humana. 2. Depoimento de Nelson e Ary 2.1 Serviço Pastoral do Migrante Nelson e Ary também iniciaram a conversa ressaltando o legado dos scalabrinianos e a história do Centro de Estudos Migratórios para contar o surgimento do Serviço Pastoral do Migrante. 9 10 XIX ENGA, São Paulo, 2009 CAVALIERI, L. e BIAZIOLI, T. Relembram que o CEM – criado no final da década de 60 e formado por muitos padres scalabrinianos e seminaristas – se envolviam nas discussões sobre as condições de vida dos migrantes na cidade de São Paulo, concentrados nas favelas e periferias. Enquanto o Centro de Estudos Migratórios recebia forte influência da congregação e do Vaticano e deixava de realizar o trabalho de base, nascia o Serviço Pastoral do Migrante em 1985/6, que se agregou à CNBB e as Pastorais Sociais da Igreja no Brasil. O SPM, segundo os entrevistados, trabalha junto às comunidades em 3 setores: migrantes temporários (cortadores de cana); imigrantes (bolivianos, paraguaios, argentinos) e urbanos. Sobre os migrantes sazonais, eles chamaram a nossa atenção para o fato de 80% dos cortadores de cana da região de Ribeirão Preto serem migrantes, oriundos do Vale do Jequitinhonha, Maranhão, Piauí, Ceará e Alagoas. Ao todo são cerca de 80.000 cortadores. O SPM acolhe os migrantes “cá e lá”. Na origem, tentam fortalecer alternativas à migração, como a construção em mutirão das cisternas, a luta por reforma agrária, a melhoria das escolas – juntamente com a Cáritas, os sindicatos e a Comissão Pastoral da Terra. Além disso, concebem que mesmo quando vem apenas o homem para o trabalho temporário, toda a família e a comunidade migram. Para o combate à depressão das mulheres no Vale do Jequitinhonha (as viúvas de maridos vivos), por exemplo, são criados grupos de geração de renda – associados às prefeituras, ao SPM, a Cáritas e a CPT. Ary entende que “enquanto a sociedade não resolver seu padrão de consumo, não haverá solução possível”. O fortalecimento das comunidades é uma conquista que não visa somente às reformas mas sim à superação do modelo econômico centrado no consumo. O trabalho do SPM concentra-se no lugar de origem e de destino segundo as primeiras orientações do Bispo Scalabrini há mais de um século. No destino, a ação da pastoral, junto aos cortadores de cana, é vigiada pelos gatos. Eles querem impedir a organização dos trabalhadores, apenas permitem a entrada dos religiosos para intervenções religiosas. A pastoral é proibida de entrar nos alojamentos das usinas, onde estão instalados os trabalhadores. Relembram que na época da ditadura, viviam-se “efervescências”: movimentos sindicais, partidos políticos, Teologia da Libertação, comunidades eclesiais de base.... Hoje, vivem-se os “esvaziamentos”: as comunidades eclesiais de base viraram paróquias institucionalizadas. A igreja perdeu o contato com a comunidade. A formação 10 Qual foi a travessia?: um percurso histórico da revista do migrante, 1-17 11 dos seminaristas reproduz um modelo burguês. Esta crítica estende-se a todos os níveis da sociedade. Reforçam que o mundo neoliberal operou uma grande mudança econômica e cultural. “A sociedade vai pagar um custo muito alto daqui a 10, 12, 15 anos quando os mais velhos não puderem mais lutar.” O começo da pressão do Vaticano contra o trabalho dos seminaristas nas comunidades aparece dentro do próprio Seminário João XXIII. Relembram que mais da metade dos seminaristas na década de 80 deixaram o ITESP7. Contaram que um padre veio de Roma para “tomar conta dos rebeldes” e acabou “ficando” com uma mulher casada. O Vaticano sempre ofereceu uma “fôrma” para todas as Conferências de Bispos, porém a CNBB do Brasil se mostrou sempre com mais autonomia e rebeldia. Depois da saída de D. Luciano e da entrada de D. Lucas de Moreira Neves (de Salvador), há o início de uma época em que de fato a orientação mais retrógrada do Vaticano tornouse mais presente. Apesar de Ary mostrar claramente em seu discurso uma insatisfação com a