MARCOS BIDART CARNEIRO DE NOVAES
O SOCIODRAMA EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS:
A SUPERAÇÃO DO SILÊNCIO E DE CONFLITOS EM UM
TRABALHO DE PESQUISA-AÇÃO PARTICIPANTE COM
MULHERES BORDADEIRAS
SÃO PAULO
2009
Por outro lado, nos costumes das instituições escolares, das
academias, colégios e estabelecimentos semelhantes, destinados
à sede dos homens doutos e ao cultivo do saber, tudo se dispõe
de forma adversa ao progresso das ciências. De fato, as lições e
os exercícios estão de tal maneira dispostos que não é fácil
venha à mente de alguém pensar ou se concentrar em algo
diferente do rotineiro. Se um ou outro, de fato, se dispusesse a
fazer uso de sua liberdade de juízo, teria que, por si só, levar a
cabo tal empresa, sem esperar receber qualquer ajuda
resultante do convívio com os demais. E, sendo ainda capaz de
suportar tal circunstância, acabará por descobrir que a sua
indústria e descortino acabarão por se constituir em não
pequeno entrave à sua boa fortuna. Pois os estudos dos homens,
nesses locais, estão encerrados, como em um cárcere, em
escritos de alguns autores. Se alguém deles ousa dissentir, é logo
censurado como espírito turbulento e ávido de novidades.
Sir Roger Bacon, 2009, p. 53
(original no Novum Organum, 1620, um ano antes Sir Roger Bacon ser banido)
2
Lista de Figuras e Quadros
Figura 1 – O coquetel..........................................................................................................37
Figura 2 – A líder “dando aula”........................................................................................38
Figura 3 – A grande encomenda........................................................................................44
Figura 4 – Ajuda mútua.....................................................................................................48
Figura 5 - Criança no encontro..........................................................................................49
Figura 6 – A felicidade com a obra....................................................................................50
Figura 7 – O orgulho com a conquista..............................................................................53
Figura 8 – A colcha que aquece e descongela a vida.......................................................59
Quadro 1 - Os quatro paradigmas de Burrell e Morgan.................................................12
Quadro 2 – Sujeitos, Agentes e Veículos da Intervenção................................................25
3
Resumo
O propósito deste trabalho é, baseado em uma experiência prática, discutir as possibilidades
do sociodrama associado à pesquisa-ação participante como metodologia para a abertura de
um espaço que permita a superação de silêncios e de conflitos historicamente construídos e
que impedem comunicações dialogais. Pautado no pressuposto de que tanto o sociodrama
quanto a PAP são formas de conscientização reflexiva, o autor busca identificar os três
aspectos a seguir: 1) Como o sociodrama serviu de estratégia utilizada para a abertura do
espaço de pesquisa conjunta; 2) Como o sociodrama pôde ajudar a superar os conflitos
ocorridos entre os membros do grupo e; 3) Como o sociodrama apoiou a redução das
diferenças entre pesquisador e participantes, que podem contribuir para superar ou reforçar
os silêncios que já existem. O autor apresenta também semelhanças e diferenças com
outras estratégias de pesquisa e convida a uma reflexão sobre questões ligadas à
neutralidade e intencionalidade do pesquisador. O autor utiliza como metodologia uma
combinação de Pesquisa-Ação Participante, uma das modalidades de pesquisa
comprometidas com a aplicação prática do conhecimento científico e do Sociodrama,
processo de aprendizagem que oferece também aos membros de um grupo a oportunidade
de esclarecer valores e rever comportamentos, praticando novas atitudes. O autor conclui
que a participação em uma pesquisa-ação sociodramática possibilita aos sujeitos vivenciar e
construir atitudes críticas que acabam sendo educativas tanto para o grupo quanto para o
pesquisador. Estas são fundamentais para a produção de conhecimentos para além daqueles
que foram os focos da pesquisa, atribuindo sentido à existência coletiva e se
comprometendo com a mudança, aproximando consciência e ação, reflexão e práxis.
Palavras-Chave: Ação Social. Conflitos. Pesquisa-ação participante. Psicodrama.
Sociodrama.
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Abstract
This work aims, based on a practical experience, to discuss the possibilities of sociodrama
associated to participatory action research as a methodology to the opening of spaces which
allow the overcoming of silences and conflicts historically constructed, that hinder dialogic
communications. Assuming that sociodrama and participatory action research are forms of
reflexiv knowledge aquiring, the author searchs to indentify the three following aspects:1)
How sociodrama was used as an strategy to open an common research space; 2) How
sociodrama helped to overcome the conflicts which ocurred among group members; 3)
How sociodrama helped to support the shortening of differences between researcher and
group members, what can help to overcome or reinforce the existing silences. The author
presents too simmilarities and differences with other strategies and invites to a reflection
about neutrality and intentionality of the researcher. As methodology the author uses a
combination of participatory action research, one of the research kinds commited with
practical appliance of knowledge and sociodrama, a learning process that also offers to
group members the opportunity to clarify values and review behaviors, practicing new
attitudes. The author comes to the conclusion that the participation in a sociodramatic
participatory action research makes possible to the subjects to experience and frame critical
attitudes, educational to the group and the researcher. Those are fundamental to the
production of new knowledge, beyond those which were focus of the research, assigning
sense to colective existence and commiting to change, approaching awareness and action,
reflection and praxis.
Key Words: Social Action. Conflicts. Participatory Action Research. Psychodrama.
Sociodrama.
5
SUMÁRIO
RESUMO.............................................................................................................................5
ABSTRACT.........................................................................................................................6
INTRODUÇÃO..........................................................................................................7
CAPÍTULO 1. EPISTEMOLOGIA E O SOCIODRAMA NA
PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO...................................................................10
1.1
O PARADIGMA FUNCIONALISTA ..........................................13
1.2
O PARADIGMA INTERPRETATIVISTA.................................14
1.3
O PARADIGA ESTRUTURALISTA RADICAL .......................14
1.4
O PARADIGMA HUMANISTA RADICAL................................15
CAPÍTULO 2. PESQUISA-AÇÃO, PESQUISA PARTICIPANTE
E O SOCIODRAMA...............................................................................................18
2.1
OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE................................................18
2.2
PESQUISA-AÇÃO..........................................................................19
2.3
PESQUISA PARTICIPANTE........................................................21
2.4
PESQUISA-AÇÃO PARTICIPANTE...........................................23
2.5
O SOCIODRAMA COMO ESTRATÉGIA DE PESQUISA
ORGANIZACIONAL.................................................................................24
2.5.1 Aquecimento inespecífico e específico...................................27
2.5.2 Dramatização ou cena............................................................28
2.5.3 O compartilhar........................................................................28
CAPÍTULO 3. AS MULHERES BORDADEIRAS E A FORMAÇÃO DO
COLETIVO EMPREENDEDOR......................................................................... 29
3.1 ROMPENDO O SIlÊNCIO.......................................................35
3.2 O SOCIODRAMA A SERVIÇO DA SENSIBILIZAÇÂO
MÚTUA E COMO FORMA DE LIDAR COM CONFLITOS
E DIFERENÇAS.............................................................................42
3.3 O SOCIODRAMA NAS ORGANIZAÇÕES LIDANDO
COM O INDIVÍDUO.................................................................... 50
3.4 A DECISÃO DE CONSTITUIR A COOPERATIVA:
CONFLITOS, ERROS E ACERTOS............................................53
CAPÍTULO 4. ANÁLISE DOS RESULTADOS..............................................................56
CAPÍTULO 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................59
REFERÊNCIAS..................................................................................................................65
6
INTRODUÇÃO
O sociodrama é definido por Sternberg e Garcia (2000) como um processo de
aprendizagem focado na solução de problemas de relações humanas. Segundo as autoras
este exercício oferece também aos membros de um grupo a oportunidade de esclarecer
valores e rever comportamentos, praticando novas atitudes. Percebi nesta definição pistas
iniciais para a aplicação desta estratégia no âmbito de ações sócio-educativas ou sócioorganizacionais.
Paralelo à minha formação como psicodramatista, que resulta neste trabalho de
conclusão de curso, estava envolvido com meu trabalho de mestrado em administração,
conduzido seguindo a metodologia da pesquisa-ação (PA), mais especificamente da
pesquisa-ação participante (PAP). Reason and Bradbury (2008) definem a PA como uma
família de práticas de pesquisa viva que tem como objetivo principal unir idéias e práticas a
serviço do florescimento humano. Seguem afirmando que é um conjunto de práticas que
responde a um desejo das populações envolvidas em agir criativamente para a solução de
seus problemas. Afirmam também que a mesma é orientada para valores e procura se
dirigir a assuntos vitais para o desenvolvimento de seres humanos e as comunidades a que
fazem parte.
Uma definição muito simples poderia ser que a PA é um processo de pesquisar e
aprender fazendo. Um grupo de pessoas identifica um problema, faz algo para solucioná-lo,
verifica quão bem sucedidos seus esforços foram e, se ainda não atingiram êxito, tentam
novamente, agindo em ciclos. Pesquisa que então é irmã daquela feita com cunho
socionômico, na qual “A articulação entre método e teoria é dinâmica, numa perspectiva de
um contínuo acabamento e inter-retroações” (WECHSLER, 2007, p.75). Esta proposta de
aprendizado na ação é totalmente alinhada com a concepção de Moreno (1997) de que “[...]
em especial na esfera humana é impossível entender o presente social se não tentarmos
mudá-lo.”
Esta frase do homem que lançou os fundamentos para o psicodrama e, portanto para
o sociodrama seria bastante para o colocar como um dos pensadores que embasam
epistemologicamente a pesquisa-ação e outras modalidades de pesquisa colaborativa e
7
participativa que se abrigam debaixo deste guarda-chuva que se convencionou chamar de
psicodrama, mas que engloba uma infinidade de denominações (SILVA e SILVA, 1991).
A frase de Moreno (1997) mostra que sua preocupação não era apenas com a
mudança e melhoria da situação do paciente ou do grupo. Havia a preocupação epistêmica
com a compreensão da situação e com a geração do conhecimento. Tanto que a mesma é
proferida no âmbito de uma discussão sobre as obras de Bergson e Peirce, a quem Moreno
(1997) se refere como filósofos-expectadores. A esta categoria de pensador, o idealizador
do psicodrama contrapõe a figura do filósofo-ator. “Onde o filósofo percebe a superfície a
que confere uma expressão aforística, o ator terapêutico das grandes religiões, em seus
períodos vitais, penetrou na própria essência, por meio da ação e da realização.”
(MORENO, 1997, p. 59).
O propósito deste trabalho será, portanto, a partir da minha experiência prática
(BIDART-NOVAES, 2008ab), discutir as possibilidades do sociodrama associado à
pesquisa-ação participante como metodologia para a abertura de um espaço que permita a
superação de silêncios e de conflitos historicamente construídos e que impedem
comunicações dialogais. Pautado no pressuposto de que tanto o sociodrama quanto a PAP
são formas de conscientização reflexiva, num processo cíclico que vai abrindo espaços para
a consciência de si e do mundo, busco identificar neste trabalho os três aspectos a seguir,
distintos, mas interrelacionados: 1) Como o sociodrama pode servir de estratégia utilizada
para a abertura do espaço de pesquisa conjunta; 2) Como o sociodrama pode ajudar a
superar os conflitos ocorridos entre os membros do grupo e; 3) Como o sociodrama pode
apoiar a redução das diferenças entre pesquisador e participantes, que podem contribuir
para superar ou reforçar os silêncios que já existem. Busco também, para alicerçar estes
objetivos, apresentar semelhanças e diferenças com outras estratégias e convidar a uma
reflexão sobre questões ligadas à neutralidade e intencionalidade do pesquisador.
Ao pesquisar a comunidade das mulheres bordadeiras, eu percebi que se instalou,
nas primeiras ações coletivas um mutismo que revelava um “tema dramático: o tema do
silêncio” (FREIRE, 2005, p. 114, itálico no original). Silêncio de pessoas que acreditam
serem feitas apenas para executar tarefas enquanto outras são feitas para pensar (Colin,
2006). De outro lado, vivencei sentimentos de estranheza ao me defrontar com uma lógica
cultural distante da sua e, de início, tive dúvidas sobre como iniciar o processo
8
investigativo. Muitos foram os conflitos, de ritmos, intencionalidades e desejos. Em alguns
pude intervir com uso do sociodrama, em outros não me foi dada a oportunidade, mesmo
assim pude refletir, porque o drama se desenrolou em meu interior.
Esta discussão se justifica porque o sociodrama vem se revelando progressivamente
como importante ferramenta de abertura de espaços comunicativos e de resolução de
conflitos em grupos já constituídos. No passado, o sociodrama foi usado em muitos casos
como intervenção grupal sem caráter de pesquisa e levantamento de dados para uso
posterior. Profissionais da área da saúde e educação, bem como gestores de recursos
humanos vêm buscando também no psicodrama e no sociodrama apoio para sua atuação e
humanização da mesma. A comparação do psicodrama e do sociodrama com outras
modalidades de pesquisa pode servir para construir uma ponte entre psicodramatistas e
outros pesquisadores. Estes últimos, de outras linhas de atuação, como a saúde, educação e
administração, vêm buscando na PA e na PAP, estratégias humanizantes e focadas em
transformação da sociedade, podendo se beneficiar dos conhecimentos do psicodrama e do
sociodrama. Esta inserção do sociodrama em um quadro epistemológico e metodológico
mais amplo pode beneficiar a todas as partes na academia, permitindo um diálogo reflexivo
e construtivo entre diferentes áreas do saber.
Nos capítulos que se seguem não pretendo fugir às minhas origens de administrador.
Pelo contrário, pretendo primeiramente apresentar como compreendo a inserção
epistemológica e metodológica do sociodrama na pesquisa social aplicada. Discuto
primeiro a inserção epistemológica do sociodrama nos paradigmas de pesquisa em
administração segundo o modelo de Burrell e Morgan (1979). A seguir exponho algumas
questões ligadas às diferenças e similaridades entre as linhas que se denominam de
pesquisa-ação e de pesquisa participante. Isto é de importância, pois o sociodrama pode
estar ligado a diferentes orientações ideológicas, que precisam ser explicitadas. A seguir
relato como sessões sociodramáticas e o conhecimento teórico do psicodrama em geral
foram de fundamental importância para que meu trabalho como pesquisador e como ator
social se desenvolvesse com a comunidade em cujo seio pesquisei, as mulheres bordadeiras
da Cratera da Colônia.
9
CAPÍTULO 1. EPISTEMOLOGIA E O SOCIODRAMA NA PESQUISA EM
ADMINISTRAÇÃO
Pesquisas em que os próprios interessados participavam das mesmas eram altamente
questionadas até pouco tempo atrás. A interferência do pesquisador e as interações com os
sujeitos da pesquisa na realidade pesquisada vêm sendo progressivamente aceitas.
Sobretudo porque na Administração há campos em que a participação dos sujeitos da
pesquisa, tanto na sua elaboração quanto na condução, análise e interpretação dos
resultados é altamente recomendável. A necessidade de construção conjunta de
conhecimento pode ocorrer tanto quando trata de estudos envolvendo comunidades carentes
ou grupos socialmente fragilizados, como no caso que será apresentado, ou quando se trata
de casos de cooperação entre universidade e indústria, como no caso do Offshore Yard
(GREENWOOD & LEVIN, 2006). Pode ocorrer dentro da própria universidade, como no
caso da reforma do curso de introdução à física da Universidade de Cornell citado nos
mesmos autores, ou ainda em parceria com a comunidade, como no caso aqui descrito.
Os trabalhos de pesquisa desenvolvidos nestes campos visam à promoção e
melhoria de condições da população envolvida na pesquisa. Assim, a participação dos
sujeitos é recomendada, já que durante o processo se desenvolve o aprendizado conjunto, a
interdisciplinaridade e a interação multicultural. (REASON; BRADBURY, 2008).
