CADERNO 13
Anais Eletrônicos VI ECLAE
Literatura e ensino
RESUMO
No processo de leitura, o leitor elabora previsões ao formular perguntas sobre o que
será lido ou antecipar a continuidade dos fatos. Essas perguntas, quando respondidas, favorecem a compreensão. Essa dinâmica é própria do leitor proficiente, que
se prepara para ler fazendo predições apoiadas em seu conhecimento prévio e em
suas experiências de vida. Considerando que a leitura do texto literário pressupõe
a relação palavra e vida, texto e leitor, objetivamos neste trabalho, proveniente de
pesquisa de mestrado em desenvolvimento, compreender a influência da relação
texto-vida na elaboração de previsões durante sessões de leitura desenvolvidas com
alunos do 4º ano do ensino fundamental de uma escola pública de Natal/RN-Brasil. A abordagem metodológica é de natureza qualitativa, envolvendo protocolos
da pesquisa exploratória e de intervenção. Para a coleta de dados foram realizadas
oito sessões de leitura, a partir das obras de Lygia Bojunga: A Bolsa Amarela (2014) e
Tchau (2008). As sessões foram planejadas e implementadas conforme a experiência
de leitura por andaime (GRAVES; GRAVES, 1995), que envolve etapas de pré-leitura,
leitura e pós-leitura. Para a análise dos dados, nos respaldamos nas teorizações de
Smith (1989), Kleiman (1999; 2002) Vygotsky (2007) Eco (1986; 1994) e Leffa (1996).
Neste trabalho recorremos, especificamente, as sessões de pré-leitura desenvolvidas
com o livro A Bolsa Amarela (BOJUNGA, 2014). Focalizamos as previsões elaboradas pelos sujeitos na etapa de pré-leitura, principalmente as que são motivadas pela
inter-relação texto-vida. Na confluência entre esses dois aspectos, constatamos que
os sujeitos elaboraram previsões pautadas em suas experiências de vida, criando
associações, avaliando, julgando e divergindo sobre as previsões de seus pares através do exercício de metacognição. Os resultados apontam que a relação texto-vida
contribui para a elaboração de previsões consistentes que mobilizam o engajamento
do leitor à atividade de leitura.
Palavras-chave: Leitura, Literatura, Previsão.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
“LER O QUE ESTÁ FORA ANTES DE LER O
QUE ESTÁ DENTRO”: A ATIVIDADE DE PREVISÃO
NA RELAÇÃO TEXTO-VIDA
Daliane do Nascimento dos Santos (UFRN)
Alessandra Cardozo de Freitas (UFRN)
Introdução
De acordo com Smith (1989), para se realizar a leitura de um texto com sucesso é necessário que o leitor possua dois tipos de informação: a visual, que se
refere ao material escrito e a não-visual que corresponde ao conhecimento prévio que o leitor possui a respeito do que está sendo lido. Sem a combinação desses dois aspectos na interação do leitor com o texto, a leitura acaba se tornando
uma atividade de difícil compreensão para o leitor.
Esse fato, nos revela que quanto mais informação não-visual (conhecimento prévio) o leitor tiver, maior será a sua capacidade de compreensão sobre o
lido. Nesta perspectiva, o conhecimento e a experiência de vida que o leitor possui são aspectos fundamentais tanto para o envolvimento do leitor com a obra
quanto para a sua compressão. Smith (1989) lembra que compreender significa
responder as perguntas que são formuladas durante a leitura, isto é, o leitor cria
expectativas a respeito do lido e realiza previsões sobre o que pode ocorrer na
história em forma de perguntas que devem ser respondidas para que se chegue
a compreensão. Assim, podemos dizer que:
A previsão é o núcleo da leitura. Todos os esquemas, scripts e cenários
que temos em nossas cabeças – nosso conhecimento prévio de lugares
e situações, de discurso escrito, gêneros e histórias – possibilitam-nos
prever quando lemos, e, assim, compreender, experimentar e desfrutar
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
do que lemos. A previsão traz um significado potencial para os textos,
reduz a ambiguidade e elimina, de antemão, alternativas irrelevantes.
Assim, somos capazes de gerar um experiência abrangente das imagens
inertes da impressão (SMITH, 1989, p.34).
A previsão não é um exercício de “adivinhação inconsequente, nem envolve
apostar ao acaso qualquer coisa quanto ao resultado mais provável” (SMITH,
1989, p.34), a atividade de previsão “é a eliminação anterior de alternativas improváveis. É a projeção de possibilidades” (SMITH, 1989, p.35) que se realiza a
partir de perguntas elaboradas pelo leitor ao ser provocado pelo texto. Neste
sentido, as previsões podem ser do tipo globais ou focais. As previsões globais, se
referem a uma previsão geral de longo alcance, já as focais, estão relacionadas a
acontecimentos específicos que ocorrem no curso de uma história, apresentando
sempre mais detalhes do que a previsão global (SMITH, 1989).
O leitor além de realizar previsões durante a leitura, ele também pode realiza-las antes de ler, apenas através das primeiras informações que a história lhe
fornece, como o título e a arte gráfica do livro. Esse passeio que o leitor faz de “ler
o que está fora antes de ler o que está dentro” (CALVINO, 2003, p.16), lhe permite
a elaboração de previsões globais a respeito do conteúdo e tema da história, que
podem se confirmar a medida que lê ou não. A esse respeito Umberto Eco (1986),
acrescenta que:
A antecipação do leitor constitui uma porção de fábula que deveria corresponder àquela que ele está para ler. Uma vez que tenha lido, dar-se-á
conta que se o texto confirmou ou não a previsão. Os estados da fábula
confirmam ou desaprovam (verificam ou falsificam) a porção de fábula
antecipada pelo leitor. [...] O final da história – tal como estabelecido
pelo texto – não só verifica a última antecipação do leitor, mas também
algumas das suas antecipações remotas, e em geral profere uma implícita avaliação das capacidades previsionais manifestadas pelo leitor no
decurso de toda leitura (ECO, 1986, p.95).
Essa atitude de antecipar e prever o que será lido, releva a presença de um
leitor proficiente, que se prepara para ler a história fazendo escolhas por meio de
predições sobre a obra. “Essas predições estão apoiadas no conhecimento prévio,
tanto sobre o assunto (conhecimento enciclopédico), como sobre o autor, a época da obra (conhecimento social, cultural, pragmático), o gênero (conhecimento
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Daliane do Nascimento dos Santos, Alessandra Cardozo de Freitas
textual)” (KLEIMAN, 2002, p.51). O leitor prediz algo, ele apresenta “uma porção
da fabula”, como menciona Umberto Eco (1986, p.95). Todo esse repertório de conhecimento mobilizado pela obra, possibilita uma articulação do conhecimento
de mundo do leitor com as informações que o texto lhe oferece inicialmente. Podemos dizer, que o conhecimento prévio do leitor é condição básica para o seu
engajamento na atividade de leitura e para a compressão do lido, uma vez que:
A compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe,
o conhecimento adquirido ao longo da vida. É mediante a interação de
diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o
textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o
sentido do texto. E porque o leitor utiliza justamente diversos níveis de
conhecimento que interagem entre si, a leitura é considerada um processo interativo. Pode-se dizer com segurança que sem o engajamento
do conhecimento prévio do leitor não haverá compreensão (KLEIMAN,
1999, p.13).
Considerando que o leitor antes e durante a leitura utiliza o conhecimento
que adquiriu ao longo da vida, através da interação de diversos níveis de conhecimento para compreensão do lido, ressaltamos a importância da experiência
de vida do leitor como repertório de conhecimento que forma parte do conhecimento prévio, o qual é adquirido “através de nossas experiências e convívio numa
sociedade, conhecimento este cuja ativação no momento oportuno é também
essencial à compreensão de um texto” (KLEIMAN, 1999, p.22). Nesta direção, inferimos que a experiência de vida do leitor se mostra como aspecto significativo
e relevante a ser mobilizado durante a atividade de previsão.
Ao compreender importância da previsão na atividade de leitura e o papel que a experiência de vida do leitor ocupa nesse processo, dedicamos um
momento nas sessões de leitura para explorar as previsões dos alunos/leitores a respeito da história a ser lida. Esse momento chamado de pré-leitura, é
uma das etapas do procedimento da leitura por andaime (GRAVES E GRAVES,
1995), que corresponde ao momento que antecedi a leitura da história, no qual
são realizadas perguntas aos leitores de modo que eles elaborem previsões sobre a história. Esse procedimento, permite ao leitor estabelecer um elo com
a história a ser lida, através do desejo de ler e o prazer de descobrir o que vai
acontecer, pois durante a pré-leitura, as perguntas realizadas provocam no lei3485
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
tor curiosidade sobre a história e expectativas a respeito das previsões realizadas se irão se confirmar ou não.
Durante a pré-leitura foram realizadas perguntas elaboradas pela professora/pesquisadora, com base em categorias de perguntas que mobilizam a
experiência de vida do leitor. As categorias de pergunta utilizadas foram: representação imaginária, a qual motiva o leitor a imaginar uma possível ação
ou acontecimento; a reminiscência que mobiliza a recordação de fatos e a categoria experiência fictícia/real que confronta o leitor com uma cena fictícia que
poderia viver na vida real. Todas essas categorias, utilizadas para elaborar as
perguntas durante a pré-leitura mobilizam a experiência de vida do leitor, uma
vez que os atos de imaginar, recordar e confrontar experiências envolvem o
conhecimento que o leitor já possui para se realizar. Nesse sentido, o conhecimento do leitor adquirido através da sua experiência de vida se relaciona como
as informações que possui sobre a história, construindo uma relação texto-vida durante a previsão.
Pensando na relação texto-vida provocada pelas perguntas durante a pré
-leitura, iremos neste trabalho proveniente de pesquisa de mestrado refletir
sobre as previsões que os alunos/leitores realizaram durante a pré-leitura do livro A bolsa Amarela da autora Lygia Bojunga (2014), com o intuito de observar
como a relação texto-vida pode influenciar ou não na elaboração de previsões.
Este trabalho assume uma abordagem metodológica de natureza qualitativa,
envolvendo protocolos da pesquisa exploratória e de intervenção, no qual para
a coleta de dados foram realizadas oito sessões de leitura literária com alunos
do 4º ano do ensino fundamental de uma escola pública de Natal/RN-Brasil, a
partir de duas obras de Lygia Bojunga: A Bolsa Amarela e Tchau. Para este trabalho recorremos a episódios de pré-leitura desenvolvidas com o livro A Bolsa
Amarela, focalizando as atitudes dos alunos às perguntas que provocam a inter
-relação texto-vida, ancorados nos princípios da análise de conteúdo (BARDIN,
2006; FRANCO, 2012).
Lembramos, que em função do gênero novela e a extensão do livro, a pré
-leitura era realizada sobre cada capítulo da história, o que demonstra que a
medida que os leitores liam o livro, mais informações possuíam sobre a obra
para fundamentar suas previsões.
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Daliane do Nascimento dos Santos, Alessandra Cardozo de Freitas
Previsão que me mobiliza: a atitude do leitor
diante do previsto
Um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando
não existem no bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua
própria trilha, decidindo ir para esquerda ou para direita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela
direção (ECO, 1994,p.12).
Assim, como durante o processo de leitura o leitor é mobilizado a optar o
caminho que quer seguir construindo sentidos e significados, durante a atividade de previsão essa postura também foi observada nos alunos/leitores, mas
de modo diverso. A etapa de pré-leitura ao promover uma relação texto-vida a
partir das perguntas empreendidas pela professora/pesquisadora mobilizou os
alunos/leitores a se posicionarem diante das previsões apresentadas pelos seus
pares. Neste processo, os alunos/leitores assumiam atitudes diversas que os levavam a optar por determinadas previsões, considerando-as válidas ou não.
Nessa perspectiva, verificamos a partir das análises que a atividade de pré
-leitura estimulou atitudes nos alunos/leitores que vão além da simples elaboração de previsões, isto é, durante a previsão os alunos/leitores realizavam um
exercício de metapensamento que os levavam a: criar associações, negar a previsão do outro, julgar atitudes e divergir entre si gerando a discussão.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Elaborando previsões por associações
Quadro 1
Episódio de discussão da história: 01
(19) PP: O último episódio trás como cenário a Praia. O que o lugar sugere que vai
acontecer?
(20) Ariel: A Raquel vai atrás do Terrível.
(21) Danilo: Não. É Afonso que vai embora também.
(22) PP: Por quê?
(23) Danilo: Porque o Terrível foi embora e o Afonso vai embora pelo mar.
(24) Helena: A Raquel vai jogar no mar as suas vontades.
(25) PP: Por que você acha que ela vai fazer isso?
(26) Helena: Porque o mar leva as coisas para longe, quando são jogadas nele.
(27) PP: Alguém tem outra ideia.
(28) Isabela: A Raquel vai se despedir dos amigos.
(29) PP: Mais alguém? Vamos ver o que acontece na história.
(7ª sessão: Livro A Bolsa Amarela)
Neste episódio, no momento que Ariel diz que “a Raquel vai atrás do Terrível”, Danilo logo em seguida nega essa previsão ao dizer que não é o Terrível
que vai embora, mas sim o Afonso. Quando questionado, pelo porquê da sua
afirmação, Danilo justiça mencionando que: “o Terrível foi embora e o Afonso vai
embora pelo mar”. Essa atitude de negar e justificar na previsão, demonstra que
Danilo se apropriou da história de modo que possibilitou, criar previsões mais
consistentes baseadas no que já conhece sobre a história, pois quando ele diz que
Terrível já foi embora, retoma um acontecimento ocorrido no capítulo VIII do
livro, já quando menciona que Afonso vai embora pelo mar, faz uma associação
entre a partida de Terrível através do mar e a possível partida de Afonso que poderá ser feita pelo mar também.
Podemos perceber que Danilo constrói uma previsão por associação de
acontecimentos da história. O fato de já saber que o Terrível foi embora pelo mar
e que o próximo capítulo à ser lido tem como título “Na praia”, permitiu a Danilo
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Daliane do Nascimento dos Santos, Alessandra Cardozo de Freitas
associar a partida de Terrível ao nome do capítulo levando-o a construir uma
previsão futura de Afonso, sobre o que ele poderia fazer na praia. Essa associação
permitiu a Danilo prever que Afonso vai embora pela praia também.
Assim como Danilo, Helena também apresenta uma previsão que é criada a
partir do exercício de associação. Durante o momento de pré-leitura Helena prevê
que “Raquel vai jogar no mar suas vontades”, quando questionada pela escolha do
mar, justifica que “o mar leva as coisas para longe, quando são jogadas nele”. Nesse momento, ela associa a palavra “mar” a ideia de separação, partida, despedida,
desapego de término de uma relação quando diz que o mar leva as coisas para
longe. Inferimos que Helena recorre a sua experiência de vida e aos conhecimentos que tem sobre os movimentos do mar, para construir a previsão, na qual a personagem Raquel vai encerrar a relação que tem com suas vontades. Deste modo, a
saída para o desapego será o mar, pois ele leva as coisas para longe, dando a ideia
de que não haverá mais encontro da personagem com suas vontades.
Sabemos que durante o exercício de previsão o leitor pode recorrer a sua
experiência de vida e as informações que possui sobre a obra para construir sua
previsão. Nos dois casos, em específico, observamos que os alunos/leitores criam
suas previsões a partir da associação de informações advindas tanto da obra literária, quanto da sua experiência de vida. Essa habilidade de associar informações demonstra uma competência cognitiva desenvolvida a partir do exercício
de previsão.
Para Vygostsky (2007, p.50) “a verdadeira essência da memória está no fato
dos seres humanos serem capazes de lembrar ativamente com a ajuda de signos”.
Podemos inferir que o exercício de previsão a partir da relação texto-vida possibilita aos alunos/leitores recorrer as suas lembranças de forma ativa a partir do
exercício de associação.
Durante o ato de pensar “o cérebro realiza sua própria tarefa de criar e testar, seletivamente, possíveis mundos, mesmo quando padrões de comportamento estabelecidos tornam-se fixados em hábitos” (SMITH, 1989, p. 37). É nesse
processo de criar, testar e selecionar que o sujeito cria associações que o ajudam
na resolução de problemas em seu dia a dia. Assim como Smith (1989, p.37) menciona que “classificação, categorização, formação de conceito e outras manifestações do que é algumas vezes chamado de pensamento de ordem superior ou
abstrato impõem e examinam relações entre afirmações ou estados das coisas” a
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
associação de ideias também é vista como um ato de pensamento abstrato que
se desenvolve a partir da seleção e combinação de informações. Partindo desse
entendimento, verificamos que a relação texto-vida contribuiu para a elaboração
de previsões por associação de ideias.
A negação durante a previsão
Quadro 2
Episódio de discussão da história: 02
(03) PP: Isso. A gente viu no último encontro que tentaram abrir a bolsa da Raquel
na casa da tia Brunilda e isso gerou um grande confusão. Agora nós vamos para o
próximo episódio da dessa história. O que será que vai acontecer agora? Depois que
a família descobriu que tinha dois galos na bolsa amarela o que vocês acham que vai
acontecer?
(04) Oliver: Vai pegar a bolsa dela.
(05) PP: E vai fazer o que?
(06) Pedro: Vai dá os galos para os donos.
(07) PP: Vai dá os galos.
(08) Luiz: Terrível vai fugir.
(09) PP: O Terrível vai fugir?
(10) Isabela: Já fugiu.
(11) PP: Será que já fugiu? Aí só tem o nome no capítulo.
(12) Isabela: Mas tem o nome na história, eu já li.
