O Professor Jorge Coutinho atravessa-se em nós e por nós
António Costa Guimarães
Ponto de Vista O padre Jorge Coutinho é (porque ele merece esse estatuto de eternidade) mais
que um padre, um cónego, ou um professor para Braga. Sendo um vianense, quis servir e
pertencer a Braga. Não quis ficar de fora nem sozinho. Viveu como quem presta um serviço: de
observar, de ouvir, de descrever, de educar, de abrir horizontes. Nunca passou para o outro lado
da rua, para não nos ter de dizer: – "Olá, rapaz. Como vais?" Nem menos. E foi tanto, ao longo de
tantos anos, para mim.
Há uma jornalista brasileira que exprime melhor aquilo que senti no arranque desta semana,
quando outro mestre me anunciava, manhã cedo, no Facebook: “faleceu o Cónego Jorge Peixoto
Coutinho”. Essa jornalista e pedagoga, escreveu que “há pessoas que nos falam e nem as
escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há Pessoas que
simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre”.
Digo de outra forma: muitas pessoas atravessam-se na nossa vida mas só um punhado delas se
atravessa por nós. Nesse punhado – com toda a semântica de um punho enérgico, corajoso,
contra a maré que nos tenta abrir os dedos e deitá-los fora – cabe perfeitamente o padre, o
professor, o doutor, o amigo Jorge Peixoto Coutinho que se despediu de centenas de nós na
manhã do dia a seguir à data do nascimento do poeta português que ele mais admirava: Teixeira
de Pascoaes, autor de “A arte de ser português”. Ele é uma das pessoas que tingem as nossas
vidas, que não se esquecem, porque quando percebemos estão ao nosso lado, já marcaram
nossos dias e conquistaram o nosso coração.
Socorri-me de Cecília Meireles, poetisa e jornalista, considerada umas das maiores escritoras
brasileiras, com mais de 50 obras publicadas e fundadora da primeira biblioteca infantil do Brasil,
em 1934, para perpetuar a memória do padre Jorge Peixoto Coutinho, um amigo, um sábio...
neste dia triste em que este Homem nascido em Alvarães, Viana do Castelo, há 76 anos, nos
disse “até já”. Ordenado sacerdote a 15 de julho de 1962 no Seminário de Braga, dedicou a sua
vida ao ensino, à investigação e à formação dos seminaristas. Em 1970 foi nomeado vice-reitor do
Seminário Conciliar, sem esquecer, durante décadas, uma paixão pelos mais desfavorecidos,
como quando foi capelão do Colégio dos Órfãos de S. Caetano, fundado pelo grande Arcebispo D.
Frei Caetano Brandão.
As licenciaturas em Filosofia pela Gregoriana em Roma (1965) e em Filologia Românica pela
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1974) deram ao Professor Jorge Coutinho as
bases para o seu doutoramento em Filosofia. Se escolheu para tema de dissertação "O
pensamento de Teixeira de Pascoaes", ele viveu um lema singular: a cultura conjuga-se com a
solidariedade.
Ao nível académico, lecionou Filosofia, Filosofia do Conhecimento, História da Filosofia e Teologia
Filosófica, sempre com os pés assentes nos “sinais dos tempos”. Publicou três livros, dos quais se
destacam os belos "Caminhos da razão no horizonte de Deus. Sobre as razões de crer" (2010),
além de dezenas de artigos, recensões e conferências.
Há trinta anos foi eleito cónego do Cabido Metropolitano e Primacial Bracarense e, há doze anos,
passou a ser Arcediago do Cabido, serviço elevado ao extremo com o contributo à presidência da
Comissão da Semana Santa, que lhe valeu o reconhecimento de diversas instituições eclesiais e
civis e a candidatura a estatuto de relevância turística, cultural e religiosa para a sua cidade
adotiva, Braga.
Como o Papa Francisco – “avant lui” – o prof. Jorge Coutinho não nos acicatava para viver em
pobreza e, depois, levava "uma vida de faraó": ele falava-nos verdade e também com o
testemunho da frugalidade.
Com a sua voz sibilante, mas convicta, deu provas de coragem ao afrontar poderes estabelecidos
(inevitáveis e incontornáveis, para alguns, poucos) que mais beneficiam economicamente com a
Semana Santa, e, simultaneamente, eram os que menos contribuíam para o seu orçamento.
Centenas de jovens se emanciparam, como eu, com ele, nos Seminários de Santiago e Conciliar
(mais tarde Instituto Superior de Teologia, atualmente Faculdade de Teologia-Braga, de que foi
um dos cabouqueiros) e perceberam que havia naquele homem um sopro de Liberdade, uma
alma de Serviço, um corpo de Tolerância.
Não serei desmentido se afirmar que nos bafejava diariamente com essa rajada libertadora dos
ideais do Concílio Vaticano II na Igreja de Braga. Como responsável pelo “Nihil obstat” da revista
Cenáculo (única publicação científica de responsabilidade exclusiva de alunos do ensino superior
na Península Ibérica), ele atravessava-se por nós. Punha as mãos no fogo por nós, sem
merecermos tanta confiança! Ele confiava totalmente nos “pestinhas” de Albert Camus porque ele
era – e vai continuar a ser – o testemunho vivido de “A Esperança”, de André Malraux, num banho
de saudade da “Arte de ser português” do poeta de Amarante. É essa a herança que o prof. Jorge
Coutinho nos deixa. É essa cumplicidade que fica entre nós. É essa “Noite Roxa” da Semana
Santa da Paixão (sem Urbano Tavares Rodrigues) que o transfigura em nós como a madrugada
da alegria que nos proporcionou ao atravessar-se em nós e por nós. A confiança nos mais novos,
no futuro. Ele, hoje, como ontem, atravessa-se por nós. Está escrito. Basta conferir.
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