No coração da selva ouvi um clamor: a história da revolução islâmica no Sudão (1881-1898)
Patricia Teixeira Santos
Os estudos na linha da História Política permitem identificar as complexas relações que existem
entre a religião e o fenômeno político. Por esta perspectiva, percebe-se que, com relação ao Islam, o
sistema religioso tornou-se uma dimensão da política, na medida em que o espaço privilegiado para
a vivência da fé e para a concretização das promessas de Allah aos seus fiéis é o Estado Islâmico
juridicamente constituído e reconhecido enquanto tal. Além disso, a Shariah (a jurisprudência)
nasceu a partir dos textos sagrados e regulamenta as relações políticas, sociais e religiosas do
Estado com a Umma (a comunidade muçulmana).
No Islam, o poder político e a estrutura social são, segundo Campanini, benefícios de Deus, graças
concedidas para a felicidade de todos os homens. Assim, o propósito dos muçulmanos não é tanto o
de debater sobre a essência de Deus, mas, sobretudo, o de interpretar a vontade divina e de conhecer
e observar as leis que são religiosas e políticas ao mesmo tempo. Os governantes devem ser capazes
de concentrarem em si as atribuições de chefe de Estado e de Iman (aquele que conduz os fiéis nas
orações). Por isso, o melhor sistema de poder para o Islam, de acordo com o Corão e a Sunna, é o
califado, que foi determinado após a morte do Profeta Muhammad, e que constitui o modelo eterno
de uma forma perfeita de Estado que Deus desejou que atuasse no tempo histórico.
A deturpação do califado, na perspectiva dos pensadores muçulmanos do século XIX, como Rashîd
Ghannîsh, da Tunísia, surgiu do desejo de se adotar a modernidade ocidental, a ponto dos Estados
de maioria muçulmana se apropriarem do princípio da separação dos poderes temporal e espiritual,
o que contribuiu para o divórcio entre religião e política e para o enfraquecimento do poder do
governante, distanciando-o da comunidade de fé e aproximando-o dos Kafir (os ignorantes dos
princípios islâmicos). Tal fato teve como consequência o abandono da observância da Shariah, o
que fez com que diversos Estados deixassem de ser reconhecidos como Islâmicos, provocando a
restrição do espaço para a vivência da fé, pautado e orientado pelo Corão e pela Sunna.
Para se reconquistar o bem perdido tornou-se necessário percorrer o salaf (o caminho dos antigos),
porque foi no passado, ou melhor, no auge do sistema do califado, durante a Idade Média, que os
muçulmanos souberam, na perspectiva das correntes islâmicas dos século XIX e XX, praticar
corretamente os ensinamentos de Allah. Este movimento de relembrar as virtudes dos antepassados
de fé transformou o Islam no século XIX em um princípio mobilizador da defesa da identidade dos
povos não europeus islamizados e também uma alternativa política e social antimperialista que
atraiu populações não muçulmanas na África e na Ásia, como foi comprovado no surgimento de
várias revoluções islâmicas onde o percentual de participação de aliados não convertidos foi
bastante significativo, como a Mahdia no Sudão (1881-1898), objeto de análise deste artigo.
A respeito dos antecedentes da Revolução Mahdista, Prunier destacou que a ocupação do Sudão
pelo Egito Otomano é um fenômeno fundamental, porém ainda pouco estudado. Segundo o autor, a
expansão egípcia em direção à região ocorreu em meio às tensões causadas pela rivalidade anglofrancesa. Bleuchot, por sua vez, assinalou que escrever a história da conquista do Sudão é uma
tarefa extremamente difícil, dada a parcialidade da documentação disponível, constituída
unicamente pelas narrativas dos viajantes. Os detalhes fornecidos pelas fontes são obscuros e
contraditórios, especialmente quando se referem a estimativas (número de escravos, população,
preços) que são muito diferenciadas umas das outras.
Para compreender a problemática que Prunier e Bleuchot chamaram de sub-imperialismo egípcio no
Sudão, é necessário atentar para a situação do Egito no início do século XIX. Principal território
dominado pelos otomanos na África, passou pela ocupação francesa, que desestruturou o poder dos
mamelucos na região. Tal intervenção, somada às novidades tecnológicas e militares introduzidas
pelos franceses, fizeram com que o Vice-Rei egípcio Muhammad Ali se sentisse forte o suficiente
para conseguir a autonomia frente ao Império Otomano.
Para os autores, a melhor forma encontrada por Ali para atingir o seu objetivo foi através da
conquista do Sudão e da fundação, em 1824, da cidade de Khartoum. A fim de poder continuar a
expansão sobre o território sudanês, o Vice-Rei se aproximou das potências européias,
especialmente da Inglaterra, sujeitando-se às prerrogativas imperiais da mesma. É em função disso
que a ação de Ali foi caracterizada como sub-imperialismo.
Prunier ressaltou que o Sudão não era unido. Ao norte estendia-se uma região islamizada, onde o
árabe servia de língua franca. Ao sul encontravam-se as populações não muçulmanas que eram
vítimas das razzias. Tal fato teria facilitado o êxito de Ali.
Com a expansão egípcia, segundo o autor, instalaram-se os consulados da França, da Áustria, da
Holanda, do Piemonte-Sardenha e da Inglaterra. Esta última conseguiu transformar o Egito e o
Sudão em suas áreas de influência, solapando os interesses das outras potências européias, em 1898.
Entre os anos quarenta e sessenta do século XIX, chegaram os missionários que se instatalaram na
região sul, onde a maior parte das populações não eram islamizadas. Iniciou-se a modernização do
Sudão, com o estabelecimento da navegação a vapor e da construção do porto de Souakin, o que
contribuiu para a ampliação das relações comerciais com a Europa.