Embora a hegemonia positivista que dificultava a participação ainda seja evidente,
verifica-se, no entanto, uma ênfase cada vez maior no campo da Administração em
pesquisas no campo de cunho interpretativista ou participativo. Nestas a ênfase está não na
procura da objetividade, mas na maneira como os sujeitos de pesquisa interpretam ou
modificam a realidade que vivenciam. Isto pode ser constatado no Brasil mediante análise
dos anais dos últimos encontros da Associação Nacional de Pós-Graduação em
Administração. É crescente o número de relatos de pesquisa elaborados sobre as bases da
fenomenologia, da etnografia, do interacionismo simbólico e da grounded theory. Também
é possível constatar a presença, ainda que não muito significativa, de relatos de pesquisa
publicados em periódicos de Administração desenvolvidos nos moldes da PA e da pesquisa
participante (PP), bem como da PAP. Há autores que consideram estas como alternativas
viáveis nos estudos realizados com o propósito de promover mudanças organizacionais e
sociais (THIOLLENT, 1997, REASON; BRADBURY, 2008).
10
A Administração enquanto disciplina científica tem sido pródiga na elaboração de
teorias, que tem sido úteis para garantir um sistema conceitual para as pesquisas, para fazer
previsões e para orientar os procedimentos metodológicos a serem seguidos. Como, porém,
a Administração é uma ciência aplicada, a principal preocupação desses teóricos na
construção de seus modelos e quadros de referência tem sido guiada por notável grau de
pragmatismo. Isto tem favorecido a construção de teorias de alcance médio, em detrimento
de teorias mais gerais, capazes de esclarecer acerca dos fundamentos ontológicos,
epistemológicos e metodológicos da disciplina.
Um dos modelos adotados para descrever os paradigmas (ou visões de mundo) da
Administração é o construído por Burrel e Morgan (1979) e aprofundado por Morgan
(2005), que considera os pressupostos acerca da natureza epistemológica das ciências
sociais e da sociedade. Esse modelo indica quatro paradigmas, constituídos pela
combinação das categorias referentes ao conhecimento proporcionado pela ciência social,
que pode ser entendido como objetivo ou subjetivo e as categorias referentes à natureza da
sociedade, que pode ser concebida em termos de ordem e conflito (regulação e mudança
radical).
Este modelo, apesar de freqüentemente criticado por apresentar uma visão
fragmentada da realidade (SILVA; NETO, 2006), apresenta vantagens em sua utilização.
Uma delas é a consideração da posição do pesquisador, fator que influencia
significativamente a pesquisa-ação participante, que constitui objeto de discussão no
presente trabalho.
Com base na combinação dos pressupostos do modelo definem-se, portanto os
quatro paradigmas do Quadro 1 a seguir (pag. 12): 1) funcionalista, que supõe uma posição
objetiva da ciência social e uma compreensão de ordem ou de regulação da sociedade; 2)
interpretativista, que supõe a posição subjetiva da ciência social e de ordem ou regulação da
sociedade; 3) estruturalista, que supõe a posição objetiva da ciência social e a de conflito ou
mudança radical da sociedade; e 4) humanista radical, que supõe a posição subjetiva de
ciência social e de conflito e mudança radical da sociedade.
11
Quadro 1
Sociologia da Mudança Radical
Subjetivo
Paradigma
Humanista Radical
Paradigma
Estruturalista Radical
Teoria Crítica
Teoria Antiorganização
Marxismo
Teoria Social Russa
Teoria Organiz. Radical
Paradigma
Interpretativista
Paradigma
Funcionalista
Hermenêutica
Fenomenologia
Etnometodologia
Interacionismo simbólico
Behaviorismo
Determinismo
Empirismo abstrato
Teoria dos sistemas sociais
Objetivo
Sociologia da Regulação
fonte: adaptado de Burrel e Morgan, 1979 e Morgan, 2005
Podem se observar similaridades e diferenças entre o modelo acima e proposto por
Wechsler (2007), que aponta as origens das pesquisas socionômicas e psicodramáticas em
três linhas epistemológicas: a sistêmico-construtivista ou do pensamento complexo, a
fenomenológico-existencial e a dialético-marxista.
Há um estreito relacionamento entre a teoria dos sistemas gerais e conceitos
funcionalistas das ciências sociais, como apontado no Quadro 1. Em 1950, Ludwig van
Bertalanffy (1973) publicou “The theory of open systems in physics and biology” na revista
Science, e em 1956, o livro General System Theory. Foram publicações que influenciaram
autores em diversas linhas de estudo, inclusive a teoria das organizações baseada no
funcionalismo. O próprio Bertallanfy (1973) alertava quanto aos perigos da visão restrita a
função e estruturas, já falando de complexidade. Entende-se por complexidade um grande
12
número de problemas e variáveis presentes em uma situação, que é a condição normal que
as organizações e os administradores devem enfrentar.
Wechsler (2007), no seu modelo de filiações epistemológicas do psicodrama traça
esta divisão associando, no seu caso como pesquisadora, o pensamento sistêmicoconstrutivista a uma postura fenomenológica-existencial. Esta reflexão sobre a maneira de
pensar e de agir deveria ser feita por cada pesquisador que se dedica ao uso de instrumentos
metodológicos, como um passo que antecede a sua ação no campo.
Não pretendo me furtar a esta reflexão. Abaixo vou me dedicar a uma análise rápida
do modelo de Burrel e Morgan (1979), ainda atual como referência em Administração,
apesar das críticas construtivas contra seu uso como forma de colocar em gavetas formas
amplas de pensar e ver o mundo. Ao final dela, situo meu trabalho e minha visão desta
pesquisa.
1.1 O paradigma funcionalista
O paradigma funcionalista é o dominante nas pesquisas em ciências sociais.
Estreitamente vinculado ao positivismo, sua abordagem é objetiva, caracterizando-se pela
preocupação para explicar a ordem social, o consenso, a integração social e a satisfação de
necessidades. Adota o princípio de que toda instituição social é funcional ou exerce uma
função, sendo, portanto necessária. As pesquisas desenvolvidas segundo esta orientação
buscam identificar relações manifestas e latentes dos fenômenos sociais.
O pensamento sistêmico funcionalista foi elaborado por Parsons (1951). Segundo
esse autor, há três níveis administrativos na estrutura hierárquica das organizações
complexas: o nível técnico (produtor), o nível organizacional (direção) e o nível
institucional ou comunitário. O sistema de administração no nível técnico diz respeito,
principalmente, à racionalidade técnico-econômica, e procura criar a certeza “fechando” o
núcleo técnico a numerosas variáveis. É esta busca de certeza e circunscrição que inibe em
muitos casos pesquisadores funcionalistas de aceitarem a visão aberta e flexível de outras
formas de pesquisa. O sistema de administração no nível institucional enfrenta o mais alto
grau de incerteza em termos das alimentações provenientes do ambiente, sobre as quais a
administração exerce pouca ou nenhuma influência.
13
O funcionalismo, em suas versões organizacionais mais atuais, também dá ênfase a
sistemas de relacionamento e à unificação das partes e dos subsistemas em um todo
funcional. Busca imprimir ás ciências sociais uma dinâmica em termos de estruturas,
processos e funções, bem como compreender as relações existentes entre esses
componentes. No entanto, o observador se crê do lado de fora do sistema e com uma visão
objetiva e neutra do que está acontecendo.
1.2 O paradigma interpretativista
O paradigma interpretativista, assim como o funcionalista, adota a abordagem social
da regulação, mas sua concepção de análise da sociedade é subjetivista. O paradigma
interpretativista parte do princípio que a realidade social não existe em termos concretos e
sim como um produto das experiências intersubjetivas das pessoas. As pessoas é que
constroem e mantêm simbolicamente a realidade. Assim, a explicação dos fenômenos
sociais é procurada na consciência social e na subjetividade, no quadro de referência do
participante e não do observador. Aqui estão incluídas as posturas hermenêuticas,
fenomenológicas e etnometodológicas.
Neste paradigma o mundo social é entendido como um processo criado pelos
indivíduos. Mas, assim como no funcionalismo, pressupõe que o mundo é coeso, integrado
e ordenado pela ação das pessoas. Por essa razão a dominação, a contradição, o conflito e a
potencialidade de mudança não são considerados relevantes na explicação do
comportamento social.
Uma das múltiplas vertentes da teoria geral dos sistemas está intimamente ligada às
visões interpretativistas. É a que traz em seu bojo o conceito de complexidade, aqui
compreendida como grandes quantidades de interações que desafiam capacidades de
calcular, bem como incertezas, indeterminações e fenômenos aleatórios. (Morin, 2006).
Esta vertente possui a perspectiva de fornecer para a Ciência da Administração, carente de
uma ontologia própria, um salto paradigmático.
1.3 O paradigma estruturalista radical
O paradigma estruturalista radical fundamenta-se na perspectiva marxista. Assim
como o paradigma funcionalista concebe o mundo social como determinado por estruturas
concretas e reais, mas procura explicar os fenômenos a partir dos modos de dominação, das
14
contradições e do conflito estrutural. Seus adeptos, por sua vez, advogam a mudança radical
da sociedade do ponto de vista objetivo.
Para os estruturalistas radicais a sociedade contemporânea é caracterizada por
conflitos entre as classes, que geram crises políticas e econômicas e acabam por promover
mudanças radicais na sociedade. É pelo conflito que os seres humanos se emancipam das
estruturas sociais em que vivem. Assim, os estudos desenvolvidos sob a perspectiva do
estruturalismo radical centram-se na identificação dos conflitos inerentes aos processos
empreendedores e na maneira como os vários modos de dominação os influenciam. Esta
perspectiva enfatiza também a busca dos meios que possibilitem transcender a essa
dominação, sendo que a crença subjacente é de que as mudanças precisam ser inicialmente
nas estruturas. Fala-se hoje neste paradigma de uma Teoria Organizacional Radical
1.4 O paradigma humanista radical
O paradigma humanista radical está estruturado na combinação da visão subjetivista
com a teoria da mudança radical. A ordem social é entendida como produto da coerção e
não do consentimento. Assim, os adeptos deste paradigma comprometem-se com uma visão
de sociedade que enfatiza a importância de transcender os limites dos arranjos sociais
existentes a partir de uma mudança que se inicie com os seres humanos.
Os estudos desenvolvidos segundo esta perspectiva tendem, pois, a enfatizar a
identificação dos conflitos inerentes aos processos em que estão envolvidos grupos
oprimidos e à maneira como os vários modos de dominação os influenciam. Várias formas
de ação social são vistas por autores filiados a esta tendência como uma das manifestações
daquela “outra globalização” constituída por redes e alianças entre movimentos, lutas e
organizações locais ou nacionais que se mobilizam para lutar contra a exclusão social, a
degradação das condições de trabalho, o desemprego, o declínio das políticas públicas, a
destruição do meio ambiente e da diversidade e os ódios interétnicos produzidos
diretamente ou indiretamente pela globalização liberal (SANTOS, 2002). De certa forma
estar-se-ia falando de uma Teoria Antiorganização.
Na visão “bancária” da educação, e conseqüentemente do ensino e prática da
administração o saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber
15
(FREIRE, 2005, p. 67). Com esta visão, a tendência será sempre a de manipular grupos
para se adequar ao conhecimento administrativo e organizacional do paradigma vigente.
Para Silva e Silva (2006 p.125) “uma proposta de construção de conhecimento
comprometida com a mudança social implica tomar criticamente a realidade como objeto
de pesquisa e requer a inserção do pesquisador na realidade social”. Esta inserção, por sua
vez, exige explicitação da intencionalidade, sem nenhum pressuposto de neutralidade.
Explicitação não só da ideologia do pesquisador, mas de sua postura em relação ao ensino
da administração e do empreendedorismo. Na medida em que a pesquisa-ação participante,
em especial quando realizada com adultos em comunidades carentes, é uma prática
educativa, desde as suas origens, os dilemas do pesquisador surgem por vezes de sua
postura ideológica, que precisa ser explicitada.
Como pesquisador preciso, portanto refletir a que interesse ou interesses eu sirvo
quando me dedico a práticas de pesquisa intervencionistas. Esta reflexão é importante tanto
para praticantes de modalidades participativas de pesquisa e como por aqueles que se
dedicam ao sociodrama. Isto porque estas intervenções podem estar, conforme o exposto
acima: 1) A serviço da manutenção da ordem e do paradigma funcionalista; 2) De uma
melhor compreensão e interpretação da realidade por parte de grupos e pesquisadores,
visando o enriquecimento relacional e aumento do conhecimento de ambos; 3) A serviço de
grupos oprimidos para a solução ou ampliação de conflitos existentes; 4) Pode servir a esta
mudança social e questões emancipatórias conforme a proposta da visão humanista radical,
uma visão ainda em construção, mas que se delineia como premente com o agravamento de
questões socioambientais com as quais se depara a sociedade global. No caso específico do
trabalho aqui apresentado como situação-exemplo, o sociodrama estava subordinado às
questões emancipatórias mencionadas acima.
É, portanto no âmbito deste último paradigma que situo a PAP e este meu trabalho,
apesar de aceitar na minha formação a importância de influências fenomenológicas e
interpretativistas e de precisar aceitar, mesmo que a contragosto, a hipnose coletiva
funcionalista e behaviorista da escola de Administração. As similaridades e diferenças com
outras formas de pesquisa, origens e fundamentos são apresentados nas seções que se
seguem. Discussões em torno de terminologias podem se tornar cansativas e afastar leitores
16
e atores voltados para a prática. São, no entanto importantes quando se trata de delimitar
claramente quadros de valores e assunções ideológicas.
Como afirma Habermas (1993), o processo de justificação da dominação econômica
mantém-se pela despolitização das massas. Isto quer dizer que o domínio ideológico da
sociedade se mantém pela exclusão de uma questão prática do domínio público. O domínio
é idealizado ao nível teórico, mas atua ao nível prático. Desta forma, dominar não é mais
que desarticular a práxis de sua interpretação e o modo de compreensão de seu fazer
imediato. É no isolamento das partes interdependentes que o sistema se reproduz
justificando-se. Esta é uma característica que está na base do modo como se justifica a ação
prática no sistema capitalista tardio. A partir de uma organização teórica constroem-se
dogmas que perpetuam uma fé quase inabalável na ciência. Esta, apesar de uma pretensão
de neutralidade, se constitui em poderoso instrumento de reforço e ampliação das
ramificações do sistema, que justificam, fortificam e perpetuam novas formas de
dominação.
É nestas novas formas de ser do sistema que, por exemplo, a pesquisa-ação e o
sociodrama, como a ciência e a técnica podem se transformar em instrumento ideológico
que amplia os tentáculos do sistema via reprodução de um conhecimento transformado em
técnica. Se praticada de forma irreflexiva, podem servir à formação e disseminação um
modo específico de conceber e pensar o mundo, o ser humano e seu processo de conhecer.
O pesquisador reflexivo (SCHÖN, 2000) sabe que não é neutro, participa da construção de
sistemas sociais, da liberação de potenciais humanos (WECHSLER, 2007), podendo servir
assim à perpetuação de situações opressivas ou à mudança e transformação da sociedade.
17
2.
PESQUISA-AÇÃO
PARTICIPANTE,
PESQUISA-AÇÂO,
PESQUISA
PARTICIPANTE E O SOCIODRAMA
A pesquisa-ação participante apresenta similaridades e diferenças com outras
modalidades de pesquisa. Assim contrasta-se, a seguir, a mesma com outros tipos de
pesquisa.
2.1 Observação participante
Na observação participante (OP) o pesquisador procura tornar-se um membro do
grupo observado e dessa forma compartilhar as experiências de vida para melhor
compreender seus hábitos e convenções sociais. Podem-se encontrar suas origens nos
trabalhos do antropólogo Bronislaw Malinowski (1978), que viveu entre os nativos das
ilhas Trobriand, na Nova Guiné, de 1915 a 1918. Esta técnica foi amplamente utilizada
pelos sociólogos da Escola de Chicago nas décadas de 1920 e 1930 no estudo de problemas
urbanos.