(13) PP: Mas aí a gente vai descobrir. E aí o que essa família vai fazer?
(14) Isabela: Eu não sei.
(15) PP: Mas imagine. O fato da gente não saber algo, nós podemos imaginar, inventar
o que essa família poderia fazer.
(16) Oliver: Fazer macumba.
(17) PP: E aí o que vocês acham? Todos já sabem que tinha coisa viva na bolsa amarela.
(18) Oliver: É assassina, capaz de matar.
(5ª sessão: Livro A Bolsa Amarela)
Neste episódio, a professora/pesquisadora ao questionar sobre o que a família da personagem Raquel vai fazer após terem descoberto os dois galos em
sua bolsa, os alunos/leitores apresentam várias previsões de ação futura para
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Daliane do Nascimento dos Santos, Alessandra Cardozo de Freitas
os personagens como: “Vai pegar a bolsa dela” (Oliver), “vai dá os galos para os
donos” (Pedro), “Terrível vai fugir” (Luiz). Embora os alunos apresentem previsões futuras, sobre a possível ação do personagem, essas previsões são negadas
pela fala de Isabela, quando menciona que o personagem “Já fugiu”.
Essa previsão de uma ação já realizada pelo personagem e que impossibilita a realização das demais, demonstra que Isabela em vez de criar possibilidades futuras de ação, como se espera através da pergunta da professora/
pesquisadora, ela vai além, ela nega as previsões ao dizer que a ação já ocorreu
– Ele já fugiu.
Isabela desconsidera a previsão que “Terrível vai fugir” feita por Luiz, em
função dele está falando sobre algo que iria acontecer, mas que na verdade para
ela já aconteceu. Essa afirmação da aluna, indica que a família da personagem
Raquel, não poderá fazer nada com o Terrível por ter sido encontrado na bolsa,
pois ele fugiu antes de qualquer intervenção da família. No momento que a
professora/pesquisadora questiona se Terrível realmente fugiu, Isabela justifica a sua previsão relatando: “mas tem o nome na história, eu já li.” Ao dizer que
já leu, a aluna faz referência ao título do capítulo que ainda será lido intitulado
“Terrível vai embora”. Ao ter acesso a essa informação que não indica quando
Terrível iria partir, Isabela conclui que o personagem já fugiu construindo assim sua previsão, que nega as previsões já apresentadas pelos demais alunos.
Percebemos que Isabela durante a previsão adota uma “atitude proposicional (crê, deseja, augura, espera, pensa) quanto ao modo que as coisas vão
andar” (ECO, 1986, p.95), ou seja, como os acontecimentos podem se desenrolar na história. Essa atitude auxilia na construção das previsões, pois o leitor
ao pensar sobre o lido tem maior facilidade na construção de hipóteses, desta
forma, ele não só é capaz de elaborar previsões, como também de confirmar ou
negar uma previsão apresentada.
Deste modo, podemos perceber que o exercício de prever mobilizou Isabela a assumir outro tipo de atitude além da simples elaboração de previsão,
ela agora avalia o dito e se posiciona diante das previsões dos seus pares assumindo uma “atitude de não-adesão do lucutor” (TROUCHE, 2006, p.151), isto é,
Isabela não concorda com a previsão empreendida e assim assume uma atitude
de negação perante seus pares.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Esse comportamento de Isabela, demonstra que a relação texto-vida estabelecida a partir das perguntas na pré-leitura contribui para o desenvolvimento do pensamento crítico do leitor, uma vez que a elaboração de previsões
repercuti em aprendizado. Isto é, de acordo com Smith (1989) há três elementos que parecem determinar o que é aprendido: As demonstrações que “são as
condições para o aprendizado, existentes em torno de nós; engajamento, que é
a interação do cérebro com a demonstração; e sensibilidade, o estado de aprendizado do cérebro” (SMITH, 1989, p.227). Podemos dizer que na pré-leitura,
as demonstrações se referem ao exercício de prever realizado pelos alunos/
leitores; o engajamento a interação de Isabela com as previsões apresentadas e
a sensibilidade o momento em que Isabela se posiciona negando a previsão do
outro, se configurando em aprendizado. Tal compreensão evidencia que durante a pré-leitura se estabelece uma situação de aprendizado através da presença desses três elementos, que pode repercutir em aprendizagens diversas.
Neste caso, em específico, observamos o aprendizado da habilidade de negar o
pensamento do outro ao apresentar uma nova proposição.
Nessa perspectiva, inferimos que o engajamento do leitor se mostra condição necessária para que haja aprendizado, já que “as crianças aprendem
quando estão engajadas em uma atividade que alguma outra pessoa está realizando” (SMITH, 1989, p.232). A atitude de Isabela, nos mostra que ao recorrer
a estratégia da relação texto-vida durante a atividade de previsão, possibilita
ao leitor assumir outros papeis, que não se limitam apenas o de prever, eles
aprendem a avaliar a previsão de seus pares confirmando ou negando a sua
capacidade de realização.
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Daliane do Nascimento dos Santos, Alessandra Cardozo de Freitas
Previsão que questiona atitude do personagem
Quadro 3
Episódio de discussão da história: 03
(86) PP: Bem, já que ele não está querendo contar porque é segredo. Mas vamos para
história, quem vai pensar diferente nessa história?
(87) Isabela: A Raquel.
(88) PP: E o que é que ela vai pensar diferente nessa história?
(89) Isabela: Ela vai pensar em outra história.
(90) Karen: Ela vai desistir de largar as vontades e vai pensar diferente.
(91) Isabela: Ela vai continuar a guardar as vontades porque ela ainda tá escrevendo.
(92) PP: Como Isabela?
(93) Isabela: Ela já está escrevendo de novo, falando da vontade de ser grande.
(94) PP: Então ela não está pensando diferente?
(95) Isabela: Professora pensa só, se ela disse que não quer mais escrever o romance
por que ela escreve?
(96) Karen: Ela tá ferrada.
(97) PP: Pessoal vamos ouvir a Isabela. É o que Isabela?
(98) Isabela: Deixa prá lá.
(99) PP: Continue Isabela. Continue seu raciocínio. Pode falar. Por que será que a Raquel
vai pensar diferente?
(100) Ronaldo: Ela vai mudar a história.
(101) PP: Então vamos começar a história.
(6ª sessão: Livro A Bolsa Amarela)
Neste episódio a professora/pesquisadora ao questionar quem vai pensar
diferente na história obitem duas opiniões diversas a de Karen que afirma que a
personagem vai largar as vontades e vai pensar diferente e a de Isabela que discorda e ainda questiona a atitude da personagem. Dentre os dois pontos de vistas
apresentados destacamos o de Isabela, a qual questiona a atitude da personagem
ao dizer: “Professora pensa só, se ela disse que não quer mais escrever o romance
por que ela escreve?”.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Isabela, chama atenção a um fato significativo na história as três vontades
da personagem: a vontade de crescer, de ser menino e de escrever. Ao retomar
os acontecimentos da história, Isabela mostra que a personagem Raquel não vai
pensar diferente, pois por mais que diga que vai parar de escrever ela continua
escrevendo. Essa observação feita por Isabela demonstra o conhecimento que
tem sobre o enredo e a atenção que foi empreendida na atividade de leitura, pois
além de fazer uma observação significativa a respeito da atitude da personagem
utilizando o que já sabe da narrativa para fundamentar sua previsão, ela convida
a professora a pensar nessa possibilidade também.
Segundo Smith (1989, p.39) “a base da compreensão é a previsão, a eliminação anterior de alternativas improváveis. As previsões são questões que fazemos
ao mundo, e a compreensão é recebermos respostas relevantes a estas questões”,
podemos perceber que Isabela, ao questionar a atitude da personagem elimina a
previsão de Karen ao mostrar que a personagem continua escrevendo. Essa postura que Isabela adota de questionar a atitude do personagem revela mais uma
competência que a atividade de pré-leitura possibilita ao recorrer a estratégia da
relação texto-vida – a atitude de julgamento.
Essa atitude de julgar o personagem discordando da previsão do outro através do já lido, revela que Isabela adota uma das características fundamentais
do processo de leitura, a capacidade de avaliar sua própria compreensão (LEFFA,1996). Isto é, Isabela avalia não só o que pensa, mas também o pensamento
de seus pares o que a mobiliza a assumir uma atitude de julgamento.
A capacidade do leitor questionar o lido é influenciada tanto pelo texto literário,quanto pela sua experiência de vida e de leitura. De um lado “a literatura
nos oferece a vida em alteridade que ajuda a tomarmos posição, a fazermos escolhas, criticamente, com discernimento, não nos deixando enganar pelo fácil,
imediato e modelarmente verdadeiro” (YUNES, 2010,p.60) e por outro temos a
vida do leitor através de suas experiências que se constroem ao longo da vida
demandando posicionamentos e tomada de decisões. Esses dois elos texto e vida
estabelecidos durante a previsão, possibilitam para os alunos/leitores além de
uma formação leitora uma formação para a vida. Larrosa (1996, p.136) confirma
esse pensamento ao mencionar que “para que a leitura se resolva em formação
é necessário que haja uma relação íntima entre o texto e a subjetividade”, neste
caso a subjetividade do leitor se configura em sua experiência de vida.
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Daliane do Nascimento dos Santos, Alessandra Cardozo de Freitas
É preciso discutir para se validar uma previsão
Quadro 4
Episódio de discussão da história: 04
(32) PP: Certo. Quem tem uma ideia diferente da Ariel? Sobre o que está acontecendo
na bolsa amarela. Vamos gente, vamos pensar. O que vocês acham?
(33) Tiago: Ele tá tentando escapar de todas as formas.
(34) Anny: (S.I.)
(35) Layla: Ele vai bicar o zíper da bolsa para sair.
(36) PP: Será que ele vai bicar o zíper para sair?
(37) Isabela: Mas eu acho que não vai dá para abri o zíper porque/
(38) Layla: porque é por fora
(39) PP: Será que não vai dá para abrir?
(40) Oliver: O zíper é por fora:::
(41) PP: É o que?
(42) Oliver: O zíper é por fora não dá pra abrir.
(43) PP: Não dá para abrir?
(44) Isabela: Da sim:::
(45) Danilo: Da não:::
(47) Layla: Quem disse. (( se referindo a fala de Danilo))
(48) Danilo: Da não. Já fez alguma vez?
(49) Layla: Eu já fiz isso.
(50) Oliver: O zíper é por fora.
(51) PP: Bianca tem algo a dizer, vamos ouvir/
(52) Danilo: Professora:::
(53) PP: Ela (Layla) disse que já conseguiu abrir uma bolsa por dentro.
(54) Oliver: É porque você já entrou dentro de uma bolsa? (( se referindo da Layla Oliver
fala cruzando os braços, como se não tivesse acreditando na sua fala 49 ))
(55) Layla: Eu virei a bolsa por trás e rasguei por dentro.
(56) Ariel: Mamma mia. (( demonstrando surpresa com a fala 55 de Layla))
(57) Oliver: E você tava dentro de uma bolsa? ((se referindo a Layla))
(57) Layla: Não.
(58) Oliver: Então pare de falar isso.
(59) Pedro: Porque ela (Layla) rasgou o estojo/
(60) Danilo: Ela rasgou o estojo.
(61) PP: Layla, então quer dizer que você acha que o Terrível vai conseguir abrir a bolsa
por dentro. Quem tem uma ideia diferente?
(62) Helena: Professora:::
(63) PP: Pode falar Helena.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
(64) Helena: O Terrível não vai conseguir, porque o galo não tem força.
(65) PP: Gente olha só o que a Helena disse. Que o galo não vai fugir, porque ele não
tem força. Vocês concorda com isso?
((Nesse mesmo momento Karen, procura a assistente que está gravando em vídeo a
aula, mostra o livro e diz de forma silenciosa “o Terrível vai fugir sim”.))
(66) Alunos: Não:::
(67) PP: Vocês acham que o galo tem força e vai conseguir?
(68) Alunos: Sim:::
(69) PP: Eita Helena te desafiaram vamos ver se isso acontece realmente na história.
(70) Pedro: Eu sei. O fecho quebrou assim. ((faz um gesto de como o fecho iria quebrar))
(71) PP: Pedro então você acha que o fecho vai quebrar.
(72) Oliver: Vamos logo, deixe isso pra lá. (( Oliver interrompe a fala solicitando que
iniciemos a leitura da história)).
(4ª sessão: Livro A Bolsa Amarela)
Temos neste episódio uma discussão gerada a partir de uma dúvida que
surge sobre a previsão de Layla. Quando a professora/pesquisadora pergunta
o que está acontecendo na bolsa amarela, Layla menciona que “Ele (galo Terrível) vai bicar o zíper da bolsa para sair”, após sua previsão surgi uma sucessão
de falas que apontam motivos sobre a possibilidade do zíper ser aberto ou não.
Neste momento, uma discussão é gerada sobre a validação ou não dessa previsão. Durante a discussão instaurada, Isabela e Layla afirmam a possibilidade do
zíper ser aberto por dentro, nesse meio tempo ao ter sua pervisão questionada,
Layla relata “Eu já fiz isso”, como forma de convencer os demais colegas sobre
possibilidade de realização da previsão.
Observamos, portanto, que Layla recorre a uma experiência pessoal para
fundamentar e dar mais credibilidade a sua previsão. No entanto, ela não é
aceita pelos seu pares e continua sendo questionada: É porque você já entrou
dentro de uma bolsa?”(Oliver), “ Eu virei a bolsa por trás e rasguei por dentro”
(Layla)” , “ E você tava dentro de uma bolsa?” (Oliver), “ Não” (Layla) , “Então
pare de falar isso” (Oliver). Embora, Layla tenha explicado como fez para abrir
o ziper por dentro, dando a entender que é possível ser feito na ficção, as sequências de perguntas de Oliver a deixa sem argumentos para tentar convencer os
demais alunos sobre a validade de sua previsão. Quando Oliver diz “Então pare
de falar isso”, reduz a previsão de Isabela a algo improvável de ser feito.
3496
Daliane do Nascimento dos Santos, Alessandra Cardozo de Freitas
Para Morin (2012, p. 22) “o desenvolvimento da inteligência geral requer
que seu exercício seja ligado à dúvida, fermento de toda atividade crítica, que,
como assinala Juan de Mairena, permite “repensar o pensamento”. Percebemos
neste episódio, que atividade de previsão mobilizou os alunos/leitores ao exercício da dúvida ao recorrer a elaboração de perguntas para tentar validar ou
não a previsão. Essa atitude de duvidar sobre a previsão do outro mobilizando a
questionar tal ponto de vista, além de demonstrar uma contribuição da relação
texto-vida para formação do leitor, lança olhares para outro aspecto a ser explorado na pré-leitura – o exercício a dúvida.
Durante as perguntas e respostas dos alunos/leitores, podemos verificar
uma atividade de metacognição empreendida na discussão. Eles realizam uma
espécie de monitoramento da compreensão deles mesmos e de seus pares para
que possam realizar as perguntas validando suas repostas ou não. Esse processo
de metacognição envolve “a habilidade para monitorar a própria compreensão”
e a “habilidade para tomar as medidas adequadas quando a compreensão falha”
(LEFFA, 1996, p. 46). Nessa direção, “os processos metacognitivos, presumivelmente, têm lugar quando pensamos sobre os nossos pensamentos, por exemplo,
quando refletimos sobre se já sabemos algo, se estamos aprendendo ou se comentemos um erro” (SMITH, 1989, p.39). Essa capacidade pôde ser vista durante a discussão dos alunos/leitores sobre a validação da previsão, uma vez que
para discutir é necessário pensar não só sobre o que já se sabe, sobre o que vai
dizer, mas também sobre o pensamento do outro, processo este que se mostra
contínuo durante a discussão.
(In) Conclusões
Considerando que durante o processo de leitura o leitor faz perguntas ao
texto de modo a compreender o escrito, estando a atividade de previsão presente
nessa dinâmica. Inferimos que ao estimular os alunos/leitores à realizarem previsões durante a pré-leitura recorrendo a perguntas que mobilizam uma relação
texto-vida, contribui de forma significativa para sua formação leitora, uma vez
que o mobilizam a adotar uma atitude responsiva ativa antes da leitura do texto
por meio da formulação de predições.
3497
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Vimos que durante as previsões os alunos/leitores realizam um exercício
metacognitivo que os levam a pensar sobre suas previsões, como também, na
dos seus pares. Nesse processo, ao criarem associações, negar o pensamento do
outro, julgar as atitudes dos personagens e divergir entre se estabelecendo uma
discussão, evidenciam que a atividade de previsão a partir de uma relação textovida, possibilita o desenvolvimento de atitudes que vão além da elaboração de
previsões aleatórias que tem como objetivo apenas prever o que poderá acontecer, ela permite motivar o pensamento critico do leitor antes mesmo de iniciar a
leitura, levando-o a recorrer a conhecimentos tanto da sua experiência de vida
quanto da obra para construir suas previsões.
Portanto, recorrer a relação texto-vida durante a atividade de pré-leitura, é
contribuir para elaboração de previsões mais consistentes que mobilizam o engajamento do leitor à atividade de leitura; é estimular processos cognitivos como
atenção e concentração; é desenvolver o pensamento crítico e motivar uma compreensão responsiva ativa por parte do leitor.