Bleuchot mostrou que as primeiras missões cristãs a entrarem no Sudão foram as católicas
austríacas, fazendo parte de uma série de inovações advindas do processo de ocidentalização da
região.
Prunier e Bleuchot não destacaram a importância das missões católicas na região, bem como o
papel desempenhado pelas mesmas de estabelecer contato com os povos do sul do Sudão que eram
hostis a qualquer aproximação com elementos ocidentais, e também com o Islam, em função das
razzias promovidas pelos traficantes muçulmanos. Além disso, não se utilizaram dos escritos e das
documentações produzidas pelos missionários a fim de caracterizar o impacto da expansão
imperialista européia nos povos do Sudão.
Acredito que a perspectiva de escrever uma história do Sudão, a fim de compreender os problemas
contemporâneos do Islam naquele país, levou Prunier e Bleuchot a optarem pelo enfoque dos
conflitos das principais correntes islâmicas sudanesas com o expansionismo anglo-egípcio e pelo
estudo dos referenciais religiosos e políticos dos muçulmanos sudaneses do século XIX, que
claramente rejeitavam a existência de uma religião monoteísta rival, o Catolicismo, representante do
Ocidente na região.
Daget e Renault, por sua vez, preocuparam-se em analisar as estruturas econômicas e políticas do
Sudão no século XIX e o impacto causado pela intervenção inglesa no tráfico de escravos, que era a
atividade mais lucrativa da região.
Segundo esses autores, o Sudão fornecia ao Egito escravos militares, eunucos e escravas para serem
concubinas nos haréns dos mais abastados. Com a expansão turco-egípcia, a estrutura escravista
tornou-se bastante complexa, na medida em que o Vice-Rei Muhammad Ali intensificou a
exploração do marfim e dinamizou o tráfico de escravos, dando abertura inclusive para a
participação de traficantes de origem européia.
Em função do aumento da demanda, surgiram as zeribas e os dems, que eram, inicialmente,
fortificações onde o marfim apresado era guardado. Com o aumento do tráfico, elas passaram a
abrigar grandes quantidades de escravos. As populações vizinhas a essas fortificações foram
submetidas pelos traficantes, que cobravam das mesmas impostos e recrutavam dentre elas os
sentinelas para vigiarem os cativos e serviçais para trabalharem na residência dos traficantes situada
nos dems.
Através do estabelecimento dessas fortificações, os traficantes tornaram-se autoridades efetivas no
sul do Sudão e puderam contar com o apoio dos funcionários da administração turco-egípcia, até a
proibição ao tráfico de escravos proclamada pelo sultão otomano, em função das pressões inglesas.
Apesar de terem caracterizado os embates entre os muçulmanos e os ingleses, Daget e Renault não
aprofundaram o estudo dos mecanismos de resitência dos traficantes às investidas ocidentais na
região.
Bleuchot, entretanto, ressaltou que grande parte dos comerciantes de escravos eram muçulmanos e
que o Islam na região percebia a intervenção inglesa no tráfico de escravos, como o início da perda
da autonomia política e religiosa das elites sudanesas, suscitando inúmeras reações contra os
soldados ingleses em algumas províncias.
A união islâmica afetou os interesses ingleses muito mais do que a atividade traficante. Ao contrário
do que autores como Prunier apontam, Grandini destacou que o Islam no Sudão conseguiu
empreender a maior ação anti-colonialista do século XIX, a Revolução Mahdista, graças à
capacidade que teve de unir as províncias do norte e do sul em torno do objetivo comum de
expulsar o estrangeiro. No entanto, acredito que, somados ao desejo de impor o fim da dominação
estrangeira, existiram outros fatores igualmente importantes, que serão abordados mais adiante, a
partir da caracterização da historiografia a respeito da Mahdia.
Os primeiros ensaios históricos e tratados diplomáticos a respeito da Revolução Mahdista datam de
1891, quando o Estado Islâmico ainda existia no Sudão. O que favoreceu o surgimento dessas obras
foi a fuga de um prisioneiro europeu da capital do Estado Mahdista, a cidade de Ondurman, Padre
Josef Ohrwalder, de origem austríaca, que era membro do Instituto das Missões pela Nigrízia,
fundado pelo Vigário Apostólico da África Central, D. Daniele Comboni em 1871.
O relato da fuga do Padre Ohrwalder, produzido a partir do incentivo do general inglês Wingate,
que desejava a intervenção militar inglesa no Sudão e a inclusão desta região como protetorado
britânico, foi a base da produção de diversos estudos históricos que reforçavam o caráter
intransigente da Revolução e que caracterizavam o líder Muhammad Ahmad e os que o apoiavam
como selvagens sem lei.
Esta produção historiográfica, realizada sobretudo por historiadores ingleses, ganhou novo impulso
com a fuga de Rudolph Slatin, que foi governador de uma das províncias do Sudão até o início da
Revolução Mahdista, quando converteu-se ao Islam, alegando o medo de morrer nas mãos dos
muçulmanos.
Os relatos de Ohrwalder, devidamente alterados na versão inglesa que teve como revisor o próprio
General Wingate e os depoimentos de Rudolph Slatin contribuíram para a produção e a
popularização das obras historiográficas a respeito do caráter da Revolução Islâmica e da idéia de
que a Inglaterra tinha o dever de pacificar os revoltosos e de integrar na Commonwealth aquela
perdida e selvagem região do globo.
Contudo, em 1901, foi publicada na França a obra L ‘État Mahdiste au Soudan de G. Dujarric, que
questionou a versões de Slatin e Orhwalder a respeito da situação dos prisioneiros europeus no
Estado Mahdista. Segundo Dujarric, o status do prisioneiro no Estado Islâmico era muito diferente
daquele dos Estados ocidentais. Os prisioneiros poderiam prestar serviços, contribuindo para o
desenvolvimento do comércio e da administração do Estado, tendo com isso algumas regalias como
a de poderem manter correspondência com seus familiares, importar artigos da Europa para uso
pessoal e ter acesso aos líderes islâmicos.
