História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
O mito do retorno dos herois de Troia e as funções narrativas dos
presságios na Odisseia de Homero
Christian Werner
Prof. Dr. PPG - Letras Clássicas – USP
[email protected]
Resumo: o objetivo desse texto é discutir o mito do retorno dos heróis de Troia – variante grega de um mitoindoeuropeu – através do enredo de um poema épico antigo, a Odisseia. Para isso, paraleliza-se o retorno do
herói e do seu filho a Ítaca através da discussão do modo como os retornos distintos convergem através da
utilização feita pelo narrador de duas cenas de adivinhação que concentram alguns dos principais elementos
do mito.
Palavras-chave: mito, retorno, Odisseia, Telêmaco, Odisseu, adivinhação
1
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
Uma função comum dos presságios nos cantos épicos gregos é reiterar algo que
todo receptor1 já sabe: via de regra, trata-se um elemento fundamental do mito que subjaz à
narrativa, por exemplo, a queda de Troia (Ilíada) e o retorno de Odisseu a Ítaca
acompanhado pela vingança contra os pretendentes de sua mulher, Penélope (Odisseia). O
aedo, porém, pode manipular tais cenas, cuja estrutura deveria ser familiar a seu público,2
para atingir outros e significativos objetivos.3
A segunda metade da Odisseia é marcada por dois retornos a Ítaca, o de Odisseu e o
de seu filho, Telêmaco, que, desde o fim do canto 4, encontra-se em Esparta junto ao rei
Menelau, aonde fora em busca de notícias do pai. Ao retorno de Telêmaco pertencem duas
cenas de interpretação de presságios (Od. 15, 160-81 e 525-38)4 que serão aqui discutidas
tendo em vista os temas ligados ao mito do retorno dos heróis aqueus que venceram em
Troia, em especial, o retorno de Odisseu.5 Vamos mostrar que o mito do retorno, que, nas
suas diversas formas e variantes (em especial, o retorno das trevas e da morte), é indoeuropeu,6 não só tem uma forma específica na Odisseia – o retorno do rei para junto de sua
esposa na terra de seus ancestrais – que será reaproveitada em várias narrativas posteriores
– por exemplo, na tragédia Helena de Eurípides –, mas, do ponto de vista do poema, tem
como seu exemplar mais notável o retorno de Odisseu. Para realçar tal singularidade, uma
das estratégias narrativas que fixam a especificidade do mito são as cenas de presságios.
1
Usarei o termo receptor para indicar o ouvinte ou leitor da Odisseia.
O termo “cena” não é utilizado aqui num sentido técnico. Não optamos por um termo técnico – “cena”,
“cena típica”, “tema” – no que diz respeito às passagens onde um presságio é interpretado, em primeiro lugar,
por não haver unanimidade em relação a que termo adotar. Cf. de JONG, 2001, p. xvii-xix, que diferencia
“cena” e “cena-típica” (é minha a tradução de todas as citações em idioma moderno); na pág. 52-53, a autora
nomeia as passagens onde uma personagem interpreta “cenas de presságio”. STOCKINGER, 1959, p. 13, e
LATACZ et al., 2003, p. 93, identificam-nas como “cenas típicas”. Além dessas divergências, será
questionado aqui até que ponto essas unidades temáticas compartilham um número bem delimitado de
funções. Como já disse COLLINS, 2002, p. 20, “talvez seja mais preciso falar-se em retóricas da adivinhação,
que podem ser figuradas diferentemente em momentos diversos, mais que tentar reduzir a performance
divinatória a uma constelação imutável de fatores”; cf., porém, STOCKINGER, 1959, p. 116-17, onde é
pressuposto que as cenas de presságio possuem uma função principal.
3
Não trataremos aqui da estrutura formal das cenas de presságio; para uma tentativa de tipificação, cf.
KELLY, 2007, p. 254, e os autores da nota anterior. Na Odisseia, à maior parte dessas cenas pertencem
imagens aviárias, que, também em muitos símiles, apontam para a vingança de Odisseu; cf. ROOD, 2006.
Igualmente comum é uma reação intradiegética negativa ou, no mínimo, contida das personagens às
interpretações; cf. HÖLSCHER, 1939, p. 25, e COLLINS, 2002, p. 40.
4
Adotarei as seguintes abreviaturas: Od. = Odisseia; Il. = Ilíada; v. = verso.
5
A narrativa será examinada, em primeiro lugar, como um contínuo, não como a somatória de pedaços
separados. Com isso não se ignora ou menospreza aquilo que diversas gerações de pesquisadores já
reiteraram, ou seja, que o narrador utiliza uma série de tipos de delimitações que dirigem a recepção do
poema. Nossa perspectiva tem em comum com KRUMMEN, 2008, o exame de uma personagem – o adivinho
– e de uma performance – a interpretação – a partir do interior da própria narrativa, e não de fora, de forma
estanque. Cf. igualmente KÖHNKEN, 1976 e 2003, onde é investigada a permeabilidade e a influência
recíproca entre duas cenas odisseicas aparentemente fechadas em si e o seu contexto mais amplo.
2
2
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
Normalmente atribui-se duas funções aos presságios odisseicos, motivar a reação de
uma personagem importante7 ou contribuir para a estruturação interna da narrativa.8 Para
discutir os limites de tal simplificação, vai-se examinar aqui uma parte da narrativa em que
uma sequência de prolepses9 se concentra de forma intensiva em torno do retorno de
Odisseu. O que delimita o longo trecho que nos interessará é a aparição da onisciente deusa
Atena para Telêmaco (Od. 15, 1-43) e Odisseu (Od. 16, 155-77), dizendo-lhes o que devem
fazer; entre as duas aparições, dois presságios, que têm em comum Telêmaco como
espectador e a vingança de Odisseu como seu tema direto ou indireto.
Logo após Odisseu chegar em Ítaca, conduzido pelo povo fantástico dos feácios, ser
recebido por Atena e transformado em mendigo, dirige-se, incógnito, assumindo a
identidade de um cretense, à cabana de seu fiel porqueiro, Eumeu. Nesse meio tempo,
Atena surge a Telêmaco e lhe diz para voltar a Ítaca e dirigir-se à cabana de Eumeu,
sugerindo que sua riqueza estaria em perigo devido ao eminente casamento da mãe.
Apressado, Telêmaco se põe em marcha com o companheiro, Pisístrato, filho de Nestor, rei
de Pilos, que acompanhava Telêmaco em Esparta a mando de Nestor. Ainda antes de
embarcar, ajuda um estranho e o conduz até Ítaca. Trata-se do adivinho Teoclímeno, que,
entretanto, não lhe revela sua identidade. Uma vez chegando em Ítaca, Telêmaco separa-se
do restante da sua tripulação e dirige-se à cabana do porqueiro, onde, depois de conversar
com ele e com o estranho que lá se encontra, envia Eumeu até a mãe, com o que Atena
finalmente pode fazer Odisseu voltar à sua forma original e revelar-se para o filho.
Na interpretação do primeiro sinal – uma águia traz um ganso do quintal de
Menelau e voa junto a Telêmaco e Pisístrato, que se despedem do rei espartano –, Helena,
a esposa de Menelau, afirma que Odisseu retornará ou talvez até mesmo já tenha retornado
e se vingará dos pretendentes de sua esposa Penélope. Veremos na seção 1, que, ao
receptor, imediatamente antes, é sugerido, através do discurso de Atena, que Odisseu e
Telêmaco em breve se reencontrarão, o que não significa que o receptor (e Odisseu) já sabe
6
Cf., por ex., FRAME, 2009, p. 1-338.
Por ex. a reação de Eurímaco ao aviso de Haliterses após este expor a desmedida dos pretendentes (Od. 2,
177-207); cf. também TSAGARAKIS, 2000, p. 65.
8
Cf. HEUBECK, 1954, p. 18, EISENBERGER, 1973, p. 94, FENIK, 1974, p. 242, e RUSSO, 1992, p. 44.
9
Elemento da história, antecipado pelo narrador de diversas formas (por ex., através da interpretação de um
presságio ou de um sonho), que vai ocorrer posteriormente ao ponto da história que está sendo narrado ao
receptor.
7
3
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
que papel o filho terá na vingança. A conversa entre Odisseu e Atena no canto 13, logo
após o herói por os pés em Ítaca, deixa em aberto como o (provável) encontro entre pai e
filho transcorrerá.10
A previsão de Helena não preenche o desnível entre a ignorância de Telêmaco a
respeito do paradeiro do pai e o conhecimento do receptor. Mostrar-se-á que o presságio
muito provavelmente não é a razão por que Telêmaco não viajará até a morada de Nestor
antes de se dirigir a Ítaca, nem a prova que lhe dá a certeza, na cabana de Eumeu, que o
cretense que está na sua frente é seu pai.11 Na verdade, a distância entre o receptor, que
sabe mais que a personagem, e Telêmaco, que pende para o pessimismo em relação a seu
futuro, é trazida para dentro da narrativa de tal modo que o receptor continua sem saber o
que esperar do retorno do jovem.