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3499
RESUMO
O presente artigo objetiva expor uma proposta de trabalho com os poemas “Valsa”,
de Casimiro de Abreu; “Berimbau” e “Trem de Ferro”, de Manuel Bandeira. Objetivamos proporcionar ao aluno do ensino médio o contato com o texto literário a fim
de despertar o gosto pela leitura literária e desenvolver essa prática de leitura. Para
tanto, propomos um plano de trabalho que será desenvolvido numa escola pública
da cidade de Serra Talhada – PE; nosso intento é atrair os discentes a partir da sonoridade dos poemas, fazendo com que os alunos percebam a relevância do ritmo
na composição poética e como este pode contribuir para o melhor entendimento
do poema. Vale salientar que essa sequência será desenvolvida por nós através do
Programa de Iniciação a Docência – PIBID do qual fazemos parte e temos como
orientadora a professora Andreia Lima. Na nossa prática metodológica, exploraremos os jogos sonoros existentes nos poemas, identificando a peculiaridade da linguagem e demonstraremos o que diferencia o texto poético dos demais gêneros. É
relevante dizer que já conhecemos a escola e realizamos um período de observação,
onde constamos que as aulas de Literatura são, na maioria das vezes, a exposição de
características de Estéticas literárias e contextualização histórica desses períodos.
Infelizmente, não há quase contato com o objeto literário, dessa forma, entendemos
ser relevante uma metodologia que priorize o encontro do texto com o leitor. Para
realização deste trabalho, nos fundamentos em Cosson (2006); Lima (2009); entre
outros.
Palavras-chave: Literatura, Ensino, Sonoridade, Significado.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
“VALSA” E “BERIMBAU”: RITMOS E SONS
DESPERTANDO O GOSTO PELA POESIA
Jôyna Correia da Silva (UFRPE/UAST)
Andreia Bezerra de Lima (UFRPE/UAST)
Introdução
A presente proposta de trabalho se justifica e se baseia no resultado da diagnose feita na turma do 2º ano A, de uma escola estadual do município de Serra
Talhada. Nela, realizamos um período de observação e constatamos que o contato com a Literatura, da maioria dos alunos, acontece apenas no cotidiano da sala
de aula. Porém, esse consiste apenas na explicação de características de determinadas escolas literárias e seu contexto histórico. Nesse modelo de ensino, percebemos um problema, a falta de contato direto entre aluno e o texto literário.
Por isso, existe relevância no nosso trabalho, uma vez que, queremos promover
a interação texto e leitor. Entendemos Literatura como aponta Bachelard “uma
reduplicação da vida, uma espécie de emulação de cair no sono” (BACHELARD
apud LIMA, 2009, p.64), permitindo assim, que o leitor viva coisas novas com
esse encontro (experiências essas que embora sejam novas partem de uma realidade comum entre leitor e o autor). Acreditamos, portanto, que essa falta de interesse na disciplina surge desse desencontro, entre texto e aluno (já que apenas
01 aluno, escolheu como componente favorito a literatura).
Pensando dessa forma, o presente artigo visa propor uma metodologia de
ensino que favoreça o encontro do discente com o objeto literário, com a finalidade de despertar no estudante o gosto pela literatura, possibilitando, talvez,
a formação de uma comunidade de leitores que ultrapasse os muros da escola.
Para este fim, elegemos o gênero lírico, por ser curto, favorece a leitura em sala,
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
possibilita que o professor leve-o na íntegra e entregue a todos os alunos. Segundo Lima (2009, p.11) acredita-se que a poesia mexa com a emoção, com os
sentimentos e sensações; assim, o contato com o texto poético é um momento
único que, na maioria das vezes depende da metodologia usada, da vivência,
das expectativas dos alunos e da qualidade estética da obra. Pensando sob essa
perspectiva, o esperado é que esta proposta de pesquisa venha a ser um exemplo
de estímulo que contribua para a reflexão sobre o papel da literatura na escola,
fornecendo peças importantes para repensar a prática pedagógica direcionada
ao texto literário.
Como dito, anteriormente, objetivamos proporcionar ao aluno do ensino
médio o contato com o texto literário a fim de despertar o gosto pela leitura literária e desenvolver essa prática de leitura. Para isso escolhemos, dentre uma
gama de obras, alguns poemas para serem trabalhados em sala de aula, esta
seleção se deu a partir da sonoridade dos textos, pois visamos destacar essa particularidade do gênero lírico, mostrando como pode ser significativo para a compreensão do texto poético o atentar-se para esta especificidade. Os poemas são:
“Valsa”, de Casimiro de Abreu; “Trem de Ferro” e “Berimbau”; de Manuel Bandeira, dentre outros conforme apareça à necessidade1, explorando os jogos sonoros
existentes nestes poemas e identificando a peculiaridade da linguagem, o que
diferencia o texto poético dos demais gêneros, desejamos que o aluno se encante com a lírica e desmistifique o mito de que a poesia é de difícil compreensão.
Ivanda Martins (2006) discute sobre os mitos que rondam o ensino de literatura
na escola e aponta como um deles o texto literário ser de difícil entendimento,
no artigo intitulado “A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor?”, a estudiosa deixa claro o porquê dessa falácia.
A seguir, relataremos as sugestões metodológicas que empreendemos adotar para alcançar os objetivos aqui descritos. Vale ressaltar que nos baseamos,
principalmente, em Cosson (2006); Lima (2009) e Pinheiro (2005). Estas leituras
1. Esse artigo apresenta nossa proposta de trabalho enquanto bolsista do PIBID, ao submetermos ao
Eclae, tínhamos a intenção de discutir, parcialmente, os resultados e mostrar como estava a recepção
da proposta por parte dos alunos. Mas, infelizmente, por causa da greve na rede estadual de ensino e
outras problemáticas envolvendo o cronograma escolar, ficamos impossibilitada. Mas, apresentaremos
as sugestões para o trabalho que objetiva destacar a sonoridade do texto como porta de entrada para
despertar a sensibilidade do discente.
3502
Jôyna Correia da Silva, Andreia Bezerra de Lima
nos auxiliaram no melhor entendimento em relação ao ensino da literatura, sobretudo, do texto poético e nortearam a preparação de sequências didáticas para
aplicação das atividades. Destacamos, ainda, que o desejo de realizar esta intervenção na sala de aula surgiu quando a professora Andreia Lima, nossa orientadora no PIBID, ministrou a oficina, “Arte literária e ensino: o trabalho com a
poesia na sala de aula”; a fim de contribuir para formação continuada dos professores da rede pública e para os bolsistas desse programa de iniciação a docência.
Dançando ao ritmo de “Valsa”
O poema “Valsa”, de Casimiro de Abreu, nos instiga, pois além de ser uma
valsa, apresenta uma “narração” em que um casal está dançando esse ritmo. Enquanto dançam, o eu – lírico desabafa toda sua mágoa, pois percebe que a acompanhante enquanto baila com ele, parece se interessar por outro que naquele
salão estar. Apesar de o texto ter sido escrito no século XIX, o vocabulário não
apresenta muita dificuldade, mas, também não nos deteremos no léxico de início, pois queremos apreender a atenção dos alunos pelo ritmo, vamos “bailar” ao
som da leitura desse poema.
A VALSA
Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co’as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim
O trecho transcrito acima é a primeira estrofe do poema, ao dividir em sílabas poéticas, vemos que os versos são dissílabos, e assim permanece em toda sua
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
extensão. Abaixo, demonstramos a versificação presente na estrofe que se repete
ao logo do poema, permitindo que entendamos ser o refrão da canção.
Quem/ de/ra
Que/ sin/tas
As/do/res
de a/mo/res
que/, lou/co,
sen/ti!
Quem/de/ra
Que/ sin/tas...
- Não/ne/gues,
Não/min/tas
Eu/vi!...
Com os comentários postos acima, é nítido que esse texto carece de uma
boa vocalização, para Paul Zumthor (apud BRAZ, 2015) quando o texto é oralizado, pode ganhar, para o ouvinte, estatura de “símbolo”, ou seja, adquiri corpo.
A audição de uma leitura oral permite a criação de imagens e de novos significados, mesmo que não conheçamos o sentido de todas as palavras ouvidas. Pensando nisto, vale ressaltar que trabalhar com poesia exige a leitura da obra, antes
da aula, quantas vezes forem necessárias, até encontrar o tom apropriado: suave,
cadenciado, ritmado, enfim, de acordo com as exigências do texto2. Como afirma
(BOSI apud LIMA, 2009, p. 99), “para uma boa leitura, temos que encontrar o
tom, o afeto, a entonação que, possivelmente, possa estar ligada aos sentimentos;
isso contribuirá para uma boa interpretação”. Acreditamos nisso, e é com base
no que acabamos de expor que após entregar o poema aos alunos e pedirmos
uma leitura individual e silenciosa, faremos a vocalização. Mas, antes perguntaremos o que eles entenderam, se gostaram do texto; essa sondagem inicial é para
2. Informação obtida na oficina “Arte literária e ensino: o trabalho com a poesia na sala de aula” ministrada
pela Profa. Ms. Andreia Bezerra de Lima. Foi dito, no momento, que um dos estudiosos sobre ensino de
poesia que trabalha com essa perspectiva é o Prof. Dr. José Hélder Pinheiro Alves e podemos encontra algo
no artigo “Caminhos da abordagem do poema em sala de aula”, presente na revista “Graphos” (2008).
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Jôyna Correia da Silva, Andreia Bezerra de Lima
confirmarmos a hipótese que possivelmente os discentes terão dificuldade ou
demonstrarão um aparente desinteresse, porém, provavelmente após a leitura
oral e demais discussões, essas primeiras impressões mudarão.
Depois desse contato inicial, vamos nos aprofundar nas partes constituintes do texto poético, indagaremos sobre o ritmo, o que a turma percebeu após a
leitura realizada por nós, então, exploraremos a musicalidade, através das assonâncias e aliterações, passaremos ao léxico, sempre realizando perguntas para
instigar a participação de todos e não vir com uma interpretação pronta e acabada, mas, construir o sentido com os alunos. Partindo da sonoridade para trabalhar a temática, pois, acreditamos que um dos grandes problemas do estudo da
poesia na escola é a desconexão destas partes. No currículo escolar está presente
a versificação do texto poético, geralmente para os alunos do 1º ano do médio.
Então, o docente, de posse do livro didático, explica que as sílabas poéticas são
divididas de forma diferente da divisão silábica, e começa a ensinar a escansão,
mostra que pode aparecer redondilha menor, cinco sílabas, redondilha maior,
sete sílabas, versos decassílabos e assim por diante, no entanto, qual o significado disso para o entendimento do texto, porque existem essas classificações,
como é o ritmo e leitura de um verso de cinco sílabas, por exemplo. Nada disso
fica claro, este assunto é estudado destituído de significado e geralmente não
desperta o interesse do aluno, ademais qual o sentido de escandir um poema
todinho, se o discente não é levado a relacionar a estrutura com o conteúdo, a
compreender que a divisão silábica favorece o ritmo, dialogar com a música, já
que tantos poemas foram musicados, a exemplo de “Trem de Ferro”, de Manual
Bandeira, texto que também queremos trabalhar com os alunos, nesse projeto
de intervenção.
Voltando a sequência com “valsa”, aliaremos escansão ao sentido, pois leremos em outro ritmo para ver que efeito causa na recepção e mostrar que desrespeitando a métrica, possivelmente, não nos aperceberíamos ser uma valsa, o texto. Em seguida, contextualizaremos os alunos na época em que foi escrito, como
eram as festas, as relações, indagaríamos sobre essa provável “paquera”, será que
o eu – poético está “correto”? depois, construiremos o mesmo cenário, nos dias
atuais. Trazendo para próximo dos discentes, a temática abordada, a fim de que
percebam que a literatura além de plurissignificativa, se relaciona com a atualidade e pode dialogar com a vida deles. Pois, como afirma Lima (2009, p. 70)
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
[...] a linguagem literária assume aspectos de representação e demonstração do real, mas, também, permite que as palavras passem a ter vida
própria com novas significações. Embora a literatura permita a criação
de novos universos, estes são baseados ou inspirados na realidade da
qual tanto o escritor quanto o leitor participa. Por isso, mesmo sendo
vinculada à realidade, dela foge através da estilização da linguagem.
Assim, partindo da especificidade de linguagem, aproximaremos os educando da poesia, mostrando que mesmo aparentando ser de difícil compreensão,
é possível entender, vivenciar e dialogar com o texto poético. Pois, por mais distante que seja a composição, se nos encontrarmos com o objeto literário, teremos
nossas sensibilidades aguçadas. Finalizaremos a sequência com o poema “Valsa”
apresentando um vídeo encontrado no youtube.
Tocando Berimbau na sala de aula
Como foi exposto, nosso objetivo é trabalhar sons e ritmos como caminho
na busca pelo gosto literário. Logo, dando continuidade a sequência didática, o
próximo poema que os alunos conhecerão é “Berimbau”, de Manuel Bandeira. Os
poemas escolhidos não dialogam na temática, só na sonoridade, pois são extremamente musicais e os vocábulos neles presentes podem assumir outro significado, ao modificarmos o contexto.
Berimbau remete ao instrumento que acompanha o jogo da capoeira, sendo
assim, iniciaremos esse encontro com uma motivação. Para tanto, nos baseamos no modelo exposto por Cosson (2006), o estudioso elege um exemplo de
sequência didática para trabalhar o texto literário, ele denomina de “sequência
básica”, esta é dividida nas seguintes partes: motivação, introdução, leitura e interpretação. Neste momento, o que nos interessa é a motivação, pois de acordo
com Cosson (2006) ela prepara o aluno para a interação com o texto, o discente é
levado a deduzir sobre as possíveis temáticas que o texto aborda. Para o estudioso o sucesso da aula de literatura está condicionado a uma boa motivação. E esta
deve ser externa ao texto, concordamos em parte com o autor, pois acreditamos
que o próprio texto literário pode ser uma excelente motivação, podemos partir
dele, elaborando uma pergunta instigante, destacando alguns versos, antes de
entregar o poema na íntegra, enfim, muitas são as possibilidades, porém de uma
3506
Jôyna Correia da Silva, Andreia Bezerra de Lima
coisa estamos certa, priorizar o uso do texto e criar uma curiosidade no leitor,
ajuda a envolvê-lo no trabalho desenvolvido em sala. E este é o principal objetivo
da “motivação”.
Logo, nossa primeira ação será perguntar aos alunos o que eles entendem por
berimbau, depois de ouvir as respostas, mostraremos as fotos de diversos destes
instrumentos, esperamos que as respostas sejam dadas com facilidade e que todos
tenham o mesmo entendimento, já que não há mistério por trás dessa palavra.
Porém, nossa expectativa está para quando os alunos receberem o poema, pois no
primeiro momento de discussão, sondaremos sobre o que eles pensam que retratará o texto poético. Supomos que vão atrelar a capoeira, falar de dança e talvez até
utilizar a aula anterior como paradigma, construindo algo semelhante ao que está
presente em “Valsa”. Seguindo adiante, entregaremos o poema, mas, não daremos
o tempo da leitura silenciosa, faremos a leitura oral imediatamente.
BERIMBAU
Os aguapés dos aguaçais
Nos igapós dos Japurás
Bolem, bolem, bolem.
Chama o saci: - Si si si si!
- Ui ui ui ui ui! Uiva a iara
Nos aguaçais dos igapós
Dos Japurás e dos Purus.
A mameluca é uma maluca.
Saiu sozinha da maloca –
O boto bate – bite bite...
Quem ofendeu a mameluca?
- Foi o boto!
O Cussaruim bota quebrantos.
Nos aguaçais os aguapés
- Cruz, canhoto! –
Bolem... Peraus dos Japurás
De assombramento e de espantos!...
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Nosso intento é causar o estranhamento e ao mesmo tempo ver se eles percebem o ritmo, acreditamos que de início não relacionarão o que está escrito
ao título. Por isso, voltaremos à discussão e indagaremos o porquê de o texto
ser intitulado de “Berimbau”. Supomos que haverá certa dificuldade, pois o léxico do poema em nada dialoga com o instrumento usado na capoeira. Partindo
desse pressuposto, exploraremos a vocalização para ver se os alunos percebem a
monotonia do ritmo. Segundo Lima (2009, p. 51) “o poeta intitulou o poema de
berimbau por causa da monotonia do ritmo”. Esta pode ser apreendida através da
aliteração, assonância e onomatopéia.
Depois das leituras, iniciaremos a sondagem para uma possível interpretação. Ratificando o já exposto, nossa proposta de trabalho para os poemas de
Manuel Bandeira se baseia, principalmente, na metodologia desenvolvida pela
professora Andreia Lima (2009), na sua pesquisa de mestrado. Assim, realizaremos as seguintes perguntas:
Que figuras do folclore brasileiro estão no poema?
Vocês conhecem as histórias que tais figuras míticas representam? (se a
resposta for positiva pediremos que eles contem tais histórias);
Alguém sabe reproduzir o som do berimbau?
Quais os sons que se repetem no poema? (a partir dessa resposta vamos
brincar um pouco com os alunos pedindo que todos repitam os sons
produzidos pela aliteração. Objetivamos com essa brincadeira destacar
bem a questão da sonoridade, do ritmo e os alunos podem até relacionar
o título do poema aos sons produzidos).
Para finalizar, dividiremos a sala em dois grupos (A e B) para que façam
à leitura coletiva de partes do poema. Serão colocados, no quadro negro, dois
grandes cartazes com partes do poema de maneira que forme um diálogo, aproveitando que já há algumas falas, então uma parte da turma lerá os versos: “Os
aguapés dos aguaçais”, “Nos igapós dos Japurás” e a outra responderá: “Bolem,
bolem, bolem”; “Chama o Saci”, grupo A, “Si si si si si”, completará o B e assim por
diante. Intentamos com essa “brincadeira” que os alunos percebam os sons da
Amazônia presentes no texto, atentem para o eco formado nos versos que falam
do Saci e da Iara e ouçam a monotonia do ritmo através da leitura coletiva. O poema faz parte do livro Ritmo Dissoluto (1924), mas, o poeta deixou registrado em
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Jôyna Correia da Silva, Andreia Bezerra de Lima
seu, Itinerário de Pasárgada (1997), que ele não é dissoluto de ritmo, pelo contrário, é muito rítmico e musical, por isso, “sugere brincadeiras” (LIMA, 2009, p. 51).
