Sobre o projeto de lei antipirataria do Chile Santiago Schuster. Diretor Geral Sociedade Chilena de Direitos de Autor O mantimento de um nível de proteção aceitável no entorno regional a favor dos criadores, artistas e indústrias culturais, em particular em uma matéria tão sensível como a pirataria, tem despertado o interesse da região, cujo propósito do Cerlalc no marco da regulação internacional que surge dos convênios de aplicação universal, quiseram considerar estes comentários em relação a um projeto de lei que iniciou seu trâmite constitucional no Chile, a princípios de 2004, nascido para deter a pirataria1. A iniciativa legal, em nosso critério, tornou-se uma verdadeira ameaça para os direitos consagrados a favor dos autores, e inclusive para cumprimento dos Trabalhos Internacionais assinados pelo Chile, e não alcança os objetivos de colocar um freio à pirataria, como foi invocado na sua exposição de motivos. Elementos básicos de um projeto de lei antipirataria A Mensagem do Executivo enviado ao Parlamento chileno, afirma que “a proliferação da pirataria e do desenvolvimento expansivo de organizações criminais em torno da produção e distribuição ilícita” de obras e produções, fazem necessário uma reforma de lei vigente em matéria de propriedade intelectual, visando “outorgar uma maior proteção aos criadores e resguardar à indústria que surge em torno dos produtos que se derivam da inteligência e criação humana”. Esta afirmação é compartilhada por todos nós, assim como aquela que sustenta que “a pirataria e demais práticas ilegais conexas a ela, não só constituem uma violação manifesta do direito de propriedade de intelectual, senão que também, distorcem o funcionamento normal do mercado”... “que geram um grave prejuízo patrimonial às empresas vinculadas ao rubro, e pela evasão tributária que representa, ocasionam um enorme dano patrimonial ao Estado”. Porém, é necessário complementar estas apreciações corretas sobre a mensagem que acompanha o projeto, agregando de nossa parte que a pirataria não só atinge os aspectos patrimoniais de direito de autor, senão que, pela sua particular gravidade, também importa uma séria lesão aos direitos morais dos criadores (principalmente o direito de divulgação), assim como representa um atentado ao patrimônio cultural do país, toda vez que atinge a liberdade de criar e de difundir as artes, pois impede o estabelecimento de uma atividade econômica que permita investir na elaboração e difusão das obras e produções artísticas, e principalmente na geração e difusão de novas criações nacionais. Apesar disto, a defesa dos direitos morais aparece esquecida no projeto em discussão no Chile, que finalmente se apresenta impregnado de uma forte e única conotação econômica e comercial. A pirataria constitui um fenômeno criminológico moderno, que está unido ao aumento da importância dos direitos intelectuais para a indústria e o comércio, mas que ressente em suas bases ao sistema de proteção dos criadores intelectuais, não só da perspectiva dos interesses patrimoniais, senão também, desde o plano de sua liberdade de difundir o criador. 1 Projeto de Lei, que modifica a Lei Nº 17.336, sobre a propriedade intelectual, estabelecendo um estatuto normativo especial relacionado aos delitos de pirataria e conexos com o mesmo. Boletim Nº 3461-03 Dentro do espírito que indicamos, desejaríamos pormenorizar os requisitos que um adequado projeto de lei antipirataria, em qualquer contexto nacional, deveria reunir: a) Melhorar a categoria penal que sanciona a pirataria, com a finalidade haver uma correta aplicação pelos Tribunais. b) Estabelecer um nível adequado de sanções penais que distingam claramente os diferentes níveis de participação criminal que se observam na comissão de delito de pirataria, e que por sua vez, tenham o caráter dissuasivo que a norma deve pretender. c) Complementar as sanções penais com uma regulação apropriada das ações civis derivadas das infrações à lei de propriedade intelectual, com a finalidade de ressarcir convenientemente os danos causados às vítimas, prevendo uma indenização estatutária ou legal, optativa para o titular de direitos, especialmente no caso de atentados à esfera moral do autor. d) Oferecer um sistema de medidas cautelares que ponha fim, da forma mais imediata, ao ilícito, uma vez atendidas as particulares características da extensão do dano no âmbito da infração aos direitos intelectuais. O projeto chileno, na sua atual redação, não consegue reunir estes requisitos. É necessário ter em consideração, que a iniciativa se originou em um manifesto interesse