Apesar da riqueza da análise das fontes dos prisioneiros ingleses e franceses e dos manuscritos
deixados pelo Mahdi, a obra Dujarric foi condenada ao ostracismo, porque, acabava, em certa
medida, por questionar a ação imperial anglo-francesa na África, como um todo. Esta obra foi
recuperada somente a partir dos anos sessenta do século XX, quando uma nova geração de
historiadores ingleses começou a relativizar os estudos aparentemente acríticos baseados nos textos
de Orhwalder e Slatin.
Diversas teses sobre o caráter do Islam e o significado da Revolução Mahdista foram produzidas
alicerçando-se nas fontes do religioso e do militar austríacos. Estes estudos vieram a sofrer uma
grande transformação a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, quando as potências européias,
bastante enfraquecidas, começaram a perder as suas possessões coloniais que, por sua vez, estavam
lutando pela independência política. Foi nesse contexto que a obra de R. Hill e os ensaios que
produziu posteriormente causaram um grande impacto, porque questionaram as fontes básicas da
historiografia anglo-francesa a respeito da Revolução Mahdista. Sabe-se que havia diversos
prisioneiros europeus de diferentes nacionalidades e funções, inclusive os religiosos católicos, que
não tiveram os depoimentos contemplados pela historiografia. A contribuição de Hill foi a de
destacar o papel que as obras de Ohrwalder e Slatin tiveram de War Propaganda. Além disso, face
aos desafios colocados pela independência dos países africanos e asiáticos, Hill mostrou que era
fundamental revisitar a história da Revolução Mahdista e de outros movimentos de contestação
colonial, a fim de ser possível compreender as novas nações que se constituíam a partir de outros
parâmetros de análise e de um novo posicionamento político, sobretudo em função da Guerra Fria.
A abertura dos arquivos da Mahdia que estavam no Egito e no Sudão contribuiu para redimensionar
a análise historiográfica sobre a situação dos prisioneiros de guerra no Estado Mahdista.
Confirmaram-se as observações de Dujarric quanto as possibilidades que os prisioneiros europeus
tinham de desenvolver atividades comerciais e de contribuír para o incremento das relações
econômicas do Estado Islâmico com outros potentados africanos. Os europeus convertidos ao Islam
gozavam dos mesmos direitos e liberdades que os demais muçulmanos, tendo o direito de se
sentarem na mesquista, durante os Sermões de Sexta-Feira, nas fileiras mais próximas do Mahdi,
que comandava as orações.
Graças às novas fontes, surgiram obras que nos anos setenta e oitenta do século XX, detiveram-se
no estudo mais aprofundado do caráter do Estado Islâmico constituído no Sudão. Dentre elas,
destaca-se a obra de Bleuchot, que mostrou a capacidade que a Revolução Mahdista teve de integrar
diferentes populações não islamizadas na estruturação do Estado e o quanto a escravidão foi
importante para o seu desenvolvimento. Além disso, apontou como a propaganda abolicionista
ocidental foi ineficaz na tentativa de acabar com o tráfico de escravos.
A respeito da figura do Mahdi, as obras historiográficas anglo-francesas produzidas a partir dos
relatos de Ohrwalder e Slatin retrataram Muhammad Ahmad como um homem que se autoproclamou Mahdi, aproveitando-se dos conhecimentos que possuía dos Haddis (tradições) do
Profeta Muhammad e do Corão. Tratava-se de uma figura presunçosa e ardilosa que unia uma
população esfaimada e desesperada com a exploração turco-egípcia. O papel dos ingleses seria o de
coibir os abusos das autoridades, projeto que fracassou completamente na medida em que o
desespero, o irracionalismo e a fome foram os detonadores do movimento Mahdista, que teria um
caráter meramente reivindicatório e configurou-se, para essa historiografia da War Propaganda,
como uma revolta.
A obra de Dujarric, apesar de questionar a veracidade dos depoimentos de Ohrwalder e Slatin,
apontou como fatores para o surgimento do movimento Mahdista a proibição ao tráfico de escravos
e, fundamentalmente, a exploração descabida empreendida pelos Vice-Reis do Egito, que
pretendiam formar um império assentado na corrupção e na exploração. Apesar das críticas,
percebe-se em Dujarric uma visão otimista do Império Britânico. Para este autor, a Inglaterra
representava o bastião da moralidade para o mundo. O que deveria ser coibido eram iniciativas de
súditos ingleses que solapavam o espírito da filantropia européia em nome de interesses comerciais
muitas vezes escusos. Além disso, se a França e, principalmente, a Inglaterra reclamavam para si o
ônus de serem as civilizadoras dos povos, jamais poderiam ter cometido atos que as igualassem aos
administradores turco-egípcios, como, por exemplo, a extrema violência utilizada na execução dos
traficantes de escravos e dos prisioneiros mahdistas.
O Mahdi, para Dujarric, era um homem piedoso, que fez com que as populações exploradas do
Sudão vislumbrassem uma possibilidade de justiça e de vivência dos valores de uma religião que
portava, na avaliação do autor, um forte conteúdo igualitário e que possiblitou a união de povos tão
diferentes em torno dos objetivos comuns de se livrarem do egípcios, dos otomanos e dos europeus,
que igualmente os maltratavam e os atingiam na fonte mais preciosa de seus recursos, que era o
tráfico de escravos.
A partir das críticas feitas por Hill, na segunda metade do século XX, historiadores como Zaccaria e
também Grandini caracterizaram a figura do Mahdi como precursor do nacionalismo árabe que veio
a desenvolver-se no século XX e identificaram o movimento Mahdista como uma grande revolução
que propunha uma transformação radical da sociedade, além de ter um caráter marcadamente anticolonial, que abalou as certezas ocidentais construídas na Era do Imperialismo a respeito das
limitações do Oriental.