O presságio, porém, tem um efeito que se realiza na cena em si (seção 2). A
despedida em Esparta mostra um casal, Menelau e Helena, que age em harmonia e assim
reproduz, mutatis mutandis, a situação na casa de Odisseu após o retorno do herói, ou
melhor, o reencontro entre Odisseu e Penélope como casal, um dos alvos da narrativa.12 Os
traços negativos ou ambivalentes de Helena, que várias reescrituras dos mitos em torno dela
enfatizam e que permeiam o canto 4 da Odisseia, não têm vez no canto 15. A vingança de
Odisseu, ou seja, o tema do presságio, permitirá, no futuro, a harmonia marital que, naquele
momento, vige na casa de Menelau e é um elemento fundamental do mito do retorno de
Odisseu.13 Isso não é explicitado no texto, mas é evocado pela dinâmica da narrativa.
Em seguida (seção 3), enfocaremos o presságio interpretado por Teoclímeno no
canto 15. Os sinais que Telêmaco vivencia em Esparta e na sua chegada a Ítaca não têm um
efeito permanente sobre sua confiança em relação ao futuro, pois, ao chegar na cabana de
Eumeu (Od. 16, 68-134), revela a mesma desesperança que o caracteriza nos primeiros
cantos do poema (Od. 1, 158-68; 2, 46-47; 3, 240-42). Argumentar-se-á que dessa vez o
10
Cf. Od. 13, 188-93, 303-10 e 397-403; Atena apenas afirma que auxiliará Telêmaco a retornar de Esparta a
Ítaca. Que Telêmaco possa ter um papel na vingança de Odisseu, isso parece ser abafado pela reiteração de
que Odisseu não deverá se dar a conhecer a ninguém.
11
Ao decidir evitar Pilos, Telêmaco simplesmente afirma que quer evitar a hospitalidade excessivamente
generosa de Nestor (Od. 15, 195-201). Quando Odisseu readquire sua verdadeira imagem, é com muita
dificuldade que ele persuade o filho de que é seu pai (Od. 16, 178-212).
12
Cf. por ex. KÖHNKEN, 1976, p. 101-14, e 2003, p. 385-96; mostra-se nos dois artigos até que ponto o
retorno de Odisseu e a própria personagem podem dominar a narrativa.
13
Cf. KELLY, 2008, p. 188-89, sobre o “espelhamento” (“mirroring”) e a técnica do narrador tradicional.
4
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
presságio traz novas indicações para o receptor, a saber, que Telêmaco participará da
vingança do pai e, sobretudo, que a prerrogativa real de Odisseu permanecerá junto à sua
família. Essas indicações conferem à viagem de Telêmaco um final apropriado e
funcionam, por outro lado, como preâmbulo para o encontro entre pai e filho.
1. O retorno de Telêmaco e a vingança de Odisseu
No canto 15, nem Atena nem Helena na sua interpretação do presságio (Od. 15,
160-65) anunciam explicitamente que Telêmaco participará da vingança do pai; pelo
contrário, a fala de Helena aponta antes para a ação de um só indivíduo:
“Ouvi-me; eu adivinharei como em meu ânimo
lançam os imortais, e acredito que assim se completará.
Como aquela pegou a gansa, criada na propriedade,
ao vir da montanha, onde estão família e filhote,
assim Odisseu, após muitos males sofrer e muito vagar,
à casa irá retornar e vingar-se; ou também já
em casa está, e a todos os pretendentes um mal engendra.” (Od. 15, 172-78)14
Da insônia de Telêmaco (v. 4-8) até o sinal divino, tudo gira em torno de sua partida
imediata, mas o futuro encontro com o pai desenha-se para o receptor através do comando
de Atena,15 que diz a Telêmaco que ele, ao chegar em Ítaca, deveria dirigir-se de pronto à
cabana de Eumeu (v. 38-42).
14
Os trechos traduzidos da Odisseia, com modificações pontuais, fazem parte da minha tradução inédita do
poema, na qual segui, em boa medida, o texto de van THIEL, 1991. No seu discurso, identificado pelo
narrador como um mýthos (v. 171), Helena utiliza a típica estrutura do símile (“como... assim...”), que, no
corpus homérico, em uma interpretação de presságio só aparece também em Il. 2, 326-30. Há vários
elementos da vingança de Odisseu que são evocados pelo sinal descrito por Helena: a vingança que culminará
em morte; a grande distância entre Esparta, onde Telêmaco se encontra, e Ítaca, o local da ação futura; a
distância geográfico-cultural entre montanha e propriedade, ou seja, a cabana de Eumeu, onde Odisseu já se
encontra, e sua casa, onde se dará o massacre (cf. Od. 13, 408-9 e 14, 1-3). Para HEUBECK, 1989, p. 242, o
verso 175 não é “relevante para a interpretação dada nas linhas seguintes”. Também a seguinte inversão
poderia ser notada: Odisseu se vingará na sua própria casa (o termo oikos é repetido três vezes nessa curta
passagem), ao passo que a águia pegou uma presa longe do seu ninho. Esses detalhes são particularmente
significativos se ROOD, 2006, tem razão ao defender que diversos símiles e presságios aviários pressupõe
e/compõe uma estrutura temática odisseica. Cf. Od. 22, 468-72, onde “hediondo leito” (v. 470), um detalhe
lateral da composição de um símile, muito provavelmente remete para a atividade sexual das execráveis
escravas lúbricas de Odisseu mencionadas naquele momento da narrativa (vgl. v. 464).
5
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
E até a espaçosa Lacedemônia ela, Palas Atena,
foi, ao ilustre filho do animoso Odisseu
do retorno lembrar e incitá-lo a retornar.
Encontrou Telêmaco e o radiante filho de Nestor
deitados no vestíbulo do majestoso Menelau;
o filho de Nestor era dominado por sono macio,
mas a Telêmaco o doce sono não continha, e, no ânimo,
pela noite imortal, inquietações com o pai o acordavam.
Parada próximo, disse-lhe Atena olhos-de-coruja:
“Telêmaco, não mais é belo, longe de casa, vagares;
bens deixaste para trás e, em tua casa, varões
tão soberbos: que não te devorem tudo,
teus bens dividindo, e tu o trajeto faças em vão.
Mas rápido instiga Menelau bom-no-grito
a enviar-te para ainda em casa a mãe impecável achares.
Pois já seu pai e irmãos incentivam-na
a ser desposada por Eurímaco: ele supera todos
os pretendentes com dons e sobe as dádivas ao pai;
que, contra tua vontade, bens da casa não sejam levados.
Pois tu sabes, é tal o ânimo no peito da mulher:
quer expandir a casa daquele que a desposa,
e dos filhos anteriores e do caro esposo
não mais se lembra, quando morto, nem indaga.
Mas deverias tu mesmo, voltando, tudo entregar
à escrava que te parecer a mais nobre ser,
até que deuses te revelem majestosa consorte.
Outra palavra te direi, e tu compreende-a no ânimo:
os melhores pretendentes deliberadamente te tocaiam
no canal entre Ítaca e a escarpada Samos,
ansiando matar-te antes que a pátria terra atinjas.
Mas não creio nisso: antes mesmo a terra cobrirá algum
dos varões pretendentes, que devoram teus recursos.
Mas para longe das ilhas afasta a nau engenhosa,
e igualmente à noite navega: enviar-te-á brisa detrás
um dos imortais que te guarda e protege.
E quando à primeira praia de Ítaca chegares,
expede à cidade a nau e todos os companheiros,
e tu mesmo primeiro ao porqueiro te dirijas,
o guardião de teus porcos, contigo igualmente gentil.
Lá descansa à noite e expede-o à cidade
para dar a mensagem a Penélope bem-ajuizada
que estás são e salvo e de Pilos retornaste.” (Od. 15, 1-42)
O receptor, assim, ainda continua sem saber se Odisseu, na sequência, vai revelar sua
identidade ao filho.
A indeterminação em relação ao futuro de Telêmaco é reforçada pelas razões dadas
por Atena para a partida, pois ela menciona uma notícia totalmente inesperada (mentirosa?)
15
Para DANKEK, 1998, p. 288-89, essa ordem é motivada fracamente, pois ela tem, sobretudo, uma função
técnico-acional, artificial; cf. também MÜLLER, 1966, 102-3.
6
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
sobre Penélope (v. 10-26).16 Como no caso da neblina que Atena verte em torno de Odisseu
no canto 13,17 a ação da deusa não é direta e leva à confusão: lá ela age para que Odisseu
desconheça a sua terra e não se dirija a sua casa sem instruções divinas;18 aqui ela nada diz
a Telêmaco sobre seu pai e fala algo estranho sobre sua mãe. Entre as duas cenas, porém,
há diferenças evidentes. Em Ítaca, ela por fim elimina a neblina, assegurando a Odisseu que
ele está em sua ilha, e dá ao herói importantes informações sobre sua esposa. O receptor
entende a tática de Atena a partir do seu plano de que Odisseu não deveria se dar a
conhecer a ninguém.