Sociedade de esquina, de W.W. Whyte (2005), foi um marco no uso da OP,
orientando significativamente pesquisadores interessados no método. Desse livro
depreendem-se os dez mandamentos da OP (VALADARES 2007, p.154): (1) trata-se de
um processo longo; (2) o pesquisador precisa estar preparado para lidar com situações
inesperadas; (3) exige interação entre o pesquisador e o pesquisado; (4) exige que o
pesquisador se diferencie do grupo e abandone esforços de imersão total; (5) exige um
mediador entre o pesquisador e a comunidade sobre ou com a qual se pesquisa; (6) exige do
pesquisador a consciência de que ele mesmo está sendo todo o tempo observado e avaliado
e que “seus passos durante o trabalho de campo são conhecidos e muitas vezes controlados
por membros da população local”; (7) implica saber ouvir, escutar e fazer uso de todos os
sentidos, deixando com o tempo que os dados venham sem esforço ao pesquisador; (8)
exige rotinas de trabalho, autodisciplina e anotações sistemáticas; (9) aprendizado com
erros; e (10) saber lidar com cobranças sobre qual utilidade advirá da pesquisa para o
grupo.
Segundo Godoy (2006 p.126) trata-se de uma das “técnicas etnográficas” (aspas da
autora) utilizadas para colher dados de campo, da mesma forma que entrevistas, histórias de
vida e diários. Para Yin (2001) a OP ocorre quando o pesquisador assume funções dentro
18
do grupo e participa dos eventos estudados. Também a classifica, no entanto como técnica
de pesquisa que faz parte do esforço para coleta de evidências e não para transformação da
realidade, como é o caso da proposta metodológica da PA ou da PAP.
A utilização da técnica da OP, como compreendida no âmbito da pesquisa em
Administração, não implica, como ocorre na PAP, compromisso com a comunidade em que
se desenvolve a pesquisa, nem superação da oposição sujeito / objeto. O que significa que
sua utilização é pacífica nas pesquisas desenvolvidas sob as perspectivas funcionalistas e
interpretativistas. Quando, no entanto se fala de pesquisas e ações humanistas, o observador
neutro desaparece em nome da presença assumidamente engajada do participante, que não
perde por isso sua qualidade de cientista e ator reflexivo. É importante então aqui frisar que
na minha atuação como pesquisador não uso a expressão OP em pesquisas de cunho
participativo ou em uma intervenção sociodramática, pela sua ancoragem do termo na
escola de psicologia social de Chicago. Deixo o termo reservado para aqueles que usam
estudos de caso ou outras técnicas a princípio funcionalistas de pesquisa.
2.2. Pesquisa-Ação
A PA é definida por Thiollent (1985, p. 14) como uma pesquisa com base empírica,
“[...] realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema
coletivo e no qual os participantes representativos da situação ou do problema estão
envolvidos de modo cooperativo ou participativo”. O termo PA foi cunhado em 1946 por
Kurt Lewin, ao desenvolver trabalhos que tinham como propósito a integração de minorias
étnicas à sociedade norte-americana. Assim, definiu PA como a pesquisa que contribui não
apenas para a produção de livros, mas que conduz à ação social (LEWIN, 1946, 1958).
Diferentemente da pesquisa tradicional, não visa a obter enunciados científicos
generalizáveis, embora a obtenção de resultados semelhantes em estudos diferentes possa
contribuir para algum tipo de generalização, por meio de triangulação. Martins (2004, p.
47) a vê, no âmbito das organizações como “[...] uma proposta de pesquisa mais aberta,
com características de diagnóstico e consultoria para clarear uma situação complexa e
encaminhar possíveis ações, especialmente em situações insatisfatórias ou de crise”.
Existe uma busca por identificar as bases filosóficas para uma filosofia do conhecimento e
da ação e conseqüentemente da ciência da ação, em que o conhecimento estaria a serviço
19
desta ação e de processos de mudança, desvinculado do conhecer por conhecer (MACKE,
2006). Importante é, no entanto frisar que há autores que vêem a PA como uma forma ou
variante do estudo de caso e outros autores que a enxergam como uma modalidade que vai
além do estudo de caso. Isto porque segundo Argyris (1985 apud Macke, 2006 p.223) na
pesquisa-ação o “[...] envolvimento dos participantes no processo de mudança faz com que
eles pensem e reflitam sobre o que estão fazendo”.
O notável desenvolvimento de pesquisas apresentadas sob esta rubrica possibilita
hoje identificar diferentes modalidades de pesquisa-ação. Assim, Tripp (2005) apresenta
cinco modalidades de PA: 1) PA técnica, em que o pesquisador age de modo inteiramente
mecânico, “lendo o manual”; 2) PA prática, na qual o pesquisador projeta as mudanças; 3)
PA política, em que o pesquisador sente a necessidade de engajar-se na política para mudar
o “sistema”; 4) PA socialmente crítica: modalidade de pesquisa ação política em que se
trabalha para mudar ou contornar o modo de agir dominante do sistema; e 5) PA
emancipatória, também uma variação da pesquisa-ação política, que tem como meta mudar
o statu quo não apenas para si mesmo e para os companheiros mais próximos, mas numa
escala mais ampla do grupo social como um todo.
Franco (2005) considera que o caráter emancipatório da PA se dá quando a
transformação é percebida como necessária pelo próprio grupo, por meio de um processo
de reflexão crítica coletiva, do qual o pesquisador participa. Chama a essa modalidade de
PA crítica, contrapondo-a a outras experiências, como aquela em que a função do
pesquisador é a de conferir um enfoque científico a um processo de mudança desencadeado
pelos sujeitos, e que é denominada PA colaborativa. Ou, ainda, a trabalhos em que a
transformação é previamente planejada, sem a participação dos sujeitos, tendo o
pesquisador a tarefa de acompanhar os efeitos e avaliar os resultados, modalidade esta que
a autora denomina PA estratégica. A condição para que a PA possa ser considerada crítica
“[...] é o mergulho na práxis do grupo social em estudo, do qual se extraem as perspectivas
latentes, o oculto, o não familiar que sustentam as práticas, sendo as mudanças negociadas
e geridas no coletivo” (FRANCO, 2005, p. 486). O surgimento destas tendências críticas e
emancipatórias com a denominação de PA de certa forma dissolveu as diferenças iniciais e
radicais que havia em relação à PP.
20
2.3 Pesquisa Participante
Tanto a PA quanto a PP caracterizam-se pela interação entre os pesquisadores e as
pessoas envolvidas nas situações investigadas. Mas há uma grande diferença, que está no
caráter emancipatório da PP. Enquanto a PA supõe alguma forma de ação, que pode ser de
caráter social, educativo, técnico ou outro, a PP tem como propósito fundamental a
emancipação das pessoas ou das comunidades que a realizam. Ou seja, a PA pode,
dependendo de quem a pratica, ter um caráter emancipatório. Já a pesquisa participante, por
sua origem no combate à oligarquia e luta contra a opressão, é escolhida geralmente por
quem se propõe a lutar junto a comunidades excluídas ou grupos oprimidos por seus
direitos e emancipação.
Estas diferenças têm relação direta com a origem das duas modalidades de pesquisa.
Enquanto a PA tem suas origens nos Estados Unidos no período que se seguiu à Segunda
Guerra (LEWIN, 1946), a PP surgiu na América Latina como meio para alcançar a
articulação de grupos marginalizados (BRANDÃO, 1999, GAJARDO, 1999, SILVA E
SILVA, 1991). Seus criadores foram pessoas que participavam de programas educacionais
voltados para trabalhadores rurais (GIANOTTEN & WITT, 1999) e sua estratégia consistia
em fomentar o processo de formação de consciência crítica das comunidades para sua
inserção em processos políticos de mudança.
Pode-se definir pesquisa participante (PP) como uma modalidade de pesquisa que
tem como propósito “[...] auxiliar a população envolvida a identificar por si mesma os seus
problemas, a realizar a análise crítica destes e a buscar as soluções adequadas.” (LE
BOTERF, 1984, p.52). Trata-se, portanto, de um modelo de pesquisa que difere dos
tradicionais porque a população não é considerada passiva e seu planejamento e condução
não ficam a cargo de pesquisadores profissionais. A seleção dos problemas a serem
estudados não emerge da simples decisão dos pesquisadores, mas da própria população
envolvida, que os discute com os especialistas apropriados. A PP deve ser compreendida,
segundo a formulação de Brandão (2006 p.12), como um “[...] repertório múltiplo e
diferenciado de experiências de criação coletiva de conhecimentos destinados a superar a
oposição sujeito / objeto no interior de processos que geram saberes e na seqüência de
ações que aspiram gerar transformações.” Há, portanto, vários modelos de PP, já que por
sua própria natureza ela é flexível e como tal adapta-se a diferentes situações concretas,
21
conforme os objetivos perseguidos, os recursos disponíveis e o contexto sociopolítico em
que se desenvolve
As origens da PP estão na ação educativa. Sua principal influência encontra-se nos
trabalhos de Paulo Freire (2005) relativos à educação popular. Seu método de alfabetização
a partir da leitura do alfabetizando de seu próprio contexto sócio-histórico é que
proporcionou as bases da pesquisa participante. Assim desenvolveu-se a chamada vertente
educativa da PP. “Uma pesquisa que é também uma pedagogia que entrelaça atores-autores
e que é um aprendizado no qual, mesmo quando haja diferenças essenciais de saberes,
todos aprendem uns com os outros e através dos outros”, conceitua Brandão (2006, p. 13).
A PP também tem na América do Sul uma vertente sociológica, inaugurada pelo
colombiano Orlando Fals Borda (1972), que postulou o método do “estudo-ação” como
práxis perante os problemas derivados da dependência e da exploração oligárquica. Sua
proposta era devolver aos grupos o conhecimento por eles originado. Isto exige que o
pesquisador se envolva como agente no processo que estuda, já que tomou uma decisão em
favor de determinadas alternativas, aprendendo assim, não apenas por meio da observação,
mas do próprio trabalho com as pessoas com quem se identifica (FALS BORDA, 1980).
Os seis princípios metodológicos a serem seguidos para a investigação-ação
conforme Fals Borda (1982) são: (1) Autenticidade e compromisso, pelo qual intelectuais,
técnicos e cientistas devem demonstrar honestamente seu compromisso com a
transformação social proposta, sem precisarem fazer passar pelo que não são; (2)
Antidogmatismo, pelo qual é garantido ao grupo com o qual, para o qual e sobre o qual se
estuda que o mesmo tem liberdade política, religiosa e organizacional em geral; (3)
Restituição sistemática, que garante ao grupo que o conhecimento adquirido lhe será
devolvido em linguagem que respeite suas tradições culturais, de forma sistemática e
organizada; (4) Feedback à academia e aos intelectuais engajados, pelo qual se garante que
os trabalhos gerem contribuição expressa com clareza na exposição teórica e observações
sobre sua aplicabilidade em situações similares; (5) Ritmo e equilíbrio de ação e reflexão,
que garante a articulação do conhecimento concreto com o geral, do conhecimento local
com o nacional e o global, da formação social com o modo de produção; (6) Ciência
modesta e técnicas dialogais, baseadas em duas idéias: a primeira a de que a ciência deve
ser realizada mesmo em situações insatisfatórias e primitivas, sem que isto signifique falta
22
de ambição; a segunda a de que o pesquisador deve aprender a ouvir discursos em
diferentes sintaxes, romper com a assimetria das relações sociais e incorporar pessoas por
mais humildes que sejam como seres ativos e pensantes nos esforços de pesquisa.
2.4 Pesquisa-Ação Participante
As divergências entre pesquisadores associados à pesquisa ação e à pesquisa
participante conduziram à nomenclatura pesquisa-ação participante (PAP) como uma
tentativa de minimizar as diferenças e enfatizar as semelhanças entre as duas modalidades
de pesquisa participativa. Embora haja autores como Macke (2006) que propõem designar
todas as modalidades de pesquisa participativa como PA, considero necessário manter a
terminologia pesquisa-ação participante. Isto para enfatizar a característica sócio-educativa
da PAP e suas origens latino-americanas, ligadas a trabalhos como os de Fals Borda (2001,
1982, 1980), Paulo Freire (2005, 1981) e outros (BRANDÃO 2006, 1999, 1981). A
proposta da PAP ganhou força graças ao Simposio Mundial de Cartagena, realizado em
1977, que definiu a investigacion-acción participativa como uma metodologia inserida
num processo vivencial para os grupos de base, que inclui simultaneamente educação de
adultos, pesquisa científica e ação política.
A abordagem crítica que caracteriza a PAP, além de se preocupar com a
apresentação de uma visão ampla e dinâmica da realidade, procura conscientemente
compreender os fatos inseridos em suas influências econômicas, políticas e culturais. Esta
perspectiva envolve abandonar o “mundo seguro do funcionalismo, no qual as pesquisas
geram hipóteses e modelos teóricos do trabalho empírico, para abraçar a incerteza e a
produção de um conhecimento que o próprio pesquisador pode questionar em um ou outro
momento” (PAULA, 2008, p. 11). Uma das características da pesquisa crítica é, pois, esta
reflexividade do pesquisador sobre seu trabalho e sobre si próprio.
Vinculada originariamente a movimentos políticos e sociais latino-americanas, a
PAP vem ganhando adeptos em outras partes do mundo. Passou a ser utilizada em países de
língua inglesa a expressão Participatory Action-Research. Foram organizados livros com
este título (WHYTE, 1991, McTAGART, 1997). O primeiro apresenta como principais
influências a análise sociotécnica norte americana e a work democracy research, de origem
escandinava (ELDEN, 1979) e o segundo aborda o desenvolvimento da PAP em diferentes
23
países. A PAP vem encontrando adeptos também em muitos países da África e da Ásia. Na
Índia, em 1982, foi fundada a Society for Participatory Research in Asia, organização
voluntária que apóia iniciativas populares. Em Bangladesh, foi realizado, em 2004, The
International Workshop on Participatory Action Research e a PAP vem sendo usada para
melhor compreender e atuar em regiões devastadas por conflitos, como a antiga Iugoslávia,
Haiti, Moçambique e outros países (JOHANSSEN, 2001).
A PAP deve ser compreendida como uma das modalidades de pesquisa
comprometidas com o modelo de “aplicação edificante” do conhecimento científico,
(SANTOS, 1989 p.159), que tem, entre outros, os princípios: (1) tem lugar em situações
concretas em que quem aplica está ética, existencial e socialmente comprometido; (2) é um
processo argumentativo entre grupos que lutam pela decisão do conflito a seu favor; (3)
envolve o cientista na luta pelo equilíbrio do poder, obrigando-o assim a tomar o partido
daqueles que têm menos poder; (4) aceita que os limites e deficiências dos saberes locais
não justificam a recusa destes, porque isso significa desarmar argumentativa e socialmente
seres competentes.
2.5 O Sociodrama como estratégia de pesquisa organizacional
As origens do Sociodrama podem ser encontradas nos trabalhos de Moreno (1997).
A grande busca de Moreno era pela “[...] verdade contextualizada na ação e a complexidade
relacional dos sujeitos” (MARRA, 2006, p. 95). O autor embasa seu posicionamento
teórico afastando-se das ideias de Freud, que, segundo Moreno (1997, p. 373) considerava
o grupo como “[...] um epifenomeno da psique individual.”. Propõe ele que o grupo seja
considerado como um novo sujeito, como primeiro passo para o tratamento de questões
grupais, que acabem tendo impacto na psique individual e na melhoria do individuo.
Moreno (1997) explica com clareza como se dá a questão da inserção do
pesquisador no grupo. Após esta compreensão do grupo como sujeito, como um segundo
passo, os indivíduos que compõe o grupo passam a ser agentes da terapia e o terapeuta
parte do grupo. A partir disto e por causa deste embasamento teórico, o veículo da terapia
(sociodrama) passa a ser separado do terapeuta, bem como dos indivíduos que compõe o
grupo, transformando a realidade dos dois durante o processo da ação. A partir desta
reflexão sobre sujeito (grupo), agentes (diretor / facilitador e indivíduos / clientes) e veículo
24
da terapia, Moreno (1997, p.376-377) propõe um quadro que apresento abaixo livremente
adaptado para a realidade organizacional segundo a minha compreensão atual:
Quadro 2 – Sujeito, Agentes e Veículos da Intervenção
1) Sujeito da Intervenção
1.1) Quanto à constituição do grupo
Grupo amorfo - Grupo em formação, com
Grupo organizado - Grupo já constituído, com
integrantes que ainda não se conhecem.
valores e a dinâmica própria.