Apesar das novas abordagens a respeito do caráter da Revolução, do papel da escravidão e dos seu
significado político, percebo que boa parte da historiografia ainda restringe as razões do surgimento
da Revolução Mahdista aos abusos de poder e de exploração das autoridades otomanas e das
potências européias.
Contudo, a partir da análise dos relatos dos missionários do Instituto das Missões para a Nigrízia e
das cartas do Vigário Apostólico da África Central, D. Daniele Comboni, é possível perceber que já
havia uma movimentação pelo menos dez anos antes da Revolução eclodir, capitaneada pelos seus
agentes no sentido de expandir o Islam para toda região sul do Sudão além da produção de
biografias de muçulmanos virtuosos para uso das populações a serem convertidas. Tal investimento
competia com os missionários católicos e, segundo os religiosos, já era possível perceber a
aproximação de potentados locais com os muçulmanos que expandiam a fé islâmica para o interior.
Além disso, outro aspecto fundamental que se pode apreender a partir da análise das fontes, e que
ainda não foi explorado pela historiografia contemporânea, é a situação dos europeus convertidos
para o Islam no Sudão. Sabe-se que tanto o Corão quanto a Sunna proíbem as conversões forçadas.
Durante a vigência do Estado Mahdista, o califa Abdulahi garantiu o direito dos religiosos católicos
de celebrarem missas e de administrarem os sacramentos para os outros prisioneiros da mesma
religião. Os povos aliados dos Mahdistas que não eram nem muçulmanos e nem faziam parte dos
povos do Livro tiveram direitos e representação dentro do Estado, o que constituiu uma inovação na
jurisprudência islâmica, no que se refere ao tratamento dispensado aos pagãos.Muitos europeus que
se converteram ao Islam durante a Mahdia alegaram que assim o fizeram para não morrer e o mais
célebre de todos foi o próprio Rudolf Slatin que, devido à conversão, teve acesso direto ao Mahdi e
gozou dos mesmos direitos adquiridos pelos Ansar, os companheiros do líder, podendo transitar
livremente e manter constante contato com os seus familiares na Áustria.
Assim, os relatos dos missionários do Instituto das Missões da Nigrízia, do Vigário Apostólico da
África Central, bem como de comerciantes e autoridades diplomáticas não afinadas com a política
inglesa na África Central foram obliterados em função da necessidade de se estabelecer o domínio
colonial britânico no Egito e no Sudão
Perecebe-se a partir do caso do Sudão, que partir da intervenção ocidental, a situação das
populações islâmicas na Ásia e na África nunca mais foi a mesma, pois na justa medida em que se
intensificavam as investidas das potênciais européias, sobretudo a partir da segunda metade do
século XIX, desenvolveram-se e tomaram corpo em diferentes regiões da África diversos
movimentos islâmicos de contestação e de transformação social, dentre os quais se destacou o
Mahdismo, fenômeno que atingiu diversas áreas do continente, onde surgiram vários Mahdi
(restauradores da fé islâmica), que comandaram os jihad ( o grande empenho pela causa de Deus
através da luta) contra europeus e também contra potentados africanos que se sujeitaram à
intervenção ocidental.
A fim de poder compreender a natureza das movimentos islâmicos de contestação e de revolução,
pretendo estudá-los a partir da perspectiva da relação entre Cultura e Imperialismo desenvolvida por
E. Saïd. Constatando que o contato imperial jamais foi unilateral, mas, acompanhado sempre de
algum grau de resistência, o autor caracteriza a cultura como uma noção que, no contexto do
Imperialismo, veio associada a projetos de constituição de Estados Nacionais na Europa, tornandose uma fonte de identidade que diferenciava os europeus das populações africanas e asiáticas,
justificando os combates e fomentando, por parte dos povos que vieram a ser colonizados,
movimentos de retornos à tradição, que possuíam, em muitos dos casos, um caráter
fundamentalista. Dentre essas reações, destaca-se a Mahdia no Sudão.
Na relação entre Cultura e Imperialismo, a partir da perspectiva de Saïd, as narrativas ficcionais e
históricas foram fundamentais para a reafirmação da identidade européia e para as justificativas da
expansão imperial. Por isso, além da conquista da terra e da subordinação dos povos africanos e
asiáticos, tornou-se imperioso o controle do poder de narrar e de impedir que vozes discordantes
pudessem narrar contra as ações das potências ocidentais. Termos como escuridão, trevas e
abandono foram vastamente utilizados pela literatura européia para caracterizar a África e os seus
habitantes, atraindo o interesse de um grande público que lia os diários de viagens de exploradores,
os romances, os artigos de jornais e os relatórios das Sociedades Geográficas. Ao se escrever sobre
a África, seus habitantes, sua fauna e sua flora, consolidava-se no espaço da narrativa o que fora
conquistado no continente, reforçando-se a dominação ocidental.
Inglaterra e França, as duas maiores potências européias no século XIX, disputaram acirradamente
por áreas de influência na África. A rivalidade perpassava desde o campo militar até a literatura.
Diversos romances, diários e relatos científicos ajudaram a expressar no campo intelectual os
confrontos entre os dois países. Além disso, nos aspectos religioso e diplomático, a França se
proclamou protetora das missões católicas e a Inglaterra advogou a posição de mantenedora das
iniciativas evangelizadoras protestantes.
A cultura também constituiu num campo de batalha, visto que as investidas imperiais foram
constantemente acompanhadas pela resistência dos povos africanos e asiáticos. O argumento de
defesa da liberdade justificava a perseguição aos traficantes que, por seu lado, organizavam o
contra-ataque. Isto levou as potências ocidentais retomarem a idéia de cruzada contra os pagãos e
infiéis.