linha política da Igreja8, entende que a Pastoral deve reivindicar seu espaço no interior da CNBB, caso contrário, a Pastoral se tornaria uma ONG. Porém, o SPM não recebe apoio financeiro da Igreja e, tal qual uma ONG, eles aprenderam a captar recursos junto a entidades européias que teriam uma “dívida com o mundo pobre”. Politicamente o SPM reivindica seu lugar e sua ação junto ao Vaticano. Economicamente aprenderam a captar recursos para poder continuar um trabalho de base. De forma mas explícita, Ary e Nelson expuseram as tensões existentes entre o CEM e a SPM. Por uma exigência de Roma, foi criada a Pastoral da Mobilidade Humana em 2004. Para esta Pastoral, os migrantes são confundidos com caminhoneiros e ciganos, não são diferenciados nem mesmo dos turistas. Esta concepção esvazia o conflito político, perde-se de vista a importância das lutas de classe, segundo o SPM, pois todos nós poderíamos ser considerados migrantes Ary e Nelson acreditam que as diferenças entre a Pastoral do Migrante e a Pastoral da Mobilidade Humana apareçam na ação de cada um, junto aos migrantes. Como exemplo citam que enquanto a Pastoral denomina como trabalho escravo ou, no mínimo, degradante o trabalho dos bolivianos nas oficinas de costura, o CEM está interessado nas suas festas e tradições culturais. O SPM oferece atendimento jurídico 7 8 As décadas de 80 e 90 foram duramente marcada pela política de João Paulo II. Desde João Paulo II, foram 24 anos com a predominância de uma linha centro-direira no interior da Igreja. 11 12 XIX ENGA, São Paulo, 2009 CAVALIERI, L. e BIAZIOLI, T. aos imigrantes no CAMI – Centro de Apoio ao Migrante – localizado no Pari. A Pastoral discute as leis de imigração e a legalização das oficinas de costura, junto com o Ministério Público e o Ministério do Trabalho. Já o CEM, oferece a acolhida do migrante na Casa do Migrante, albergue localizado no Glicério. Assim, querem indicar que o trabalho da Pastoral do Migrante está voltado para as políticas públicas enquanto o trabalho da Pastoral da Mobilidade Humana é assistencialista e folclorista. 3. Revista Travessia9 Posto em linhas gerais o contexto de criação do CEM, do SPM, as mudanças na atuação da Igreja nas últimas quatro décadas, é possível entender a criação da Revista Travessia e compreender a realidade que ela revela. Todo CEM, como um centro de estudos, deveria também ter uma publicação científica. No Brasil este projeto foi adiado pois os padres não concordavam com a proposta das grandes revistas existentes que até hoje são publicadas nos outros países e que gozam de muito prestígio como a ‘Internacional Migration Review’. Lançaram o “Boletim Cá e Lá” para relatar as experiências dos seminaristas junto à realidade dos migrantes. O Pe Alfredo Gonçalves e Antenor della Vecchia quando eram ainda seminaristas foram para o eito, para Dobrada (próximo de Guariba) e ficaram três meses cortando cana; criaram empatia com os bóias-frias. O Pe Bragueto da CPT morava em Guariba e acolheu os padres carlistas. Segundo Dirceu, os bóias-frias vieram mais intensamente a partir da década de 70 com o Proálcool. A CPT, os sindicatos e outros movimentos sociais não queriam acolher os migrantes dado à sua ‘mobilidade’, sua ‘transitoriedade’ e, portanto, falta de enraizamento em um lugar para a formação de uma consciência transformadora. O CEM de São Paulo caracterizou-se como um espaço de conscientização, organização, apoio aos movimentos populares e produção de material. Não havia uma preocupação com a autoria ou com os direitos autorais pois a orientação socialista era clara: multiplicar o que era bom e fazer chegar no povo10. Além disso, queriam analisar o fenômeno migratório com o respaldo dos intelectuais, tais como Bresser Pereira, Paul Singer, José de Souza Martins; Luis Eduardo Wanderley, Otávio Ianni, José Graziano da Silva. 