Uma viagem sonora com “Trem de ferro”
O poema “trem de ferro” publicado no livro Estrela da Manhã (1936), foi
escolhido para essa sequência porque coaduna com os demais, em se tratando
de sonoridade, entretanto, para nós existe uma particularidade, que certamente despertará o interesse dos alunos, o texto retrata as paisagens do interior do
nosso estado, Pernambuco, e sugere belas imagens através da viagem do trem. A
primeira estrofe já suscita curiosidade, pois os vocábulos utilizados em nada nos
lembram o trem.
TREM DE FERRO
Café com pão
Café com pão
Café com pão
No entanto, a leitura em voz alta faz com que percebamos que esse estribilho representa o movimento do trem. A oscilação entre as sílabas fracas e fortes
que permitem tal percepção: “Ca FÉ com PÃO”.
Está clara a importância da leitura oral para desenvolver este projeto, entretanto, qualquer texto literário deve ser lido e analisado pelo professor antes
de levá-lo a sala de aula, utilizamos leitura em toda a abrangência significativa
que a palavra permita. Com “trem de ferro” em mãos, seguiremos os exemplos
descritos nos tópicos anteriores. Leitura individual, silenciosa, alguns questionamentos sobre o poema e depois a vocalização realizada por nós. Vale salientar,
que as perguntas devem ser produzidas para o texto em questão, não se deve
preparar uma sequência como se fosse uma receita de bolo, cada poema prescinde de uma análise própria e de um debate específico. Através dessa construção
dialogada o aluno-leitor vai interagir com cada texto de forma singular.
Realizaremos com a turma uma leitura coletiva para que se apercebam de
toda a movimentação feita pelo trem em sua viagem. Ao lermos a experiência
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
empreendida pela professora Andreia, no capítulo quatro de sua dissertação de
mestrado, chamou-nos atenção a reação dos alunos frente ao poema.
Enquanto líamos, eles (os alunos) – grifo nosso, sem que pedíssemos,
cantaram o “Oô” presente na terceira estrofe.
Os alunos mesmos levantaram alguns questionamentos bem pertinentes. A aluna R disse que era como se o trem falasse. A pesquisadora
(grifo nosso) percebeu em tal comentário que a aluna identificou o animismo representado pelo “Trem”. O aluno I disse: “Professora, nessa
última estrofe é o trem que está falando, não é?”, foi afirmado que sim,
porém o aluno J ressaltou que na estrofe quatro “parece que o poeta está
viajando de trem e vendo toda a paisagem. E ainda acrescentou um terceto ao poema: Fica tonto/ Fica tonta/ Fica tonto. (LIMA, 2009, p. 125)
Transcrevemos a citação acima para enfatizar como o encontro com o texto
literário pode suscitar uma boa discussão, assim ratificamos o que já dissemos
outrora, o próprio poema pode motivar uma boa aula. Todavia, podemos dialogar com outras artes, propor adaptações do texto, realizar jogos dramáticos, tudo
isso, são possibilidades de trabalho que podem enriquecer a prática docente e
servir de porta de entrada para que os alunos se tornem leitor.
Considerações finais
O resultado que esperamos atingir ao final do desenvolvimento desse plano
de ensino é que os alunos consigam identificar as peculiaridades da linguagem
poética, os jogos sonoros existentes e que despertem o gosto pela leitura literária. Sendo capazes de relacionar as experiências apresentadas poeticamente com
o que o cerca.
Ressaltamos que esta pesquisa não pretende ser uma fórmula metodológica
para o trabalho com a Literatura, mas, desejamos promover o encontro entre
texto e leitor e apresentar possibilidades significativas de prática docente com o
texto poético.
3510
Jôyna Correia da Silva, Andreia Bezerra de Lima
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3511
RESUMO
A poesia moderna parece convidar cada vez mais o leitor a ser participante de um
jogo de interpretação constituído pelo processo de decifração e recifração dos versos. A tensão entre obra e leitor é estabelecida, na poesia, pelo campo da linguagem
marcada pela ruptura da relação direta entre signo e referente, de modo que o real
passa a ser resignificado a partir do, e no, poema. Nesse processo, onde a tensão é
estabelecida pela linguagem metafórica, o jogo de concretismos e abstrações faz-se
possível a partir de enunciados e/ou do poema de modo geral. Considera-se, assim,
a poesia moderna enquanto autorreferente, uma vez que as marcas necessárias para
o leitor participar como construtor de sentidos estão presentes no próprio texto. De
outra forma, pode-se dizer que nos poemas drummondianos a consciência de linguagem crítica está para além de um saber extrínseco ao texto, sendo o processo metafórico e as marcas temporais suficientes para colher impressões de mundo particulares do poeta. Feitas essas considerações, este trabalho resulta de uma análise do
processo metafórico em poemas drummondianos e sua relação com a condensação
da linguagem crítica, característica do modernismo. Essa análise pretende-se mostrar, sobretudo, como forma de abordagem possível na sala de aula, de maneira que
sejam contempladas discussões acerca da linguagem poética, do processo de interpretação do poema e aspectos metafóricos correlacionados ao real. Espera-se com
isso despertar a reflexão e criticidade literária nos alunos por meio da linguagem lírica moderna, partindo sempre do texto e encerrando-se nele as reflexões possíveis,
pois o texto deve ser o objeto de estudo. A fim de enriquecer a fundamentação deste
trabalho, utilizo discussões de teóricos como Costa Lima, Paul Ricouer, Octávio Paz,
João Alexandre Barbosa Hélder Pinheiro e Todorov, que consideram a mimese, a
metáfora e a poesia moderna na literatura.
Palavras-chave: Poesia moderna, Drummond, Metáfora, Leitor/aluno e obra.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
A LINGUAGEM METAFÓRICA NA POESIA
DE DRUMMOND: UMA ABORDAGEM
POSSÍVEL NA SALA DE AULA
Gésica de Oliveira Sousa (UFPE)
Introdução
O período literário Modernismo foi marcado por inovações temáticas e estéticas na literatura e arte em geral. Um espírito crítico e inconformado com
a realidade tomou conta de muitos escritores, que particularizaram visões de
mundo, fazendo seus recortes do real através da literatura, tornando assim, o
movimento heterogêneo1. Para Antonio Cândido (1975, p. 9) “o Modernismo revela, no seu ritmo histórico, uma adesão profunda aos problemas de nossa terra
e da nossa história contemporânea”. Podemos então afirmar que os poetas considerados modernistas foram movidos por uma inquietude referente à realidade
predominante, o que me leva a considerar esta estética literária, como sendo um
movimento eminentemente crítico.
Partindo dessa criticidade da literatura moderna, acredito que a poesia, enquanto jogo interpretativo de uma linguagem carregada de significados, parece
convidar cada vez mais o leitor a ser participante de um processo constituído
pelas etapas de decifração e recifração dos versos. A tensão entre obra e leitor é
1. Ávila (2007, p.56) vai dizer que “na verdade, não existe sequer um “estilo modernista, mas autores
aglutinados em torno de certas datas falando idiomas literariamente divergentes.”
3513
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
estabelecida, na poesia, pela linguagem marcada pela ruptura da relação direta
entre signo e referente, de modo que o real passa a ser resignificado a partir do,
e no, poema. Nesse processo, onde a tensão é posta pela linguagem metafórica,
o jogo de concretismos e abstrações faz-se possível e evidente a partir de enunciados e/ou do poema de modo geral. Diante do exposto, essa análise pretende-se mostrar como forma de abordagem possível na sala de aula, de maneira
que sejam contempladas discussões acerca da linguagem poética, do processo
de interpretação do poema e aspectos metafóricos correlacionados ao real. Espera-se com isso despertar a reflexão e criticidade literária nos alunos por meio
da linguagem lírica moderna, partindo sempre do texto e encerrando-se nele as
reflexões possíveis, pois o texto deve ser o objeto de estudo.
Breves suportes teóricos: sobre a metáfora como
artifício da linguagem
Antes de mais, é mister dizer que o homem faz uso quase que cotidianamente da metáfora para tentar expressar fatos e ou acontecimentos que não podem ser expressos pelas formas puramente linguísticas, ou seja o procedimento
metafórico tem grande influência em boa parte do pensamento e raciocínio do
ser humano. Lakoff e Johnson (1980) chamam essas metáforas do cotidiano, tais
como “o tempo voa” de metáforas conceptuais, sendo explicadas pela capacidade
cognitiva do ser humano. Diante disso, o processo de construção da metáfora
deve ser visto sempre atentamente pelo leitor, sobretudo pelo leitor de poesia,
pois o jogo de palavras que tem como artifício da linguagem a metáfora se mostra ainda mais profundo e complexo e nunca de forma despretensiosa, como
possa ser conforme a metáfora conceptual onde muitas vezes não nos damos
conta de tal uso. Feitas estas considerações iniciais, este recorte teórico, no que
tange à metáfora, fundamenta-se em Marques (s/d) que, baseando-se na divisão
e classificação estrutural de níveis da linguagem por Ricoeur (2000), afirma que
no nível da palavra (semiótico), a metáfora pode ser discutida nas relações de substituição; e no nível do discurso (semântico), a construção
3514
Gésica de Oliveira Sousa
de sentido da metáfora depende das relações de sentido criadas entre
as palavras do enunciado, que cria o todo significativo do discurso.
(MARQUES, s/d, p.4)
A metáfora no nível semântico, ou do discurso, é perceptível apenas pela
leitura de todo o poema. Parece-me que o poeta pretende desta forma uma
revelação ao leitor, seria como uma cartada final no jogo convidativo que é a
leitura da poesia. No que tange à sala de aula, consideremos, pois, o fato de
que todo espaço no qual se trabalhe a leitura, principalmente a leitura literária,
deve caracterizar-se como um ambiente onde seja possível “brincar” com as
palavras, é como um jogo de sedução (MOISES, 2006). Quando se trata de poema, esse jogo se intensifica, o que denota ser uma característica intrínseca ao
próprio gênero que não pode ser ignorada pelo professor ao propor o trabalho
com o texto poético.
A poesia, ainda, na sala de aula
Antes de partir para uma abordagem mais centrada na poesia drummondiana, vale a pena pensar o espaço que a poesia de modo geral tem tido em sala
de aula ou ainda como ela é apresentada pelo livro didático. Caímos então na
indagação que não quer calar: Tem espaço a poesia na escola? A comunidade
escolar parece diminuir cada vez o lugar da literatura e, sobretudo, da poesia na
escola e podemos pensar que isso é apenas um reflexo do aparente desinteresse
do aluno ( e professro) pelo texto poético. Mas então não se deve mais abordar
poesia na escola?
“É evidente que vale a pena trabalhar a poesia na sala de aula. Mas não
qualquer poesia, nem de qualquer modo. Carecemos de critérios estéticos na escolha das obras ou na confecção de antologias. Não podemos
cair no didatismo emburrecedor e no moralismo que sobrepõe à qualidade estética determinados valores.” (PINHEIRO, 2007, p.20)
3515
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Os critérios estéticos na escolha das obras a serem lidas e “exploradas” em
sala são de importância tal que justificam a permanência da poesia na escola.
Não se pode mais admitir um “ensino de poesia” pautado simplesmente em categorias gramaticais e ou valores morais. Deve-se considerar a função social da
poesia. O potencial crítico e reflexivo que ela proporciona à realidade. Mas,
para além de qualquer intenção específica que a poesia possa ter, (...)
há sempre comunicação de alguma nova experiência, ou uma nova
compreensão do familiar, ou a expressão de algo que experimentamos
e para o que não temos palavras – o que amplia nossa consciência ou
apura nossa sensibilidade. (ELIOT, 1991, apud PINHEIRO, 2007, p. 22)
O aluno pode não gostar de ler literatura muito provavelmente pela forma como ela é apresentada em aula ou pela seleção de textos feita a critérios
individualistas do professor, sem pensar a realidade de sua turma e/ou sem ter
objetivos claros em sua metodologia2. O fato de que a literatura como um todo
tem sido usada em sala de aula apenas como pretexto para trabalhar questões
afins, gramaticais, biográficas e históricas, não nos surpreende mais. É necessário haver uma revisão desses objetivos e do modo como o professor compreende
a relevância de texto literário em sala de aula. Mas por que a poesia? Além de ser
ela um texto mais curto, que muitos romances, ela requer do aluno maior criticidade justamente pela forma como dispõe as palavras e por se tratar de uma linguagem sensível, ou seja, há sempre algo que precisa ser inferido ou recifrado pela releitura de algum verso.
Considero ainda a poesia moderna enquanto autorreferente, uma vez que as
marcas necessárias para o leitor participar ativamente deste jogo interpretativo
como construtor de sentidos estão presentes no próprio texto. O leitor não necessariamente precisa buscar aspectos temporais fora da obra poética uma vez
que a poesia é atemporal, ou seja, como todo texto literário, está para o universal
2. A despeito disso, trago como referência o projeto ReLATE ( Reflexões Linguísticas Aplicadas ao Texto
na Educação Básica) desenvolvido pelo Programa de Educação Tutorial/ Conexões de Saberes/PET-CS,
na UFRPE/ UAST. Este projeto realizou oficinas quinzenais com professores da Educação Básica a fim de
saber quais as dificuldades enfrentadas por eles em sala de aula e, sobretudo, com a finalidade de resolver/
amenizar tais dificuldades. Durante a oficina Ensino de Literatura, os professores da rede básica relataram a
preguiça dos alunos em lerem textos longos como sendo uma das principais dificuldades.
3516
Gésica de Oliveira Sousa
apesar de tratar-se, a princípio, de um recorte de um dado momento. No caso
dos poemas drummondianos, pode-se dizer que a consciência de linguagem crítica está para além de um saber extrínseco ao texto, sendo o processo metafórico
e as marcas temporais já dadas suficientes para colher impressões de mundo
particulares do poeta.
A densidade da linguagem metafórica e o
processo interpretativo
Uma vez que a linguagem poética é um dizer de forma sensível e condensada, a ser compreendida pela deciração e recifração dos versos, podemos entender tal processo, o de leitura da poesia, como sendo um jogo de interpretação
no qual o leitor/aluno participa como convidado para jogar conforme as regras
estabelecidas pela poesia.
“Entre a linguagem da poesia e o leitor, o poeta se insere como operador
de enigmas, fazendo reverter a linguagem do poema a seu eminente
domínio: aquele onde o dizer produz a reflexividade. Parceiros de um
mesmo jogo, poeta e leitor aproximam-se ou afastam- se conforme o
grau de absorção da/na linguagem.”( ALEXANDRE, 1986, p. 14)
Sobre essas regras, destaco neste artigo, a metáfora como a principal estratégia de estabelecer o enigma através da densidade e condensação da linguagem.
João Alexandre, em Ilusões da Modernidade, (1986, p.23) entende que o objetivo
do poeta: “não é mais convencer o leitor de sua experiência metafórica, mas antes fazê-lo cúmplice na decifração do procedimento alegórico através do qual
a metáfora é também crítica da experiência.” A depender do envolvimento do
leitor ou do grau de absorção da linguagem, o jogo pode ser considerado como
prazeroso ou não. Cabe ainda ao professor fazer o papel de mediador entre o
texto literário e o aluno, não lhes dando respostas, mas provocando reflexões e
questionamentos no que tange ao real.
3517
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Entrando no jogo: uma análise concisa de trechos que nos
permitem perceber a metáfora como estratégia da linguagem
poética
Apenas a critério de melhor entendimento por parte do leitor, cabe dizer
que disponho a baixo apenas versos de alguns poemas em que a metáfora se faz
presente, com exceção do poema Áporo que segue por completo3. Passando à leitura interpretativa dos versos, seguem-se diluídas nela colocações a cerca desta
análise como possível de ser aplicada em sala de aula. Trecho do poema O Medo:
“O medo, com sua capa
nos dissimula e no berça.”
O sentimento medo adquire características que não lhe são comuns no plano abstrato, o que nos permite perceber uma personificação nestes versos acima,
de forma que já em outra estrofe, adquire capacidade de produzir:
“O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas”
Pensar esta construção metafórica, mais para o nível semântico ou do discurso, como meio de expressar mais claramente a sensação diante de tal sentimento é o que proporciona ao leitor entender a estratégia da linguagem como
modo incisivo de dizer algo para o qual não se tem palavras fora do campo literário. O poema O Medo apesar de conter quinze estrofes cada qual com quatro
versos, pode ser trabalhado por completo em sala de aula, pois os elementos que
conferem aspectos metafóricos ao medo se tornam cada vez mais presentes no
3. Os poemas considerados nesta análise estão todos na obra A Rosa do Povo (DRUMMOND, 2008)
3518
Gésica de Oliveira Sousa
poema. Dessa forma, o leitor vai prosseguindo com leitura, mesmo que movido
pela curiosidade, até descobrir como se configura o sentimento medo no restante do poema. Vai se tornando um participante ativo ao passo que constrói os
sentidos e se permite envolver pelo jogo de sedução das palavras.
