PEDIDO DE FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE
Meritíssimo Conselheiro
Presidente do Tribunal Constitucional
PEDIDO DE FISCALIZAÇÃO DA
CONSTITUCIONALIDADE:
DATA:
R-5851/99 (A6)
1999-12-03
Assunto: Cooperação Judiciária Internacional - Extradição Pena de morte ou Pena de que resulte lesão irreversível da
integridade física.
O Provedor de Justiça, no uso da sua competência prevista no art.º 281.º, n.º 2,
d), da Constituição da República Portuguesa, vem requerer ao Tribunal
Constitucional a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade de parte da
norma contida no artigo 6.º, n.º 2, a), da lei 144/99, de 31 de Agosto. Entende o
Provedor de Justiça violar essa norma as contidas nos artigos 33.º, n.º 4, e 18.º,
n.º 2, da Constituição, pelas razões adiante aduzidas.
1.º
A lei 144/99, de 31 de Agosto, vem dispor sobre cooperação judiciária internacional
em matéria penal, designadamente no seu título II em matéria de extradição.
2.º
Embora não integrado nesse título, mas sim em sede de disposições gerais, no caso
sobre requisitos negativos da cooperação internacional, vem o art.º 6.º, n.º 1, e),
impor a recusa de cooperação, no caso vertente da extradição, quando "o facto a
que respeita for punível com pena de morte ou outra de que possa resultar lesão
irreversível da integridade da pessoa".
3.º
No entanto, o mesmo artigo, no seu n.º 2, a), esclarece que a mesma recusa não
terá obrigatoriamente lugar, sendo permitida a cooperação-extradição, quando o
1
Estado que formula o pedido assegurar, por acto com determinados requisitos, que
a pena em causa tiver sido previamente comutada.
4.º
A Constituição da República Portuguesa de 1976, no seguimento de tradição
humanista secular no combate à pena de morte e no espírito de respeito e garantia
dos direitos humanos, designadamente tal como consagrados na Declaração
Universal dos Direitos do Homem, com total acolhimento no seu art.º 16.º, n.º 2,
proibiu, desde a sua versão originária, a extradição quando estivesse em causa,
segundo o direito do estado requisitante, a pena de morte (cfr. art.º 23.º, n.º 3, da
versão de 1976, apenas alterado na sua numeração nas versões subsequentes até
1997, tendo sido incluído no catálogo dos direitos, liberdades e garantias na revisão
de 1982).
5.º
Antes de 1997 já era entendimento corrente que o teor do art.º 30.º, n.º 1, da
Constituição vedava também a extradição que colocasse o extraditando em risco de
sofrer a pena de prisão perpétua, admitindo-se, nos termos da lei, a extradição
apenas quando houvesse garantias de que não seria juridicamente possível a sua
aplicação (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional 474/95).
6.º
Na versão actual da Constituição de 1976 o regime aplicável nesta matéria está
bem explicitado, em números separados do art.º 33.º, aplicando-se o seu n.º 4 às
situações de pena de morte ou de que resulte lesão irreversível da integridade
física, determinando-se em definitivo a proibição da extradição, e o n.º 5 às
situações de prisão perpétua, proibindo-a também mas admitindo uma excepção
em determinado condicionalismo.
7.º
O art.º 6.º, n.º 2, a), da lei 144/99, de 31 de Agosto, faz no essencial tábua rasa
dessa distinção constitucional, admitindo quer para uma quer para outra situação a
possibilidade de extradição caso se verifique um condicionalismo correspondente ao
previsto no art.º 33.º, n.º 5, já que a comutação prevista é, sem dúvida, uma das
garantias acolhidas nesta norma.
8.º
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Se a comutação irrevogável é uma garantia especialmente reforçada, não deixa de
o ser para efeitos do art.º 33.º, n.º 5, da Constituição, desse valor específico nada
se permitindo assegurar quanto à sua compatibilidade com o n.º 4.
9.º
Note-se que os termos do art.º 33.º, n.º 5, da Constituição, são mais exactamente
reproduzidos na alínea b) do n.º 2 do art.º 6.º da lei 144/99, tornando de algum
modo inútil a parte da alínea a) que se refere à prisão perpétua, por constituir uma
espécie dentro do género admitido pela norma constitucional citada.
10.º
Poder-se-ia, falsamente, argumentar que o escopo do art.º 33.º, n.º4, qual seja o
da protecção da vida humana (aqui se abrangendo a integridade física face a
irreversíveis e graves lesões) e da não aplicação efectiva da pena de morte, fica
suficientemente protegido pela verificação dos requisitos previstos na lei,
obedecendo assim aos termos do art.º 33.º, n.º 5, da Constituição, eventualmente
de forma ligeiríssima mais reforçados.
11.º
Não se crê, no entanto, ser essa a vontade da Constituição, todos os elementos de
interpretação apontando no sentido contrário.
12.º
Assim, o elemento literal aponta-nos para a necessidade de se dar utilidade à
distinção feita na Lei Fundamental entre a previsão do n.º 4 e a do n.º 5 do art.º
33.º, não sendo de presumir, muito pelo contrário, a identidade de regimes.
13.º
No que ao elemento histórico diz respeito, conforme relatado pelo Dr. Marques
Guedes, um dos intervenientes no processo de revisão constitucional por parte de
um dos dois maiores partidos (cfr. Uma Constituição moderna para Portugal, pg.