9 As informações sobre a revista Travessia foram obtidas na entrevista com Dirceu Cutti. Esta é uma chave importante para entendermos os editoriais não assinados dos primeiros números da revista Travessia e a próprio “Vai e Vem”. 10 12 Qual foi a travessia?: um percurso histórico da revista do migrante, 1-17 13 Sob a pressão de ter publicação científica, o CEM criou como resistência ao modelo intelectualizado das publicações de outros países, o “Vai e Vem” com influência de George Martine entre outros. O boletim trazia notícias das viagens realizadas pelos padres na busca de entender o ‘cá e lá’. O “Vai e Vem”11 é uma publicação do SPM. O CEM ainda precisava criar sua publicação científica. Duas reuniões foram realizadas com intelectuais e Dirceu, que havia abandonado a batina e estava empregado num banco, foi chamado pelo Pe Alfredo, diretor do CEM e portanto da nova publicação à época (segunda metade da década de 80), para trabalhar no projeto da revista. Dirceu nos mostrou as revistas publicadas em outros CEM tidas como referência tais como a Migrations Societe, Studi Emigrazione, Estúdios Migratorios Latino Americanos (AR), International Migration Review (IMR), APMS (asiática). Nenhuma destas revistas apresentava a cara que o CEM São Paulo, tão ligado às assessorias, cursos, seminários no seio das lutas sociais, queria ter. O exame das publicações brasileiras como a Tempo e Presença (CEDI), Revista Proposta (FASE), cadernos do CEAS (publicação de jesuítas e leigos do NE) tampouco ofereceu um modelo a ser seguido pelo CEM. O Conselho Editorial do número da revista (ainda sem nome) surgiu com José de Souza Martins, Ermínia Maricato, Firmino Fecchio, Carlos Vainer entre outros e decidiu lançar uma revista que fosse temática, que oferecesse espaço para que todos os trabalhos de migração circulassem, fossem divulgados e que fosse acessível, portanto a linguagem e o formato deveriam ser simplificados. Dirceu ocupou-se da diagramação da revista. O nome Travessia surgiu num momento de pausa com pão, queijo e vinho trazidos da colônia, alguém se lembrou do final do Grande Sertão: Veredas. Uma grande preocupação e autocrítica da revista, segundo Dirceu, é: “(...) divulgar a voz do migrante em sua luta e na vida, ter relatos de experiência porém, os militantes e intectuais de esquerda não sabem escrever assim, não dá para escrever como militante de palanque tampouco elitizar a revista e torná-la um veículo de publicação acadêmica”. 11 Para os limites deste trabalho não foi possível realizar uma leitura comparando as publicações Travessia com o Boletim Vai e Vem. Tal comparação poderia esclarecer ainda mais as diferenças entre SPM e CEM. 13 14 XIX ENGA, São Paulo, 2009 CAVALIERI, L. e BIAZIOLI, T. A intenção é que as diversas correntes teóricas que se ocupam da migração possam publicar. Desde o início há uma flexibilidade quanto ao número de páginas dos artigos e da revista A revista de tema Migrar e Morar de 1992 (nº14), apresentou uma ruptura na edição da Revista. Padre Alfredo conversou com Kleber, um fotógrafo que se dispôs a tirar as fotos para a revista. Às vésperas da Revista ir para a gráfica o fotógrafo cobrou pelas fotos que comporiam a publicação. Este episódio torna-se um marco na história da revista. Inicia-se a era de autoria de fotos, capas, editoriais....Dirceu também passou a assinar os editoriais, por ele chamado de apresentação. O Conselho Editorial da Revista, sempre segundo Dirceu, é democrático e tem autonomia nas decisões, não há censura. Muitos nomes permanecem desde os primórdios da revista, há 20 anos. As reuniões de Conselho em que os três temas do ano eram sugeridos ocorriam presencialmente; hoje Dirceu explica-nos que a ‘virtualidade’ também tomou conta da revista. Muitos membros do Conselho, só têm como participar virtualmente. Dirceu préseleciona os textos e manda alguns para certos membros do Conselho, os que podem estar mais presentes naquele momento. Cada membro do Conselho fica o tempo que pode. O Conselho foi apresentado como soberano tanto na escolha dos temas como dos