Já no poema A flor e a Náusea acredito que a flor aparece como metáfora da
esperança ou da poesia, e também vai adquirindo maior perceptividade como
aspecto metaforizado ao longo de todo o poema. Vejamos os versos:
Uma flor ainda desbotada
Ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
Garanto que uma flor nasceu
(...)
“É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”
A mistura de aspectos concretos (asfalto) e abstratos (tédio, nojo e ódio)
permite ao leitor atento entender essa construção como estratégia para evidenciar a metáfora como forma amena e condensada de expor, pode-se dizer também crítica e disfarçada. Ressalto que outros sentidos a serem atribuídos pelo
leitor ao poema são possíveis desde que comprovados no do texto. O professor
pode aproveitar a diversidade interpretativa, uma vez que cada um segue as
regras do jogo à sua maneira, ou seja, conferindo maior ou menor precisão a
certos aspectos, para enriquecer sua aula, compartilhando as interpretações.
Talvez dentre os poemas mais conhecidos, e também mais ricos em metáfora, do poeta itabirano, esteja Áporo:
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
3519
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea formou-se.
O inseto parece metaforizar a própria existência humana, ao passo que o
labirinto se faz a sociedade e a poesia a orquídea. Estes elementos podem ser
explorados tendo em consideração apenas o que está dado do poema. Consideremos que o inseto parece cavar o país bloqueado (Que fazer, exausto/ em um
país bloqueado) até que um labirinto se desata e dele nasce timidamente uma
orquídea. A depender do envolvimento do aluno/leitor com o poema e também
de seu conhecimento pragmático, será possível pensar o apóro também a partir
da composição da palavra a (não) poro (saída), cabendo assim outras interpretações que irão corroborar, ou não, com a metáfora primeira de áporo enquanto
poesia e/ou orquídea.
Outro poema onde percebe- se a metáfora enriquecendo a linguagem drummondiana é Morte do Leiteiro. Um poema de temática social e pouco visto pelo
seu viés metafórico, que aborda a questão da violência e das classes trabalhadoras que “sustentam” o país. É através de um tom crítico e reflexivo que Drummond revela a metáfora, no fim do poema, como forma de mostrar a esperança
ainda existente. Na última estrofe, referindo-se ao leiteiro que morre assassinado a tiros por um cidadão que confundira o leiteiro com um ladrão, o poeta faz
menção à aurora, através da mistura das cores branco e vermelho:
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue...não sei.
Por entre objetos confusos,
3520
Gésica de Oliveira Sousa
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
Se pensarmos a cor do céu logo cedo ao nascer o sol, teremos em mente um
tom avermelhado ou alaranjado que confere beleza ao começo de um novo dia.
A aurora, representada no poema por esta mistura das cores, parece metaforizar
a esperança e um novo dia, considerando para tal interpretação o nível semântico, ou seja, o poema por completo. Ao longo do poema, o poeta parece ir dando
pistas de que as cores metaforizam algo, e cabe entender que o branco representa algo muito almejado pelos povos de seu tempo. Consideremos ainda para tal
intepretação os versos a baixo:
E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco desse leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por este beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho não nada resolve.
As reticências no verso “depositemos litro...” nos permitem inferir um pensamento reflexivo por parte do poeta, de modo que nos versos seguintes, “Sem
fazer barulho, é claro”,/ que barulho nada resolve” somos levados estrategicamente a pensar tal construção metafórica como alusão a um provável período
de guerra, ou pelo menos de momentos turbulentos onde o barulho perturbava
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
o povo. Estas inferências podem ser ratificadas se considerarmos o contexto em
que a obra foi escrita, por volta do fim da Segunda Guerra Mundial, todavia não
se faz necessário pensar a partir do contexto para entender a obra.
Resultados e considerações finais
Longe de conceder respostas conclusas acerca do espaço da poesia em sala
de aula, ou das formas possíveis de abordagem como determinantemente capazes de despertar o aluno para a literatura, este artigo reflete e reitera a necessidade da poesia na vida humana de modo geral, como sendo essencial para construção de uma criticidade intelectiva. A linguagem poética drummondiana, que
é um dizer o cotidiano sempre num ritmo contrário a ele, requer do leitor uma
interação construtiva através do que podemos chamar de percepção dos artifícios da linguagem, sendo a metáfora, por exemplo, apenas um desses artifícios.
Mas considerar o modo de dizer como um todo, ou seja, a disposição das ideias,
a pontuação, a repetição lexical ou de sentenças completas, ou o estilo do autor,
são questões que contribuem para intensificar o jogo e a busca pelas respostas
que o poema pode oferecer.
Uma vez que este trabalho trata-se de uma amostragem possível em sala de
aula, ele está ainda em fazes de andamento, mas ressalto como possível através
de experiências durante o período de Estágio Supervisionado, realizado durante
o curso de Licenciatura em Letras, onde ministrei, em turmas do Ensino Médio, aulas de literatura que tiveram como ponto de partida a poesia brasileira
moderna. Portanto, espera-se que os professores possam repensar suas práticas
metodológicas e teóricas em sala de aula antes de apresentar qualquer que seja o
texto literário ao aluno. Considero de extrema importância a necessidade de ter
objetivos bem definidos e uma seleção de textos que se relacione às viências e/
ou capacidade crítica do aluno, pois ler literatura, assim como ler jornal ou gibis,
parte sempre de um processo que vai se aperfeiçoando.
3522
Gésica de Oliveira Sousa
Referências
ALEXANDRE, João. Ilusões da Modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1986.
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2008.
ÁVILA, Affonso. O modernismo. São Paulo: Perspectiva: 2007.
CARVALHO, Sérgio N. de. Metáfora Conceitual: uma visão cognitivista - UERJ/EN/
UNESA, s/d.
LAKOFF, G. & JOHNSON, M. Metáforas da Vida Cotidiana. São Paulo: Mercado das
Letras, 2002.
MOISÉS, Leyla P. Flores da Escrivaninha: ensaios. São Paulo: Compainha das Letras,
1990.
PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. 3ªed. Campina Grande: Bagagem, 2007.
3523
RESUMO
A pesquisa tem como objetivo geral analisar a temática africana na narrativa de literatura infantil, com vistas à formação identitária e à reeducação das relações étnico
-raciais. Para tanto, as questões da pesquisa orientam-se pelos seguintes objetivos
específicos: promover a leitura do livro “As panquecas de Mama Panya” (2005), de
Mary e Rich Chamberlin numa perspectiva de letramento literário em uma turma
do quinto ano do ensino fundamental; investigar como a literatura infantil explora
alguns aspectos culturais; examinar as relações familiares a partir da leitura do livro
“As panquecas de Mama Panya” e oportunizar a interação entre o mundo da linguagem com o mundo da experiência vivida, através da realização de oficinas de leitura
literária. Tendo em vista que o nosso estudo se concentra na área de literatura comparada, uma vez que se volta para a relação literatura e direitos humanos, este tem
como base teórica, estudos em áreas diversas. Desta forma, utilizamos os estudos
de Coelho (1991), Aguiar e Bordini (1997), Cunha (2003), Zilberman (2003), Frantz
(2011), Colomer (2007), Malard (1985), Candido (2004), Hall (2006), Bittar (2008),
Munanga (1996), Serrano e Waldman (2010), entre outros. A metodologia adotada
neste estudo é a pesquisa-ação de Thiollent (1985) que nos parece a mais adequada
quando se trata da integração entre conhecimento e ação. Isto é, a participação efetiva do pesquisador e colaboradores para a resolução de um problema. Diante disso,
traçamos e aplicamos atividades que exigem participação ativa dos estudantes colaboradores. Assim os instrumentos aplicados foram as oficinas de leitura e um questionário aberto. Aquelas se deram em quatro encontros. Os resultados apresentados
mostram que o trabalho efetivo com o texto literário de viés africano pode contribuir
para a sensibilidade e o fortalecimento das relações étnico-raciais, pois o livro estudado teve uma aceitabilidade de 87, 5% (14/16) dos estudantes.
Palavras-chave: Literatura infantil, Direitos humanos, Africanidade, Ensino.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
A LITERATURA INFANTIL NO ENSINO
FUNDAMENTAL: DIREITOS HUMANOS
E AFRICANIDADE
Izabel Gabriel de Oliveira (UPE)
Introdução
A leitura do texto literário no ensino fundamental é uma das atividades que
mais contribuem para a formação do leitor-criança, tendo em vista, as relações
de proximidade entre o universo deste com a literatura infantil, ambos permeados por uma linguagem lúdica, imaginativa e genuinamente criativa. Sendo
assim, a vivência de uma leitura literária pode despertar diferentes olhares sobre
a vida, o mundo, o homem, o seu próprio eu, o outro; enfim, uma interminável
rede de conexões de saberes. Dessa forma, trazer boas leituras para os nossos estudantes é auxiliá-los a exercer um direito inalienável, o direito de ler literatura.
Pensando sobre a função social da escola e o poder de emancipação advindo
da leitura, voltamos o nosso olhar para uma questão que nos inquietava: por que
nas leituras realizadas em sala de aula não havia espaço para os grupos étnicos
indígena e afro-brasileiro? Sendo que por força de lei, esses grupos deveriam ter
garantido o seu reconhecimento. A lei nº 10.639/03 e a nº 11.645/08, que tornam
obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena na educação básica do país, reforçam os campos mais propensos a este estudo, que são a
educação artística, a literatura, a história brasileiras. Motivados por esta inquietação, fizemos um recorte, selecionando para a nossa pesquisa, até mesmo por uma
questão de contexto – o município de Garanhuns tem seis comunidades remanescentes de quilombo – a temática africana. Nosso problema, portanto, sintetiza-se
em uma pergunta: como trabalhar a matriz africana através do texto literário?
3525
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Em face disso, mostramos, nesta pesquisa, intitulada de “A literatura no
ensino fundamental: direitos humanos e africanidade” que o trabalho efetivo
com o texto literário de viés africano pode contribuir para a sensibilização e o
fortalecimento das relações étnico-raciais, uma vez que suscita a discussão em
torno de questões tipicamente humanas, as quais, frequentemente, são marginalizadas em sala de aula, em detrimento de conhecimentos técnicos. Contudo, de
forma alguma, queremos dizer que estes não têm sua validade, o que desejamos,
na verdade, é um espaço maior para a discussão de temas que se voltem às condições humanas. Dessa forma, o leitor-criança de ascendência africana ou não,
sente-se convidado a atribuir sentidos à obra “As panquecas de Mama Panya”
(2005) de Mary e Rich Chamberlin, pois a leitura dela pode nos deixar com “água
na boca”, desejosos de sentir o seu sabor “um pouquinho e um pouquinho mais”.
É bem isso que acontece quando lemos este livro: o prazer nos toma os sentidos;
percebemos assim, que a cada página lida nos envolvemos mais na história.
Na construção desse percurso, foi necessário o levantamento de estudos em
áreas diversas, uma vez que o nosso objeto de pesquisa não se limita a um determinado campo, pois mantem relações transversais com as outras áreas. Desta
forma, tratamos dos estudos teóricos da literatura infantil, os quais apontam a
sua importância na formação do leitor, tendo como principais abordagens: Coelho (1991), Aguiar e Bordini (1997), Cunha (2003), Zilberman (2003) e Frantz
(2011); da leitura literária e o ensino de literatura na escola em Colomer (2007) e
Malard (1985); da literatura enquanto direito, em Candido (2004); da identidade e aspectos afins, em Hall (2006); dos direitos humanos, em Bittar (2008); da
temática africana e sua relação com o território brasileiro, em Munanga (1996),
Silva (2010) e Serrano e Waldman (2010). Estes são os principais expoentes da
pesquisa, entretanto, outros também deram a sua contribuição, pois no campo
da literatura comparada, o saberes estão em sinergia.
Nesta pesquisa, dividimos o seu conteúdo em quatro partes. Na primeira, abordamos os aspectos teóricos da literatura infantil explicando também o
porquê da transversalidade temática, isto é, a existência de diversos enfoques,
tais como a questão da identidade, da diferença, dos direitos humanos e da africanidade. Na segunda, detalhamos o percurso metodológico assumido para a
realização satisfatória desse estudo. Na terceira, analisamos os textos produzidos pelos estudantes participantes da oficina de leitura, focalizando como as
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Izabel Gabriel de Oliveira
leituras que eles já dispunham influenciam na recepção e compreensão da obra
estudada. Verificamos ainda, o questionário aberto aplicado aos discentes como
feedback do resultado do nosso trabalho. Por fim, na quarta parte, analisamos o
livro “As panquecas de Mama Panya”, numa perspectiva de letramento literário.
Literatura e transversalidade temática
A literatura infantil, na sua origem, esteve ligada à escola, a serviço de
objetivos pedagógicos, numa tentativa de ensinar a criança como ela deve ser e
não como ela é. Mas, então, como definir se se está diante de uma obra literária
ou pedagógica? O critério de relevância maior é a qualidade estética da obra,
isto é, aquilo que a define como literatura, a arte da palavra, que é o aspecto
primeiro e principal de distinção. Para Frantz (2011) é justamente essa qualidade estética que diferencia a literatura infantil de uma simples história infantil
marcada por “inhos”.
No trato com o universo ficcional, o ser humano vivencia ou contempla
situações que “conversam” com seu universo particular. Quantas leituras podem tocá-lo de maneira tão intensa, por se reconhecer em alguma personagem,
por desejar determinado desfecho. A literatura proporciona “o conhecimento do
mundo e de si”, como sugere Antonio Candido.
Justamente, pela amplitude do seu campo, para Zilberman (2003), a literatura é indispensável no ambiente escolar, pois apresenta uma função formadora
que não pode ser confundida com a missão pedagógica. Isto é, promove horizontes de expectativas e não um ensino do bom comportamento, além de propiciar
“os elementos para uma emancipação pessoal, o que é a finalidade implícita do
próprio saber” (ZILBERMAN, 2003, p.29).
Tendo em vista que a literatura volta-se para aspectos relacionados à condição humana cuja riqueza de temas é ímpar, dada a complexidade do ser humano,
necessitamos abordar conjuntamente a transversalidade temática que se refere
de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, doravante PCN, às questões sociais, que por serem complexas fazem com que nenhuma área, isoladamente, consiga abordá-las de maneira suficiente. Por isso, utilizamos na construção do nosso texto diferentes enfoques, como perceberemos no desenvolvimento
das ideias aludidas.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Na compreensão de Coelho (1991), os estudos literários devem ocupar um
espaço central no ambiente escolar, tendo em vista, a sua abrangência de conhecimentos. Para a autora supracitada, estes estudos.
[...] estimulam o exercício da mente; a percepção do Real em suas múltiplas significações; a consciência do Eu em relação ao Outro; a leitura
do mundo em seus vários níveis e, principalmente, dinamizam o estudo e conhecimento da língua, da expressão verbal significativa e consciente, - condição sine qua non para a plena realidade do ser (COELHO,
1991, p. 15).
Um passo em direção à escuta dos leitores iniciantes para o (re) conhecimento dos seus hábitos de leitura deve considerar que o universo infantil é
recheado de fantasia, imaginação e ludicidade. Toda criança gosta de brincar,
aliás, essa é a forma que encontra de experenciar suas descobertas. A proposta
da escola poderia ser uma brincadeira com as palavras, pois como sugere Maria
Helena Zancan Frantz (2011, p. 10-11): “[...] brincar com a palavra pode ser uma
atividade muito divertida. Se é brincando que a criança descobre o mundo, por
que não brincar com as palavras para descobrir o mundo da linguagem?”. Esse
prazer advindo da leitura de obras que conseguem fisgar o público leitor, por
se tornarem uma experiência prazerosa, incitam a repetição, o hábito, pois “[...]
todo hábito entra na vida como um jogo que, por mobilizar emoções, inspirar
prazer, exige repetição contínua e renovada” (AGUIAR, 1993, p. 27).
Acreditamos que esta capacidade de sensibilização e alargamento de horizontes mais que justifica a demanda da literatura infantil na escola. Nossa sociedade com sua dinâmica do lucro e da rapidez, termina contribuindo para o
processo de desumanização. Assim, ler se configura como uma forma de resistência, na medida em que, “[...] a literatura nos prepara para ler melhor todos os
discursos sociais” (COLOMER, 2007, p. 36).
Identidade, representação e literatura
Os estudos culturais pontuam, portanto, que o momento é de “crise de identidade”, isto é, o sujeito apresenta uma perda do “sentido de si” e do seu lugar no
mundo social e cultural. Entretanto, esse deslocamento tem um lado positivo,
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Izabel Gabriel de Oliveira
pois embora desarticule as identidades estáveis do passado, “[...] abre a possibilidade de novas articulações: a criação de novas identidades, a produção de novos
sujeitos [...]” (HALL, 2006, p.17).
Na busca pela identidade, a questão da alteridade mostra-se relevante, já
que o “eu” é construído na relação com o “outro”. Sendo assim, os contrastes e
as diferenças são partes vivas desse processo. No caso específico da identidade
racial, o que se almeja não é um projeto de etnocentrismo, como alguns supõem,
mas sim, a oportunidade de um determinado grupo étnico poder expressar suas
peculiaridades, sem medo de ser ridicularizado, uma vez que sendo seres sociais
compreendem a dinâmica de interação e dependência do outro. Sendo assim, as
sociedades tradicionais africanas, por exemplo, apresentam um mecanismo de
solidariedade entre os seus pares, que suscitam uma breve dissertação, em especial, no que tange à africanidade.
A África apresenta um cenário de pluralidade de etnias, línguas e religiões.