Em Esparta, porém, ela nada diz a Telêmaco a respeito de seu pai. Com isso, é ainda
mais surpreendente que, quando ele praticamente já tiver deixado a propriedade de
Menelau, algo sim ainda lhe informado sobre o paradeiro atual de Odisseu através da
mencionada interpretação de Helena.19 Coloca-se então a questão se a sua decisão posterior
de não parar em Pilos e dirigir-se diretamente a Ítaca (Od. 15, 195-201) é motivada pelo
presságio (nesse caso, ele consideraria possível que seu pai já estivesse em Ítaca) ou uma
consequência da mesma pressa, gerada pela presença de Atena, que ele demonstra no
contato com Pisístrato e Menelau (v. 43-91):
Ela (sc. Atena), após falar assim, partiu ao elevado Olimpo,
e ele (sc. Telêmaco) ao filho de Nestor do doce sono despertou,
chutando-o com o pé, e lhe dirigiu o discurso:
“Acorda, Pisístrato, filho de Nestor; os cavalos monocasco
16
É questionável se os versos 15-18 são uma mentira, mesmo que alguns críticos manifestem certeza acerca
da interpretação da passagem; cf. HOEKSTRA, 1989, p. 232, e CROTTY, 1994, p. 211-12. Quando a deusa
vai até Nausícaa na forma de um sonho (Od. 6, 13-40), ela certamente não lhe conta mentira alguma, mas
podemos comparar a passagem no canto 15 com Od. 5, 97-144, onde o naufrágio de Odisseu diante de ilha de
Calipso é contado por meio de duas versões, sendo a primeira uma mentira, que Hermes inventa para tornar
sua tarefa um pouco mais fácil (ele diminui o papel de Zeus no naufrágio), e a segunda, a versão correta, que,
enquanto tal, só é narrada no canto 12. O que Atena diz de Penélope não será mais mencionado no poema,
mas as instruções dadas por Helena a Telêmaco (cf. abaixo) indicam que o jovem não deveria ter duvidado de
sua mãe.
17
Cf. Od. 13, 187-93: “E acordou o divino Odisseu / do sono na terra pátria e não a conheceu, / já há muito
afastado, pois deus em torno bruma vertia, / Palas Atena, filha de Zeus, para que ele mesmo / tornasse
irreconhecível e tudo explicasse, / e que não o conhecessem esposa, conterrâneos e os seus / antes de os
pretendentes toda a transgressão expiar.”
18
Em ambas as cenas pode tratar-se de um caso de dupla motivação. Quando Atena aparece em Esparta,
Telêmaco pensa em seu pai (Od. 15, 7-8). É difícil acreditar que Odisseu teria corrido para casa sem a
neblina, não somente porque durante sua viagem já fora avisado do problema que encontraria em casa (Od.
11, 115-17 und 141-43), mas também porque não combina com sua caracterização de supremo desconfiado e
prudente após o episódio de Polifemo (cf. Od. 13, 330-36).
19
Também no canto 13 Atena não diz explicitamente a Odisseu que ele encontrará seu filho.
7
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
junge ao carro e trazei-os para percorrermos a rota.”
A ele, então, Pisístrato, filho de Nestor, retrucou:
“Telêmaco, não há como, embora com pressa de partir,
pela noite escura guiá-los: logo virá a aurora.
(...)
Assim falou, e logo veio a trono-dourado, Aurora.
E achegou-se deles Menelau bom-no-grito
após erguer-se do leito, de junto de Helena bela-coma.
A ele então percebeu o caro filho de Odisseu;
apressado, a túnica lustrosa em torno da pele
vestiu e grande manto nos ombros robustos lançou
o herói, foi para fora, e, parado ao lado, disse-lhe
Telêmaco, o caro filho do divino Odisseu:
“Filho de Atreu, Menelau criado por Zeus, líder de tropa,
já agora me envia de volta à cara terra pátria.
Já meu ânimo, vê, deseja partir para casa.” (Od. 15, 43-50 + 56-66)
A ordem de Atena a Telêmaco e o pedido de Telêmaco a Menelau parecem não
deixar espaço narrativo para uma parada futura em Pilos20. Durante a longa cena de
despedida (Od. 15, 92-183), Telêmaco é ricamente presenteado, ao passo que Pisístrato
aparentemente nada recebe,21 o que dirige toda a atenção do receptor para o filho de
Odisseu. Quando Menelau finalmente manda lembranças para Nestor (v. 151), torna-se
claro para o receptor que Pilos é a próxima estação dos dois jovens. Todavia, não é
Pisístrato que reage a Menelau,22 mas Telêmaco, que, apesar de afirmar que vai encontrar
Nestor, ao mesmo tempo menciona sua pátria e o próprio pai (v. 155-59),23 o que se adequa
a seu papel, mas, por outro lado, também sugere ao receptor que seu encontro com o pai
talvez esteja, ironicamente, bem mais próximo que imagina.
20
Telêmaco recusa peremptoriamente o convite de Menelau de viajar pela Hélade. Somente Atena menciona
Pilos na primeira parte da partida (Od. 15, 42), mas ela o faz, provavel e principalmente, por conta do habitual
perigo de uma viagem marítima; cf. Od. 4, 707-10.
21
Cf. Od. 3, 490 (= 15, 188), onde ambos os jovens são presenteados pelo seu anfitrião. Sobre a singularidade
da cena como um todo, cf. EDWARDS, 1975, p. 54-60. No canto 4, a situação é bem diferente, e quem
assume o papel principal é Pisístrato.
22
Menelau diz de Nestor que este, em Troia, se comportou em relação àquele como um “pai amigável” (v.
152). Na Odisseia, somente Odisseu, na qualidade de rei, também é chamado de “pai amigável” (patêr êpios:
Od. 2, 47; 2, 234; 5,12). O receptor sabe, a partir de um relato no canto 3, que Nestor, Odisseu e Menelau
zarparam de Troia juntos, sem Agamêmnon, e que um desentendimento entre Odisseu e Nestor se deu
posteriormente (v. 137-164). Telêmaco, ao contrário do pai, não brigará com seu companheiro Pisístrato nem
perderá seu retorno; cf. FRAME, 2009, p. 217-20. Quando Telêmaco, ao invés de Pisístrato, responde a
Menelau, o narrador mostra ao receptor que Telêmaco controla seu retorno.
23
Cf. BESSLICH, 1966, p. 75, n. 134: “De resto, na sua resposta a Menelau, os pensamentos de Telêmaco já
estão mais na própria casa que na de Nestor”. Na sequência, Helena e novamente Telêmaco falam
exclusivamente sobre Odisseu e Ítaca.
8
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
Narrativamente, a afirmação de Telêmaco é uma falsa prolepse24. Através dela é
fortalecida a impressão de que Pilos, de certa forma, não se encaixa na concepção do
narrador e na de Telêmaco. Na aurora, quando Pisístrato desperta Telêmaco (v. 49-50), e
também depois, durante a conversa com Menelau (v. 64-91), ele está, compreensivelmente,
com muita pressa.25 Mais tarde, imediatamente antes e, sobretudo, após a interpretação do
presságio, Telêmaco nos dá a impressão que não está mais cultivando sua dúvida
tipicamente pessimista acerca do retorno do pai, o que combinaria ainda menos com uma
parada em Pilos:
A ele, então, o inteligente Telêmaco retrucou:
“Deveras para ele, ó criado por Zeus, como dizes,
tudo, ao chegarmos, contaremos. Oxalá eu assim,
após retornar a Ítaca, encontrando Odisseu em casa,
pudesse falar que, tendo de ti obtido toda a amizade,
parti, e bens levei em profusão e distintos.”
Eis que para ele, após falar, voou à direita uma ave,
águia com cintilante gansa nas garras – prodígio –,
doméstica do pátio; seguiam-na, berrando,
varões e mulheres. Ela deles se aproximou
e à direita adejou diante dos cavalos. Eles, vendo-a,
alegraram-se, e no peito de todos o ânimo esquentou.
Entre eles, Pisístrato, filho de Nestor, iniciou os discursos:
“Observa, Menelau criado-por-Zeus, líder de tropa,
se a nós dois isso o deus mostrou, o presságio, ou a ti.”
Assim falou, e cogitou Menelau caro-a-Ares
como com adequação responder-lhe-ia após pensar.
Antes dele, Helena peplo-bom-talhe falou o discurso:
“Ouvi-me; eu adivinharei como em meu ânimo
lançam os imortais, e acredito que assim se completará.