de amparar às pessoas que são vítimas da pirataria, com um claro compromisso com a cultura, cujo desenvolvimento finalmente pode chegar a se tornar em uma iniciativa legal que aparece contrária aos mesmos princípios que se propunha a defender. A maior preocupação para os titulares atingidos pelos delitos consiste em que o projeto não só tem querido abocar-se aos ilícitos da pirataria, senão que propôs modificar integramente o Capítulo II da lei, que trata sobre infrações e sanções e cuja solução integral caminha em sentido contrário aos propósitos indicados e incorre em algumas omissões, que é necessário destacar. No que se refere à penalidade, o projeto importa, concretamente, uma redução às sanções aos delitos previstos na legislação vigente, pois propõe como alternativas as penas privativas de liberdade e multa, e não copulativa como atualmente se sanciona na lei. Desta forma, com base no princípio in dúbio pro reo, e visto o critério aplicado pelo Ministério Público, os autores destas condutas somente receberão multas e, na sua escala mais baixa. Este aspecto do projeto constitui um sinal dificilmente entendível pelo público, quando se propõe elevar o sistema de contenção das atividades piratas e o projeto aparece reduzindo a repreensão, ou seja, diminuindo a pena. A defesa desta visão do projeto, afirma-se em uma política sancionadora, que indica que a atual estrutura punitiva desalenta aos Tribunais na aplicação efetiva da pena, o que é fortemente rebatido pelas partes atingidas, tendo em consideração que aos Tribunais não lhes cabe analisar o mérito da sanção e sim a aplicação do direito. Não se considera a atividade usurpadora como verbo reitor da conduta ilícita, incorporando a posição subjetiva do delinqüente, neste caso o ânimo de lucro, como requisito que define seu caráter punível. Ao incorporar a competição de “ânimo de lucro” à figura básica do delito de utilização não autorizada, automaticamente deixam de se penalizar àqueles usos não autorizados de obras e prestações protegidas que importam igualmente uma intromissão na esfera de poder exclusivo do autor, mas que são fatos sem dito ânimo ou que por falta de prova de dito ânimo não pôde ser demonstrado, transformando dito agir em uma mera falta. É necessário especificar, que para os autores revestem a mesma gravidade os atos de usurpação de um direito reservado, já seja que atente contra o direito moral ou patrimonial ou se for uma lesão mista. Também reveste o mesmo grau de lesão se a usurpação de direito se faz com ou sem ânimo de lucro. O anterior deve-se a que todo este caos tem em comum, que o fato da conduta importa o aproveitamento de um direito, porque atribuem seu exercício sem estar expressamente autorizados para isto. Nesse sentido, esta classe de modificações, como se pretende no projeto em questão, vulnera o princípio essencial do direito de autor consagrado no artigo 19 da lei chilena, que dispõe que ninguém pode fazer uso das obras intelectuais protegidas pela lei, sem a autorização expressa do titular do direito, independentemente da finalidade que se tenha em dita utilização, ou seja, independente do fim último perseguido ao utilizar-se ditas obras pelo utilizador das mesmas. A propriedade intelectual é um direito absoluto, que nosso Código Civil qualifica como uma forma de propriedade especial sobre uma coisa móvel incorporal. Neste sentido, as ações de tutela não se fundamentam na culpa do infrator ou no ânimo de lucro que este possa ostentar, e sim na abstrata usurpação de um direito protegido pela Constituição e pela lei. De acordo ao anterior, de prosperar a modificação impulsionada com motivo dos altos níveis de pirataria no Chile, não só lhe outorga ao autor uma menor proteção penal ao seu direito, senão que debilita a essência do direito tutelado, ao restringir sua esfera de controle somente às utilizações com fins de lucro, desnaturalizando o direito que se vem consagrando como propriedade exclusiva do criador desde a Constituição Política de 1833. Neste sentido, a iniciativa esquece que a essência destas reside na realização de condutas, que põe em manifesto o desprezo aos direitos de propriedade intelectual do autor ou dos cessionários. Em definitiva, o projeto está deixando totalmente vulnerável ao autor frente a qualquer ataque à sua criação se o mesmo não apresentar uma motivação de caráter comercial ou econômico. A finalidade do lucro como agravante A diferenciação de autuar a um infrator com a finalidade de lucro ou sem ela, é considerada na maioria das legislações que a aludem, para configurar um agravante especial