Contudo, existe uma certa unidade coexistindo com a diversidade. Dessa forma,
os povos africanos ainda que apresentem práticas sociais e ritos diferentes, mantêm “[...] a certificação de um nexo civilizatório” (SERRANO; WALDMAN, 2010,
p.114), o qual pode ser denominado de africanidade, civilização negro-africana,
entre outros termos semelhantes. Isso implica na compreensão da existência de
traços unificadores de diversos patrimônios culturais, os quais, segundo Serrano
e Waldman (2010, p.143), são estes: “[...]o da unidade da vida e da participação;
o princípio da força vital; o da interação e integração coletiva; e um sistema de
símbolos geradores de uma ética derivada da ontologia”. Sabendo-se que a identidade nacional não pode prescindir dos valores e práticas sociais de raiz africana.
Adentrando na questão da identidade e da diferença, levanta-se a questão
da representação, pois esta lhe dá suporte e sustentação (SILVA, 2000). Assim
sendo, “[...] a representação atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações no seu interior” (WOODWARD, 2000, p.8). Diante disso, percebemos que existe uma ligação entre a tarefa representacional e identificatória.
A representação, portanto, se estrutura com base nas práticas de significação e nos sistemas simbólicos, os quais geram significados que, por sua vez,
estabelecem posições de sujeito, legitimando as suas experiências e aquilo que
se é. Enquanto processo cultural desenvolve identidades individuais e coletivas,
pois os discursos e sistemas de representação criam lugares de posicionamento
3529
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
dos indivíduos, “[...] e os sistemas simbólicos nos quais se baseia fornecem respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser?”
(WOODWARD, 2000, p.17).
Segundo Cândido (2004), a literatura pode ser um dos possíveis instrumentos para o desmascaramento dessas situações de privação de direitos, pois os
valores aceitos ou rejeitados pela sociedade estão presentes nas diferentes produções da ficção, da poesia e da dramaturgia. Assim, “[...] a literatura confirma e
nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas” (CANDIDO, 2004, p.176).
A educação para os direitos humanos
Segundo Bittar (2008) há práticas pedagógicas que mais treinam que formam, de maneira que, esse treinamento pode ser limitador do potencial, da liberdade e da autonomia dos sujeitos. Por isso, acredita que “[...] educar só tem
sentido enquanto preparação para o desafiar”. Na concepção deste estudioso, um
projeto de direitos humanos tem como pressupostos para sua efetiva concretude,
a sensibilização e a humanização. Acredita ainda que numa sociedade onde tudo
é produto, inclusive, o homem, a tarefa de resgate da subjetividade crítica é desafiadora. Como metodologia adequada a esse propósito, que seja a autonomia do
sujeito para o convívio plural, a aceitação da diversidade e o respeito à dignidade
da pessoa humana, delineia um caminho dos sentidos.
Silveira (2007) compreende que a difusão de concepções e práticas culturais
promovidas pelos processos educativos, socializa os Direitos Humanos e, como
resposta, formam-se sujeitos de direitos. Estes por possuírem consciência de sua
natureza humana, apresentam maiores possibilidades de luta pela sua realização
e dos seus pares enquanto seres humanos, pois tais processos visam “[...] tornar
humanos os seres humanos” (SILVEIRA, 2007, p. 4).
Nessa perspectiva, considera o princípio de dialogicidade, meio e fim para a
conquista dos direitos humanos, visto que a liberdade de expressão é fator preponderante para a participação política dos indivíduos na sociedade da qual são
membros. Essa atividade de diálogo, conforme Silveira (2007, p.9), “[...] instaura
o exercício do ser com os outros e ser para os outros”.
3530
Izabel Gabriel de Oliveira
Lei Federal nº 10.639/03: fruto de lutas
Muitas lutas foram travadas pelos movimentos sociais, em especial, o Movimento Negro, seus militantes e intelectuais para que se conseguissem políticas
afirmativas de reparação à marginalização social dos afrodescendentes no cenário nacional. Esse grupo étnico teve que pensar e criar estratégias que vencessem “mais uma abolição”, pois, embora soubesse que a instrução era o caminho
para sua ascensão social, identificaram que, isso ainda era pouco, sobretudo pelo
fato dos intelectuais negros perceberem que a escola também tinha sua parcela
significativa de contribuição às desigualdades raciais, visto que, o sistema de
ensino brasileiro divulgava e ainda divulga uma educação pautada no embranquecimento cultural (MUNANGA, 1996).
A pressão dos movimentos sociais negros sobre o Estado, requerendo um
ensino democrático, onde todos, de fato e de direito, fossem tratados com equidade termina alcançando algumas metas; a promulgação da Lei Federal, n° 10.639,
sancionada pelo presidente da época, Luiz Inácio Lula da Silva, em 9 de janeiro
de 2003, simboliza um avanço nessa caminhada. Havia um dispositivo legal que
instaurava a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura dos Afro-Brasileiros na Educação Básica, que alterou a Lei n° 939496, de 20 de dezembro de 1996,
que firma as diretrizes e bases da educação nacional (LDBEN), com a inclusão
dos artigos 26-A e 79-B.
Literatura e ensino: problemáticas, objetivos e perspectivas
Na década de 80, Malard (1985) já refletia sobre a questão do ensino da literatura no antigo 2º grau, hoje, ensino médio, apontando possíveis caminhos.
Suas ideias permanecem atuais e aplicáveis, em parte, inclusive, em outros níveis
de ensino, por isso as utilizamos nesta pesquisa. Faremos, portanto, uma breve
apresentação dos conceitos desenvolvidos no seu estudo. O primeiro deles, diz
respeito à conceituação de literatura. Para Malard (1985, p.10): “[...] A literatura
é uma prática social tanto para quem escreve quanto para quem a lê”, o que
implica que a intencionalidade consta na gênese do fenômeno literário, isto é, a
literatura se engaja no contexto histórico-sócio-econômico.
3531
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Na concepção de Malard (1985, p.11): “[...] o melhor caminho para aprender
literatura é a leitura”. Nada substitui a leitura do texto em si. Resumos, adaptações para o cinema, trechos da obra, entre outros artifícios, não devem tirar o
protagonismo da leitura integral da obra. Sendo assim, a escolha das leituras é
uma relevante tarefa na vida profissional de um professor de literatura, pois dependendo da maneira como o professor conduz a aula de literatura pode se deparar com situações problemáticas, especialmente, quando este escolhe leituras
que não têm nada a ver com a prática social dos seus estudantes. Deve haver um
diferencial nesse profissional, um desejo de acompanhar as transformações que
ocorrem na sua área de atuação, atualizando-se sempre.
Trocando ideias: uma metodologia possível
Para o desenvolvimento metodológico da pesquisa, levamos em consideração a complexidade da linguagem, por isso optamos pela base metodológica de
natureza qualitativa e quantitativa, sendo a primeira mais enfatizada. O estudo
se caracteriza ainda, pelo método pesquisa-ação proposto por Michel Thiollent
(1985) que se define pela participação efetiva do pesquisador e pesquisados em
uma ação conjunta para resolver um problema, que seja, nesse caso específico, a
formação de leitores conscientes do seu pertencimento étnico-racial, bem como
a reeducação dessas relações. E por que “étnico-racial”? Essa expressão tão utilizada nos temas voltados à pluralidade cultural encerra a compreensão de que
o reconhecimento do sujeito engloba vários fatores, desde os seus traços fisionômicos (relacionados ao termo racial) até a sua raiz cultural (relacionados ao
termo étnico).
Os instrumentos de análise utilizados para a coleta de dados foram as atividades desenvolvidas durante a oficina de leitura e um questionário aberto. Com
aquelas, intencionávamos a priori oferecer uma prática da leitura, compreendendo que esta desenvolve a competência leitora.
Fundada há trinta e quatro anos, a Escola Municipal Deocleciano Monteiro
Guedes, situada no sítio Brejo Grande, zona rural do município de Garanhuns/
PE atende a crianças desse sítio e região, nas seguintes modalidades de ensino:
Educação Infantil e Ensino Fundamental (anos iniciais).Os estudantes que cola-
3532
Izabel Gabriel de Oliveira
boraram com a pesquisa cursam o 5º ano do ensino fundamental, no horário da
manhã. Eles totalizaram 16 (dezesseis) participantes, com idade entre 09 (nove)
e 14 (quatorze) anos.
As oficinas foi vivenciada em quatro encontros. No primeiro, ocorreu a apreciação do livro “As panquecas de Mama Panya” (2005), tendo contato apenas com
as ilustrações do mesmo para elaboração de suas impressões de leitura. A proposta era apresentá-las em slides para facilitar a visualização delas pelo grupo
de estudantes. Entretanto, por conta de um problema de ordem técnica, tivemos
que criar um plano B. Cobrimos todo o texto com pedaços de papel ofício e o
apresentamos para os estudantes. Isso se deu da seguinte maneira: inicialmente,
mostramos a capa do livro “As panquecas de Mama Panya” aos estudantes do 5º
ano para que fosse feita a leitura dos seus elementos verbais e não verbais, com
o propósito de que estabelecessem suas primeiras inferências sobre o texto. Posteriormente, solicitamos a produção escrita de texto narrativo a partir da sequência de imagens do livro.
No segundo encontro, foi realizada a leitura oral dos textos produzidos pelos estudantes e, na sequência, a atividade de pesquisa em dicionários de língua
portuguesa acerca de conceitos relacionados ao tema da narrativa trabalhada.
Assim, o texto literário pode suscitar o interesse pelo conhecimento da língua,
pois sabemos que ele é um objeto de linguagem. Para tanto, foram pedidos os
significados de termos pontuais (etnia, cultura, história e identidade).
Esta parte da pesquisa poderia constatar o nível de familiaridade dos estudantes com esses conceitos, afinal, o uso do dicionário pressupõe, em tese,
o desconhecimento ou o pouco conhecimento do significado das palavras. Era
preciso após essa tarefa de (re) conhecimento de conceitos a leitura oral da narrativa, pois o terreno já havia sido preparado para o plantio; assim, o momento
era de semear.
No terceiro encontro, a leitura compartilhada da obra “As panquecas de
Mama Panya” (2005) ecoava nos quatro cantos da sala. A garotada queria confirmar as suas hipóteses em torno da história. A partir de uma leitura cuidadosa,
os estudantes descobriram que a narrativa lhes guardavam grandes surpresas.
O enredo tinha enveredado, em parte, por caminhos diferentes, o que nos fez
perceber que a curiosidade é um dos importantes fatores de motivação para a
leitura, já que o leitor precisa se sentir mexido em algum aspecto. Além disso,
3533
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
a estratégia de leitura compartilhada promove o desenvolvimento conjunto dos
leitores envolvidos. Para Colomer (2007, p.106): “Pode-se afirmar, cada vez com
maior segurança e de maneira cada vez mais pormenorizada, que a leitura compartilhada é a base da formação de leitores”.
E para explorar essas descobertas, necessitamos das duas etapas que se seguem: o resumo e o debate. A atividade de resumir requer do estudante o conhecimento do texto integralmente para que se apresente com objetividade os fatos
principais. Assim, várias são as habilidades trazidas à baila: ler, compreender e
selecionar. Além disso, os discentes necessitavam conhecer a estrutura, isto é, a
forma de um resumo para que pudessem produzi-lo com autonomia.
No que se refere à atividade de debate, acontecido apenas no quarto encontro, isto aconteceu de maneira menos formal possível para que não se perdesse a
essência dos temas e ideias discutidas. O livro foi a fonte originária de discussão,
no entanto, outras foram acrescidas para a ampliação da temática, especificamente, na exploração de um dos elementos símbolos da resistência africana, o
baobá, árvore que representa o sagrado, nesta cultura. Foram apresentados e
discutidos dois materiais: o livro “Pernambuco: jardim de baobás” (2012) de Antônio Campos e Marcus Prado, que apresenta um registro fotográfico dos baobás
no território pernambucano – intencionávamos aproximar a África do Brasil, por
meio desse documentário – e o episódio do programa de TV “Um Pé de Quê?”
(2006) sobre o baobá, apresentado por Regina Casé, criado e produzido pela Pindorama Filmes e exibido no Canal Futura.
Vale salientar que a finalidade de cada uma destas atividades entrelaçam-se
ao nosso objetivo principal, que seja analisar a temática africana na narrativa de
literatura infantil, com vistas à formação identitária e à reeducação das relações
étnico-raciais, tendo o cuidado de atender ao aspecto da tradição oral, por meio
da roda de conversa, do olho no olho, atentos à premissa de que a leitura é o que
dá vida à literatura.
Encerradas as atividades da oficina, aplicamos o questionário que segue,
com o propósito de coletar informações acerca da aceitabilidade do livro no grupo pesquisado, da percepção de similaridades entre a história lida e a comunidade local, do papel das ilustrações, no ato de leitura, na visão do leitor infantil e
da relação dos estudantes com os mais velhos e os amigos deles.
3534
Izabel Gabriel de Oliveira
Quadro 1: Questionário
QUESTIONÁRIO
1. O que você achou do livro “As panquecas de Mama Panya”?
R:_____________________________________________________________________
2. Esse livro tem alguma relação com a sua comunidade?
R:_____________________________________________________________________
3. Você considera que as ilustrações aproximam o leitor da história? Por quê?
R:_____________________________________________________________________
4. Como é que você se relaciona com os mais velhos? E com os seus amigos?
R:_____________________________________________________________________
Fonte: elaboração da autora
A leitura do texto literário: tecendo saberes
Para melhor exemplificar esse processo de combinação de textos, apresentamos nessa parte da pesquisa, a análise das produções textuais dos estudantes
que foram realizadas durante a oficina de leitura. Seguimos a ordem de aplicação
das atividades, que estão numeradas e nomeadas para facilitar a leitura e a discussão das mesmas. Em face disso, primeiramente, tratamos acerca da atividade
de produção textual com base nas imagens; depois, versamos sobre a pesquisa
ao dicionário e, na sequência, abordamos as atividades de resumo bem como a
aplicação do questionário.
Atividade 1) produção textual com base nas imagens
Durante a realização da primeira atividade da oficina, os estudantes mostraram-se envolvidos com a proposta, pois tinham se deparado com um “elemento surpresa”, que os desafiavam a pensar, a criar, a imaginar uma narrativa
adequada às cenas apresentadas. E cada um deles, munido com o seu cabedal
de conhecimentos, foi tecendo o seu enredo, página por página. Atento aos movimentos dinâmicos da narrativa, através das ilustrações.
3535
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Na construção dessa escrita, as inferências ganharam espaço, afinal, cada
autor traz suas experiências e vivências (reais ou fictícias) na construção do seu
discurso. Assim, os elementos culturais apresentaram expressão nos textos de
todos os discentes, como veremos nas análises individualizadas das produções
textuais dos dezesseis participantes, cujas identidades serão preservadas sendo,
portanto, identificados pelas iniciais dos seus respectivos nomes.
A estudante A.C.L., 11anos, fez uma descrição das imagens tentando atribuir-lhes significados e manter uma sequência coerente de fatos. Fez várias inferências entre elas apontou: “[...] a senhora convidou o menino para ir buscar
frutas”, isto porque na cena anterior, Mama Panya segura sua cesta. Noutra passagem, diz: “[...] eles viram duas crianças tangendo os animais e resolveram
ajudá-las”. Nesse caso, a vivência campesina traz elementos para a identificação
de ações que lhes são conhecidas, o vocábulo “tangendo” é comum aos membros
dessa comunidade. Essa criança certamente já praticou tal ação, tendo em vista
que, no meio rural, as crianças aprendem logo cedo a lida dos seus pais.
Interessante a sua colocação em relação à cena em que Mama Panya aparece sentada. Para a estudante, depois do trabalho árduo de tanger os animais, a
mulher estava exausta, por isso resolveu descansar, já que “para chegar ao pé de
fruta era muito longe”. Quando percebe o cenário de uma feira, observa que a
mulher “[...] não descola da mão do menino porque a feira era grande”, inferindo
que existia o cuidado de não perdê-lo naquele espaço.
Na volta para casa, diz a estudante, Mama Panya faz uma tapioca já que
acendeu o fogo e mexe a massa. Tapioca é um alimento bem mais comum à alimentação de seu grupo que panqueca. Daí a sua suposição.
O estudante A.L.P., 11 anos, apresenta dificuldade de estabelecer nexos. A sua
escrita faz referência a elementos soltos, por isso, ele constrói o seu texto com
frases isoladas que explicam quase que exatamente o que está representado na
imagem. São poucas as inferências que ele consegue realizar. Numa dessas frases,
diz: “a vovó foe conpa melacia e foe conpa banana é mamão”. Assim, apresenta dificuldades de escrita ortográfica, bem como déficit de compreensão leitora.
A estudante A.C.L., 10 anos, desenvolveu bem as suas inferências em relação
às ilustrações que lhe eram apresentadas. Conseguiu manter um nexo na composição de seu texto. Logo no inicio dele, diz que: “[...] A senhora vai fazer a feira e o
cachorro queria morder o filho dela”. Nessa fala, ela estabelece dois importantes
3536
Izabel Gabriel de Oliveira
elementos: a relação familiar entre as personagens e a identificação de um dos
espaços da narrativa.
Observa que a mãe segura uma vara e lhe atribui um significado: “[...] vai
levando uma vara porque se aparecer o animal, ela se defende”. Essa inferência é
possivelmente marcada pela sua experiência como criança da zona rural. Tal vivência influencia na continuação desse trecho: “A senhora quando ela ia passando na barrage encontrou o pai dela pescando”. Provavelmente, o termo “barrage”
carrega um significado especial para essa criança acostumada a valorizar a água
nas suas atividades cotidianas, pois como sabemos o homem do campo tem uma
relação de reverência aos elementos da natureza.