Como aquela pegou a gansa, criada na propriedade,
ao vir da montanha, onde estão família e filhote,
assim Odisseu, após muitos males sofrer e muito vagar,
à casa irá retornar e vingar-se; ou também já
em casa está, e a todos os pretendentes um mal engendra.”
A ela, então, o inteligente Telêmaco retrucou:
“Que assim agora fixe Zeus, ressoante marido de Hera;
então a ti, também lá, rezarei como a um deus.” (Od. 15, 154-81)
24
Acerca desse conceito, cf. de JONG e NÜNLIST, 2000, p.168, MORRISON, 1992, p. 73-90 – “direção
temática equivocada” (“thematic misdirection”) – e STEINRÜCK, 1992, p. 76.
25
Od. 15, 87-91 é uma versão muita curta de Od. 15, 10-26, pois Telêmaco está com pressa; mesmo assim,
chama a atenção que nem Atena nem Penélope sejam mencionadas a Menelau. Telêmaco escolhe o tema
“riqueza”, o qual o próprio Menelau empregara em sua fala; dessa forma, não precisa alongar-se (v. 75-85).
9
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
A constelação aparentemente otimista dura pouco, pois logo em seguida o presságio
de Esparta não parece ter mais nenhum efeito sobre ele. Já quando Teoclímeno se dirige a
ele na costa de Pilo, Telêmaco afirma que seu pai está morto (v. 267-68), 26 e essa postura
não muda após ele chegar em Ítaca.
Quando Telêmaco chega à cabana de Eumeu, ele nada menciona do que ouvira
acerca do pai.27 O que motiva suas decisões presentes, especialmente aquilo que, sem
Telêmaco saber, diz respeito ao cretense/Odisseu, que chegara à cabana há três dias, é a
enorme diferença entre seu poder e o dos pretendentes (Od. 16, 68-89), de sorte que,
naquele momento, o casamento da mãe e o futuro de sua propriedade são sua principal
preocupação.
Por um lado, ele continua seguindo a cartilha que lhe fornecera Mentes/Atena no
canto 1, parte da qual foi sua viagem a Pilos e Esparta: caso descobrisse seu pai ainda estar
vivo, deveria suportar os pretendentes por mais um ano (Od. 1, 287-88). Por outro lado,
diante de Eumeu, acredita faltar-lhe a força necessária para dominar os pretendentes,
embora tal postura ofensiva também pertencesse ao plano de Atena (Od. 1, 293-300).28
Quando então, diante do porqueiro, enfatiza sua fraqueza, o cretense lhe critica, o que,
todavia, não altera a postura de Telêmaco (Od. 16, 99-129).
Como tantas vezes na Odisseia, o suspense narrativo é construído a partir da
ignorância de uma personagem em relação ao conhecimento do receptor. Todavia, nem
Odisseu nem o receptor sabem que Telêmaco será o primeiro a quem Odisseu revelará sua
verdadeira identidade. Para isso, Atena primeiro precisa ordenar a Odisseu que se apresente
a seu filho. Antes disso, para nosso deleite, o narrador ainda pode sublinhar a grande
26
Do ponto de vista da Análise (assim é chamada a escola filológica alemã que vigorou do início do séc. XIX
até meados do séc. XX e que propunha distinguir, em especial nos poemas homéricos, os trechos que teriam
sido compostos por diferentes poetas em épocas distintas: o objetivo principal era o de recuperar,
romanticamente, o extrato original de uma primeira composição da história), uma desesperança
incompreensível; cf. SCHWARTZ, 1924, p. 79. Contra EISENBERGER, 1973, p. 96, que defende que
Telêmaco, “diante do desconhecido, mantém o comedimento de praxe à medida que sonega o sucesso de sua
viagem”.
27
Mas em Od. 16, 148-49 Telêmaco diz que seu maior desejo seria que seu pai retornasse. Isso não soa
distante de Od. 15, 155-81; cf. STANFORD, 1965, p. 269: “o desejo seguinte enfatiza quanto seus
pensamentos fixam-se no retorno de Odisseu”. Por outro lado, essa afirmação gera suspense no receptor, pois
Odisseu e Telêmaco são finalmente deixados a sós.
28
Essa possibilidade de ação só não valeria se Telêmaco descobrisse seu pai estar morto; cf. WEST, 1988, p.
112. Esse tema já é sugerido em Od. 16, 28-29 por intermédio de uma observação de Eumeu acerca da relação
entre Telêmaco e os pretendentes.
10
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
diferença, no que diz respeito à excelência guerreira, entre pai e filho (Od. 16, 68-111),29 de
sorte que o receptor pode ter a impressão de que os dois não funcionarão tão cedo assim
como companheiros de armas. Ao passo que o Cretense se mostra convencido de sua força,
Telêmaco soa resignado e desesperançoso.30
É nesse contexto que o pai dá-se a conhecer. Num primeiro momento, Telêmaco
não acredita nem mesmo estar diante de um mortal, pois a metamorfose do mendigo é por
demais assombrosa.31 Diferente do rei feácio Álcínoo quando diante dele apareceu Odisseu
(Od. 7, 186-206), Telêmaco realmente acredita estar diante de um deus ou, no mínimo, que
um deus foi responsável pela transformação (Od. 16, 194-200).32 Contudo, é justamente
essa desconfiança que o caracteriza como filho de seu pai e reforça, mais uma vez, a
impressão de que estamos diante de dois retornos homólogos. Com isso, talvez o narrador
também esteja indicando que Telêmaco ele mesmo domina o processo de reconhecimento.
O narrador, como outras vezes no poema, não diz o que o jovem pensa,33 apenas reproduz
seu discurso, com o que ele mimetiza, para o receptor, a difícil situação em que se encontra
Odisseu, que precisa provar para o filho que viu pela última vez quando bebê que está
diante do pai. Quando então Odisseu menciona Atena, Telêmaco pode ter certeza que se
trata do pai, pois, desde o início do poema, ele reiteradamente testemunhou o amor da
deusa pelos homens de sua família.34 Esse é o sinal mais evidente que Telêmaco – assim
como mais tarde, mutatis mutandis, Penélope – não se deixa simplesmente convencer por
um presságio que Odisseu retornou.
29
Acerca do contraste entre o v. 71 (“eu próprio sou jovem e nos braços não confio”) e o v. 99 (“tomara fosse
eu jovem assim em adição a meu ânimo”), cf. ULF, 1990, p. 59. Em Od. 21, 132-33 (= Od. 16, 71-72),
Telêmaco repete a mesma autocomiseração exacerbada, mas então ela é fingida.
30
É uma questão em aberto ou até mesmo equivocada se Od. 16, 71-72 (“eu próprio sou jovem e nos braços
não confio / para afastar um varão quando, primeiro, endurece”) cita a passagem semelhante Il. 24, 368-69, ou
se se dá o contrário; cf. ROTH, 1989, p. 64-65, USENER, 1990, p. 176, e RICHARDSON, 1993, p. 21-25 e
312. Pisa-se em fundamento mais seguro quando se observa que, em ambas as passagens, usa-se o tema da
falta de força dos velhos (cf. Od. 24, 498-500; 367-82; Il. 4, 318-25 etc.). Na passagem odisseica, o tema é
usado para mostrar quão enganado acerca de si mesmo o jovem Telêmaco se encontra. Odisseu, ao corrigi-lo,
faz uso do mesmo tema.
31
Cf. DANEK, 1998, p. 307-8, e ERBSE, 1972, p. 106.
32
Cf. Od. 16, 181-85, Od. 7, 185-214, e BESSLICH, 1966, 43-44.
33
Cf. Od. 23, 85-87.
34
Cf. Od. 1, 420; 2, 262-66; 2, 375-84; e 15, 222-23.
11
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
2. A harmonia do casal: Menelau e Helena na despedida de Telêmaco
O enfoque dessa seção é a figura de Helena (Od. 15, 56-183), já que é ela e não, por
exemplo, Menelau, quem interpreta o sinal para Telêmaco acerca do retorno do pai.35
Veremos que, ao se pensar a Odisseia como um todo, a partida de Telêmaco de Esparta
necessariamente evoca o (trajeto final do) retorno de Odisseu.
No canto 15, dois paralelos com o canto 4 – que, na economia da Odisseia, faz parte
de um grupo de cantos (1-4) que são estruturados em torno de Telêmaco e preparam o
início da narrativa acerca do retorno propriamente dito de Odisseu – relacionados ao nosso
problema se impõe: o motivo do casamento36 e a representação e utilização muito particular
do casal Menelau e Helena, que se alternam na ocupação do centro das cenas das quais
participam. A interpretação usual das duas histórias troianas narradas por Helena e Menelau
(Od. 4, 235-89), onde a segunda corrigiria uma visão por demais positiva de Helena,37 e os
paralelos mencionados acima podem facilmente dar a impressão de que, no canto 15, são
representados cônjuges que, por um lado, não compartilham do destino de Agamêmnon e
Clitemnestra – ou seja, a morte do esposo que retornou de Troia e a má-fama eterna da
esposa adúltera, cúmplice do assassino do marido –, mas certamente não vivem em paz e
harmonia. Também poderia sustentar tal interpretação o modo como Helena, na chegada
(Od. 4, 116-54) e partida (Od. 15, 166-78) de Telêmaco, tenta, aparentemente, superar o
marido na argúcia.