quando o delito é motivado com fins comerciais, porém, tal diferenciação, não justifica em caso algum a não consideração como delito penal às infrações aos direitos intelectuais, pelo mero fato que as mesmas se cometam sem ânimo de lucro. O projeto elimina a figura do plágio atualmente punível, em virtude da letra c) do artigo 79, e sujeita a figura de falsificação, prevista no mesmo artigo à comprovação de um prejuízo da parte do afetado. Naturalmente esta matéria não se vincula aos aspectos próprios da contenção das atividades de pirataria. Com esta modificação, a proteção do aspecto moral do direito de autor será gravemente limitada, pois a mesma protege a paternidade, o inédito e a integridade da obra ou faz impossível a persecução efetiva do delito de falsificação, toda vez que pela natureza personalíssima dos direitos morais dos criadores, os mesmos careçam de uma apreciação pecuniária imediata, o que faz inviável o exercício de sua ação. Dita situação se vê empiorada mais ainda, se for considerado que a sanção prevista no mesmo projeto está diretamente relacionada com a magnitude desse dano, do qual resulta, que a maioria das infrações aos direitos morais de autor serão sancionadas como faltas, se não se seguir pela parte do feitor do delito uma exploração econômica da obra contrafeita. Nesse sentido, o que se protege com as novas figuras não é o direito de autor sobre a sua criação e sim o patrimônio do autor ou de seu “direito havente” (diz-se da pessoa que deriva seu direito de outra), na medida que se ver atingido. Não se considera a situação dos autores e artistas no momento de definir as figuras puníveis, toda a vez que ao relacionar em todos os casos, a gravidade da infração aos prejuízos causados ao titular atingido, é fácil desprender que os montantes em jogo - no relacionado aos criadores individualmente considerados -, não são comparáveis com os prejuízos sofridos pelas indústrias (pela participação que as mesmas têm no mercado de direitos), o qual acarretará que os atentados aos autores (titulares originários do direito) não revestirão a gravidade econômica que é exigida na nova normativa, e ficarão sem sanção efetiva ou serão consideradas meras faltas, apesar de que os fatos impliquem uma maior ofensa aos direitos intelectuais. Na verdade, economicamente falando, o dano a um autor pelo uso não autorizado de uma obra não é igual ao dano que essa mesma ação possa ter para outros titulares, porém, desde o ponto de vista intelectual, o principal atingido com as infrações à propriedade são os criadores intelectuais, cujo trabalho criativo é o principal objetivo da conduta infratora. O projeto não favorece o início das ações civis derivadas das infrações aos direitos de propriedade intelectual. Sem prejuízo da análise particular de cada uma das disposições propostas, é claro que uma iniciativa legal desta natureza deve ser proposta pelo menos com os seguintes objetivos: i) Facilitar o início das ações judiciais, ii) Garantir a efetividade das ações para obter o ressarcimento dos danos causados. i) Dificuldades para o exercício das ações judiciais. O projeto, de acordo com o declarado na Mensagem, pretende fortalecer o exercício das ações civis titulares dos direitos atingidos, porém, a normativa proposta põe erradamente seu destaque principal em evitar o possível exercício abusivo do direito e não em definir um conjunto de ferramentas que permitam aos autores fortalecer sua posição jurídica, conseguindo-se o efeito totalmente contrário ao desejado. Ao parecer se parte de uma suposta má fé dos titulares dos direitos de propriedade intelectual e de um uso excessivo das escassas faculdades que lhes são conferidas, com base em uma apreciação equivocada da realidade. Nossa apreciação é que os autores e artistas, normalmente são vítimas do abuso por parte de terceiros, tal como notoriamente vem acontecendo com a pirataria. O habitual é que os titulares dos direitos reconhecidos na lei estejam legitimados ativamente para o exercício de todas e cada uma das ações derivadas das lesões a seus direitos, dita legitimação é congruente com a natureza mesma dos direitos que a Lei regula e com base às persecuções de titularidade e autoria que ela mesma consagra. E ainda por cima, em muitos casos as leis admitem que estejam legitimados, para que pessoas que não são os titulares dos direitos infringidos atuem, como é o caso do editor, tal e como se coloca no artigo 54 da lei chilena atual. Neste sentido, tal e como é colocado no Acordo sobre os ADPIC, um adequado projeto de lei antipirataria deve estabelecer procedimentos