artigos. Há casos de artigos de membros do Conselho serem rejeitados bem com de intelectuais renomados. Dirceu mostrou ainda muita clareza e autocrítica em relação à repetição dos temas da Revista (“talvez a proposta da revista temática esteja chegando ao fim”) e ao formato que se comunica com a necessidade, ainda que com toda autonomia da revista, de publicação dos acadêmicos num mundo mediado também pelo fetiche da publicação. Considerações Finais Revendo as hipóteses inicias da pesquisa, pudemos constatar: A igreja brasileira assim como em diversos outros países latino-americanos encontrou uma forma muito singular de agir nas décadas de 60 e 70. A Teologia da Libertação orientava as discussões e práticas de uma parcela da Igreja. A criação do CEM e posteriormente o surgimento do SPM estão intimamente ligados à Teologia. Tantos os depoimentos de Dirceu Cutti como os de Ary e Nelson revelam uma nostalgia desta Igreja combativa que acreditava numa transformação social. Foi a igreja 14 Qual foi a travessia?: um percurso histórico da revista do migrante, 1-17 15 quem primeiro se debruçou sobre a questão migratória e criou estratégias de luta e resistência sem perder o vínculo com a eucaristia e com a necessidade e de se produzir estudos e pesquisas. Ao que parece, a Igreja também vive e viveu a crise pela qual passaram todas as instituições políticas reivindicatórias no final na década de 80. Segundo os entrevistados, já não se formam hoje mais padres que tenham este sonho de transformação, os novos padres podem ter uma orientação muito mais burguesa. Os depoimentos também revelaram que a atual gestão da CNBB tem um vínculo mais estreito com as orientações da cúria romana que encontra-se, nas últimas décadas, numa via mais reacionária. Entendermos este contexto é fundamental para que leiamos com mais crítica a revista ao longo dos últimos 20 anos No interior da própria Igreja há uma cisão entre SPM e CEM. Enquanto a primeira parece estar mais interessada no trabalho pastoral supraparoquial e vinculada às lutas, o CEM estaria, desde a década de 90, mais envolvido na produção de conhecimento com vínculos acadêmicos e mais ligada à cúria romana no seu intento de criar a pastoral da mobilidade humana que, com já exposto, aniquilaria o caráter de denúncia e da ação da pastoral do migrante tal como ainda se apresenta nos dias de hoje Dirceu apontou para um cenário muito realista da década de noventa e início desta nossa década: os pesquisadores são cada vez mais pressionados a publicar os resultados de suas investigações, esta pressão alimenta a revista que se aprimora na publicação de artigos que, espera-se, estejam em uma linguagem mais simplificada para alcançar um número mais de leitores. A revista portanto expõe não somente as contradições no interior da própria Igreja ao longo dos últimos anos como também expõe o campo acadêmico no seu fetiche de excelência. A qualidade de muitos artigos e sua história tornam a revista de leitura obrigatória para os estudiosos da questão migratória. 15 16 XIX ENGA, São Paulo, 2009 CAVALIERI, L. e BIAZIOLI, T. Bibliografia BECKER, O. M. S. Mobilidade espacial da população: conceitos, tipologia, contextos. In: CASTRO, I. E. et al. Explorações geográficas: Percursos no fim do século. Rio de Janeiro: Bertrand, 1999. GAUDEMAR, J. P. Mobilidade do trabalho e acumulação do capital. Lisboa: Editorial Estampa, 1977. GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho. Cadernos do Labur (USP FFLCH), São Paulo, nº2, 1999. GODOY, E. P. O trabalho da memória: cotidiano e história no sertão no Piauí. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999. GOLDONI, A. M. “Crise familiar” no Brasil hoje. Travessia - revista do migrante (CEM), São Paulo, nº 09, 1991. HAESBAERT, R. O Mito da desterritorialziação: do fim dos territórios à multiterritorialidade. 2ªed. São Paulo: Editora Bertrand Brasil, 2006. HEIDEMANN, D. 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