Nos discursos dos exploradores, funcionários e forças policiais das metrópoles européias, o homem
africano era visto como um ser completamente desamparado dos direitos políticos e de qualquer
autoridade que pudesse protegê-lo, sendo tratado como selvagem. Além disso, era comum a
tendência de reificar o nativo a ponto de se estabelecer práticas, que, em grande parte, contrariavam
os valores cristãos ocidentais, como a comercialização e o consumo de carne humana no Congo
Belga. Tamanha necessidade de se atribuir características naturais e/ou designações que destituíam
os povos não europeus da sua dimensão humana, evidenciam que havia reações que respondiam às
agressões ocidentais. acompanhadas pela resistência dos povos africanos e asiáticos.
Apesar da violência generalizada na exploração ocidental da África, existiram vozes dos centros
metropolitanos das grandes potências européias que se ergueram contra o abuso de poder. No
entanto, para essas pessoas que protestaram, como Joseph Conrad, autor de Heart of Darkness,
romance onde denunciou as atrocidades cometidas pelos belgas no Congo, a África necessitava da
presença ocidental, na medida em que a sua natureza e os seus habitantes estavam imersos no caos e
na ignorância. Tal posicionamento não pode ser considerado paradoxal, na medida em que na época
o pressuposto científico para o estudo e compreensão da dinâmica dos povos não europeus era o
paradigma da raça.
Havia diversas formas de se conceber o estudo das raças e abordagens que iam desde o
evolucionismo de Tylor até a eugenia. No caso de Conrad e de outros intelectuais europeus e
religiosos que não aceitavam as atrocidades coloniais, predominava a perspectiva denominada por
Apià de racismo intrínseco, ou seja, os povos eram pensados em termos de características físicas e
intelectuais comuns determinadas pelo pertencimento a uma raça. Em função disso, era necessário
conhecer bem tais aspectos a fim de se fazer uma intervenção que garantisse o desenvolvimento e o
progresso, tomando o cuidado de se perceber os aspectos positivos de cada raça e potencializandoos através do ensino dos valores da civilização ocidental.
A fim de se poder comprender as especificidades da Revolução Mahdista, dentro da perspectiva
mais ampla da relação entre Cultura e Imperialismo, é necessário que se faça considerações a
respeito de um importante conceito que é o de fundamentalismo religioso.
O fundamentalismo se consolidou, no século XX, como um conceito explicativo, dentro da
Teologia e posteriormente nas Ciências Sociais, para o estudos das reações de diferentes sistemas
religiosos ao impacto da modernidade. Além disso, passou a carregar um sentido de fanatismo
religioso ou mesmo de violência sacra, sendo visto como a tentativa de um impossível retorno ao
passado, às origens de um credo religioso não muito compatível com o mundo contemporâneo,
sendo portanto arcaico e intolerante e possível de ser encontrado nas grandes religiões.
Diante disso, E. Gellner propôs revisitar o conceito de fundamentalismo, buscando perceber as
possibilidades de aplicabilidade do mesmo, a despeito de toda carga pejorativa que herdou ao ser
utilizado para explicar comportamentos e ações intransigentes por parte das religiões. Para este
autor, o fundamentalismo pode ser entendido por aquilo que rejeita, a saber, o relativismo na
interpretação dos textos sagrados e, principalmente, o fim da exigência do cumprimento integral de
uma orientação ou da observância de todo um sistema de conduta, que ganha sentido na sua
totalidade integradora, permitindo a manutenção da identidade religiosa.
O fundamentalismo estaria presente em muitas religiões, segundo Gellner, mas se encontra no
apogeu no Islam. Para o autor, as razões disso residem, em primeiro lugar, na rejeição dos
muçulmanos ao processo de secularização, o que detonou o surgimento de diversos movimentos
que propõem a volta a Idade do Ouro, período que se iniciou com o advento do profeta Muhammad
e que perdurou até o califado Abássida. Em segundo lugar, o Islam, para Gellner, é uma religião que
pretende completar a revelação divina, sendo o profeta Muhammad o último mensageiro de Deus.
Por isso, os seus adeptos consideram as mensagens reveladas anteriormente como distorcidas pelos
seus seguidores.
Em função disso, a doutrina islâmica observa um monoteísmo severo e, além da noção fundamental
de que religião e política são interligadas, a ponto da lei legislar tanto a dimensão temporal quanto
espiritual. Por ter sido revelada por Deus, não cabe aos teólogos questionarem se a lei é justa ou
injusta, na medida em que a mesma é fundada em um princípio que está para além do humano, ou
seja, a própria divindade.
Allah segue à frente da legislação e estabelece a jurisprudência, a Shariah. Além disso, subordina o
poder executivo ao legislativo e os ulama (os doutores da lei) têm o dever de serem responsáveis
pela cobrança do cumprimento da observância da fé da Umma (comunidade muçulmana). Não há,
teoricamente, a existência de um clero como no Catolicismo, ou de qualquer intermediário entre o
muçulmano e Deus. Neste sentido, aponta Gellner, o Islam é um sistema religioso igualitário, onde
os crentes possuem o mesmo valor perante a divindade.
Apesar de reforçarem a abordagem que mostra interligação entre a dimensão religiosa e a política
no Islam, Pace e Guolo discordam do tratamento do fundamentalismo no singular. Para esses
autores, existem vários fundamentalismos, que surgiram de acordo com diversos contextos culturais
e religiosos dos movimentos que reelaboraram ou mesmo reiventaram a tradição sacra. Esta
perspectiva amplia e redimensiona a visão de Gellner, que não prioriza, a meu ver, a dinâmica
histórica e estabelece como meta do fundamentalismo a invocação de um passado onde se encontra
a origem do sistema religioso, descartando as constantes reinterpretações da doutrina e a
possibilidade do surgimento de novas alternativas para a solução de problemas políticos e sociais
não abordados pela tradição ou mesmo pelos textos sagrados.