Mesmo que se aceite que a tensão resultante do adultério passado de Helena
pertença à representação do casal no canto 4, isso não significa, necessariamente, que essa
tensão se encontre igualmente no canto 15. Quando Helena presenteia Telêmaco, ela não
35
Helena não é a única figura feminina na Odisseia que anuncia o futuro: fazem-no Calipso em Od. 5, 206-7
– cf., porém, de Jong 2001, p. 136 – e Circe em Od. 12, 139-41 – cf. HEUBECK, 1989, p. 126. Helena,
contudo, é a única que interpreta um presságio. Nada semelhante faz Arete na despedida de Odisseu da terra
dos feácios no canto 13.
36
No canto 15, nos versos 16-28, 58, 112, 127-27; no 4, não apenas através da dupla comemoração de
casamentos na família real, mas também através do papel de Helena nas duas histórias troianas e do seu
comportamente no salão.
37
Cf. HOHENDAHL-ZOETLIEF, 1980, p. 163-66, OLSON, 1989, DOHERTY, 1995, p. 58-59 e 130-35,
RABAU, 1995, de JONG, 2001, p. 101-2, JANKA, 2001, WORMAN, 2002, p. 56-63; contra a usual
avaliação negativa de Helena, cf. ERBSE, 1972, p. 96-97, e 1995, p. 4-8.
12
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
somente aponta para o casamento futuro do jovem, mas também menciona a mãe Penélope,
que, num primeiro momento, deveria guardar a preciosa dádiva (Od. 15, 128-29). Penélope
deveria agir como guardiã, ou seja, exatamente o contrário do retrato dela pintado por
Atena diante de Telêmaco (v. 15-26), o que Telêmaco reproduz, de uma forma concisa e
alterada, para Menelau (v. 89). É evidente que, através dessa precisa formulação do
narrador, é exatamente Helena quem louva Penélope. As palavras da rainha espartana
certamente reproduzem a esposa ideal-aristocrática na despedida de Telêmaco e com isso a
distancia da imagem negativa evocada no canto 4.
Helena e seu marido, cuja ligação erótico-marital é parte constituinte da cena38, nela
desenvolvem papéis complementares. Os presentes que cada um dos dois confere a
Telêmaco não são apenas preciosos, mas a coisa mais preciosa que cada um tem à sua
disposição (v. 104-30). Além disso, os dons não apenas testemunham a riqueza do casal,
mas também sua honra e glória39. Dessa vez não é a casa, como em Od. 4, 45-50, mas o
presente de Helena que reluz como as estrelas (Od. 15, 108). A riqueza de Menelau não é
testemunha de um passado terrível (Od. 4, 90-99), mas serve para honrar o filho de
Odisseu40 e, com isso, também permite que, através da Odisseia, ou seja, o canto acerca dos
feitos de Odisseu e de Telêmaco, Menelau e Helena – assim como, mutatis mutandis,
Alcínoo e Arete, que presenteiam e ajudam Odisseu no seu retorno – também possam ser
celebrados.
38
Cf. Od. 15, 57-58; Od. 15, 58 (“após erguer-se do leito, de junto de Helena bela-coma”) e Od. 5, 1 (“Aurora
do leito saiu, de junto do ilustre Títono”) podem ser multiformas (ou seja, homólogos do ponto de vista da
dicção e do tema) de um verso no qual a relação erótica de um casal é destacada ou pelo menos sugerida.
Acerca de Od. 5, 1, cf. KAHANE, 1994, p. 33-35. Em Od. 5, 228-2; 23, 345-49; 4, 305-7; e 8, 2 não é
utilizado um verso semelhante, embora também sejam mencionados homens que dormiram com uma figura
feminina e acordam, pois a componente erótica da noite em comum já fora explicita ou implicitamente
mencionada ou então é irrelevante.
39
Com isso é conferida uma dimensão à riqueza de Menelau que não é mais a mesma do canto 4. Embora
Menelau primeiramente dela se jacte indiretamente (Od. 4, 78-81) – cf. ZAMBARBIERI, 2002-4, p. 302, que
fala em “orgulho mal disfarçado”, e WEST, 1988, p. 197 –, logo em seguida relativiza seu valor (v. 92-99);
cf., porém, WEST, 1988, p. 199, que não acredita tratar-se de versos genuínos. Para DANEK, 1988, p. 97,
“seu (sc. de Menelau) relato dá a impressão de que sua longa ausência de casa não foi bem a contragosto; a
acumulação de riquezas, que se estendeu no tempo, sinaliza que ele não procurou o caminho mais curto para
casa”. O valor duvidoso dessa riqueza é então de novo destacada quando Telêmaco não aceita os presentes
oferecidos por Menelau (três cavalos etc.), mas pede algo menor (v. 593-99). A sugestão de Telêmaco e sua
justificativa apontam para sua inteligência, que, através da nova proposta de Menelau, é sublinhada e louvada.
40
Isso também poderia esclarecer por que Telêmaco é presenteado, pois os dois jovens recebem presentes de
Diocles em Od. 3, 490. Um possível paralelo com a estadia de Odisseu entre os feácios também seria
destacada desse modo. Assim como seu pai no início do canto 13, também Telêmaco, ocupa-se de seus
preciosos presentes ao chegar em Ítaca (Od. 17, 74-83).
13
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
O presente de Helena indica que Telêmaco não é mais um menino dependente, mas
um jovem adulto que já pode e deve pensar no seu casamento. Ao contrário dos
pretendentes de Penélope, que, ao dilapidarem a propriedade de Odisseu, trazem desonra e
inglória para si mesmos e suas famílias,41 Telêmaco recebe presentes que o honram. Para o
jovem, a manhã em Esparta inicia com a ideia de que ele, por causa dos pretendentes,
chegará mais pobre em Ítaca, e termina com presentes que em boa medida apontam para
seu casamento futuro. Nesse sentido, não somente esses presentes, mas também o presságio
posterior, mostram ao receptor que Telêmaco em breve poderá levar a vida normal de um
jovem nobre. O luto reprimido, que é facilmente identificável na casa de Menelau no canto
4 – por exemplo, através do nome do filho bastardo Megapentes (“Grande-aflição”) – não
tem mais lugar no canto 15. Trata-se agora de uma família harmônica, que constitui um
pano de fundo para a futura harmonia na casa de Odisseu.
Helena chama Telêmaco de “filho querido” (téknon phíle, v. 125), através do que o
narrador sublinha a sua boa intenção.42 Essa fórmula, também utilizada, por exemplo, por
Euricleia, a serva que reiteradamente é representada como um sucedâneo materno, evoca a
relação mãe-filho que se espalha na curta fala de Helena (v. 127-28) e estabelece um arco
com a relação normalmente tensa entre Telêmaco e Penélope, evocada no início do canto.43
Quando Telêmaco finalmente agradece a Menelau pela sua hospitalidade (v. 15859), Helena não está presente, pois somente o rei acompanhou os dois jovens no trajeto de
saída da propriedade (v. 146-50). É o ganso no bico da águia que traz Helena de volta para
a narrativa (v. 171),44 e assim as últimas palavras de Telêmaco em Esparta podem ser
41
Não só a honra dos pais (Od. 2, 50-51; 16, 418-33; 18, 125-28) não garante que os filhos ajam de modo
honroso, mas um itacense também pode até afirmar que a “falha” dos seus concidadãos (Od. 24, 455) também
foi responsável pela vingança de Odisseu (Od. 24.454-60); cf. de JONG, 2001, p. 584.
42
No vocativo, phíle téknon ou téknon phíle e (emón) téknon não parecem ter diferenças semânticas. Um pai
ou uma mãe ou uma personagem que se comporta como um pai ou mãe zelosa pode usar essa expressão na
Odisseia; cf. Od. 2, 363; 16, 226; 22, 420; 23, 26, 70, 105. Essa apóstrofe revela não só a diferença de idade
entre emissor e receptor, mas também a benevolência de um para com o outro.
43
Cf. Od. 15, 15-26 e 16, 30-35; cf. também FELSON, 1997, p. 82, e de Jong, 2001, p. 364-65.
44
De certas especificidades lexicais e morfossintáticas nos versos 160-165 – em especial, os pronomes (v.