Novamente os conhecimentos prévios entram em ação, quando já estão na
feira, a estudante interpreta que: “[...] A senhora andou e comprou na outra barraca massa pra ela fazer tapioca”. Encerra seu texto com o seguinte comentário: “Todos se reuniram e ficaram conversando juntos, quando eles ficaram com
fome começaram se alimentar bem”. Nesse comentário existe a percepção de
que a reunião com os amigos e os familiares é um momento de alegria, de compartilhar o bem, o alimento, que pode ganhar diferentes dimensões, a partir do
momento que se tem fome.
Na observação das cenas, a estudante J.S.S., 10 anos, conseguiu expressar
coerentemente os elementos visuais a que se submetia. É possível perceber na
construção do seu texto, a sua vivência. Ela descreve na cena inicial que: “[...]
a mulher está apagando o fogo e o menino brincando com o cachorro. Ela vai
comprar caju”. Assim, a estudante percebeu que ela iria comprar alguma coisa
porque estava com uma cesta em mãos, o que a fez lembrar de que quando a mãe
dela ia para a feira, sempre carregava consigo uma bolsa. Mas, por que caju? Não
maçã, pera, uva? Talvez o caju seja a fruta que ela tenha mais acesso, tendo em
vista que esta é uma fruta cultivada na região.
Continua aproximando as ilustrações dos seus conhecimentos prévios, ao
tratar da cena em que Mama Panya aparece comprando uma farinha. Diz: ‘[...]
ela está comprando massa de milho para fazer cuscuz”. A contextualização de
uma leitura, indiscutivelmente, leva em consideração as nossas vivências e experiências.
No final do seu texto, é possível perceber que, essa hipótese já foi refutada.
A estudante faz uma inferência entre o título da história e o desenho do ali-
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
mento que surge. Daí ela explica que eles irão comer panquecas junto às outras
pessoas que chegaram, mostrando que possui um senso de observação apurado.
A estudante J.R.C., 11 anos, conseguiu manter uma descrição coerente das cenas. Fez inferências relevantes para a manutenção do nexo entre elas. Numa delas,
diz: “[...] a senhora convidou o menino para ir pegar frutas”. Essa hipótese é negada
quando se dar conta de que eles irão para a feira. Nesse momento, percebe que a
intenção dessa senhora é comprar farinha para fazer tapioca. E que com a chegada
dos amigos, outros alimentos serão consumidos, pois eles trazem “muita comida”.
O estudante J.S.L., 14 anos, ainda não domina a escrita alfabética. Com dificuldade compreendi que escreveu algumas frases descrevendo as ilustrações
de uma maneira bem superficial. Isto ocorreu pela falta de competência escrita,
não de compreensão leitora, pois oralmente, percebi que estabelece várias inferências textuais. Por isso, também, o desenvolvimento do uso da linguagem em
formas diversas é tão relevante.
A estudante J.S.S., 10 anos, tem um senso de observação aguçado. Conseguiu narrar a história com coerência, tendo como ancoragem as ilustrações do
livro. Trouxe ao seu texto, a famosa introdução dos contos de fadas infantis,
“Era uma vez uma senhora chamada Panya que estava apagando uma fogueira
e seu filho estava observando-lhe”. Percebemos que essa criança tem uma relação mais próxima com os livros, deixando fluir as suas inferências sobre o texto,
pois, tendo lido o título da obra já fez a relação entre ele e uma das personagens
principais. Tanto o é que, no desenvolvimento do enredo, demonstra que embora tenha sugerido que Mama Panya e o seu filho tenham ido procurar frutas,
quando estes chegam à feira, percebe que se enganou e, esclarece que só pode
se tratar de comprar massa de panquecas. Além disso, o contato com os contos
de fada influenciou na escolha do modelo de escrita que ela adotou, dessa forma,
intuitivamente a estudante reproduz este modelo.
A estudante J.S.P., 11 anos, conseguiu extrair das ilustrações significados
para o seu texto que apresentou coerência narrativa com a exploração descritiva
das cenas. Para isso, ela fez várias inferências, demonstrando conhecimento dos
elementos necessários à uma boa história. Teve a preocupação quanto à estrutura textual, pois colocou o título do texto do qual inferiu o nome da mulher que
se apresentava na primeira cena, bem como a finalidade da compra dela na feira,
a farinha de trigo para fazer panquecas.
3538
Izabel Gabriel de Oliveira
Obviamente, para estabelecer relação entre as personagens, lançou mão da
sua imaginação criadora. Assim, inicia o seu texto: “Mama Panya estava fazendo
o fogo e esqueceu e foi apagar o fogo antes que virasse um incêndio e um menino
que estava por perto falou: Nossa! Você é esquecida!”.
Noutro momento, percebe a relação afetiva entre as personagens e diz: “[...]
o garoto prestava muita atenção na sua amiga”. E relaciona o título ao texto pois,
na cena da feira, comenta: “Mama Panya parou e foi comprar farinha de trigo para
fazer panquecas”, que ilustra a sua habilidade de observação e de relação entre
os elementos verbais e não-verbais. Ainda é possível identificar no seu texto, a
relação de causa e consequência, especificamente no trecho: “[...] como a cesta
estava muito pesada ela botou a cesta na cabeça”. Essa atividade é bem comum às
mulheres da zona rural.
A estudante L.C.S., 10 anos, demonstra que o modelo mais conhecido por
ela para a escrita de histórias é o de conto de fadas. A expressão “Era uma vez”
comum a esse gênero, inicia o seu texto. Existe uma regularidade na descrição das
cenas mediante as imagens, embora algumas das suas falas terminem se contradizendo. Isto é, ela ainda não consegue manter o enredo satisfatoriamente.
Vejamos, como ela procedeu. No início do texto, apresenta a seguinte afirmação: “Ela foi chamar o menino para caçar frutas” e, mais à frente diz: “Ela foi na
feira comprar frutas”. Essas inferências poderiam ter sido melhor trabalhadas no
texto, mostrando algo que pudesse ter mudado o percurso de caçar para comprar,
o que, evidentemente, não ocorreu. Isto talvez seja um indício de que é necessário
à esta aluna, a apropriação da sequência narrativa.
No final do texto, diz “A família chegou para almoçar. Trouxe peixe, água e
banana”. A estudante reconhece naquela imagem de pessoas reunidas, a personificação de uma família, isto é, traz à baila os seus conhecimentos prévios sobre
o que é uma família e em que momentos ela se reúne. Dessa forma, compreende
que a reunião familiar é uma atividade de partilha, onde cada um tem algo a
oferecer.
A estudante M.E.P.S., 10 anos, descreveu cada cena. Seu trabalho é bem mais
descritivo que narrativo. Seu diferencial é a nomeação de um título ao texto, denominado de “A tapioca da senhora”. Demonstra que relacionou a última cena a
um piquenique, quando fala que: “[...] todo mundo foi para debaixo da árvore para
fazer um piquenique”.
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A estudante M.S.S., 12 anos, apresenta uma boa compreensão leitora. Ela é
capaz de articular o texto com a introdução de diálogos entre as personagens,
bem como emitir características psicológicas às mesmas. Inicia seu texto pontuando que enquanto a vovó quer ir para a feira, o menino quer brincar, logo existe
um conflito que é solucionado por meio do diálogo. Assim, diz ela: “A vovó entrou
em acordo mais o menino. Ela perguntou: Vamos à feira? Mais tarde brincamos.
No caminho, ela encontrou uma pessoa muito importante. Era o José. Uma pessoa muito legal”.
Esse estilo de discurso continua durante o texto. Quando após uma longa
caminhada a vovó chega ao seu destino, fala para o menino: “Até que fim chegamos!”. E o que ela foi fazer na feira? “[...] comprar cenoura pra fazer um bolo de
cenoura”. E por conseguinte, “[...] a família da vovó para almoçar se juntaram”.
Em suma, a estudante mantém o fio narrativo coerentemente. Talvez seja
relevante saber que esta adolescente vive aos cuidados de sua avó, o que provavelmente motivou a sua escolha por esse papel, ao invés de mãe.
O estudante M.S., 9 anos, escreveu parcialmente o seu texto. Apresentou
muita dificuldade em escrever, o que provavelmente o motivou a não concluir a
sua atividade. Em geral, estudantes que apresentam dificuldade de escrita terminam se abstendo de participar de atividades dessa natureza como mecanismo de
autodefesa. De acordo com Colomer (2007, p.103): “Aprender a ler e a escrever é,
para muitas delas (crianças) a primeira experiência de que pode não alcançar as
expectativas do que delas se espera e, rapidamente, criam defesas para proteger
sua autoestima”.
O estudante P.S.L., 10 anos, também deu um caráter mais descritivo que narrativo ao seu texto. Cada cena é detalhada por ele, de acordo com os elementos visuais que estão em primeiro plano. Para se referi à personagem feminina, Mama
Panya, utiliza vários termos: ‘senhora’, ‘vovó’ e ‘mulher’. Como podemos ver em
alguns trechos ilustrativos, que seguem: “A senhora está apagando o fogo. [...] A
vovó vai `a feira. [...] A mulher está procurando frutas”.
Os elementos culturais tem representatividade nas inferências que realiza:
“O menino está com uma peteca brincando” e “A senhora está comprando massa
para fazer tapioca”. Utiliza também expressão popular como recurso linguístico:
“O povo está trocando ideia” para se referi à cena final, em que aparecem todas
as personagens reunidas.
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Izabel Gabriel de Oliveira
O estudante R.L.S., 11 anos, descreveu as cenas mais que narrou. Também
utilizou vários substantivos comuns para se referir à Mama Panya, tais como: senhora, mulher, mamãe. Fez algumas inferências interessantes. Entre elas, duas se
diferenciam enquanto olhar distinto dos demais. Na primeira, diz que “A mulher
(Mama Panya) estava convidando as mulheres para beber um café” e, na segunda, que “eles foram acampar e comeram com a mão”. Assim, podemos confirmar
que os nossos conhecimentos prévios são requeridos quando estamos diante de
situações que nos parecem análogas. Este estudante tem a concepção de que chamar para tomar um cafezinho é uma atitude de amizade e que se aquelas pessoas
estavam sentadas comendo com as mãos só poderiam estar acampando.
Por apresentar uma escrita com grandes problemas ortográficos fica comprometida a leitura do texto da estudante R.P.L., 10 anos. Percebi que ela soube descrever as ilustrações com coerência em termos de cena isolada, não dando sequência
aos fatos representados. Há uma explícita desconexão entre as frases elaboradas.
A estudante R.P.S., 10 anos, demonstrou percepção atenta e nexo nas ações
que relatou. Utilizou várias inferências na construção do seu texto. Diz ela: “[...] a
senhora ia com uma cesta para encontrar fruta por aí, mas o menino estava com
um pau na mão e chamou para ir com ela derrubar fruta”.
Na cena em que se altera o cenário, da estrada de terra passa-se à uma feira,
ela estabeleceu relação com o fato anterior, ao dizer: “[...] ela não quis derrubar
fruta e foi comprar o que comer, então, o menino e sua mãe foi comprar massa
para fazer tapioca”, terminando com a chegada, após o preparo do alimento, do
“resto da família”. Percebemos, na sua escrita, o entendimento de que a história
deve apresentar uma sequência lógica dos fatos narrados.
Atividade 2) pesquisa ao dicionário
Esta atividade demonstrou que grandes partes dos estudantes participantes
da pesquisa ainda sentem dificuldade no manuseio de dicionários. Foi necessário
o auxílio constante para que encontrassem os verbetes solicitados, selecionando
o significado que melhor se relacionasse à temática estudada.
Dos vocábulos pesquisados, etnia era desconhecido por 100% dos estudantes. Boa parte deles, não sabiam ao menos, como pronunciar esta palavra, tamanha a falta de familiaridade. Em relação aos demais verbetes (identidade, cultura
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
e história) os discentes demonstraram mais intimidade, relatando o que pensavam ser o significado destas palavras, antes da efetiva pesquisa no dicionário.
Alguns dos participantes emitiam comentários do tipo: “Cultura é o costume de
uma cidade”, “História é como é a nossa vida”, “Identidade é um documento” e
“Identidade é a gente se revelar”. O conhecimento do significado dessas palavras
vão ao encontro do nosso objetivo, ou seja, refletir sobre os temas voltados para
o trabalho com a cultura e a história de matriz africana através do texto literário.
Atividade 3) resumo
Resumir não foi uma atividade fácil para os estudantes, pois mesmo conhecendo a narrativa após a leitura compartilhada da obra literária, em estudo,
apenas 37, 5% (6/16) conseguiram produzir satisfatoriamente o gênero textual
requerido. Os estudantes que conseguiram parcialmente representam também
37,5% (6/16) contra 25% (4/16) que não conseguiram entender e realizar a proposta. Vejamos de maneira individual o desempenho de cada estudante na produção textual do resumo.
A estudante A.C.L. nomeia as personagens e identifica os movimentos principais da narrativa, estabelecendo o nexo temporal e causal. Assim, apresenta no
seu texto os elementos: personagens, espaço, tempo, conflito, clímax e desfecho.
O estudante A.L.P. não conseguiu escrever o resumo. O único elemento que
acrescentou em relação à produção inicial foi “panquecas”.
A estudante A.C.L. compreendeu o conflito que existia na narrativa, bem
como a solução para ele, apontando a participação coletiva como resposta ao
pouco de panquecas que havia para tantos convidados. Compartilhar era necessário para que todos comessem bem. Assim, percebemos na composição do seu
resumo uma centralidade na personagem protagonista Adika.
A estudante J.S.S. conseguiu, em parte, sintetizar os fatos principais da narrativa. Embora soubesse o enredo oralmente, não conseguiu escrevê-lo satisfatoriamente. É provável que este tenha sido o seu primeiro contato com o gênero
resumo. Trouxe para o seu texto, elementos do vídeo exibido em sala, ao concluir
com a frase: “O Baobá era uma árvore sagrada”.
A estudante J.R.C. já sabe quem são as personagens e porque vão à feira. Relata os fatos de forma sucinta, sem comprometer a linearidade do texto. Em con3542
Izabel Gabriel de Oliveira
trapartida, o estudante J.S.L. fez um resumo incompleto, possivelmente copiado
de outro colega de classe.
A estudante J.S.S. demonstra ser capaz de sintetizar as ideias principais para
a escrita do resumo. Em poucas palavras, narra a história com objetividade e clareza, mostrando a sua autonomia, nomeando as personagens principais. Consegue utilizar a linguagem de maneira expressiva. Numa passagem do texto diz:
“Mama Panya fica chateada porque tem pouco dinheiro, mas ninguém chega de
mão abanando e eles fazem uma grande refeição debaixo do baobá”. Compreendeu, portanto, o problema financeiro daquela chefe de família e a solidariedade
existente entre os seus pares.
A estudante J.S.P. mostra na sua escrita o domínio dos fatos relevantes para
a composição do resumo. Nomeia as personagens principais, Mama Panya e Adika, e também a personagem secundária, o senhor Mzee Odolo. Estabelece no
texto a sequência narrativa dos acontecimentos, respeitando a sua estrutura,
com início, meio e fim.
A estudante L.C.S. conseguiu apresentar o enredo quase que perfeitamente,
não fosse a omissão do conflito, ou seja, faltou no seu texto a explicitação do problema que envolvia as tais panquecas. Ela não consegui extrair isso da narrativa.
A estudante M.E.P.S. mostra que compreendeu a história e realiza um resumo bom, embora também tenha tido o apagamento do conflito, bem como um
espaço secundário para o menino Adika, apenas nomeado de filho.
A estudante M.S.S. extrai da narrativa os seus elementos principais e realiza
um resumo satisfatório. Já o estudante M.S. não consegui realizar o resumo, embora já tenha conhecimento da história. A motivação para esta inabilidade encontra-se na sua escrita alfabética deficitária. Novamente, realçamos a importância
de um trabalho paralelo para os alunos que chegam ao 2º ciclo do ensino fundamental – 4º e 5º anos - com dificuldades de ordem da alfabetização, as quais, em
tese, deveriam terem sido sanadas até o 3º ano. Estas crianças ficam “avulsas” nas
atividades, com medo de que possam serem humilhadas perante os demais.
O estudante P.S.L. ganha mais autonomia e coerência na escritura do seu texto, entretanto, deixa de mencionar o conflito existente na narrativa. Já o estudante
R.L.S. não conseguiu escrever o resumo, pois tem grande dificuldade de escrita.
Levando em consideração a produção inicial da estudante R.P.L., esta melhora consideravelmente no resumo, ainda que não tenha estabelecido todos os
elementos necessários ao texto narrativo.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
A estudante R.P.S. fez um bom resumo, apesar de também não ter se atido
ao conflito da história, causa comum entre aqueles que o escreveram parcialmente satisfatório.
Aplicação do questionário
Em relação à primeira pergunta do questionário que versava sobre o juízo
de valor que atribuiriam ao livro trabalhado, 87, 5% (14/16) dos estudantes o
consideraram de qualidade. As justificativas quase que, na sua totalidade, ficaram num nível superficial, com adjetivações como “interessante”, “bom”, “bonito”, “legal”. Alguns ainda alegaram ter se sentido dentro da história. Apenas a
estudante R.P.L. fez uma relação do livro com outra leitura que havia feito sobre
as condições do negro no Brasil, especialmente, na época do Brasil-Colônia. Isto
significa que ela fez relação entre os textos; ou seja, o texto literário trouxe à
memória, outro texto de conteúdo histórico. Realidade e ficção se entrelaçando.