Para Pace e Guolo, os fundamentalismos constituem um tipo de pensamento que se interroga a
respeito do vínculo ético que têm as pessoas que vivem em uma mesma sociedade, concebida como
a totalidade dos crentes, empenhados enquanto tais em cada campo do agir social. Para os
movimentos fundamentalistas se coloca o problema do elemento principal da integridade de uma
comunidade, a saber, o pacto de fraternidade religiosa, que é a fonte da identidade coletiva.
Os movimentos fundamentalistas interpretam uma necessidade social emergente, que é a de não
perder os próprios princípios e a identidade em uma sociedade cada vez mais minada pelo
individualismo e atingida pelo permissivismo e pelo relativismo moral. Nos fundamentalismos
tende-se a imputar a responsabilidade destes problemas da sociedade a um sujeito preciso, que pode
ser o pluralismo democrático, o secularismo, o comunismo, o ocidente capitalista ou o Estado laico.
Tudo isto faz parte da categoria inimigo, que desempenha o papel de acabar com a identidade
religiosa e política e de desestruturar o pacto de aliança com uma palavra divina ou com uma lei
sagrada.
Tomando como ponto de partida para análise os parâmetros apresentados por Pace e Guolo, é
possível perceber que o fenômeno designado como fundamentalismo islâmico, é na verdade, o
produto da ação de movimentos que operaram em fases históricas distintas, que podem ser definidas
como Ressurgimento, Reformismo e Radicalismo.
O Resurgimento foi a corrente do fundamentalismo que se manifestou entre os século XVIII e XIX
nas áreas periféricas dos impérios muçulmanos e que possui algumas linhas ideológicas comuns,
como a reafirmação do caráter monoteísta do Islam e a decisão, do ponto de vista político de
abandonar os territórios (héjira) nos quais era predominante a presença dos infiéis (as potências
ocidentais), dos politeístas e dos pagãos, ou então, de reconquistar a terra através do Jihad (luta pela
causa de Deus). Foi nesse segundo aspecto que se inseriu a Revolução Mahdista no Sudão.
O Reformismo desenvolveu-se nos séculos XIX e sobretudo XX, como uma reação à decadência do
mundo muçulmano, provocada pelo processo colonial e pela consequente ascensão da Europa.
Diferentemente do Ressurgimento, que será melhor analisado mais adiante, o Reformismo se
manifestou no coração do Império Muçulmano e não nas suas margens. Uma vertente do
pensamento reformista foi a corrente otomana que acreditava que o renascimento do Islam deveria
vir do alto, pela via política, buscando conciliar a modernidade ocidental com a doutrina
muçulmana. Buscou-se traduzir para a linguagem islâmica algumas categorias tipicamente
européias. Um exemplo disso foi a prática corânica da Shura (consulta aos crentes), que veio a ser
redefinida como a forma moderna que a democracia assumiu no mundo muçulmano.
Contudo, no início do século XX, sobretudo após a queda do Império Otomano, o Reformismo
imprimiu um notável impulso na reivindicação nacionalista e na luta pela independência. Os líderes
eram animados pela vontade de renovação interna que consistiu na busca de soluções próprias que
se constituíssem numa alternativa à modernidade pelo viés europeu. Porém, logo se percebeu que a
tentativa de modernizar o Islam sem submeter-se aos parâmetros ocidentais era um erro e, em
função disso, uma elite laica assumiu o comando do processo de independência em muitos países de
maioria muçulmana, relegando o Islam a uma dimensão privada, provocando ressentimentos e o
surgimento de movimentos contestatórios contra os novos governantes.
O Radicalismo surgiu justamente pelo fato do Islam ter sido removido da função de elemento
fundador dos novos Estados Nacionais. A penetração ideológica ocidental juntamente com o
processo de secularização foram vistos por muitos muçulmanos como uma ruptura da coesão social,
na qual estava embasada a vida da comunidade de fé. Em relação aos movimentos anteriores, o
Radicalismo modernizou o conceito de Jihad, que era visto apenas como elemento de defesa dos
muçulmanos, e o dotou de uma importante função de ataque. Além disso, o Jihad ganhou o sentido
de luta intelectual pela causa de Deus, através da produção de estudos teológicos e de obras que
conclamassem os muçulmanos a se posicionarem face ao impacto, muitas vezes desestruturante, dos
valores ocidentais.
No entanto, neste final de século, o Radicalismo retomou os cânones do momento do
Ressurgimento, o que pode ser percebido em diversas associações e movimentos contemporâneos,
que fazem o discurso da afirmação da identidade religiosa em absoluta oposição aos valores
ocidentais. Em função disso, as elites modernizantes e as correntes intelectuais laicas dos países
muçulmanos enfrentam uma grande dificuldade de estabelecerem diálogo com o Ocidente, sem que
com isso não sacrifiquem os valores da tradição islâmica. Em contraposição,os heróis muçulmanos
do período do Ressurgimento, como o Mahdi do Sudão, por exemplo, estão sendo recuperados e,
mesmo cultuados, como uma resposta às ações das elites dos países muçulmanos que tendem a se
alinhar à política das atuais potências ocidentais, dentre elas os Estados Unidos.
Com relação ao Ressurgimento, momento no qual se insere a Revolução Mahdista no Sudão, a
penetração ocidental foi vista como o início da Era da Decadência e, por isso, surgiram movimentos
que se constituíram numa resposta à perda da identidade religiosa e da soberania política.