163-165) e os dois particípios plurais (v. 162 e 164) – resulta uma tensão narrativa entre dois grupos, o dos
três homens (Menelau, Telêmaco e Pisístrato) e o dos “homens e mulheres” (v. 163) quem vem do pátio e
cuja função narrativa fica, num primeiro momento, no escuro. Surpreende, então, que Helena fale no v. 171,
pois o narrador não a identifica nem entre o 1o nem entre o 2o grupo.
14
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
dedicadas ao louvor da rainha (v. 180-81)45. Por conta desse elogio e por que nenhum
partícipe masculino pronuncia uma interpretação, pode-se supor que a aparição de Helena é
no mínimo tão importante para a economia da cena quanto a própria interpretação do
presságio.46 No fim da cena, completa-se o todo harmônico que marca a cena de despedida,
na qual não só rege uma determinada harmonia na representação de Helena e Menelau, mas
também porque a cena ecoa o retorno bem sucedido de Odisseu e suas consequências.
No canto 4, Telêmaco compara a opulenta casa de Menelau com o palácio de Zeus
(v. 68-83) e é corrigido por Menelau, pois mortais não deveriam se medir com deuses. Zeus
também é mencionado no canto 15. Quando Telêmaco agradece à Helena pelo presságio
alvissareiro, ele pede de “Zeus, marido de Hera”, que o presságio se realize. A mesma
fórmula Odisseu utiliza ao se despedir de Nausícaa (Od. 8, 465). Provavelmente não é por
acaso que o casal divino é mencionado nessas duas passagens permeadas pela temática do
casamento.47 Através disso não só se produz a lembrança que Telêmaco e Nausícaa são
jovens maduros para o casamento, mas também, em conjunto com o contexto mais amplo
das respectivas cenas, indica-se que o retorno de Odisseu e sua vingança contra os
pretendentes será seguido pela reafirmação de seu casamento com Penélope.48 Em ambas as
passagens trata-se da viagem de Odisseu para Ítaca, e à sua chegada também pertence o
reencontro com sua esposa, um elemento fundamental de todo mito de retorno.
Na Odisseia, o casamento entre Odisseu e Penélope não é o único que, a duras
penas, sobrevive à guerra de Troia. Através da representação diferenciada do casamento
45
A rainha Arete é a última pessoa de quem Odisseu se despede na Feácia (Od. 13, 59-62). As palavras de
Telêmaco também são utilizadas na despedida de Odisseu de Nausícaa, a filha de Arete e Alcínoo (Od. 15,
180 = Od. 8, 465 e Od. 15, 181 = Od. 8, 467).
46
Na Odisseia, o intérprete de um presságio normalmente já se encontra no lugar onde o sinal se revela; cf.
Od. 2, 146-60; 15, 525-30; 17, 541-43 (acerca do espirro como um presságio, cf. RUSSO, 1992, p. 44). Se
compreendermos o sonho de Penélope no canto 19 como uma mistura entre sonho e presságio ou como um
presságio no interior de um sonho (cf. PRATT, 1994, p. 147-52) então ele tem em comum com a cena no
canto 15 que a águia, ou melhor, Odisseu, precisa voltar para interpretar o sonho-presságio, assim como
Helena primeiro precisa reencontrar os homens (é a interpretação mais aceita acerca da localização da rainha)
para que o presságio ganhe seu intérprete. Em Ítaca, pertence a Penélope a última, definitiva palavra acerca do
conteúdo de verdade do presságio de seu sonho, ao passo que, em Esparta, Telêmaco simplesmente se
expressa de forma polida e não faz maiores comentários acerca do conteúdo da interpretação.
47
Também Menelau em Od. 15, 112 emprega a fórmula quando ele e Helena presenteiam Telêmaco.
48
Em Odisseia 8, 465, Odisseu utiliza a fórmula “Zeus, ressoante marido de Hera” logo após o canto de Ares
e Afrodite (v. 266-366), o qual, tematicamente, está muito próximo do modo como se dá o retorno de
Odisseu, o que já foi mostrado em diversos trabalhos; cf., entre outros, de JONG, 2001, p. 206-8, ZEITLIN,
1996, ALDEN, 1997, e RINON, 2006, p. 211-12.
15
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
entre Menelau e Helena nos cantos 4 e 15,49 surge uma complementaridade dinâmica entre
momentos conflituosos e harmônicos, que não são totalmente estranhos ao modo como
Odisseu e Penélope se reaproximam paulatinamente entre os cantos 18 e 23.50 No canto 18,
não somente a ação de Penélope, mas também sua aparência é, em última análise,
controlada por Atena (v. 158-62, 187-97), e por isso Odisseu se engana ao pensar que sua
esposa ela mesma trama um truque (dolos, v. 281-83) – na verdade, trata-se de um engodo
da deusa. Mais adiante, durante a segunda parte da sua conversa com o cretense/Odisseu no
canto 19, quanto mais claros e contundentes os indícios que ele apresenta à rainha de que o
retorno de seu marido é eminente, maior a desconfiança que ela manifesta em relação a eles
(v. 508-64). Por fim, há um claro, embora curto, conflito em torno da cama marital para que
Penélope possa garantir para si mesma que é Odisseu quem está diante dela (Od. 23, 163230).
3. O retorno do herói e a prerrogativa real de sua linhagem
Embora Telêmaco ajude o adivinho Teoclímeno em Pilos (Od. 15, 261-81), o
receptor tem a impressão de que, na chegada em Ítaca, o suplicante é esquecido ou
abandonado à sua sorte, pois ele mesmo precisa chamar a atenção de Telêmaco (v. 508-11).
Na sequência, três alternativas respeitando seu futuro imediato, ou seja, quem o hospedará,
são consideradas (v. 512-43). Como seria irresponsável que Penélope o albergasse,51
Telêmaco sugere um pretendente de sua mãe, Eurímaco, antes de finalmente optar por um
de seus companheiros, Peiraio:
E a ele dirigiu-se o divinal Teoclímeno:
“Aonde eu, filho querido, devo ir Devo chegar à casa
de que varão dos regem que pela rochosa Ítaca
Ou devo ir direto à casa de tua mãe e tua ”
A ele, então, o inteligente Telêmaco retrucou:
49
Cf. JANKA, 2001, p. 24.
Cf. ZERBA, 2009, p. 309: “daqui (sc. do canto 13) até o fim do poema, ele (sc. Odisseu) expressará
satisfação com a devoção de Penélope ao mesmo tempo que a tratará com uma possível ameaça”. A autora
elenca as importantes diferenças entre Penélope e Helena e Ítaca e Esparta: “nas fronteiras do mundo da
Odisseia, a corte de Menelau participa somente marginalmente dos desafios existenciais que dão origem ao
ceticismo” (p. 310).
51
Telêmaco certamente tem razão em relação aos motivos para excluir sua casa; cf. Od. 1, 103-24.
50
16
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
“Em outras condições eu te mandaria até nós
ir: não há carência de regalos; mas para ti mesmo
será pior, pois eu estarei longe, e a ti a mãe não
verá, pois com frequência aos pretendentes, na casa,
não se mostra, mas longe, em cima, a trama tece.
Mas outro varão te indico, a quem poderias te dirigir,
Eurímaco, do atilado Polibo o filho radiante,
a quem agora como a um deus os itacenses miram;
também é o mais nobre varão que deveras espera
desposar minha mãe e possuir a honraria de Odisseu.
Mas disto sabe Zeus Olímpio, morando no céu,
se, para eles, antes das bodas, cumprirá o dia danoso.” (Od. 15, 508-24)
No retrato que Telêmaco faz para Teoclímeno da situação em sua casa (v. 515-17),
Penélope aparece como contida e discreta, quer dizer, Telêmaco descreve a esposa virtuosa
que Penélope é sempre que o narrador do poema a representa (por ex., em Od. 1, 329-35), o
que pode surpreender o receptor, pois com isso se produz uma clara contradição com aquilo
que Atena dissera ao jovem em Esparta, ao deixá-lo com receio que sua mãe já planejava
um novo casamento (Od. 15, 19-23)52. Surpreendente também é a representação do inimigo
do jovem, Eurímaco (v. 518-22). Em parte, a notícia trazida por Atena de que Eurímaco
desposaria Penélope (v. 17-18) ecoa na fala de Telêmaco, de sorte que o receptor poderia
supor que convenções sociais ou até mesmo a “Realpolitik” em Ítaca determinariam sua
decisão.53 Atena, contudo, também mencionou a tocaia dos pretendentes, que pretendiam
matar Telêmaco, e, por outro lado, a morte futura deles (v. 27-32). Dessa forma, por que
Telêmaco não se comporta como no início do poema ao se decidir por uma confrontação
direta com os pretendentes e lhes informar que não evitaria ações violentas contra eles (Od.
