Quem Fala Por Nós? Paulo Ferreira * José Maria Albuquerque* Faça o seguinte teste: Pergunte ao vizinho do lado para listar nomes de dois ou três deputados da Assembleia da República (AR) que representam o seu distrito. Verificará que só muito raramente lhe indicam mais do que um nome. Tente agora um segundo teste: Pergunte à mesma pessoa se lhe sabe dizer quem substituirá o Eng. Sócrates no partido socialista (PS), se este por qualquer razão deixar repentinamente de ser PrimeiroMinistro. Neste caso notará frequentemente silêncio. A conclusão que se retira destes dois exercícios é que os portugueses não sabem quem os representa na AR, nem sequer sabem quem pode assumir num golpe de asa o cargo de Primeiro-Ministro. Esta última situação está ainda bem patente nas memórias dos portugueses, quando em Agosto do ano passado o Dr. Durão Barroso permutou inesperadamente São Bento por Bruxelas. Portugal bambaleou estupefacto, sem saber quem seria o novo Chefe de Governo. Entende-se que, em princípio, uma democracia possa ser organizada e gerida de várias formas. Contudo, parece-nos difícil definir democracia como “o governo das pessoas, para as pessoas”, quando existem mais de duas centenas de deputados na AR, praticamente desconhecidos dos eleitores, e quando Portugal não prevê na sua constituição a existência de um vice-primeiro ministro eleito pela população. Se a nação não está na sala, irá ela para as galerias? É inagável o facto de os deputados serem legitimamente eleitos. É inagável o facto do partido vencedor das eleições legislativas ter legitimidade para apurar o sucessor do seu secretário-geral. Contudo, a questão não está na legimitidade, mas no problema que produz: um sistema invisível às preocupações e aspirações dos cidadãos portugueses. Ao votar nos partidos, e não em pessoas, os portugueses passam um cheque em branco às comissões partidárias que seleccionam os candidatos. Mas quem são estas comissões? No caso da escolha dos deputados, ninguém sabe! É interessante salientar que dos 217 países que vêm incluídos no Handbook of Electoral System Design, publicado pelo International Institute for Democracy and Electoral Assistance, só 66 têm um sistema proporcional com voto em listas partidárias, semelhante a Portugal. Daí que se deva partir da noção de que por si não são os sistemas eleitorais que criam governos estáveis. Contudo, existem diferenças importantes dentro destes sistemas proporcionais de voto. Vejamos! Num sistema aberto, como por exemplo a Finlândia, os eleitores votam em candidatos específicos que figuram na listas dos partidos. A ordem segundo a qual os candidatos são eleitos é determinada pelo votos que individualmente recebem. Num sistema fechado, como é o caso de Portugal, a votação é restricta às listas partidárias. De facto, nao é permitido exprimir preferência por qualquer candidato das listas. Neste contexto, quando os dirigentes do PS anunciam o resultado histórico das recentes eleições, em particular a maioria absoluta caracterizada pelo mandato de 120 deputados, é questão para perguntar: Quem são afinal, estes deputados que tomaram posse? Quem vai substituir o Eng. Sócrates na sua circunscrição de Castelo Branco, quando este assumir a chefia do governo? Paralelamente, quem são os deputados do maior partido da oposição? Apesar dos nomes dos candidatos a deputados serem públicos, a verdade é que estes, pouco ou nada, se deram a conhecer aos cidadãos que agora representam. Portanto, independentemente do seu valor, os deputados são na sua grande maioria alheios aos seus distritos. Dado o desencruzamento entre a população e os seus representantes, este sistema proporcional fechado de voto em listas partidárias promove votações em uníssono por parte de cada partido. Perante uma proposta de lei, os 120 deputados afectos ao PS votam de uma forma, os 72 deputados do PSD votam em oposição. Será este um sistema que defende as estratégias de desenvolvimento para Portugal e os interesses dos seus cidadãos? Não nos devemos esquecer que a AR é o orgão que reclama a fiscalização da acção da Administração Pública e do Governo. Se os deputados votam sempre de acordo com a sua afiliação partidária, qual será a competência da AR na revisão do Pacto de Estabilidade (o gizado programa plurianual de redução de despesa corrente), no acompanhamento da elaboração dos orçamentos gerais do Estado, na avaliação do proposto orçamento macro-económico quinquenal? Adicionalmente, ao nível dos cidadãos, quem na AR ouve as preocupações de um trabalhador cumpridor que vive em condições precárias, quem ouve os pais de alunos que frequentam escolas sem professores, quem ouve os receios dos condutores de viaturas pelas más condições e perigo das estradas? A votação em uníssono dos deputados, aliada à ausência de representatividade origina na população a perda de esperança, a perda de confiança no sistema político, e finalmente um sentimento de “falta de missão”. O cidadão distancia-se das leis. Defendemos, portanto, a criação de círculos uninominais (com eleição plural ou por maioria) cruzado com um nacional, que mantenha a proporcionalidade. Mas de imediato, há saber com quem o governo discutirá na Assembleia assuntos de melindre como o da afectação de recursos. Ainda não há muito tempo, o debate sobre o Modelo de Financiamento do Sistema Científico, Tecnológico e de Inovação foi convocado pela Comissão de Economia e Finanças. Mas quem era quem nesta comissão? Bem, não falemos em partidos, mas um quarto dos seus membros não tinham sequer licenciatura. Nao se trata de uma questão de elitismo. Estes membros nao eram autodidactas, homens bons ou forças vivas experientes nas suas comunidades, mas antes pequenos prosélitos, certamente incapazes de destinguirem habilidade de competência, obediência de serviço, programa de mandato! A representação efectiva na Assembleia garante em paz social as relações entre o poder executivo e o legislativo. A participação e tensão mobilizadoras criadas entre o governo com a maioria que o sustenta e a oposição que se prepara para o substituir, têm de ser tanto estruturais como testemunhais. O papel dos deputados deve ser sensível, e não um impedimento, aos receios, às esperanças e aspirações dos cidadãos que supostamente representam. Portugal deve caminhar no sentido de responsabilizar os membros da AR, junto dos seus constituintes, para que os deputados estabeleçam uma certa independência dos partidos políticos. Temos que estabelecer um sistema onde todos os portugueses, pobres ou ricos, a viver no campo ou nas cidades, possuam alguém que os represente no parlamento. Alguém que possa defender as suas aspirações. Para que não se corra o risco de o país, assembleia e galerias, se torne mero estaminé. * Paulo Ferreira, Professor, University of Texas at Austin, USA e Professor Visitante, Massachusetts Institute of Technology (MIT), USA, [email protected] e **José Maria Albuquerque, Investigador, Doutorado pela Lehigh University, USA [email protected]) são membros do “Missão Possível”, grupo cívico de informação e opinião.