O Mahdismo era uma crença consolidada na tradição Sunita e, em certa medida, também na Chiita,
na medida em que estes últimos esperavam o retorno do Iman oculto. Segundo os textos sagrados, o
Mahdi vencerá após uma fase de guerras, do surgimento de falsos profetas e do desvio da fé
islâmica, que provocou a dissolução de muitas instituições muçulmans e facilitou a vitória dos
infiéis. A crença na vinda do restaurador da fé, remonta à Idade Média, e o mundo muçulmano
conheceu vários Mahdis. No entanto, no século XIX, em função do impacto imperialista ocidental,
a esperança e o surgimento de novos Mahdis se multiplicou no mundo colonial.
A respeito do relacionamento entre os muçulmanos de diversos segmentos sociais com suas
lideranças espirituais, Gellner apresenta uma abordagem importante que auxilia na compreensão das
bases do estabelecimento da liderança de Muhammad Ahmad Abdulahi na população sudanesa e da
sua rejeição como Mahdi, pelos Doutores da Lei Islâmica (Ulama) do Império Otomano.
Segundo Gellner, o Islam no século XIX estava internamente dividido em uma alto Islam de doutos
e um baixo Islam popular. A fronteira entre esses dois segmentos era ambígua, mas, de uma maneira
geral, os Estados muçulmanos, por mais que fossem centralizadores da autoridade, tinham que
acomodar-se à autonomia local das tribos, que se administravam sozinhas. Em função disso, os
governantes precisavam contar com mediadores que pudessem ajudar a garantir o máximo de
coesão possível da comunidade de fé.
Os agentes que desempenhavam a tarefa de unir o alto e o baixo Islam eram os santos (vivos ou
mortos). Estes eram indivíduos que exerciam uma importante liderança espiritual, sendo fundadores
de confrarias ou conhecidos como seres dotados de poderes mágicos de cura, advinhação, além de
se colocarem como modelos de piedade e ascetismo. As possibilidades de revolta ou mesmo de
mudanças radicais, como o processo revolucionário, surgiram, na perspectiva de Gellner, em função
da quebra dos laços que mantinham esses dois segmentos unidos ou então pelo surgimento de uma
liderança no alto Islam intelectualizado, como o caso de Muhammad Ahmad Abdulahi, que se uniu
ao segmento popular, conquistando o apoio dos santos e a oposição dos Doutores da Lei,
contrariados com a nova aliança.
As revoluções islâmicas ocorridas na África Central no sécuo XIX foram iniciadas através do Jihad.
Esta categoria, importante para este estudo, é um dos elementos da profissão de fé islâmica, uma
obrigação imposta por Deus a todos os crentes. Numa guerra defensiva, é um dever de todo
muçulmano adulto saudável. Tal responsabilidade, ou melhor, compromiso de fé, se funda na
universalidade da revelação do Profeta Muhammad para toda humanidade e tem o sentido de
preservação da integridade da Umma e de combate as agressões dos Kafir.
O dever do Jihad não tem limites nem no tempo e nem no espaço. Deve durar até o momento em
que o mundo inteiro tiver se convertido à fé islâmica ou se submetido à autoridade do Estado
Islâmico. Segundo Lewis, o mundo está dividido na Casa do Islam (Dar - al Islam) e na Casa da
Guerra (Dar al Harbi). A primeira engloba a comunidade dos crentes e a segunda comprende o resto
do mundo. Entre as duas deveria existir, na perspectiva dos movimentos islâmicos do
Ressurgimento, o estado de guerra moralmente necessário e juridicamente e religiosamente
obrigatório, de acordo com a Shariah, até o triunfo final e inevitável do Islam sobre os Kafir.
No relacionamento dos Estados Islâmicos com o Ocidente caberia sempre a trégua (Selh), porque a
paz (Salam) só se assinaria em um conflito entre muçulmanos, que também não poderia ser
considerado um Jihad, na medida em que este último só pode ser proclamado contra os povos não
islamizados. Somente no século XX, no momento da predominância do Reformismo, é que a
palavra Salam passou a ser empregada para assinalar o fim dos conflitos com potências ocidentais.
O líder dos muçulmanos no Jihad, segundo o Corão e a Sunna, é o soberano. Contudo, no momento
do Ressurgimento, quem vai assumir essa tarefa são os mestres espirituais das confrarias
muçulmanas (tariqa) ou os próprios Mahdis.
Aspecto importante da definição e do reconhecimento de uma luta armada como Jihad é a clareza
na definição do inimigo. Categoria basilar na jurisprudência islâmica para poder regulamentar os
conflitos, o inimigo abarca em si o ignorante e infiel, o rebelde e o apóstata.
O ignorante não submisso a um Estado Islâmico, por definição, faz parte da categoria mais ampla
inimigo. Ele é considerado membro da Casa da Guerra e por isso é designado também como Harbi.
Quando o Kafir aceita o domínio muçulmano, recebe proteção do Estado e paga impostos para os
governantes. A jurisprudência permite a existência de um tipo singular de Kafir, o Musta’min. Este
é o infiel que visita um Estado Islâmico temporariamente por ter sido convidado por um
muçulmano para realizar algum tipo de serviço ou benefício e mesmo por ter relações amistosas
com os governantes.Para que não seja confundido e penalizado, o Musta’min recebe um salvo
conduto que o permite praticar a sua religião nos templos dos Dhimmi (os protegidos- cristãos e
judeus integrantes do Estado Islâmico) até a sua partida.
O segundo tipo de inimigo é o rebelde e também o bandido. Segundo a jurisprudência, ambos, em
linhas gerais, devem ser combatidos da mesma maneira, só que para os bandidos haveria algumas
peculiaridades, como, por exemplo, o sangue derramado, o roubo e a violação do direito a
propriedade de alguém exigiam, segundo a legislação, a reparação pecuniária ou mesmo a própria
vida, no caso do homicídio. Os rebeldes por sua vez deveriam ser tratados com cautela, na medida
em que alguma reivindicação poderia ter amparo na Shariah, sobretudo se o rebelado fosse um
outro Estado Muçulmano.