2, 301-22)? Além disso, por que mais tarde, já na cabana de Eumeu, afirma que lá gostaria
de permanecer?54 Certamente não por medo dos pretendentes, pois, embora tenha sido
52
Cf. a pergunta que Telêmaco posteriormente fará a Eumeu acerca de sua mãe (Od. 16, 33-35), onde a
formulação corresponde à indicação de Atena. No canto 15, Telêmaco menciona lateralmente que Penélope se
dedica à tecelagem em seus aposentos (v. 517). Embora essa seja a típica tarefa das mulheres na Odisseia (cf.
Od. 1, 357), o receptor poderia lembrar-se de que exatamente desse modo os pretendentes foram por longo
tempo enganados e, com isso, poderia perguntar-se como Penélope agiria agora que Odisseu estava na
eminência de entrar em sua casa.
53
Cf. FENIK, 1974, p. 236-38, e HOEKSTRA, 1989, p. 263-62.
54
Cf. Od. 16, 132-34; em Od. 15, 36-42, Atena não dá razão alguma para sua ordem de que Telêmaco deveria
permanecer junto a Eumeu. Na sua fala, porém, há uma oposição entre, de um lado, Penélope e os
pretendentes, em relação aos quais Telêmaco precisa ficar alerta, e, por outro lado, Eumeu, que ama seu
senhor. De Eumeu Telêmaco quererá saber mais tarde se sua mãe já teria desposado um pretendente (Od. 16,
31-35). Como Eumeu responde negativamente sem titubear, permanece em aberto por que Telêmaco não
segue imediatamente para casa. A princípio, por razões puramente narrativas, pois ele precisa ficar lá (e
Eumeu se afastar) para ser apresentado a seu pai.
17
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
instruído acerca da tocaia, ele também indica que logo iria para casa, pois fala com o
cretense/Odisseu como o senhor (“manqué”, é bem verdade) de sua casa: ele dará roupas
para o estranho, mas não poderá evitar que os pretendentes com ele sejam violentos se
hospedá-lo em sua casa (Od. 16, 78-89).
A Teoclímeno, porém, Telêmaco dá a entender que um destino funesto é possível
para os pretendentes ainda antes do casamento (Od. 15, 523-24).55 Mais tarde, diante de
Eumeu e do cretense/Odisseu, ele se mostra sobretudo pessimista (Od. 16, 71-77 e 88-89),
o que, em primeiro lugar, parece fundamentar por que, naquele momento, ele não pode
hospedar ninguém. Quando, na sequência, é confrontado pelo estranho com sua falta de
iniciativa (v. 107-11), ele utiliza a acachapante diferença numérica entre ele e os
pretendentes para se justificar (v. 128-29)56. Telêmaco realmente se torna mais
autoconfiante somente depois de reconhecer seu pai e com ele conversar (v. 309-20). Nesse
sentido, a resposta que dá ao pedido de Teoclímeno por hospedagem praticamente em nada
contribui para a caracterização do jovem nem informa ao receptor quais são suas
intenções,57 de sorte que toda a cena parece ter sido arranjada fundamentalmente para
conduzir ao presságio (Od. 15, 525-38), ou seja, se Telêmaco tivesse imediatamente
decidido enviar Teoclímeno para seu amigo Clítio, o presságio não estaria tão fortemente
imbricado na narrativa.58
Esse presságio gera uma interpretação relativamente curta e genérica, mas que
adquire tons particulares quando pensada a partir de seu contexto:
Assim para ele, após falar, voou à direita uma ave,
gavião, o rápido mensageiro de Apolo; nos pés
depenava um pombo e deixava cair penas no chão,
entre a nau e o próprio Telêmaco.
55
Telêmaco liga a possibilidade desejada à vontade de Zeus, modo com o qual o narrador também alhures
introduz um presságio; cf. Od. 2, 144-47.
56
Do canto 1 ao 4, Telêmaco às vezes demonstra ter certeza que seu pai já está morto – e, com isso, se mostra
deveras pessimista quanto ao próprio futuro –, embora ele receba diversos motivos (por ex., a visita de Atena
no canto 1) para acreditar no contrário; cf. OLSON, 1995, p. 65-90.
57
Além disso, nem o contexto exige nem o narrador menciona (cf. Od. 15, 304) que Telêmaco aplica um teste
em Teoclímeno; cf. porém AUSTIN, 1975, p. 190-91, e BANNERT, 1988, p. 84-85. Telêmaco não sabe o
nome de Teoclímeno nem supõe que ele seja um adivinho.; cf. Od. 17, 72 e, acerca dessa passagem,
STEINRÜCK, 1992, p. 163.
58
Cf. de JONG, 2001, p. 382: a cena entre Teoclímeno e o adivinho “parece ter sido inserida sobretudo por
conta do presságio que ela apresenta, o qual dá uma oportunidade para Teoclímeno mostrar seu valor”.
18
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
Teoclímeno, chamando-o para longe dos companheiros,
deu-lhe forte aperto de mão e dirigiu-lhe a palavra:
“Telêmaco, não sem o deus voou-te, à direita, o pássaro:
reconheço nele, olhando de frente, um presságio.
Não há outra linhagem mais régia que a tua
na cidade de Ítaca, mas sois mais potentes sempre.”
A ele, então, o inteligente Telêmaco retrucou:
“Ah! Se essa palavra, hóspede, se cumprisse;
então rápido conhecerias a amizade e muitos dons
meus, tantos que, se alguém te visse, te diria ditoso.” (Od. 15, 525-38)
O falcão, que domina sua presa, claramente remete à vingança de Odisseu,59 embora o
adivinho somente mencione a prerrogativa real da dinastia heroica.
Esse não é o único elemento singular nessa cena. Por um lado, pode-se supor que,
através da menção de Apolo (v. 526) o narrador sugira algo específico sobre a vingança.60
Por outro, após Telêmaco ter denominado Eurímaco “distintíssimo” (aristos, v. 521),
Teoclímeno coloca Odisseu e seu filho num plano social e politicamente ainda mais
elevado (v. 534). Com isso, não somente se aponta de uma maneira assaz evidente para a
participação de Telêmaco na vingança,61 mas também se anuncia que Odisseu manterá sua
prerrogativa real em Ítaca,62 ou seja, sua vingança será bem sucedida e sua família
continuará a exercer seu poder na ilha.63
Talvez não surpreenda que um estrangeiro politicamente independente e, ainda por cima,
adivinho seja o primeiro na Odisseia a louvar inequivocamente a honraria real da dinastia
itacense.
64
Nesse sentido, a interpretação de Teoclímeno é um final adequado da viagem de
59
Duas vezes se afirma que a ave vem da direita, ou seja, prenuncia algo positivo; além disso, o v. 525 é
idêntico a Od. 15, 160. Cf. igualmene ROOD, 2006, p. 10: “As aves da Odisseia reforçam a justeza da
vingança de Odisseu ao atribuir-lhe a presença do divino”.
60
A que “deus” refere-se o v. 531, pois Zeus é mencionado no v. 523, mas Apolo no v. 526? Para
STOCKINGER, 1959, p. 531, a Zeus. Não se pode, entretanto, ignorar que essa é a única passagem que
conhecemos onde é mencionado o “ligeiro mensageiro de Apolo”, o falcão; não se fala da águia, a ave de
Zeus. Acerca da relação entre essa passagem e a festa de Apolo que se desenvolve em Ítaca no dia da
vingança de Odisseu, cf. de JONG, 2001, p. 383, MERKELBACH, 1969, p. 71, AUSTIN, 1975, p. 239-53, e
GRAF, 2009, p. 19-21.
61
O presságio no canto 2 poderia remeter a uma vingança da qual pai e filho seriam partícipes, mas a
interpretação da passagem e o texto ele mesmo não são unívocos; cf. van der MIJE, 2004, 193-210.
62
A isso já faz referência Od. 11, 134-37, mas de um modo muito conciso, quiçá ambíguo; cf.
TSAGARAKIS, 2000, p. 51 – “Tirésias fala de forma vaga” – e MARKS, 2008, p. 87-96, com bibliografia
suplementar.
63
MARKS, 2008, p. 62-100, enfatiza, com razão, que é fundamental que, na Odisseia, Odisseu não precise ir
para o exílio, o que provavelmente foi o caso em outras, não necessariamente menos antigas, versões da
história do retorno desse herói; cf. também DANEK, 1998, p. 393.
64
Nem na casa de Odisseu no canto 1 nem na assembleia no canto 2 alguém inequivocamente afirma que
Telêmaco tem a supremacia diante dos outros “reis” (basileis) de Ítaca.
19
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
Telêmaco. Aqui é claramente enunciado que o herdeiro de Odisseu em Ítaca será Telêmaco. O
retorno do herói será o mais completo possível: ele terá de volta sua propriedade, sua esposa, seu
poder político e seu herdeiro masculino, para isso tendo realizado façanhas inauditas. Seu é o
retorno mais digno de ser cantado e lembrado pelas gerações posteriores.65
REFERÊNCIAS
AUSTIN, Norman. Archery at the dark of the moon. Berkeley: University of California
Press, 1975.