1.2) Quanto ao local da intervenção
In locu - A intervenção se dá na própria empresa,
Situação secundária – Intervenção se dá em locais
comunidade, organização ou até nas casas de
especialmente criados para tal, como hotéis, centros
membros do grupo.
de convenção ou outros
1.3) Quanto á finalidade da intervenção
Focada nas queixas - A intervenção visa retornar
às origens dos problemas grupais, incluindo os
membros do grupo in vivo no processo de
intervenção e busca de soluções.
Focada nas soluções – Intervenção é voltada para a
solução de problemas individuais com apoio do
grupo, sem exposição destes problemas durante o
processo de intervenção.
2) Agente da Intervenção
2.1) Quanto à fonte de influência para a mudança
Centrada no pesquisador (interventor) - Um só
Centrada no grupo - Cada membro do grupo se
pesquisador ou um grupo deles conduzem a
torna agente da intervenção, voltado para influenciar
intervenção. Os membros do grupo não são usados um ou mais de um dos demais membros. O grupo é
sistematicamente como agentes da intervenção
um todo que interage entre si e com a comunidade.
2.2) Quanto á forma da influência
Espontânea e livre - Existe liberdade de
experiência e expressão. O locutor ou ator da
intervenção é improvisado e extemporâneo,
podendo ser um dos membros do próprio grupo.
Ensaiada e preparada – A intervenção é preparada
pelo pesquisador, com lições e regras pré-produzidas.
A intervenção é memorizada e ensaiada pelo
pesquisador, sendo ele o principal ator ou locutor.
3) Veículo de Intervenção
3.1) Quanto ao modo de influência
Métodos de leitura e verbais - Leituras, lições,
Métodos dramáticos ou de ação - Dança, música,
palestras, apresentações de filme e lições.
teatro, fazer filmes e teatros de bonecos.
3.2) Quanto ao tipo de veículo
Conservados ou mecânicos - Uso de filmes
Espontâneos ou criadores – Filmes como medida
prontos, teatro comum ou de fantoches ensaiados,
preliminar para ação, teatro comum ou de fantoches
passos ensaiados de dança, canto induzido e
improvisado, música composta na hora, filmes feitos
conduzido, música “em conserva” (partituras ou
pelo grupo, ou outros métodos improvisados.
reprodução digital).
3.3) Quanto à origem do veículo
Apresentação face a face - Representações
dramáticas de todos os tipos mencionados acima.
À distância – Rádio, televisão, internet, intranet,
mensagens de texto e outros veículos de
comunicação.
fonte: adaptado livremente de Moreno 1997, p. 376-377
25
Estas múltiplas possibilidades apontadas acima podem levar a um grande leque de
intervenções grupais, que não necessariamente se enquadrariam no que é considerado
sociodrama. Para tal, é necessário que o planejamento e atuação dos pesquisadores e
membros do grupo estejam alicerçados na teoria socionômica de Moreno, cuja síntese
encontrei em autores como Kaufman (1992), Sternberg e Garcia (2000), Marra (2006) e
Drummond e Souza (2008).
Quando se fala do sociodrama em seu sentido mais amplo, os objetivos mais
tradicionais de intervenção são os apontados por Pierre Weil (1967, apud DRUMMOND;
SOUZA, 2008, p. 20): 1) Vivenciar a tele, ou força energética que faz as pessoas se
sentirem atraídas umas pelas outras de forma biunívoca; 2) Realizar experimentações
sociométricas, medindo relações informais do grupo, para lidar com aproximações e
repulsões; 3) Libertar a criatividade e a espontaneidade; 4) Reajustar relações grupais; 5)
Desenvolver a empatia, por meio da percepção do outro para se colocar no lugar dele; 6)
Realizar um laboratório de comunicação, eliminando barreiras para a mesma; 7) Vivenciar
cenas como ensaio para o futuro; 8) Desenvolver o controle emocional; 9) Experimentar
autonomia e rever relações de autoridade.
Os principais objetivos do sociodrama nas organizações são segundo Sternberg e
Garcia (2000) novas percepções (insight), liberação de tensões (catharsis) e prática (ou
treinamento) de papéis (role training). Drummond e Souza (2008) propõem de forma
similar que os objetivos são: 1) Analisar em parceria com o grupo a dinâmica das relações
grupais no contexto organizacional; 2) Estimular a reflexão dos participantes para que estes
atuem com maturidade e liberdade em seus vínculos e; 3) Trabalhar os papéis sociais dos
membros, os convidando a ser co-responsáveis em sua atuação no contexto organizacional.
A estes objetivos, quando se fala de usar o sociodrama em trabalhos de cunho social como
o aqui descrito, deve se adicionar o de “[...] inserir o sujeito na organização social.[...]
Portanto, intervir é reconhecer e participar da mobilização social, como um ato de melhoria
da qualidade de vida dos cidadãos,” (MARRA, 2006, p. 101). O sociodrama nestes casos
deve estar a serviço da construção de redes, favorecendo a tomada de consciência e a
emancipação por meio do desnudamento das determinações culturais e sociais que
influenciam um grupo.
26
Jonathan Moreno (1998), filho do idealizador do Psicodrama, afirma que o objetivo
do sociodrama “não é oferecer psicoterapia para qualquer indivíduo, mas melhorar o bem
estar geral do grupo, geralmente pelo encorajamento de sua coesão e pelo potenciar para
uma atividade cooperativa”. Kaufman (1992 p. 48) lembra que a coesão do grupo é a
principal qualidade que um grupo pode apresentar e define coesão como “o campo total de
forças que atuam sobre os membros do grupo para que permaneçam dentro dele, o que
implica a existência de interação pessoal, lealdade individual ao grupo e orgulho pela
pertenência”.
O sociodramatista organizacional pode ter como “cliente” ou sujeito da pesquisa a
empresa privada, a organização do terceiro setor, o governo ou a comunidade. Cada um
destes públicos certamente leva a abordagens e práticas diferenciadas. Mesmo assim,
independente da organização em que são aplicadas, as concepções de intervenção que
podem ser chamadas de sociodramáticas estão necessariamente alinhadas com a teoria de
Moreno, são fundamentadas no conceito da espontaneidade e criatividade, tem como
finalidade a transformação de indivíduos e sistemas sociais e seguem o método de três
etapas, aquecimento, dramatização e compartilhar. As três etapas acima mencionadas são
apresentadas com maior aprofundamento a seguir.
2.5.1 Aquecimento inespecífico e específico
Tem como objetivo fazer com que os membros do grupo tragam sua atenção para o
aqui e agora do grupo (STERNBERG; GARCIA, 2000). Começa de uma forma
inespecífica, pela qual se pode deixar aparecer as questões e sentimentos ligados a elas que
mobilizam os membros do grupo naquele momento. Em um momento seguinte começa-se a
trazer o grupo para a questão a ser trabalhada, com propostas mais específicas e voltadas
para o objetivo do trabalho naquela sessão, determinado pelo grupo ou pelo pesquisadorinterventor a partir de demandas anteriores do grupo.
O aquecimento pode ser mais cognitivo ou afetivo e pode ser iniciado pelos
membros do grupo ou pelo diretor, no nosso caso o pesquisador. Aquecimentos cognitivos
fornecem informações e falam mais ao nosso intelecto, e podem ser feitos como leituras,
apresentações e discussões. Aquecimentos afetivos falam diretamente às nossas emoções e
corpos físicos e podem ser inter-relacionais ou fisicamente ativos. De uma forma ou de
27
outra os aquecimentos tem como propósito trazer à tona sentimentos que os membros do
grupo tem sobre o tema a ser trabalhado. Ainda segundo as memas autoras propõem que o
aquecimento pode ser estruturado ou não estruturado. A primeira forma é conduzida pelo
pesquisador e a segunda ocorre quando o diretor (pesquisador), ao perceber os temas e
forma como são discutidos e vivenciados na chegada do grupo, prefere deixar que a
segunda etapa surja naturalmente.
2.5.2 Dramatização ou cena
Agora o foco se volta para trabalhar o assunto que emergiu do grupo ou que estava
pendente de resolução. Pode ser feita de várias formas, como as expostas no Quadro 1, o
importante é que a cena, ensaiada antes ou espontânea, com uso de materiais conservados
ou criados no momento, sirva para uma das possibilidades antes apontadas. Importante é
que por meio do sociodrama nas organizações, “[...] resguardando o papel individual e
salientando o profissional, cada um experimenta novos papéis, inverte com outros
participantes e retorna ao seu carregado de novas experiências.” (DRUMMOND, SOUZA,
2008, p. 145).
2.5.3 O compartilhar
O sharing, ou compartilhamento em português é a etapa final e que serve para unir
o grupo em torno da reflexão necessária para integrar o que se aprendeu na cena.
(STERNBERG; GARCIA, 2000). Durante esta fase é desencorajada a análise da cena em
termos teatrais ou julgamento das atuações dos sujeitos. O foco é na expressão de cada um
sobre o que sentiu e o que aprendeu, com estímulo à aceitação de todos os pontos de vista.
Assim os indivíduos se sentem menos isolados e passam a perceber que outros têm
problemas ou experiências similares.
Durante esta fase, “Membros do grupo compartilham sentimentos, fazem perguntas,
discutem a ação e planejam novos comportamentos. Por esse processo eles se acalmam em
relação à cena, se movem para um âmbito cognitivo e se preparam para o fim da sessão.”
(STERNBERG; GARCIA, 2000, p. 20). A seguir, procuro ilustrar de forma prática como o
sociodrama pode ser utilizado em trabalhos de PAP junto a comunidades carentes e
oprimidas.
28
CAPÍTULO 3. AS MULHERES BORDADEIRAS E A FORMAÇÃO DO
COLETIVO EMPREENDEDOR.
Distante 40 quilômetros do centro da cidade de São Paulo há uma cratera de 3,6
quilômetros de diâmetro formada pela queda de um cometa ou meteorito entre 36 e 5
milhões de anos atrás. Dentro dela, cercado por suas bordas, se situa o bairro de Vargem
Grande. Este conta indicativamente com 35.000 habitantes. Segundo dados de órgãos
governamentais, os responsáveis pelos domicílios auferiam mensalmente, em média, US$
300.00, e em 27,03 % dos domicílios a renda média mensal per capita era inferior a US$
100.00. Esses responsáveis tinham, em média, 5 anos de estudo e 12,4% eram analfabetos.
As mulheres responsáveis por domicílios correspondiam a 21,0% e a parcela de crianças
com menos de cinco anos equivalia a 12,1% do total da população.
Nesse cenário, foi construída uma história de saber e fazer. Pessoas vivendo em
condições de vulnerabilidade social, lutando por sobrevivência, formaram o grupo da
pesquisa-ação participante aqui relatado. A origem do trabalho foi o convite feito a mim
por uma mulher, durante um curso de empreendedorismo e gestão de pequenos negócios,
em que participei como facilitador voluntário. A princípio, a intenção dessa mulher não era
muito clara. Interpretei das afirmações iniciais, ainda confusas para mim, que ela desejava
criar uma cooperativa de trabalho com um grupo de bordadeiras. A mulher explicou que as
bordadeiras estavam insatisfeitas por terem que receber seu trabalho de uma pessoa
intermediária que negociava em nome delas, cobrando uma alta comissão. Desejavam,
portanto, aprender a negociar elas próprias o produto de seu bordado e fazer com que seu
trabalho transcendesse o âmbito do individual para ganhar a dimensão do coletivo.
Em minha primeira visita à comunidade de Vargem Grande, para um encontro com
as bordadeiras, eu não tinha certeza se o trabalho se iniciaria e se havia realmente um grupo
de mulheres dispostas a trabalhar em conjunto para a melhoria de suas condições de vida.
Evitei iniciar o estudo com hipóteses previamente formuladas para testar ou questões
específicas para responder, apenas apresentei-me ao grupo me dispondo a ouvi-lo com
interesse. Em pesquisa-ação se chama essa primeira fase de identificação e diagnóstico.
Realizei então, o reconhecimento das possíveis participantes do grupo, bem como o
diagnóstico da situação-problema de forma coletiva e participativa. Escolhi trabalhar do
29
ponto de vista metodológico com aquecimentos e diagnósticos sociodramáticos e com
círculos de conversa, visando a transição de um grupo amorfo para um grupo dinâmico,
conforme o Quadro 2. Minha formação como psicodramatista influiu bastante nessa
escolha.
Esforcei-me para proporcionar ao grupo reuniões descontraídas, em que todos, após
se aquecerem e realizarem jogos, vivências (YOZO, 1996) ou dramatizações sentavam-se
em círculo e conversavam livremente sobre seus sentimentos, dúvidas, intenções, sonhos e
desejos de mudança de vida.
Importante frisar aqui que, no contexto sociodramático, a palavra diagnóstico
significa apenas a compreensão e adaptação do coordenador de um grupo às manifestações
do grupo e necessidades do momento, sem características de categorização. No processo
sociodramático, diagnóstico e intervenção andam de mãos dadas durante todo o caminhar
(DRUMMOND, 2008), como também ocorre nos processos de pesquisa-ação participante e
no modelo educacional de Freire (2005). Não é possível nem desejável realizar longos e
elaborados diagnósticos, até porque muitas vezes se está lidando com populações cansadas
de diagnósticos sem conseqüências e de pesquisas que não resultam em ações. (LE
BOTERF, 1999).
As participantes traziam para essas reuniões assuntos de seu cotidiano e se
expressavam ainda com grande dificuldade para ordenar suas idéias e objetivos,
desconfiadas das minhas intenções. Nesta fase de caos grupal (DRUMMOND, 2008) inda
não havia clareza sobre se eu era mais um dos inúmeros políticos em busca de apoio para
algo, ou um dos aproveitadores de mão de obra barata que abundam na região com falsas
promessas.
A partir dessas primeiras reuniões, fui coletando temas que iriam direcionar
possíveis discussões para as fases seguintes da pesquisa e planejando estratégias
sociodramáticas para superar as barreiras de silêncio. De acordo com as informações
coletadas por mim nos jogos, vivências, dramatizações e círculos de conversa da fase
inicial, foi possível reconhecer que as dificuldades de comunicação do/com o grupo
estavam pautadas primeiramente na diferença cultural e social entre os participantes e eu.
Elas demonstravam constrangimento em conversar comigo usando um vocabulário
coloquial e simples, e, muitas vezes, o silêncio tomava conta das reuniões, exigindo que eu
30
estimulasse o grupo com perguntas e discussões objetivas. Tratava-se, como diz Schön
(1997), de superar o jogo do silêncio e o apego às atitudes defensivas, o embaraço, a
vergonha, a timidez. Para isso, é necessário sensibilizar o grupo e a si próprio, tecer o
“nós”. O pesquisador deve estar preparado para iniciar um processo de troca, pelo qual se
permite que os indivíduos falem, expressem-se, sintam-se acolhidos, num processo
contínuo de co-formação emocional e cognitiva.
Busquei, então, tranqüilizar o grupo, demonstrando total disponibilidade para ouvilas e procurando ser o mais claro possível sobre minhas intenções. Expliquei inúmeras
vezes que desejava ajudá-las gratuitamente com orientações de como se organizarem para
negociar seus produtos.
Apesar das dificuldades de comunicação, nessa fase de identificação e diagnóstico,
compreendi que seria um campo fértil para um trabalho de ação, de pesquisa e de
participação colaborativa, com o uso do sociodrama como estratégia. Precisava construir
com o grupo uma relação de confiança e comunicação dialogal, instituindo o que Barbier
(2004) chama de pesquisador coletivo. Ou seja, um grupo de pessoas que de diferentes
ângulos e com saberes particulares se propõe a juntos revelar e transformar uma realidade.