Os rebeldes que não possuíssem amparo na Shariah, quando vencidos, passariam a pagar tributos,
porém os seus bens não seriam tocados, porque para a jurisprudência, a propriedade privada deve
ser respeitada.
O terceiro tipo de inimigo é o Murtadd (apóstata) que é aquele que foi ou tornou-se muçulmano e
depois abandonou ou retornou à sua fé ancestral. O muçulmano que abandona a sua fé é
considerado pela jurisprudência um renegado, um tratante e por isso deve ser punido enquanto tal.
Os juristas aspontam para a necessidade de se executar o indivíduo que se encontra nessa situação e
de fazer o Jihad contra um Estado apóstata.
Apesar da pena capital, o indivíduo que abandonou a fé islâmica poderia se arrepender e os delitos
cometidos durante a sua apostasia seriam perdoados, podendo reaver os seus bens.
Após o Jihad, os movimentos Mahdistas estabeleceram o Estado Islâmico, dentro de uma
concepção, segundo Zaidan, que não o restringiria a limites geográficos. Sempre que foi possível,
esses Estados apoiaram levantes de confrarias islâmicas de outras regiões e acolheram as lideranças
perseguidas pelas tropas européias. Na perspectiva do Ressurgimento, o Estado Islâmico teria como
marcos o alcançe da fé e do empenho (Jihad) dos crentes e deveria ser o meio mais importante para
o muçulmano ter o prazer de desfrutar dos direitos e das concretizações das promessas divinas.
A autoridade delegada ao chefe do Estado deveria ser restringida pelo direito que a Umma teria de
ser consultada diretamente, ou através de seus representantes, porque a Shura é um mandamento
divino. Uma importante obrigação dos muçulmanos era a de destituir o chefe do Estado quando o
mesmo se desviava dos ditames da Shariah, sob pena de estar cometendo uma falha perante Deus e
de ter que responder pela mesma no Dia do Juízo Final.
O Estado Islâmico tem o dever político e divino de garantir a liberdade para todos aqueles que nele
habitam. O Islam emancipou, na perspectiva do Ressurgimento, os seres humanos das superstisções,
das incertezas, do pecado, da corrupção, da opressão, da desordem e degeneração do corpo e da
alma.
Segundo Corão e a Sunna, existem quatro princípios fundamentais da Liberdade, enquanto
categoria prevista na Lei. O primeiro é de que a consciência humana só pode ser submisssa a Deus.
O segundo é que todo ser humano é responsável pessoalmente pelos seus atos e a ele somente se
permite colher os frutos do seu trabalho. O terceiro consiste na certeza de que o homem é
suficientemente provido de direção espiritual e capacitado com qualidades racionais que o permitem
fazer escolhas importantes e responsáveis. O último é que a liberdade é um direito dado por Deus ao
homem, legislado pela Shariah, e que o Estado tem o dever de garantí-la.
Ao mesmo tempo que a Shariah se encarregava de resguardar a liberdade, a mesma legislava sobre
a escravidão. A compreensão desta última dentro da doutrina islâmica é fundamental para se
perceber a importância da mesma para o desenvolvimento e para a integridade do Estado Islâmico
formado no Sudão, além do seu embasamento teológico, que levou os muçulmanos a refutarem as
prédicas abolicionistas européias.
A partir da doutrina islâmica, as confrarias muçulmanas do período do Ressurgimento,
estabeleceram três categorias de escravos. A primeira abarcava os membros das populações
vencidas que não pertenciam aos Povos do Livro e nem eram convertidos ao Islam, sendo
caracterizados como infiéis. A segunda englobava os combatentes de diferentes credos, mesmo
cristãos, que fossem capturados em um Jihad. A terceira comprendia os indivíduos capturados em
guerras e razzias sazonais.
O escravo era ao mesmo tempo coisa e pessoa. Enquanto objeto de propriedade de outrem, era
objeto de transações comerciais diversas. O cativo não poderia possuir bens, salvo um pecúlio que
não deveria ser tocado pelo Senhor, na medida em que há recomendações no Corão para se respeitar
os escravos. Como pessoa, o status de um escravo é o mesmo de um muçulmano livre: a ele era
permitido, em princípio, dirigir a oração e poderia também se casar, desde que obtivesse a
permissão do seu senhor.
O dono de uma mulher escrava tinha o direito de transformá-la em sua concubina, mas esta teria
que dar luz a um filho para que o senhor pudesse continuar a manter uma cativa nessas condições. A
idéia de concubinato para o estrito prazer sexual era reprovada pela tradição. O filho da concubina
nascia livre e pela Lei, a mãe deveria ser libertada com a morte do seu dono.
O escravo tinha responsabilidades penais, mas era tratado como um ser de nível inferior, tanto que
um muçulmano, segundo Sourdel, não poderia ser condenado por homicídio, recebendo a pena
capital como é previsto na Lei, caso matasse uma cativo. Os escravos eram empregados nos
latifúndios, no artesanato, como militares e eunucos. Apesar das limitações, diversos cativos
militares ganharam poder e notoriedade, como no caso dos mamelucos, e chegaram a constituir
sultanatos de escravos.
A ambiguidade do escravo como coisa e pessoa sempre suscitou um amplo debate entre os juristas
islâmicos. Havia no Corão a recomendação de se alforriar os cativos, mas não se constituía num
mandato divino. Desde que os senhores seguissem as regras determinadas pela tradição, a existência
da escravidão não contrariava a Shariah. A noção de liberdade apresentada pelas Sociedades
Abolicionistas foi encarada pelos muçulmanos do Ressurgimento como uma invenção de ateus, na
medida que era contrária aos direitos do crente assegurados pelos textos sagrados.
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No coração da selva ouvi um clamor: a história da