ALDEN, Maureen J. The resonances of the song of Ares and Aphrodite. In: Mnemosyne,
vol. 50, 1997, p. 513-29.
BANNERT, Herbert. Formen des Wiederholens bei Homer. Beispiele für eine Poetik
des Epos. Wien: Österreichischen Akademie der Wissenschaften, 1988.
BESSLICH, Siegfried. Schweigen – Verschweigen – Übergehen. Die Darstellung des
Unausgesprochenen in der Odyssee. Heidelberg: Carl Winter, 1966.
COLLINS, Derek. Reading the birds. Oiônomanteia in early epic. In: Colby Quarterly,
vol. 38, 2002, p. 17-41.
CROTTY, Kevin. The poetics of supplication. Homer’s Iliad and Odyssey. Ithaka:
Cornell University Press, 1994.
DANEK, George. Epos und Zitat. Studien zu den Quellen der Odyssee. Wien:
Österreichischen Akademie der Wissenschaften, 1998.
DOHERTY, Lillian. Siren songs. Gender, audiences, and narrators in the Odyssey. Ann
Arbor: University of Michingan Press, 1995.
EDWARDS, Mark W. Type-scenes and Homeric hospitality. In: Transactions and
Proceedings of the American Philological Association, vol. 105, 1975, p. 51-72.
EISENBERGER, Herbert. Studien zur Odyssee. Wiesbaden: Steiner, 1973.
ERBSE, Hartmut. Beiträge zum Verständnis der Odyssee. Berlin-New York: de Gruyter,
1972.
65
Agradeço à CAPES que me outorgou uma bolsa de pós-doutorado para realizar a pesquisa que deu origem
a este artigo na Freie Universität Berlin, de março de 2009 a fevereiro de 2010.
20
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
________. Odyssee-Interpretationen. In: Hermes, vol. 123, 1995, p. 1-18.
FELSON, Nancy. Regarding Penelope. From courtship to poetics. Norman: University
of Oklahoma Press, 1997. 2a ed.
FENIK, Bernard. Studies in the Odyssey. Hermes Einzelschriften 30, Wiesbaden 1974.
FRAME, Douglas. Hippota Nestor. Washington, DC: Center for Hellenic Studies, 2009.
GRAF, Fritz. Apollo. London: Routledge, 2009.
HEUBECK, Alfred. Der Odyssee-Dichter und die Ilias. Erlangen: Palm & Enke, 1954.
________. Books IX-XII. In: A commentary on Homer’s Odyssey. vol. 2. Oxford: Oxford
University Press, 1989.
HOECKSTRA, Arie. Books XIII-XVI. In: A commentary on Homer’s Odyssey. vol. 2.
Oxford: Oxford University Press, 1989.
HOHENDAHL-ZOETELIEF, I. M. Manners in ther Homeric epic. Leiden: Brill, 1980.
HÖLSCHER, Uwe. Untersuchungen zur Form der Odyssee. Szenenwechsel und
Gleichzeitige Handlungen. Berlin: Weidmann, 1939.
JANKA, Markus. Helena und Menelaos. Meister der verstellten Rede. Rhetorik im Gewand
homerischer
Redepraxis.
In:
Würzburger
Jahrbücher
für
die
Altertumswissenschaft, vol. 25, 2001, p. 7-26.
JONG, Irene F. de. A narratological commentary on the Odyssey. Cambridge:
Cambridge University Press, 2001.
JONG, Irene F. de; NÜNLIST, René. Homerische Poetik in Stichwörtern. In: LATACZ,
Joachim (org.). Homers Ilias Gesamtkommentar: Prolegomena. MünchenLeipzig: Saur, 2000.
KAHANE, Ahuvia. The interpretation of order. A study in the poetics of Homeric
repetition. Oxford: Oxford University Press, 1994.
KELLY, Adrian. A referential commentary and lexicon to Homer, Iliad VIII. Oxford:
Oxford University Press, 2007.
________. Performance and rivalry: Homer, Odysseus, and Hesiod. In: REVERMANN,
Martin; WILSON, Peter (org.). Performance, iconography, reception: studies in
honour of Oliver Taplin. Oxford: Oxford University Press, 2008.
KÖHNKEN, Adolf. Die Narbe des Odysseus. Ein Beitrag zur homerisch-epischen
Erzähltechnik. In: Antike & Abendland, vol. 22, 1976, p. 101-114.
21
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
________. Perspektivisches Erzählen im homerischen Epos. Die Wiedererkennung
Odysseus-Argos. In: Hermes, vol. 131, 2003, p. 385-96.
EVELINE, Eveline. “Jenen sang seine Lieder der ruhmvolle Sänger...”. Moderne
Erzähltheorie und die Funktion der Sängerszenen in der Odyssee. In: Antike &
Abendland, vol. 54, 2008, p. 11-41.
LATACZ, Joachim et al. Homers Ilias Gesamtkommentar.Vol. 2, fasc. 2. MünchenLeipzig: Saur, 2003.
MARKS, Jim. Zeus in the Odyssey. Washington DC: Center for Hellenic Studies, 2008.
MERKELBACH, Reinhold. Untersuchungen zur Odyssee. München: Beck, 1969. 2a ed.
MIJE, Sebastian van der. Zum Vogelzeichen im zweiten Buch der Odyssee. In: Glotta, vol.
80, 2004, p. 193-210.
MORRISON, James V. Homeric misdirections. False predictions in the Iliad. Ann
Arbor: University of Michingan Press, 1992.
MÜLLER, Marion. Athene als göttliche Helferin in der Odyssee. Heidelberg: Winter,
1966.
OLSON, S. Douglas. Blood and iron. Stories and storytelling in Homer’s Odyssey.
Leiden: Brill, 1995.
________. The Stories of Helen and Menelaus (Odyss. 4, 240-89) and the return of
Odysseus. In: American Journal of Philology, vol. 110, 1989, p. 387-94.
PRATT, Louise. Odyssey 19.535-50. On the intepretation of dreams and signs in Homer.
In: Classical Philology, vol. 89, 1994, p. 147-52.
RABAU, Sophie. Une rivalité narrative. Hélène et Ménélas au chant IV de l’Odyssée. In:
Ktèma, vol. 20, 1995, p. 273-85.
RICHARDSON, Nicholas. The Iliad. A commentary. Vol. 6. Cambridge: Cambridge
University Press, 1993.
RINON, Yoav. “Mise en abyme” and tragic signification in the Odyssey. The three songs
of Demodocus. In: Mnemosyne, vol. 59, 2006, p. 208-25.
ROOD, Naomi J. Implied vengeance in the simile of grieving vultures (Odyssey 16, 21619). In: Classical Quarterly, vol. 56, 2006, p. 1-11.
ROTH, Peter. Singuläre Iterata der Ilias (φ-ω). Frankfurt/Main: Athenäum, 1989.
22
História, imagem e narrativas
No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
RUSSO, Joseph. Books XVII-XX. In: A commentary on Homer’s Odyssey. Vol. 3.
Oxford: Oxford University Press, 1992.
SCHWARTZ, Eduard. Die Odyssee. München: Max Hueber, 1924.
STANFORD, William B. The Odyssey of Homer. 2 vol. London: Macmillan, 1965. 2a ed.
STEINRÜCK, Martin. Rede und Kontext. Zum Verhältnis von Person und Erzähler in
frühgriechischen Texten. Bonn: Rudolf Habelt, 1992.
STOCKINGER, Hildebrand. Die Vorzeichen im Homerischen Epos. St. Ottilien: Eos,
1959.
THIEL, Helmut van Homeri Odyssea. Hildesheim: Olms, 1991.
TSAGARAKIS, Odysseus. Studies in Odyssey XI. Stuttgart: Steiner, 2000.
ULF, Christoph. Die homerische Gesellschaft. Materialien zur analytischen
Beschreibung und historischen Lokalisierung. München: Beck, 1990.
USENER, Knut. Beobachtungen zum Verhältnis der Odyssee zur Ilias. Tübingen: Narr,
1990.
WEST, Stephanie. Books I-IV. In: A commentary on Homer’s Odyssey. vol. 1. Oxford:
Oxford University Press, 1988.
WORMAN, Nancy. The cast of character. Style in Greek literature. Austin: University
of Texas Press, 2002.
ZAMBARBIERI,
Mario.
L’Odissea
com’è.
Lettura
critica. Milano:
Edizioni
Universitarie di Lettere Economia Diritto, 2002-4.
ZEITLIN, Froma I. Figuring fidelity in Homer’s Odyssey. In: ________ . Playing the
other. Chicago: The University of Chicago Press, 1996
ZERBA, Michelle. What Penelope knew: Doubt and scepticism in the Odyssey. In:
Classical Quarterly, vol. 59, 2009, p. 295-316.
23
Download

O mito do retorno dos herois de Troia e as funções narrativas dos