Identifiquei, então, que a mulher que me procurou inicialmente exercia um papel relevante,
uma vez que demonstrava exercer liderança sobre o grupo. Ela tinha a credibilidade do
grupo e poderia me ajudar a ganhar a confiança do mesmo. Passei assim a compartilhar a
coordenação do grupo com essa líder. Em termos teóricos psicodramáticos eventualmente
ela assumia a função de multiplicadora de jogos e vivências e me trazia as reflexões do
grupo, sendo a principal co-pesquisadora e mantenedora de registros.
A líder atuava espontaneamente, motivando as mulheres a participar das reuniões, e,
muitas vezes, traduzindo o que as mulheres desejavam expressar. Obviamente esta líder
detinha um certo poder sobre o grupo de mulheres, pois ela é que possuía o contato com a
intermediária e ela é que determinava quantas peças de bordados cada mulher recebia por
mês. O fato de que eu tinha um relacionamento de amizade com esta liderança facilitou a
aproximação com o grupo, mas também reforçava a ligação desta mulher com um universo
ao qual as outras ainda não faziam parte.
A segunda grande barreira de comunicação, na fase de identificação e diagnóstico,
foi a falta de confiança do grupo em si mesmo. As participantes sempre esperavam que a
31
líder decidisse por elas e não tinham autonomia para tomar qualquer tipo de iniciativa.
Estavam mergulhadas em um “estado de resignação”, ou seja, de apatia e impotência diante
das dificuldades enfrentadas em suas vidas. Pode ser traduzido em linguagem
psicodramática como um estado de ausência de espontaneidade e de dificuldade de
congelamento de conservas culturais. No entanto, as revelações dessas mulheres, nos
círculos de conversa, demonstraram que estavam ali porque tinham um interesse genuíno
em melhorar suas vidas. Apegando-se a essa motivação e esperança de mudança, foi
possível avançar para além do limite de conhecimento que essas mulheres tinham de sua
própria realidade, podendo assim melhor compreendê-la e nela intervir criticamente,
aquecendo as conservas antes mencionadas.
Constatei que, no meu trabalho com as bordadeiras havia perspectivas, ritmos e
intencionalidades diferentes. Eu precisava de tempo para organizar os conhecimentos que
iam emergindo do processo, já os sujeitos participantes tinham a urgência da ação
transformadora. Eu esperava a participação dos envolvidos, no entanto, esses sujeitos só
começavam a participar à medida que passavam a acreditar criticamente na possibilidade de
transformação que adviria do trabalho. Eu precisava de um coletivo para iniciar meu
trabalho, no entanto, percebia que, frente a grandes desigualdades sociais e culturais, a
organização coletiva só ocorria após um trabalho crítico de aprendizagem social para os
envolvidos.
Compreendi
que
as
diferenças
culturais,
sociais
e
de
intencionalidade
correspondiam a pesadas barreiras na comunicação que impediam o diálogo entre
pesquisador e participantes. Passei, então, a considerar essas diferenças como “silêncios” na
comunicação. Percebi ainda que os sujeitos da prática, embora em maior número, não
conseguiam expressar seus sentimentos e valores, fechando-se na condição de
desfavorecidos sociais, calados por força de suas histórias pessoais e das situações
opressivas em que vivem.
Uma das grandes dificuldades com que se deparam pesquisadores da tradição latinoamericana da pesquisa-ação, ao estruturar uma ação comunicativa com os sujeitos da
prática, é a eventual existência de uma grande diferença cultural entre pesquisador e os
membros do grupo. E, nesse caso, aproximar-se para conhecer e compreender o universo
cultural desses sujeitos é o primeiro e grande desafio a ser enfrentado pelo pesquisador. Em
32
experiências no Brasil (BIDART-NOVAES, 2008ab) constatei como também o fizeram
outros autores (FRANCO, 2005, PONTES 2007) que os sujeitos envolvidos nos processos
de pesquisa-ação tinham grande dificuldade de expressão e comunicação, em decorrência,
em parte, de processos históricos de opressão. Eram pessoas que assumiam uma atitude de
resignação diante de condições sociais desfavoráveis, como condenadas ao silêncio. O
silêncio precisava ser substituído pelo diálogo a fim de que a realidade opressora fosse
superada. Nesse sentido, a pesquisa-ação e o sociodrama podem promover a produção
coletiva de conhecimento e transformações sociais, de forma emancipatória e não
manipulativa.
O “estado de resignação” pode ser definido como um sentimento de impotência, de
incapacidade de reação, um estado de apatia e conformidade por acreditarem-se incapazes
de promover mudanças profundas em seus destinos. Esse conceito se aproxima ao conceito
de “oprimidos” que Paulo Freire (2005) considera como a condição de “ser menos”, vítimas
de uma desumanização provocada por uma ordem social injusta, pela violência dos
opressores que exploram os menos favorecidos. E somente uma pedagogia libertadora
poderá transformar oprimidos em homens críticos e libertos. Uma pedagogia que não pode
ser prescrita, imposta ou elaborada pelo opressor, mas que deve ser forjada “com” o
oprimido e não “para” ele, ou seja, como a “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire
(2005) ou o Psicodrama de Moreno (1997).
Para superar este estado há a necessidade da construção lenta e contínua de um
universo comum de participação. O que implica essencialmente a utilização de atitudes não
arrogantes; o exercício de ouvir e compreender discursos elaborados em diferentes sintaxes
culturais; o rompimento com a assimetria das relações e a aceitação de todos os envolvidos
como indivíduos ativos e pensantes (Freire, 2005; Fals Borda, 1980). Implica
principalmente reconhecer e ajudar a desenvolver uma pedagogia própria dessas pessoas
(Freire, 2005), por meio de dramas em que “Os atores não eram quaisquer pessoas, gente in
abstracto, mas a minha gente, meu pai, minha mãe, meus irmãos, minhas irmãs, meus
amigos e vizinhos.” (MORENO, 1997, p. 64)
Portanto, o primeiro passo foi, sem dúvida, quebrar a “cultura do silêncio” (Freire,
2005, p. 201). Silêncio gerado na cultura opressora, permitindo que essas mulheres
emergissem da ingenuidade para a esfera da crítica, da passividade à ação, da dor à
33
esperança, da resignação à utopia, constituindo-se em seres capazes de transformar a
própria realidade em comunhão com outros. “A união dos oprimidos exige deste processo
que ele seja, desde seu começo, o que deve ser: ação cultural” (FREIRE, 2005, p. 202). O
sociodrama é útil nesta ação pois como lembra Marra (2006, p. 98) trata-se de um “[...]
método psicopedagógico de trabalho com grupos, que facilita a aprendizagem de conceitos
e atitudes a partir da vivência pedagógica.”
Na pesquisa-ação aqui relatada, a transformação foi percebida como necessária no
início dos meus trabalhos do pesquisador com o grupo, num processo que valorizou a
construção cognitiva da experiência, via reflexão crítica coletiva. Buscou-se, portanto, a
emancipação dos sujeitos. Um aspecto a destacar aqui é que, segundo Franco (2005),
quando o grupo procura o pesquisador, tomando a iniciativa de um projeto de pesquisaação participante visando à transformação de sua realidade, podemos considerar o trabalho
sob uma perspectiva crítica. Entendemos como crítica, neste trabalho, a perspectiva
dialética, emancipatória e participativa adotada por autores citados ao longo deste artigo.
A fase de identificação e diagnóstico foi muito importante, também, para que eu
percebesse que minha missão nessa pesquisa-ação iria muito além do que orientar o grupo a
criar uma cooperativa de trabalho. As mulheres estavam junto comigo construindo um
coletivo empreendedor, ou seja, um espaço de aprendizagem mútua e parceria em que elas
e eu estaríamos nos integrando num processo cíclico de transformação de nossas realidades
e de superação de “estados de resignação” de ambos os lados diante de condições
opressoras.
O trabalho com o grupo pode ser dividido em quatro grandes fases. A primeira pode
ser considerada como de identificação e diagnóstico da situação-problema e do grupo, a
segunda de sensibilização do grupo, a terceira a de organização para a produção e a quarta
a de efetiva produção. De um total de 32 encontros pode-se considerar que as 12 reuniões
iniciais foram de identificação e diagnóstico e sensibilização, que associamos à abertura do
espaço comunicativo por meio de sessões sociodramáticas, tema principal discutido neste
trabalho. Apresento também duas situações de conflito em que busquei atuar
sociodramaticamente, com mais ou menos sucesso.
No próximo tópico, são apresentadas as estratégias que utilizei com o grupo de
bordadeiras para a abertura do espaço de pesquisa conjunta. Estratégias baseadas no
34
sociodrama e que ajudaram a romper o silêncio do grupo e a aproximar os universos
culturais do pesquisador e dos sujeitos da prática.
3.1 Rompendo o silêncio
A noite engoliu o tempo. Com serenidade ela espalhou o silêncio de onde
emergem as palavras e para onde elas retornam. No entanto o silêncio
pode por vezes romper-se de improviso. Lá onde menos se espera vem
surgir na superfície da consciência a bolha de uma lembrança, de uma
vaidade, de um desejo, de uma humilhação, que sobem do mais profundo,
fazem renascer um mundo desaparecido.
François Jacob (1987)
O silêncio que, muitas vezes, tomou conta dos círculos de conversa, na fase de
identificação e diagnóstico, dificultou que o grupo começasse a expressar seus anseios,
necessidades e seus temas de interesse. Freire (2005, p. 115) explica que o que pode parecer
inexistência de temas sugere, pelo contrário, “a existência de um tema dramático: o tema do
silêncio. Sugere uma estrutura constituinte do mutismo ante a força esmagadora de
‘situações-limites’, em face das quais o óbvio é a adaptação”. O grupo de bordadeiras
expressava no silêncio sua impotência de superar as condições adversas em que vivem.
Na perspectiva crítica em que me baseei, as estratégias tiveram como pressuposto
epistemológico a problematização da realidade, com o objetivo de ajudar as participantes a
desenvolver processos críticos de conscientização de seu papel social, buscando soluções
coletivas para seus problemas.
Coletei com o grupo, nos jogos, vivências e círculos de conversa das reuniões
iniciais (fase de identificação e diagnóstico) temas relacionados aos interesses das
participantes. Fundamentei-me no conceito de “temas geradores” de Freire (2005) e no
conceito de shared central issue (tema central compartilhado) de Sternberg e Garcia
(2000). Estas autoras propõem que o coordenador sociodramático deve ouvir os vários
assuntos trazidos à tona pelo grupo em cada sessão. Aquele que mais interessar ou atrair a
atenção do grupo será escolhido para ser trabalhado. Procurei expandir este conceito
mantendo em mente que se tratava de um projeto inicialmente de um ano, de modo que
alguns temas poderiam ser guardados para ser retomados.
Segundo Freire (2005), os temas se chamam geradores porque contêm em si a
possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas que, por sua vez, provocam novas
35
tarefas que devem ser cumpridas. Para Freire (2005, p. 101), o que se pretende investigar
com os temas geradores não são os homens, “mas o seu pensamento linguagem referido à
realidade, os níveis de percepção desta realidade, a sua visão de mundo, em que se
encontram envolvidos seus temas geradores Como antes mencionado, para esses
“aquecimentos coletivos”, a cada reunião do grupo de bordadeiras, eram utilizados jogos e
vivências (Yozo, 1996; Brown, 2004) que ao mesmo tempo serviam para quebrar o silêncio
inicial dos encontros e para unir o grupo.
Com o objetivo de integrar o grupo e levantar as expectativas iniciais, utilizei na
primeira reunião a técnica a seguir descrita. Como um aquecimento específico, foi feito um
“coquetel” (Figura 1 na página seguinte), durante o qual pedi às mulheres que
conversassem em duplas e que trocassem as duplas a cada cinco minutos, a um sinal que eu
fazia batendo palmas. O tópico sugerido das conversas era o que elas achavam que tinham
vindo fazer e o que esperavam do encontro. Passei então á cena em si. Com o grupo
sentado então em círculo, pedi a cada participante que contasse as melhores conversas que
tinha tido e o que mais a tinha interessado nos parceiros de conversa. Ao final, como
compartilhamento, junto com o grupo, fiz uma síntese dos assuntos mais relevantes, de
como tinha sido o encontro e dos sentimentos envolvidos.
Nessa reunião, sem nenhuma dúvida, o tema central foi a questão de como aumentar
a renda de seus trabalhos de bordado realizados em casa. Já surgiram, no entanto, outros
temas em torno deste, como os obstáculos colocados por alguns maridos, a dificuldade de
com quem deixar crianças e o desejo de ter empregos e rendas fixos.
Como afirma Drummond (2008), é diante do grupo e face a face com os membros
dele que podemos aprofundar o planejamento e o nosso olhar. O pesquisador, ao se deparar
com uma realidade para ele desconhecida, precisa também se aquecer, para abrir novas
possibilidades de visão e perceber como está o grupo e quais facilidades e dificuldades
enfrentam no cotidiano. Sem slogans e materiais prontos que muitas vezes só servem para
acalmar o nervosismo do “pesquisador-educador-diretor”.
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Figura 1 – O coquetel
Foto: Marcos Bidart Novaes
Nessa fase de abertura do espaço comunicativo, as atividades e técnicas
sociodramáticas de aquecimento, jogo (cena) e compartilhamento utilizadas foram, pouco a
pouco, rompendo o silêncio. Apesar da dificuldade imposta pela restrição de tempo, uma
vez que as mulheres neste início de trabalho dispunham de apenas duas horas no máximo
disponíveis, foi lentamente se construindo o “projeto dramático” (AGUIAR, 2006, p 141).
Palestras dadas pelas próprias integrantes do grupo foram uma constante, sobre os próprios
produtos que sabiam fazer ou já haviam feito no passado.
Em um dos encontros, por exemplo, a estrutura foi a seguinte: Aquecimento: O
grupo chegando lentamente e eu as estimulei a lembrar quem eram suas professoras na
escola. Foram contando episódios e lembrando. Perguntei após algum tempo se a
professora naquele dia podia ser uma delas. Responderam tímidas que sim, “desde que não
seja eu”. Cena: A líder das bordadeiras foi convidada a contar a história de como tudo
começou (Figura 2 acima). Relatou sua história com os bordados. Falou também do número
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de peças que bordavam no começo e como isso cresceu. Teve mais de meia hora para
contar com riqueza de detalhes toda a história do empreendimento. Compartilhamento:
Após a palestra, o grupo foi convidado a sentar em círculo e conversar sobre o que mais
havia marcado nessa história e como o trabalho delas poderia se desenvolver.
Figura 2 – A líder “dando aula”
Foto: Marcos Bidart Novaes
Em outro encontro, marcante e que entrou para as histórias que o grupo contava
para recém-chegadas, retransmitimos em vídeo e debatemos matéria que havia sido
transmitida na televisão há poucos dias sobre a exploração de bolivianos no mercado têxtil
de São Paulo. As mulheres identificarem que pelo fato de trabalharem de forma informal, e
nas mãos de intermediários, a situação delas se assemelhava muito à desses imigrantes
ilegais. Neste encontro o aquecimento havia sido estruturado e cognitivo, com a lembrança
das discussões anteriores sobre renda familiar e a proposta de reflexão em grupos de três
sobre quanto uma pessoa precisa ganhar para viver de forma organizada e tranqüila.
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A cada encontro, de forma informal, pois havia percebido que uma “leitura de ata”
dispersava o grupo, eu sempre pedia para o próprio grupo contar e recontar para as recémchegadas (e sempre as havia) o que estavam fazendo e o que havia acontecido na reunião
anterior. Aos poucos, com pequenas vitórias, e com a repetição de reuniões e com o
recontar das histórias a união do grupo foi acontecendo. Depois de aproximadamente 12
encontros havia um núcleo fixo de aproximadamente 15 mulheres que a esse momento já se
mostravam impacientes por “fazer” algo, no sentido de produzir, de gerar renda para suas
famílias ou aumentar a receita dos bordados.