90-91), é patente a evolução sofrida durante o último processo de revisão
constitucional, intentando um dos partidos introduzir norma idêntica à agora
acolhida na lei, uniformizando os regimes da pena de morte e da prisão perpétua,
proposta essa que, apesar de acolhida inicialmente no acordo de revisão
constitucional entre os dois maiores partidos, acabou por não fazer vencimento.
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14.º
No que ao elemento sistemático diz respeito, permito-me remeter para o que
deixaram escrito Jorge Miranda e Miguel Pedrosa Machado, em "O caso Varizo
(extradição e «non bis in idem»)", Direito e Justiça, volume IX, 1995, tomo 1, pg.
226 e seguintes, e o primeiro destes autores no seu Manual de Direito
Constitucional, tomo IV, pg. 166 e segs.
15.º
Finalmente, analisando a teleologia da distinção encontra-se um fundamento
material para a não admissibilidade no caso do art.º 33.º, n.º 4, da excepção
permitida no respectivo n.º 5, sendo para o caso irrelevante a qualificação jurídica
das garantias dadas pelo estado requisitante.
16.º
Refira-se ainda a circunstância não despicienda de se ter introduzido
expressamente a possibilidade de condicionalismos na proibição de extradição em
caso de prisão perpétua, mantendo-se o texto anterior quanto à pena de morte,
assim se inculcando de modo mais expressivo a natureza absoluta da proibição
actualmente constante do art.º 33.º, n.º 4 (cfr. Pedro Caeiro, "Proibições
constitucionais de extraditar em função da pena aplicável", Revista Portuguesa de
Ciências Criminais, ano 8.º, fasc. 1, Janeiro-Março 1998, pg. 23; ligando a
proibição de extraditar à protecção absoluta da vida humana, cfr. Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª ed., pg.
211).
17.º
A Constituição manifestamente não pretende permitir que a cidadãos estrangeiros
que residam ou se encontrem em Portugal, ou mesmo cidadãos portugueses, no
quadro do actual art.º 33.º, n.º 3, possa ser efectivamente aplicada a pena de
morte ou a de prisão perpétua.
18.º
No caso da prisão perpétua a Constituição basta-se com a garantia, nos termos
nela previstos, assumida pelo estado requisitante em como não será aplicada.
19.º
É certo, contudo, que o acto do estado requisitante, valendo embora como um
compromisso assumido perante o Estado português, pode sempre ser violado.
4
20.º
Isto é também verdade quando se exige um acto irrevogável e vinculativo, sendo
certo que essa irrevogabilidade e vinculatividade, em última instância dependerão
sempre das condições específicas do ordenamento interno do estado requisitantes,
designadamente em sede de invalidade da deliberação revogatória e sua
fiscalização, bem como das condições de facto inerentes à vida interna do próprio
estado requisitante, propiciadoras ou não de um efectivo estado de Direito.
21.º
E mesmo incorrendo o estado infractor em responsabilidade internacional, não é
menos certo que o cidadão extraditado se encontra sujeito ao seu jus imperii,
podendo sofrer a pena que, lícita ou ilicitamente, esse estado decida infligir-lhe,
sem que a protecção do Estado português lhe possa valer.
22.º
É um risco que a Constituição se permite correr quanto à prisão perpétua mas já
não quanto à pena de morte, inclusivamente pela natureza irreversível e
irremediável da aplicação da mesma.
23.º
O mesmo se diga face a lesões irreversíveis da integridade física.
24.º
É este, sem dúvida, o sentido da distinção feita nos actuais n.ºs 4 e 5 do art.º 33.º
pela lei constitucional 1/97, e é esta importante distinção entre regimes que não é
respeitada pela norma ora sindicada.
25.º
Em sentido coincidente face a norma análoga, no domínio de versão anterior da
Constituição mas sem que ocorram motivos que justifiquem outra conclusão, tem
decidido já o Tribunal Constitucional (veja-se, por todos, o ac. 417/95),
considerando a existência de garantias, por supostamente firmes que sejam, como
irrelevantes para o texto constitucional que, como se viu, não foi alterado pela
revisão de 1997.
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26.º
O mesmo tem sido defendido pela doutrina (cfr. Gomes Canotilho, anotação ao ac.
do TC 474/95, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128, n.º 3857, pfg.
250).
27.º
Para além de assim contrariar o teor do art.º 33.º, n.º 4, pode-se entender como
também violado o art.º 18.º, nº 2, da Constituição, já que se intenta restringir uma
garantia das compreendidas no título II da parte I da Constituição, sem que se
possa incluir tal caso nos "expressamente previstos" na Lei Fundamental.
Termos em que se requer ao Tribunal Constitucional que declare com força obrigatória
geral a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 6.º, n.º 2, a), da Lei 144/99,
de 31 de Agosto, na parte em que permite a extradição em casos em que seja aplicável a
pena de morte ou de que resulte lesão irreversível da integridade física segundo o direito
do estado requisitante, por violação das normas contidas nos art.ºs 33.º, n.º 4, e 18.º, n.º
2, da Constituição da República Portuguesa.
O Provedor de Justiça
(José Menéres Pimentel)
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R-5851/99 - Provedor de Justiça