relacionados à observância dos direitos dos autores, justos e eqüitativos, que não sejam desnecessariamente complicados ou gravosos, nem comportem prazos e retardos injustificáveis, senão que dotem à autoridade judicial de faculdades suficientes para ordenar ao infrator o pagamento ao titular do direito de um ressarcimento adequado e oportuno para compensar os danos que tenha causado a infração. Em especial, sem impor aos autores todo o peso da prova, sobretudo quando na maioria dos casos as provas pertinentes para sustentar as ações se encontram sob controle do infrator, o qual é único que sabe as obras utilizadas, o volume dos exemplares distribuídos ilegalmente ao público, etc. ii) O projeto não garante o ressarcimento dos danos causados. Outro dos problemas principais que o exercício das ações civis apresenta, em matéria de propriedade intelectual, demonstra relação com a dificuldade de apreciar os danos morais e patrimoniais derivados de uma infração aos direitos protegidos. Para resolver dito problema, muitas legislações determinaram disposições especiais que outorgam ao juiz os meios ou procedimentos para taxar o prejuízo, dificuldade que ainda existe em nosso sistema legal vigente. Em matéria processual, normalmente as leis dos países que conferem uma maior proteção aos criadores intelectuais oferecem as seguintes ferramentas para garantir uma adequada observância das normas da propriedade intelectual: a) medidas prejudiciais e de prevenção especiais; b) suspensão imediata da atividade ilícita; c) Confisco dos bens contrafeitos, das máquinas e instrumentos necessários para cometer o delito; d) Destruição dos mesmos bens; e) Regras especiais para o cálculo do dano patrimonial; f) Reconhecimento que a indenização por infração aos direitos morais procede sempre, ainda que não se tenha provado os danos patrimoniais; etc. Em um princípio, o projeto proposto no Chile parecia ir nesse mesmo sentido, porém, tal e como se adverte ao se estudar as medidas específicas que incorpora, sempre se agrega a suas disposições certas condições, cuja aplicação prática da medida se faz complexa e difícil de obter. Exceções contrárias aos Tratados Internacionais Sem prejuízo das deficiências desta iniciativa, já indicada anteriormente, durante sua tramitação, o projeto se tornou em uma contingência favorável para que grupos de pressão obtivessem a incorporação de um pacote de disposições que agregam limitações e exceções aos direitos patrimoniais dos autores, antes não conhecidas pela lei chilena. Entre elas, podem-se enunciar a cópia sem autorização do titular se direito de autor nem o pagamento de uma remuneração; assim como a utilização livre das obras para fins de ensino, investigação científica ou tecnológica, que fossem realizadas por centros educacionais ou científicos tecnológicos, quando não existe um fim de lucro. Isto causou estupor, especialmente na indústria do livro, porque abre uma cobertura para usos livres e sem remuneração para direitos de autor, no âmbito do que o projeto denomina “centros educacionais”, que não encontra paralelo na experiência comparada e que colide com compromissos internacionais de nosso país. Outra indicação parlamentar alcançou a incorporar, como contrapeso e era desejável, o direito de cópia privada para limitar esta exceção totalmente desproporcionada e contraditória com as obrigações assumidas pelo Chile nos Tratados Internacionais, que tem recebido um respaldo parlamentar limitado. Ao mesmo tempo, incluiu-se no projeto uma exceção de uso livre e gratuito pela comunicação pública de obras musicais, quando as mesmas forem utilizadas pelo Estado ou pelas Prefeituras, e em determinados casos pelo Comércio, exceção que é discriminatória e a favor de uma categoria de usuários, assim como excepciona a exploração das obras para fins de beneficência, o que significa que podem se fazer atos de caridade e de altruísmo, não com os bens daqueles que fazem essa caridade, senão com as obras dos autores. É claro que esta exceção é contrária ao Convênio de Berna, e com isto aos demais Tratados que se incorporaram às disposições desse Convênio à sua normativa. Até aqui, estes comentários sobre o projeto de lei antipirataria do Chile, que tem despertado uma preocupação internacional. Será necessário voltar a este análise, uma vez concluída a discussão e aprovação de uma iniciativa legal, que em plano teórico e dos objetivos colocados na exposição de motivos ou mensagens, são compartilhados por todos os setores atingidos, porém, que em sua concreção normativa, afasta-se dos propósitos desejados originalmente.