Sempre eram feitos jogos novos de aquecimento e sensibilização. Por exemplo, o
jogo de histórias populares ou infantis, em que elas eram convidadas a dar continuidade a
histórias iniciadas com leitura e interrompidas em um ponto qualquer. Estes jogos não eram
usados apenas como instrumento de aquecimento e sim como um estímulo ao posterior
compartilhamento de pensamentos, emoções e desejos ligados ao projeto. Dentro da teoria
sociodramática organizacional, este é um ponto importante: que a maior parte possível do
que é dito e trazido à tona seja aproveitado para a concretização em planos de ação de
transformação da realidade grupal. Serve também para que o diretor se inteire em um clima
lúdico e afetivo sobre os assuntos que mais preocupam o grupo no momento. No meu caso
com toda atenção para lidar com assuntos organizacionais e ligados à criação do coletivo
empreendedor e não me aventurar em terrenos para os quais nem estou preparado nem
tenho a permissão ética e profissional para atuar.
Em trabalhos dessa natureza, é difícil delimitar fases de forma estanque, dentro das
sessões e no trabalho visto em ciclos mais amplos. A meu ver, três momentos foram
decisivos para que se estabelecesse o espaço comunicativo necessário para a formação do
coletivo empreendedor.
Na terceira reunião realizei um aquecimento em que pedi para elas sentarem em
pequenos grupos ou duplas e lembrassem dos pequenos negócios que mais chamavam sua
atenção na comunidade. Rapidamente pedi a elas para me contarem o que havia surgido na
conversa e porque os negócios eram atraentes. Parti então para a cena em si. Pedi que um
voluntário se apresentasse. Após um certo constrangimento o grupo de forma brincalhona
“elegeu” uma voluntária, uma das mulheres mais extrovertidas, como é comum em
situações deste tipo. Perguntei se ela sabia o que estava ali para fazer e ela disse que não.
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Dei então a ela uma peça de roupa de presente. Pedi então a elas que conversassem sobre o
ocorrido e que relação isto tem com nosso trabalho conjunto. As próprias mulheres
disseram que a vivência havia mostrado é que para que elas melhorassem suas condições
precisam dar um passo à frente, correr riscos, enfrentar o desconhecido. Todas ganharam
então uma peça de roupa similar e conversou-se sobre o que isso tem a ver com a idéia de
uma cooperativa. Ficou claro que em uma cooperativa a idéia é que todos ganhem, mas
ficou registrada a informação de que cada um ganha pelo fruto de seu trabalho.
Esta pequena vivência teve forte impacto sobre o grupo. Serviu para conscientizar o
mesmo para a necessidade do impulso individual e da atuação de cada uma delas para que o
ganho coletivo fosse atingido. Era um dos episódios que sempre era contado quando
chegavam novas integrantes.
Em outra reunião o grupo trouxe como síntese de uma discussão coletiva realizada
entre elas durante a semana, com apoio apenas da sua liderança seus desejos com a seguinte
formulação, na minha análise posterior ainda com uma conotação individualista: Queriam
ter a oportunidade de sair mais de casa, de aprender coisas novas e de ganhar o próprio
dinheiro. O fato de que o grupo já se reunia sem interveniência e hora marcada pelo
pesquisador demonstrava um impulso e voz própria, denotando que o silêncio inicial
começava a se romper.
A liderança comunitária conseguiu manter este encontro intermediário entre as idas
semanais do pesquisador à comunidade. Auxiliei a líder do grupo a entender mesmo que de
forma simples como eu conduzia os encontros, deixando o grupo e eu mesmo nos
aquecermos, realizando um jogo e compartilhando. Mesmo com a dificuldade que ela tinha
com a questão de cenas ou jogos, compreendia a importância do aquecimento e sempre me
pedia idéias. Sempre sugeri que ela aquecesse o grupo com as atividades delas, mas feitas
de forma criativa, como bordar em conjunto, coisa que raramente faziam, ou falar de seus
estados e famílias de origem, pois reclamavam que havia percebido que eram vizinhas, mas
se conheciam pouco. Entre o sexto e o sétimo encontro, a líder do grupo havia conseguido
durante a semana, sem a participação do pesquisador, formular o objetivo do grupo da
seguinte forma, já voltado para a ação coletiva: (1) valorização do trabalho da mulher; (2)
renda justa por meio de uma cooperativa; (3) trabalhar no bairro e desenvolver o mesmo.
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No décimo segundo encontro, a atividade de aquecimento foi falar entre elas um
pouco sobre a infância e quais as brincadeiras preferidas de cada uma. Como jogo propus
ao grupo compor letras para colocar em melodias infantis ou não, conhecidas de todos. Foi
solicitado ao grupo, dividido em três equipes, que fizessem paródias com letras contando
como estavam se sentindo em relação à constituição da cooperativa. Drummond (2008)
explica que a música como forma de expressão permite ultrapassar de forma criativa a
dificuldade em comunicar o que se sente e percebe em relação ao trabalho organizacional.
Afirma também que o humor é a forma mais simples e por vezes a única de fazer
participantes de grupos perceberem a seriedade do conteúdo com o qual lidam, por meio da
criação inusitada. O resultado desta atividade denotou melhora da auto-estima, integração
do grupo, construção de uma identidade comum e um objetivo comum. O espírito do grupo
nesse momento pode ser depreendido desta letra composta (música da Xuxa):
Tá na hora tá na hora
Ta na hora de cooperar
Pegue tesoura e linha
E vamos todos trabalhar
Dá um pulo vai pra frente
Que não sabe vai aprender
Aqui na cooperativa
Ninguém fica sem saber
Cooperar e cooperar oh oh oh
Cooperar e trabalhar oh oh oh
Com a cooperativa da cratera
Todas vamos chegar lá
Confiança e Amor, Humildade e Compreensão
Com mais ajuda e confiança
A gente constrói a União
Ou desta outra (música de Roberto Carlos):
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Acredite, é hora de vencer
Esta força vem de dentro de você
Você pode, é só acreditar e vencer
Acredite que nenhum de nós já nasceu com jeito de super-herói
Vamos juntas, através da união e seremos as Mulheres em Ação !!!
A abertura do espaço comunicativo não foi um processo linear e sim feito de idas e
vindas. Em determinados momentos o pesquisador teve a impressão de que “perderia o
grupo”. Precisava sempre se lembrar que deveria aceitar os resultados que viessem, e que
estava engajado, não só na transformação do sistema que estava pesquisando, como
também na sua própria transformação (COGHLAN & BRANNICK, 2005; BARBIER,
2004).
3.2 O sociodrama a serviço da sensibilização mútua e como forma de lidar com os
conflitos e diferenças.
A pesquisa-ação é hoje muito usada para aproximar pesquisadores e grupos de
sujeitos da prática. Como apoio do sociodrama torna-se ainda efetiva para a “tradução”
necessária para que grupos oriundos de diferentes meios e com diferentes necessidades se
aproximem. Usamos aqui a palavra tradução, com as devidas licenças de nível, no sentido
de “que uma necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada cultura pode ser tornada
compreensível e inteligível para outra cultura” (SANTOS, 2007, p. 31).
Santos (2007 p. 30) nos lembra que “como a solidariedade é uma forma de
conhecimento que se obtém por via do reconhecimento do outro, o outro só pode ser
conhecido enquanto produtor de conhecimento”. Afirma também que a construção deste
conhecimento com características multiculturais esbarra exatamente na questão do silêncio
e da diferença. Silêncio causado pelo fato de que algumas culturas tiveram suas formas de
ver e conhecer o mundo tornadas impronunciáveis. O silêncio é na visão do autor
português, um sintoma de um bloqueio, de uma potencialidade que não pode ser
desenvolvida. A grande questão que se coloca é “como fazer falar o silêncio sem que ele
fale necessariamente a linguagem hegemônica que o pretende fazer falar” (SANTOS, 2007,
p. 30).
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Esse sintoma só pode ser enfrentado com paciência e dando voz ao grupo, no seu
ritmo, a seu tempo e com sua linguagem e com reflexão do pesquisador sobre suas próprias
realidades introjetadas e maneiras de ver o mundo. Uma vez que “[...] ninguém pode dizer a
palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual
rouba a palavra dos demais” (FREIRE, 2005, p. 91). O que Freire chama de diálogo é em
muitos momentos próximo do que Moreno chama de encontro. Apenas como parêntese fico
pensando que os dois mestres gostariam muito de se encontrar e dialogar.
Por isto o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em
que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao
mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de
depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples
troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes. [...] Porque o
encontro de homens que pronunciam o mundo, não deve ser doação do
pronunciar de uns a outros. É um ato de criação.
Paulo Freire (2005, p. 91)
Esta foi exatamente uma das dificuldades que enfrentei durante da pesquisa. Como
o trabalho se desenvolvia no âmbito de uma dissertação de mestrado, para um programa de
mestrado em Administração de Empresas, precisei reconhecer, após algum tempo de
trabalho que, em alguns momentos, estava querendo forçar o grupo de mulheres para
soluções provenientes de modelos de negócios preexistentes, oriundos da academia e da
prática de gestão, e não criados no próprio ritmo e vontade do grupo. O próprio grupo e sua
coesão precisavam ser criados e esta tarefa deveria estar acima de meu trabalho e minha
agenda, sob o risco do trabalho perder a característica emancipatória que eu pretendia. Ou
seja, precisava me preparar para relatar talvez apenas a construção do coletivo, sem ter
alcançado resultados concretos após um ano, prazo previsto para o trabalho conjunto.
Percebia já que talvez não pudesse, por questões éticas, abandonar o grupo à própria sorte
no prazo previsto nem interferir em momentos como o que narro abaixo, em que o uso do
sociodrama serviu apenas como ferramenta de reflexão.
Ao chegar numa sexta-feira na comunidade em que se desenrola o trabalho, me
deparei com uma revolução na pequena oficina, cedida em um dos cômodos da casa da
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líder do projeto. Uma das integrantes do grupo havia conseguido uma encomenda em
regime de produção semi-industrial de 3.500 peças de roupa feminina, pelas quais o dono
de uma pequena fábrica de roupas se dispunha a pagar US$ 2.20 por peça pronta.
Figura 3 – A grande encomenda
Foto: Marcos Bidart- Novaes
Sem o mínimo de planejamento já haviam começado a desembalar as partes de
roupa para começar a fazer as peças. Tentei formular perguntas simples sobre quanto
tinham de prazo e quanto tempo levariam para fazer cada peça, que ficaram naquele
momento sem resposta. Preferi naquele momento manter apenas uma conversa com a líder
das mulheres sobre qual a opinião dela em relação ao assunto, para se adequar às
expectativas e poder ajudar. A opinião dela era clara. Aquilo era o objetivo para o qual
tinham trabalhado tanto, aquela era uma benção trazida pela providência divina. Segundo
ela o grupo deveria agarrar aquela oportunidade e se dedicar ao máximo. Já a minha
44
opinião era bem diferente. Mesmo sem fazer muitas contas, aquela operação de costura me
parecia exatamente igual à de bordados antes de se tentar eliminar intermediários. Mesmo
sem fazer as peças na prática elas me diziam que achavam que no nível de capacitação
delas iriam conseguir fazer uma peça por dia. Ou seja, ganhar menos de US$ 2,00 por dia,
já que algo teria que ficar para a cooperativa para pagar custos de energia e das máquinas.
Neste momento meu dilema como pesquisador e participante se apresenta. Como
dizer o que acho sem ser apontado como uma liderança negativa e aquele que está
interferindo no sucesso? Até porque em momentos anteriores havia ocorrido muita pressão
sobre mim para que fizéssemos algo. A ênfase que eu colocava em capacitação, preparação
e planejamento era considerada como um entrave à necessidade de ganhar dinheiro
imediata. Até eu mesmo havia me questionado nos ciclos de reflexão e ação se a questão do
planejamento não era uma postura de meu paradigma de administrador oriundo do mercado
de grandes empresas e da academia.
Logo os primeiros problemas começaram a surgir. As máquinas de costura, que se
mostravam adequadas para trabalhos de artesanato quebravam com frequencia quando
submetidas a um regime semi-industrial. A capacitação das mulheres se revelou
insuficiente e as peças saíam com defeitos. Defeitos estes que elas a princípio queriam
negar, dizendo que os serviços estavam bons. Foi necessário preparar um primeiro lote de
dez peças e levar para o dono da encomenda, e verificar que oito foram rejeitadas, para que
elas entendessem o nível de perfeição que seria exigido.
A esta altura uma das mulheres, a mais velha delas, de 66 anos, que já havia
trabalhado em indústrias de jeans e de uniformes, e que em reuniões anteriores havia sido
eleita como coordenadora técnica, assumiu um papel preponderante. Ela, que até então era
uma pessoa doce e agregadora, tornou-se uma espécie de chefe de oficina industrial à moda
antiga, impondo um ritmo de trabalho forte, mandando as outras desmancharem as peças
assim que observava defeitos e cobrando perfeição. Paulo Freire (2005 p.36) observa em
relação a isso: “Raros são os camponeses que ao serem promovidos a capatazes, não se
tornam mais duros opressores de seus antigos companheiros do que o patrão mesmo.” E
lembra que esta situação de “consciência-hospedeira” da sombra do opressor se dá porque a
situação de opressão em si não foi transformada. Neste caso está representada pelos
45
baixíssimos rendimentos, pressão por prazos, presença de intermediários que ficam com o
grosso do valor do trabalho.
Eu como pesquisador me sentia comovido pelo esforço, mas na dúvida sobre qual a
atitude mais correta preferindo dar um passo atrás e deixar o grupo aprender. No entanto
assistia com grande pesar um esfacelamento do grupo longamente constituído, a perda do
capital social acumulado, a perda da confiança, o surgimento de facções rivais. Eram
buscados culpados e ocorriam os mecanismos descritos por Argyris (1969), de negação,
projeção, vacilação e ambivalência. Por vezes eu mesmo era responsabilizado pelo conflito,
por deixar a senhora mencionada acima ser tão dura. Outras mulheres me davam a entender
que eu deveria interferir para que ela não fosse tanto ao trabalho na oficina para que elas
“trabalhassem em paz.”
É Freire (2005) de novo que lembra que a libertação é um parto, e um parto
doloroso. O pesquisador-ator participante já entra nesta comunidade de certa forma sabendo
que faz parte do que é para estas mulheres o mundo do opressor. O mundo em que o
trabalho que elas fazem por R$ 3,00 ao dia é, depois de passar por algumas mãos, vendido
por R$ 50.00, sem que elas compreendam exatamente como isto ocorre. “Descobrir-se na
posição de opressor, mesmo que sofra por este fato, não é ainda solidarizar-se com os
oprimidos. A leitura e a prática de Freire (2005) e de Moreno me levaram a uma
compreensão de que solidariedade e encontro ocorre quando meus gestos deixam de ser
gestos sentimentais e passem a ser gestos de amor. Isto é. quando oprimidos deixem de ser
uma categoria abstrata e passem a ser homens concretos, injustiçados e roubados.
Estas reflexões levadas ao pé da letra talvez me levassem a agir em direção e
influenciar o grupo a abandonar o mais rápido possível a encomenda desagregadora. No
entanto, eu não conhecia naquele momento nenhuma outra maneira de fazer isso que não
fosse manipulando o grupo a pensar como eu penso. Preferi em vez de tentar educar para
algo que eu achava correto, me deixar educar pela situação e aprender com o grupo. “Desta
maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado,
em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa”.(Freire, 2005, p.79).
Precisei manter em mente em relação à prática da PAP e do sociodrama, a questão
de dissociar o que estava acontecendo no campo externo da ação do que estava acontecendo
no âmbito interno de minhas reflexões como pesquisador. Mesmo que o grupo àquela altura
46
se dissolvesse, todos teríamos aprendido muito. O desfecho deste episódio foi bem difícil.
Do grupo de vinte costureiras que havia se formado, apenas oito manifestaram interesse em
continuar, as outras deixaram o projeto, alegando motivos diversos. A maior parte delas
afirmando a necessidade inquestionável de renda imediata para sobreviver.
Nestes momentos precisei de ajuda externa. Em conversa com Joceli Drummond
(2008), psicóloga e psicodramatista experiente recebi o feedback de que o grupo poderia
neste momento passar por um processo de dissolução. Ela me sugeriu que fossem
realizadas vivências para unir e motivar o grupo. No encontro seguinte convidei então a
psicodramatista para dirigir o encontro e poder depois triangular percepções.
No total eram 22 mulheres neste encontro, que foi aberto a outras mulheres da
comunidade. Três delas com crianças de colo, sendo que uma delas com duas. Solicitou-se
a C., a mais antiga presente que apresentasse às mais novas o que estava sendo feito e o que
estávamos aprendendo. Ela disse que o objetivo do trabalho era formar mulheres cidadãs,
que soubessem trabalhar em grupo e com independência financeira. Passou-se a levantar as
expectativas e o que as mulheres achavam de trabalhar em grupo. Algumas frases
recolhidas foram: É melhor. Pode ganhar mais. Rende mais o serviço. Prefiro trabalhar só,
em grupo fala muito. Pediu então que todas se levantassem, se dessem boas tardes e boas
vindas e explicou que trabalharia com tricô e crochê. Distribuiu lãs e elas começaram, ainda
meio desconfiadas e muitas dizendo que não sabiam. Joceli perguntou o que é trabalhar em
grupo, as respostas foram registradas pelo autor da pesquisa no quadro. Com as duas
últimas respostas elas explicitaram que queriam dizer que é preciso concentração e não ter
vergonha de perguntar o que não sabe. O grupo trabalhou de início individualmente e
depois lentamente foi incentivado a se ajudar mutuamente, a ver quem estava com mais
dificuldade.
Perguntou o que elas achavam que tinha a ver com trabalhar em grupo. Conceitos
que surgiram durante o compartilhar:
Parceria
União
Atingir objetivos
Está difícil de fazer
Vamos fazer um grande negócio
47
Tem que segurar bem e prender
Um ajudar o outro
Emprestar material
Joceli Drummond passou então a também explicitar o que aconteceu. Lembrou que
parceria é emprestar o material. Que ajudar os outros aconteceu muito, em especial as que
sabiam ensinando as que nunca tinham visto tricô ou crochê. Lembrou que a mulher com a
criança no colo mostrou a todas o que é perseverança e decisão, que não gosta de falar
muito, mas dá o exemplo. Lembrou que é verdade que cada uma vai fazer as coisas de um
jeito diferente e que é mesmo preciso lidar com os jeitos diferentes de ser.
Após o grupo se unir em torno de que estes comportamentos eram negativos e deviam
ser evitados, Joceli Drummond fez uma dinâmica com botões, cada uma agradecia a outras
por algo, trocando um botãozinho. Várias delas mostraram coisas que estão fazendo. O que
mais me impressionou foi uma blusa simples, feita por R., que até pouco tempo atrás nem
sabia enfiar uma linha na máquina de costura.
Figura 4 – Ajuda mútua
foto: Marcos Bidart-Novaes
48
Joceli então perguntou o que atrapalhava. Conceitos que surgiram:
o Parar
o Desistir
o Modos diferentes de fazer, jeitos diferentes de ser
o Ter que aprender dá trabalho
o Conversar demais
o Desatenção
o Desânimo
o Palpite errado
Figura 5 – Criança no encontro
foto: Marcos Bidart-Novaes
Outra importante crença a princípio velada do pesquisador, e que foi desmascarada
no contato com o grupo por meio do sociodrama, é a de “comunidade”, como já alertado
por Le Boterf (1999). Este termo mascara interesses opostos que existem dentro de grupos
sociais, que precisam ser trazidos à tona.
49
Para mim, pesquisador de classe média, foi relevante a constatação vivencial de que no que
parece ser uma “comunidade pobre”, há segmentos e frações de classe social e de
identificação religiosas, com desejos e orientações diferentes. Não há em um bairro como o
descrito, e no grupo de mulheres, consensos sociais e sistemas de valores comuns que lhes
permitam ter de imediato qualquer forma de identidade comum para se opor a agressões
culturais e econômicas exteriores. Realizar um estudo desta situação social da população ao
mesmo tempo em que se integra o grupo em torno de objetivos comuns é de fundamental
importância para um trabalho participativo. Há que se considerar as diferenças de poder e
de inserção social como as mencionadas antes em relação à situação da liderança do grupo
e seu contato com o pesquisador e com a dona da loja de bordados. Há que se considerar
também dentro do próprio grupo as diferenças entre aquelas pessoas que possuem
condições mínimas de sobrevivência e outras que vivem uma luta diária para tal.
Figura 6 – A felicidade com a obra
foto: Marcos Bidart-Novaes
50
3.3 O Sociodrama nas organizações lidando com o indivíduo
Em muitos momentos do trabalho houve a necessidade de conversar
individualmente com participantes. Apesar do foco do trabalho ser organizacional, a minha
presença permanente em campo levou como em toda organização a interações constantes
com as integrantes do grupo. Algumas conversas foram absolutamente informais, em outras
o pesquisador usou de técnicas de entrevistas, tomando sempre as devidas precauções
éticas.
Em especial em momentos de conflito procurei conduzir entrevistas em que algumas
perguntas (ou interlocuções) eram feitas usando o que aprendi com a técnica do duplo do
psicodrama, como mostram os trechos abaixo. Como não era uma dramatização, não me
permiti falar por ela na primeira pessoa, mas tentei expressar seus sentimentos na pergunta.
Entendi que estas entrevistas (ou conversas) com as envolvidas no conflito neste momento
era uma das formas de as apoiar a melhor entender o que estava acontecendo e fazer com
que as próprias entrevistas fossem ferramentas comunicativas de dissolução do mesmo e
não apenas ferramentas de pesquisa para uso do pesquisador. Como na entrevista com a
D.A, com trechos a seguir.
Pergunta: A Sra disse que está cansada? A Sra se arrepende?
D.A. Estou muito cansada. Vou dois períodos. Preferia arranjar alguém que
soubesse manejar as costuras.
P.: Só a Sra. é profissional não é?
D.A. As costureiras não são profissionais. Fazem remendos, não são a mesma coisa
que profissionais. Estamos com serviço atrasado. Por mim não tínhamos pego a
encomenda. É quantidade de roupa para dez máquinas trabalhando o tempo todo. As duas
máquinas de lá quebram o tempo todo e a gente não consegue arrematar
P.: A Sra. preferia desde o começo não pegar... e agora?
51
D.A. Estipulei para a D. que deveríamos devolver. O marido disse que não era
possível, que a gente tinha que mostrar que era capaz. Mas achei que era difícil, pois
precisava cinco profissionais.
P.: Mas a Sra. é uma grande profissional, está ensinando muito a estas moças...
D.A. Isto é bom, mas se a gente tivesse continuado com o serviço que nos
começamos seria melhor. Mas a D. achou este melhor. Entendo que ela não tinha
experiência deste trabalho. Tentei convencer ela que não ia dar certo. As costureiras não
eram capacitadas. Eu estou sentindo na pele que o peso deste serviço está todo sobre mim.
Agora melhorou que a D arranjou mais gente, mas vamos ver se vai ser aprovado. É um
serviço pequeno, mas cheio de detalhes.
P. O peso está todo nas suas costas?
D.A. Quando fui levar as peças a mulher não aprovou nada. Arrumei as peças e
mandei. Agora voltou uma das peças para arrumar uma das peças. Só eu sei fazer isso.
Agora paramos a costura. D. mandou parar para separar, pois as separadeiras
misturaram as peças. Uma hora faltava um bolso, outra hora uma gola. Comentamos com
a D. e ela disse que achava melhor parar tudo e separar. A partir de segunda continuamos,
pois se falta uma peça não podemos continuar. Ele é todo preparado aberto para depois
fechar. A Sra. que pegou as peças já foram todas começadas.
...............................
P. E depois desde período de aprendizado o que devemos fazer?
D.A. Se ele não der um corte mais maneiro não sei. Somos hoje cinco na parte da
manhã e seis na parte da tarde. Todo dia chega costureira, mas todo dia vai embora. Se
manda desmanchar vai embora, descobre que é difícil. Voltava para cobrar, descobre que
não tem salário, que é por peça pronta. Querem trabalhar, mas por salário fixo.
P. A senhora acha melhor fazer uma colcha de retalho, uma blusa, roupas para
evangélicas? (esta minha afirmação vinha de partes anteriores de nosso diálogo)
52
D.A. No meu a ver eu gostaria que fosse assim. O que não vendesse na hora,
quando tivesse uma feirinha colocava uma pessoa de garra ali e vendia. A gente tem amiga
tem colega, vendia, oferecia peça de roupa e vendia.
P. O que aconteceu afinal? Faltou reunião?
D.A. Nós assistimos uma peça na cidadania da mulher sobre um homem que
chegou na cooperativa encomendou tantas peças e elas pegaram dinheiro no banco para
fazer as peças. No fim o homem não veio buscar as peças e elas ficaram com a mão na
cabeça. Elas ficaram depois culpando a presidente porque pegou a encomenda. (rs).
Aconteceu a mesma coisa com a gente. Falei para a D. que era cedo para a gente pegar
1000 e poucas peças.
Mesmo que o grupo àquela altura se dissolvesse, todos teriam aprendido muito. A própria
D. A havia feito e concluído cursos de cooperativismo.
Figura 7 – O orgulho com a conquista
foto: Marcos Bidart-Novaes
53
3.4 A decisão de constituir a cooperativa: conflitos, erros e acertos.
Em novembro de 2007 um novo momento importante acontece. A outra parte do
grupo, formada pelas bordadeiras, vive um acontecimento importante. Desde setembro a
líder do grupo havia conseguido identificar no bairro do Brás, área atacadista têxtil de São
Paulo, a loja de propriedade de uma senhora coreana em que os produtos artesanalmente
bordados por elas eram expostos e comercializados. Em contato com esta comerciante
havia sido possível convencê-la de que os bordados eram feitos por um único grupo de
mulheres na periferia de São Paulo. A comerciante concordou em fazer uma experiência
com 1000 peças iniciais, pelas quais pagaria R$ 5,00 por bordado, mais do que o dobro do
que elas vinham recebendo até então.
A líder do grupo decide então que é momento de compartilhar riscos e tarefas e
formar a cooperativa. Após consulta ao pesquisador, contas são feitas chega-se à conclusão
que, se do grupo de 200 mulheres que hoje bordam com ela, ao menos 100 concordassem
em autorizar que de seus ganhos mensais R$ 10,00 (duas peças) fossem destinadas para o
sustento da cooperativa, a mesma poderia sobreviver. Com esta renda de R$ 500.00 seria
possível pagar o aluguel de uma pequena loja e o salário de uma pessoa para controlar a
chegada das mercadorias e a distribuição das mesmas entre as mulheres.
Iniciou-se aqui o que apenas depois percebi ser uma sucessão de erros. A
conseqüência de querer impor a criação da cooperativa de cima para baixo foi que as
mulheres sentiram que tinham que “pagar para trabalhar”, como algumas diziam. Outros
repassadores de bordados da comunidade insuflaram este pensamento, uma vez que o valor
maior que estava sendo pago em nosso empreendimento trazia para nosso grupo as
melhores bordadeiras.
Outro fator só foi compreendido por mim mais tarde, por meio da leitura de outros
trabalhos. Reconheço hoje que meu paradigma de pensar mensalmente em determinadas
contas não era compartilhado pelo grupo das mulheres mais carentes, em especial aquelas
que ou não tinham maridos, ou cujos maridos não tinham salários. Abrir mão de US$ 5.00
significava abrir mão de comida suficiente para uma semana. Isto para sustentar algo que
ela ainda não percebia como dela, uma cooperativa com a qual o senso de pertencimento
(ou pertenência) ainda não havia sido construído. Percebeu-se depois que a confiança e a
vontade de empreender coletivamente foram superestimadas pela liderança do grupo e por
54
mim naquele momento, sem levar em consideração que neste empreendimento não havia
nenhuma hierarquia formal e os vínculos ainda estavam em formação.
Alguns comentários surgiram de que a líder do grupo queria cobrar a mensalidade
para enriquecer. Isto quase a levou a desistir de todo o projeto e de repassar bordados em
geral, já que ela é casada com um senhor, garçom de profissão, que tem um bom emprego e
na verdade ela era uma das menos necessitadas financeiramente. Além de ter fortes
características de empreendedorismo social, sempre teve lojas ou pequenos negócios de
venda porta a porta. Aqui sim o autor da pesquisa decidiu intervir com mais vigor, agindo
como “palestrante” e consultor, com o intuito apenas de ajudar a fazer com que o momento
de maior tensão e conflito fossem superados, e que a atitude de abandonar o projeto não
fosse tomada neste momento de emoção.
Gesto de altruísmo do pesquisador ou pensamento voltado para a realização da
dissertação de mestrado? De novo aqui há que se separar os dois ciclos, o da ação e o da
pesquisa, em que reflexões e até estas reflexões sobre meu mundo interior são tecidas. Fato
é que na prática, a continuidade do trabalho e a superação do conflito eram boas para o
grupo e da transformação social. Fosse na forma de uma cooperativa, de uma associação ou
de uma empresa limitada, tendo apenas a líder e mais algumas mulheres à frente, o novo
negócio distribuía mais riqueza entre os membros daquela comunidade do que a forma
anterior. Permitia que elas continuassem trabalhando em horários flexíveis, cuidando de
seus filhos e ganhando o dobro.
55
CAPÍTULO 4. ANÁLISE DOS RESULTADOS
Franco (2005) lembra que há a necessidade de conseguir, no grupo, um espaço de
permissão para poder pesquisar com o próprio grupo, no ritmo e maneira que este autorizar.
O desejo de chegar e imediatamente começar a pesquisar, com modelos predeterminados
pelo pesquisador pode levar a silêncios insuperáveis. Este risco houve no início do trabalho
e precisou ser superado com paciência e calma, esquecendo o objetivo da constutuição da
cooperativa e me deixando levar pelo grupo.
A superação das diferenças se dá porque o sociodrama é uma forma de ação
comunicativa (Habermas, 1982) altamente interativa que se constrói a partir do coletivo, do
grupo. Como o diretor está também muito próximo e não atrás de cortinas ou nos
bastidores, a ação emerge como processo dialógico e que transforma a todos, inclusive ao
pesquisador-diretor-ator. Quando a serviço de comunidades carentes, o sociodrama não visa
eficiência ou eficácia organizacional garantida, mas sim esta ação dialógica, vital que
emerge do mundo experienciado por todos, a partir de momentos de espontaneidade e
criatividade. Trata-se de uma ação nascida na situação e que oferece caminhos para escapar
desta situação. É comunitária, busca compreensão e consenso, negociação e acordo. É
axiológica, uma vez que parte da crença na validade das normas discutidas.
No caso das mulheres bordadeiras, não se tratou de descongelar apenas as
convicções das mulheres. Talvez as maiores convicções que precisaram ser revistas foram
as minhas próprias. Porque exigir tanto planejamento imediato? A pressa era do grupo ou
de meu prazo de entrega de trabalho? Porque orientar o grupo na direção de um negócio
formal quando a realidade das mulheres é a da economia informal?
Fals Borda (1982) afirma que a superação das diferenças deve vir com autenticidade
e sem disfarces. Afirma que ao contrário do que ocorreu nos anos 60 e 70, o pesquisador
não deve sair da universidade com o propósito de se “assimilar” ao homem comum. O autor
colombiano sugere que a superação das diferenças se dará, entre outros aspectos, pelo
compromisso honesto do pesquisador com a causa popular, pela ausência de arrogância
intelectual e pela incorporação de “pessoas das bases sociais como indivíduos ativos e
pensantes nos esforços de pesquisa” (FALS BORDA, 1982, p. 55). Na vertente latinoamericana da pesquisa-ação, “[...] a investigação, a educação e a ação social convertem-se
em momentos metodológicos de um único processo dirigido à transformação social”
56
(BRANDÃO, 2006, p. 43). Como esta modalidade de pesquisa é um ato então político
claro e assumido é importante que este ato seja por outro lado não doutrinário e afastado de
movimentos partidários ou religiosos (GAJARDO, 1999), o que poderia aprofundar as
diferenças preexistentes.
Franco (2005) nos lembra que os acordos resultantes das negociações feitas no
âmbito de pesquisas participativas, são intersubjetivos, negociados criticamente e baseados
em racionalidade comunicativa e diálogo. Diferente dos acordos baseados em racionalidade
estratégica, impostos por meio de gratificações, sugestões frias e ameaças veladas ou
explícitas e para os quais o que conta é o sucesso das ações propostas. Na ação
comunicativa, que caracteriza tanto a PAP quanto o sociodrama humanista, os participantes
podem chegar a um conhecimento compartilhado que tece uma estrutura de confiança e
compromisso, sem indução de valores e convicções.
A cooperativa no sentido jurídico não se constituiu, mas o empreendimento coletivo
de bordados com a líder do grupo e mais duas mulheres á frente do projeto sim. As histórias
que se ouviam eram de que mulheres que antes faziam 60 peças por mês e viviam com US$
120.00 / mês, com o aumento do valor por peça haviam se animado a produzir mais e
haviam trazido até maridos antes catadores de lixo para os bordados, tendo a renda familiar
subido para em torno de US$ 500.00. Isto permitia com estas famílias conversas sobre
novos interesses e negócios. No entanto, pelos acontecimentos do passado e da experiência
comum, desde que não se falasse no assunto cooperativa.
O maior conhecimento técnico e acesso a determinados recursos do pesquisador
participante permite a manipulação de grupos populares. Esta manipulação pode se dar com
falsas promessas, como é caso de algumas pesquisas participantes feitas no passado com
objetivos claramente militantes. Mas este não é o ponto ser analisado aqui. A questão que
neste trabalho desejo abordar como resultado final é a análise dos pontos em que é possível
a convivência entre sociodrama e pesquisa-ação e de outros em que talvez seja necessária e
desejável uma vida à parte.
Silva e Silva (2006 p.125) lembra que “[...] uma proposta de construção de
conhecimento comprometida com a mudança social implica em tomar criticamente a
realidade como objeto de pesquisa e requer a inserção do pesquisador na realidade social”.
Esta inserção exige explicitação da intencionalidade, sem nenhum pressuposto de
57
neutralidade. Explicitação não só da ideologia do pesquisador, mas de sua postura em
relação à educação e a que tipo de trabalho foi realizar em uma comunidade. Na medida em
que a pesquisa-ação participante, em especial quando realizada com adultos em
comunidades carentes é uma prática educativa, desde as suas origens, os dilemas do
pesquisador surgem de sua postura. Na visão “bancária” da educação o saber é uma doação
dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber (Freire, 2005, p. 67). Pesquisadores e
sociodramatistas arraigados a esta visão terão a tendência de manipular grupos para que
estes se adequem ao conhecimento administrativo e organizacional do paradigma vigente.
Outro dilema com que me deparei é que com o grande contato com o grupo, surgiu
uma riqueza enorme de dados e assuntos ligados à realidade da vida das mulheres. Estas
talvez quisessem trabalhar sociodramaticamente os obstáculos ao trabalho ligados aos
maridos, comunidade, filhos, religião etc, mas que minha agenda como mestrando impedia.
Isto certamente exigiria uma equipe de experientes psicodramatistas e sociodramatistas
voluntários, com disponibilidade para se deslocar para a Cratera da Colônia em outros
horários que não interferissem no meu trabalho e acordados com o grupo.
A questão é exatamente como possibilitar que novos conhecimentos sobre novas
possibilidades organizacionais, de geração de emprego e renda e de superação de questões
de gênero, raça, deficiência e qualquer tipo de opressão surjam para esta massa de
desempregados e subempregados. Conhecimentos que sejam gerados no seio das próprias
comunidades e assim possam ser mais facilmente transmitidos e compreendidos para outras
com as mesmas características, de tal forma que contradições sejam superadas.
A educação “bancária” que Paulo Freire (2005) critica é esta que deposita, transfere
e transmite valores e conhecimentos. Na área de Administração isto é um grande desafio:
como lidar com populações de baixa renda criando uma linguagem comum e nova, um
universo cultural comum, sem considerar os sujeitos com quem se trabalha em
comunidades pobres iletrados ou ignorantes. O que de fato não são, pois sobreviver com R$
3,00 por dia exige enorme conhecimento e sabedoria. Para o sociodrama o desafio é o
mesmo. Realmente enxergar aquela pessoa com quem se trabalha como detentora de um
enorme poço de saber, capaz de, com o devido apoio e em uma linguagem muito mais
eficaz, coordenar sessões, aquecer e dirigir cenas e fazer com que as comunidades
compartilhem seus sentimentos com mais coração do que elementos vindos de fora.
58
CAPÍTULO 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As bordadeiras conseguiram, desde o mês de setembro de 2007, quebrar a barreira
do intermediário e elas mesmas irem ao Brás e pegarem as peças que bordam. Recebem por
peça em torno de R$ 4,00 a R$ 5,00, em vez do R$ 1,00 a 1,20 que recebiam quando
dependiam das intermediárias. Segundo relatos colhidos pelo próprio pesquisador isto faz
toda a diferença em termos de renda familiar hoje para estas mulheres. Além do trabalho
com bordados se dedicam como grupo a fazerem trabalhos para serem vendidos na
comunidade, como colchas de retalhos, trabalhos de “fuxico” e outras atividades artesanais.
Figura 8 – A colcha que aquece e descongela a vida
Foto: Marcos Bidart- Novaes
Isto leva à reflexão de que a formação psicodramática e sociodramática deve se
preocupar com uma pesquisa de alto nível, estratégica e de longo prazo. Pode ter cursos que
59
continuem dialogando com a base teórica de Moreno e com sua aplicação em pequenas
intervenções, mas precisa estar atenta às emergentes necessidades sociais e intervenções de
longo prazo. Uma preocupação com uma fundamentação epistemológica aprofundada deve
ser uma constante participação do pesquisador na realidade pesquisada, ou de ação conjunta
com o sujeito da pesquisa não deve ser vista como um afastamento dos ideais científicos.
Argumentos para uma compreensão diferente sobre a relação entre teoria e práxis na
pesquisa social podem ser encontrados tanto no pragmatismo, quanto no humanismo, ou
ainda no materialismo dialético dos movimentos ecológicos, feministas e sociais.
O pesquisador que utiliza a pesquisa-ação participante em conjunto com o
sociodrama se defronta com grande complexidade ética e epistemológica ao lidar com as
diferenças culturais que permeiam o encontro do seu universo com o de grupos oprimidos,
dentro de uma sociedade marcada por profundos processos de exclusão social e intelectual.
Há a necessidade de estabelecimento de um clima de parceria, negociação, transparência e
compromisso, fundamentais para permitir que os sujeitos se solidarizem e abram espaços
para a quebra de silêncios e o início de diálogos e processos comunicativos, bem como com
uma maneira não manipulativa de lidar com conflitos. No entanto, estes conflitos podem vir
a ocorrer, com maior ou menor intensidade, causados por inexperiência e pressa do grupo
ou minha enquanto pesquisador, como evidenciado acima. Quando os conflitos ocorrem,
não há como se manter à distância, na postura de observador pretensamente neutro, ou
buscar “acalmar” o grupo por meio de jogos manipulativos para uma calmaria que pode só
apaziguar a mim mesmo. Cabe a mim, como pesquisador profissional e sociodramatista,
iniciar espaços para a superação dialógica dos conflitos, cabe à pesquisa-ação participante e
ao sociodrama imbuirem-se de seu papel e tornarem-se instrumentos políticos de
dissolução, resolução, ou até mesmo ampliação do conflito.
Conflitos fazem parte de processos de mudanças. Cuidado e sensibilidade são
características essenciais do pesquisador envolvidos em situações como essas.
Pesquisadores da área organizacional precisam especial atenção com uma ida a campo
influenciada por um paradigma que exige resultados mensais, lucros anuais, objetivos
claros e planos.
A pesquisa-ação participante aliada ao sociodrama no âmbito organizacional é
acima de tudo um empreendimento educativo que oferece às pessoas condições de se
60
perceberem como sujeitos sociais, dotados de consciência, desejo e vontade e que solicitam
espaços para auto-expressão e convivência coletiva. É no coletivo, no diálogo com suas
circunstâncias, que cada sujeito vai atribuindo sentido à existência coletiva e se
comprometendo. Nesse processo, cada um dos envolvidos aproxima consciência e ação;
reflexão e práxis. É esta alternância entre ação e reflexão que precisa permitir ao grupo
encontrar solução para seus conflitos, por mais simples que seja sua linguagem e sua forma
simbólica de representar os eventos. O pesquisador pode apoiar esses ganhos simbólicos, e
possibilitar aos sujeitos vivenciar e construir atitudes críticas construtivas, que são
fundamentais para a construção e produção de conhecimentos.
A maior limitação sobre a qual deve refletir um pesquisador que se envolve em um
projeto que use o sociodrama no longo prazo são os vínculos que se formar com os grupos
e as diferentes demandas que vão surgindo. Estas transcendem o objetivo inicial da
pesquisa e podem confundir e exaurir emocionalmente o pesquisador. Mesmo que este se
atenha aos aspectos de sua área de atuação, neste caso a Administração, a limitação é o
próprio paradigma vigente na academia e a visão do empreendedorismo como um
fenômeno ligado à formalização de negócios planejados e executados com rigor.
Cabe ao pesquisador buscar dentro de si próprio o tamanho da marca do paradigma
da administração tradicional. Esta ciência, por carência de uma ontologia própria possui
muitas vertentes, na administração da produção, em finanças comportamentais, psicologia
social aplicada a recursos humanos etc.. Com que ritmo e com que flexibilidade o
pesquisador / diretor sociodramático está permitindo que o grupo construa conhecimento
por si próprio, ou está levando ensinamentos e conhecimentos sustentáveis ou ainda
ensinando técnicas superficiais a sujeitos da prática deve ser motivo de reflexão
permanente. Cabe a este pesquisador ou a esta pesquisadora olhar para si próprio e se
perguntar se olha para estas pessoas como iguais com quem aprende ou como ignorantes a
quem tem que ensinar técnicas superiores. Resta ao pesquisador voltar-se permanentemente
para si próprio em busca de seus motivos e seus objetivos com rigor, olhando para os
sujeitos e seus subjetivos com amor.
Nos momentos de conflito, mais do que nunca precisei de reflexão e de uma rede de
apoio para fazer aquilo que em processos terapêuticos seria chamado de “supervisão” para
o psicólogo. Acredito que isso não só qualificou o meu trabalho profissional como
61
pesquisador como também abriu espaço para as vozes dos sujeitos. Da mesma forma que
preciso dessas vozes mais experientes para produzir conhecimentos através delas, os
sujeitos precisam de pesquisadores menos experientes como eu, mas talvez com mais
disponibilidade para ir a campo, como forma de expressar suas vozes e, nesse processo, de
ouvir as próprias vozes. Assim, pesquisadores e sujeitos aprendem a ouvir os outros e
transformar coletivamente maneiras individualistas de pensar.
A pesquisa-ação participante e o sociodrama são instrumentos formativos de ambos
os lados, sujeitos de pesquisa e pesquisadores. Geram práticas educativas que transcendem
seus objetivos iniciais. O pesquisador qualifica-se ao incorporar a cultura local, trabalhar
sobre ela, superar-se em seus questionamentos; surpreender-se com as respostas do grupo.
Os sujeitos da prática por sua vez, além de resolverem os problemas de seu cotidiano,
envolvem-se em processos coletivos ligados a suas experiências e valores; surpreendem-se
ao se confrontarem com seus pressupostos de vida e formação e criam coragem para
empreender mudanças.
A ruptura do silêncio, a abertura do espaço comunicativo e a superação dos
conflitos não foram processos lineares e sim feitos de idas e vindas. Quando a comunicação
vigente era de desânimo de que “não ia dar certo”, foi necessário mais do que nunca para o
pesquisador evitar qualquer tipo de manipulação consciente do grupo. Manipulação esta
que, segundo Freire (2005, p. 168), provoca um tipo inautêntico de “organização” e evita
que camadas populares encontrem maneiras verdadeiramente autônomas emancipatórias de
se estruturar.
A construção desse universo comum é feita através do diálogo sobre o objeto a ser
conhecido e sobre a representação da realidade a ser transformada e é realizada por meio de
questões provocadas pelo pesquisador principal, aprofundando as leituras de mundo dos
sujeitos envolvidos. O debate que surge daí possibilita uma releitura da realidade de onde
pode resultar um maior engajamento dos participantes em práticas políticas com vista à
transformação da realidade.
Como fazer isso não manipulando o grupo, evitando forçar o mesmo a pensar como
o pesquisador e mudando a mentalidade das pessoas? Neste caso, a preferência do autor da
pesquisa foi por em vez de tentar mudar o curso dos acontecimentos, e “educar” o grupo
para algo que achava correto, se deixar educar pela situação e aprender com o grupo.
62
“Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é
educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa” (Freire, 2005, p.
79).
Neste caso o que procurei manter em mente como pesquisador-ator participante e
diretor sociodramático foi a separação do que estava acontecendo na prática do que estava
acontecendo no campo de minhas reflexões como pesquisador. Não no sentido de busca de
objetividade e neutralidade, como na ciência positivista, mas em busca de uma máxima
possível objetividade e rigor em relação a mim mesmo. Isto implica em reconhecer minha
impotência como pesquisador sobre como determinar o que é certo ou errado para o grupo
em prazos mais longos. Implica em reconhecer minha crença de que o maior aprendizado
possível é aquele feito pelo grupo em seu ritmo e em sua forma de aprender, mesmo que
passando por uma frustração momentânea.
Para mim ficou evidente que a pesquisa-ação permite a mediação entre
pesquisadores e sujeitos da prática. Isso qualifica o trabalho do profissional pesquisador e
abre espaço para as vozes dos sujeitos. Precisei dessas vozes para produzir conhecimentos e
as mulheres bordadeiras se apoiaram em mim e no sociodrama para encontrar formas de
expressar suas vozes e, nesse processo, ouvir as próprias vozes. Assim, aprenderam a ouvir
os outros e com os outros. Construiu-se assim um processo mútuo de qualificar a produção
de conhecimentos e de qualificar a vida dos sujeitos. É mais que tudo a mediação entre o
exercício profissional e a existência.
Desse modo, reafirmo que, acima de tudo, a pesquisa-ação que eu me permitiria
agora de chamar de sociodramática é um empreendimento educacional e criativo. Oferece
às pessoas condições de se perceberem como sujeitos sociais, dotados de consciência,
desejo e vontade e que solicitam espaços para auto-expressão e convivência coletiva. É no
coletivo, no diálogo com suas circunstâncias, que cada sujeito vai atribuindo sentido à
existência coletiva e se comprometendo. Nesse processo, cada um dos envolvidos aproxima
consciência e ação; reflexão e práxis. Posso hoje afirmar que a participação em uma
pesquisa-ação sociodramática possibilita aos sujeitos vivenciar e construir atitudes críticas e
emancipatórias que são fundamentais para a construção e produção de conhecimentos,
habilidades e atitudes para além daqueles que foram os focos da pesquisa.
63
Esses comportamentos, habilidades e atitudes se generalizam para outras esferas da
vida dos sujeitos. Transformam-se em processos educativos de formação e de
descongelamento de velhas práticas ou conservas como diria Moreno. A pesquisa-ação
sociodramática funciona como um instrumento de formação e desenvolvimento de
encontros e diálogos entre o sujeito e sua existência; entre o saber e o fazer; entre a ética e o
método; quebrando silêncios que foram historicamente construídos nessas relações. E,
finalmente, permitindo aos sujeitos da prática, entre eles o pesquisador, superar a
resignação para transformar sua realidade, encerrando esperas e iniciando esperanças.
64
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