Esses dados nos mostram que a aceitação do livro foi expressiva, uma vez
que os 12,5% (2/16) representam os discentes que não entregaram os seus questionários. Assim, podemos concluir que a leitura de obras dessa natureza satisfaz o gosto dos estudantes envolvidos na pesquisa.
A segunda pergunta do questionário “Esse livro tem alguma relação com a
sua comunidade?” investigava a percepção dos estudantes acerca das similaridades entre os dois elementos, o livro e a comunidade local. Teriam os estudantes
identificado algo em comum entre os espaços retratados na ficção, a paisagem
africana de uma aldeia no Quênia, e o sítio em que vivem, no agreste pernambucano? Constatamos que o reconhecimento de semelhanças entre os elementos
apresentados no livro, e a vida na comunidade, foi realizado por 31,25% (5/16)
dos estudantes, os quais identificaram semelhanças no que se refere às relações
familiares e de amizade, apontando que a figura materna também tem uma forte
participação na vida familiar, bem como possuem uma relação amistosa com os
seus amigos. Em contrapartida, 50% (8/16) não conseguiram identificar nenhuma relação entre os dois elementos. Para estes estudantes, a história era bem
diferente de sua comunidade. Já 6,25 (1/16) não souberam opinar e 12,5 % (2/16)
não responderam ao questionário.
3544
Izabel Gabriel de Oliveira
Na terceira questão, “Você considera que as ilustrações aproximam o leitor
da história? Por quê?”, os estudantes opinaram justificadamente sobre o papel
das ilustrações no processo de leitura. O interesse em pesquisar esta forma de
linguagem foi sendo desenhado desde as primeiras leituras teóricas sobre esse
aspecto. Entre estas, a concepção de Coelho (1991, p.181) sobre os benefícios provenientes da imagem, que são respectivamente: “Estimula o olhar, a tenção visual, facilita a comunicação, concretiza relações abstratas e estimula e enriquece a
imaginação infantil”.
De acordo com as respostas obtidas, as ilustrações, de fato, têm um impacto
muito positivo sobre os estudantes desse nível escolar. Foram 81,25% que as consideraram como elemento de aproximação do leitor à história. Exemplifiquemos
com a fala de alguns deles, apresentando os motivos que os levaram a tomar tal
posicionamento. De acordo com a estudante J.R.C., “[...] as ilustrações podem
deixar a história mais interessante”, enquanto para J.S.S., elas fazem com que “os
alunos se sintam dentro da história”. Na concepção de J.S.P., a aproximação ocorre “porque pelas ilustrações dar para ler a história”. Para M.S., elas contribuem
no desenvolvimento do “gostar de ler”. Por fim, o estudante R.L.S. acredita que
“as ilustrações deixam o texto engraçado”.
A quarta e última pergunta do questionário que seja, “Como é que você se
relaciona com os mais velhos? E com os amigos?”, objetivou a reflexão em torno
de questões comportamentais dos estudantes. Claro está que sabemos das limitações decorrentes do próprio processo que envolve uma pesquisa dessa natureza. Dito de outra maneira, temos a consciência que os dados revelados podem
não corresponderem à realidade vivenciada pelos pesquisados, uma vez que alguns deles podem, numa tentativa de corresponder às demandas do politicamente correto, omitir fatos para a preservação de sua face.
Passemos, nesse momento, para a análise dos dados coletados. A maioria
absoluta dos questionários respondidos apresentou discursos que correspondem
à uma boa conduta social, o que significa, em termos numéricos, que 81,25% dos
estudantes mantêm boas relações tanto com os mais velhos, quanto com os amigos. Essas relações são pautadas em valores como: o respeito, o amor, a alegria,
a paz, entre outros, citados com frequência nas justificativas. Apenas uma estudante admitiu que não se dar bem com todos os seus familiares.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
As panquecas de Mama Panya: o plural do texto
Quem imaginaria que o ato de fazer panquecas poderia gerar uma história
que atravessa as fronteiras? Ambientada numa aldeia queniana, a obra “As panquecas de Mama Panya” chega às mãos de leitores de diferentes partes do mundo: Estados Unidos, Espanha, França, Reino Unido, Dinamarca, Bélgica, Coréia
do Sul e, claro, Brasil. O segredo para tamanho sucesso? Bem, só seus leitores
podem responder. Por isso, vamos caminhar junto às personagens principais,
Mama Panya e seu filho Adika, para descobrirmos o quanto uma leitura pode
nos transpor para lugares e situações que ainda que estejam distantes de nós,
invade-nos por completo. Bom trajeto!
A narrativa começa com uma cena que desenha alguns hábitos da vida cotidiana daqueles aldeões: o cuidado da mulher para com a sua família e a alegria
de podê-lo fazer é um deles, como podemos ver: “Mama Panya cantava enquanto juntava areia com os pés descalços para apagar o fogo do café da manhã” (p.
4). Esse gesto vai além da expressão de uma vida simples, de poucos recursos
materiais. Ele demonstra o conhecimento e a técnica que ela desenvolveu na interação com as outras mulheres de sua comunidade. A observação do cotidiano
trouxe a segurança para a realização de tal ato sem se machucar. Assim, os adultos preparam os membros mais jovens da comunidade para a vida, em diferentes
aspectos, e isto inclui os da ordem prática.
Uma das razões mais comum para o canto é o estado de alegria. Mama
Panya está alegre pois irá ao mercado e, logo convida o seu filho para acompanhá
-la. Este comunica-lhe que já sabia disso, tanto que já havia vestido “sua melhor
camiseta e seu short mais limpo” (p.5). O uso de trajes especiais denota a significância dessa atividade para eles. Dessa forma, a ida ao mercado representa um
momento de encontro com os conhecidos e as demais pessoas da região, por isso
deve-se estar bem apresentado. O menino Adika, desde sua primeira aparição na
narrativa, já demonstra a sua autonomia e capacidade de observação e iniciativa,
pois pôde ler por meio das ações de Mama Panya que iriam ao mercado e, foi logo
se arrumando; não esperou que ela o dissesse o que fazer, o que vestir.
Mama Panya, então, após guardar as panelas e calçar suas sandálias fica
pronta para seguirem caminho. Percebe que Adika não estava por ali e pergunta
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Izabel Gabriel de Oliveira
o seu paradeiro. Ele prontamente a responde: “Já estou aqui, Mama” (p. 7). Seu
posicionamento é de um verdadeiro líder, guiando os demais, pois “ele estava
sentado embaixo do baobá, com o cajado de Mama Panya nas mãos”. Sabemos
que o cajado é muito utilizado pelos pastores para guiar as suas ovelhas. Simbolicamente, podemos dizer que o cajado que ele porta em suas mãos, traz um
sentido de liderança, que de certa forma inquieta o outro. Mama, então, pega o
seu cajado e toma a frente na estrada.
No percurso, o garoto deseja saber o que ela irá comprar no mercado, e a
resposta que escuta da mãe é pouco esclarecedora: “Hum, um pouco e um pouquinho mais” (p.8). Sabe quando a mãe faz aquele mistério por motivos desconhecidos? Parece que teme alguma travessura. Pois, então, Mama não é diferente. Mas, a pergunta dele foi puramente retórica. Novamente, já sabia o que iam
comprar, por isso lança uma pergunta provocativa: “Você vai fazer panquecas
hoje, Mama?” (p.8). E a única saída para ela é a confirmação, visto que o menino
é muito esperto. Assim, surpreendê-lo torna-se tarefa dificílima.
Adika queria saber também quantas panquecas Mama Panya faria, antes de
respondê-lo, “[...] segurou entre os dedos duas moedas que estavam guardadas
no pano preso em sua cintura” (p.8). Isso era um sinal de que o dinheiro que
dispunha não daria para fazer em quantidade. A situação financeira da família
era de poucos recursos. Sendo assim, Mama Panya considerou ser importante
manter uma resposta evasiva: “Um pouco e um pouquinho mais” (p.8). E continuaram sua longa caminhada.
Num certo momento, encontram pelo caminho, o Mzee Odolo, um senhor
idoso, que estava pescando. Mama Panya e Adika param para cumprimentá-lo. E
o garoto aproveita a situação e o convida para juntar-se a eles, logo mais à noite,
pois a mãe dele faria panquecas para o jantar. Mzee Odolo agradece o convite e
confirma a sua presença. Adika, na sequência, explica à Mama Panya, o motivo
do convite: “Tínhamos que convidar Mzee [...] Ele é nosso amigo mais velho”. Sua
fala expressa o respeito que se tem nas sociedades tradicionais africanas pelos
idosos. Estes carregam consigo as marcas do tempo em seu rosto, bem como a riqueza de memórias e histórias que servem de referência para as novas gerações.
São verdadeiras bibliotecas ambulantes. Seres sábios pela experiência dos anos
de vida que carregam.
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Mama Panya continua a caminhada com o seu Adika. Até que ele identifique os seus amigos, Sawandi e Naiman, que “[...] tocavam o gado com as varas
de bambu” (p.12), porque a partir daí, o garoto apressa os passos e diz: “Vou na
frente” (p.12). Mama pede para que ele a espere, mas antes dela dar muitos passos
o garoto já havia retornado. E com uma notícia, digamos, temida pela mãe: tinha
convidado os amigos dele, também. É costumeiro as crianças quando não estão
na escola, auxiliarem os seus pais nas atividades cotidianas, como tocar o gado,
por exemplo, pois a sobrevivência é quem dita as regras, isto é, a necessidade é
quem faz essas pessoas. Marca, inclusive a geografia dos seus corpos, que se torna mais um traço de identidade das condições em que vivem.
A preocupação toma conta dos pensamentos de Mama Panya, quando imagina como alimentar essas pessoas tendo apenas duas moedas. Sentada numa
pedra para descansar um pouco, pergunta para Adika: “Quantas panquecas você
acha que vou fazer hoje, filho?” Ele a responde utilizando o mesmo artificio que
Mama havia empregado anteriormente, uma resposta com vazios: “Já sei, Mama.
Você vai ter que fazer um pouco e pouquinho mais. É suficiente.” Dá para se ver,
que liderança não tem nada a ver com idade cronológica, pois o menino Adika
é um líder nato. Exerce sua autonomia. Pensa e demonstra através dos seus atos
um espírito de liberdade. Assim, desenvolve a sua cidadania. Sua relação com
a mãe é de respeito, amor e ajuda. Mas, não de submissão, pois embora Mama
enxergue a situação diferente dele, isso não o intimida. Ao contrário, o motiva a
tentar convencê-la que ao final tudo dará certo, as panquecas serão suficientes.
O texto permite a reflexão de que a criança também pode trazer um aprendizado
para o adulto. Uma lição de cidadania, tendo em vista que esse ser que sabe o
que quer e luta para que seus projetos se realizem é verdadeiramente um sujeito
crítico e atuante no seu meio social. A iniciativa, porém, nem sempre é vista com
bons olhos, principalmente quando se estar diante de indivíduos conservadores,
acostumados a seguir os outros, a maioria, sem nenhuma reflexão dos seus atos.
Para essa categoria de sujeitos, ser ativo é sinônimo de ser atrevido. Aqui com
o sentido de pessoa irresponsável, de atitudes impensadas. Mas, o que seria de
nós, seres sociais e políticos, sem o devido atrevimento que a vida nos pede?
Quanto do espírito de Adika ainda nos falta para irmos à luta pelos nossos so-
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Izabel Gabriel de Oliveira
nhos, desejos e ideias? A cidadania parte do princípio de participação social, da
nossa ação no mundo.
E finalmente, mãe e filho chegam ao mercado. Para o desespero de Mama
Panya, Adika logo vê na banca de bananas, uma amiga de escola, Gamila, e dispara: “Mama, panqueca é o prato favorito dela!” Esse ato de fala é um bom exemplo de como agimos por meio das palavras. Adika ao dizer tais palavras estava
muito mais que comunicando à mãe a preferência culinária de uma colega, estava ele fazendo um pedido implicitamente que seguia o seguinte raciocínio: já
que panqueca é o prato predileto dela, não posso deixar de convidá-la. Claro que
Mama Panya tentou impedi-lo, mas foi em vão, por isso “[...] olhou para Adika
e rapidamente segurou a sua mão, tirando-o dali” (p.16). Esse olhar como teria
sido? Provavelmente, de reprovação. Entretanto, com a paciência que só as mães
têm, manteve uma postura educada, cordial. E o garoto como que tentando se
justificar assevera que irão “[...] conseguir fazer a farinha render” (p.16).
Ao chegar na banca da farinha, Mama Panya, logo ordena: “Adika, fique
aqui” (p.18). Cumprimentou os vendedores e perguntou-lhes: “Quanto eu posso
levar com isso?” (p.18). Tratava-se da maior moeda que tinha. O vendedor, então,
“despejou uma concha de farinha sobre um pedaço de papel marrom” (p.18).
Quando se tem um baixo poder aquisitivo, não se chega pedindo a quantidade
que se quer, mas sim, perguntando o quanto se pode ter com aquela quantia,
como fez a personagem Mama Panya. Essa situação é uma velha conhecida daqueles que têm que fazer malabarismos para fazer render o seu salário até o fim
do mês. Uma única concha de farinha não daria para fazer as panquecas necessárias à alimentação da família e dos convidados. Por causa disso, o menino Adika,
não se sujeita. Levanta-se e convida o vendedor para jantar com eles, que como
forma de agradecimento, acrescenta mais uma concha de farinha ao embrulho.
No limite da paciência, Mama Panya desabafa: “Você e eu teremos sorte se
conseguirmos dividir uma panqueca” (p.21). Os elementos que nos humaniza,
não faltam na construção da narrativa, os conflitos de interesse saltam aos olhos,
bem como o egoísmo que nos toma em situações de dificuldades. Primeiro, garantir o próprio bem-estar, depois, se possível, o do outro. Mama ainda precisa
comprar uma pimenta e considera que com a moeda que restou, poderá comprar
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
uma pequena. Mas, Adika, pensa diferente. Não se conforma com a “pequenez”.
Assim, toma para si a responsabilidade de conseguir uma bem boa, correndo
para a banca das especiarias de Rafiki Kaya, o que despertou a raiva de Mama,
fazendo-a gritar para que ele não fosse. O garoto foi e fez o convite para jantar.
Rafiki Kaya aceitou e agradeceu-lhe o convite. Pegou a moeda de Mama e, em
troca, deu-lhe uma pimenta graúda.
Na volta para casa, carregando na cabeça a cesta que continha suas compras, Mama novamente preocupa-se com a quantidade de convidados, indagando Adika sobre a quantidade deles. O menino sempre à frente, sorridente e confiante, diz: “Todos os nossos amigos, Mama” (p. 23). A vida em comunidade é
valorizada nessa representação imaginária. Estar com os amigos é desfrutar de
momentos de alegria e prazer. O lazer é um dos direitos que dispomos, assim
como a liberdade de ir e vir, de expressão, entre outros.
Ao chegar em casa, Mama foi preparar as panquecas. Primeiro teve que
fazer o fogo com pequenos galhos e gravetos. Adika a auxiliou indo buscar um
balde de água. Essa cena retratando um hábito de uma aldeia do outro lado do
oceano relaciona-se com o cotidiano de muitas famílias brasileiras, principalmente, as que vivem na zona rural, que ainda mantêm o costume de cozinhar em
fogo de lenha, fogueiras, fogareiro, entre outros gêneros semelhantes. A coleta
da madeira (galhos e gravetos), em geral, é feita pelas mulheres ou as crianças
da comunidade familiar. Quase sempre, as crianças estão observando e auxiliando os seus pais na realização das atividades, para que no futuro saibam o que e
como fazê-las.
O clímax da narrativa é atingido quando os convidados de Adika e Mama
Panya chegam para o jantar. O que pareceria provocar um constrangimento,
torna-se uma lição de vida. Cada um dos convidados trouxe algo para partilhar,
de acordo com suas posses. Mzee Odolo, três peixes; Sawandi e Naiman, duas
cabaças cheias de leite e um pequeno balde com manteiga; Gamila, um cacho de
bananas que equilibrava na cabeça; Bibi e Bwanna Zawenna, um pacote cheio de
farinha; e Rafiki Kaia, sal, cardamomo e sua mbira.
Reunidos e sentados no chão à sombra do baobá, todos comem as panquecas de Mama Panya. O clima é de alegria e amizade, fazendo-nos pensar que
nunca se tem tão pouco que não se possa compartilhar. A narrativa desperta
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Izabel Gabriel de Oliveira
nos seus leitores a reflexão de temas relevantes às sociedades humanas, os valores de solidariedade, generosidade e vida em comunidade, que fique enfatizado
aqui, tais temas não se restringem à uma faixa etária (infância) ou à uma nação
em particular. São temas universais. Seja na África ou no Brasil, a humanidade
mantem pontos de encontro, entre estes, o anseio por uma vida digna e isto só
pode acontecer quando o homem tem reconhecidos e assegurados todos os seus
direitos, exercendo a sua cidadania.
Considerações finais
A leitura é também um exercício de cidadania. Nesta perspectiva, o livro
“As panquecas de Mama Panya” leva-nos a perceber o que, como e porque determinadas leituras, culturas e etnias merecem ocupar um espaço relevante no
campo dos estudos comparados no que se refere, por exemplo, à estreita relação
entre literatura e direitos humanos.
Nascida em meio a grupos hegemônicos, a voz silenciada pode se erguer por
meio do diálogo; pois a leitura do mundo e da palavra, como diria o educador
Paulo Freire, conflui para a autonomia que é peculiar ao cidadão.
Há leituras que imprimem uma perspectiva que, na maior parte delas, corresponde a um mecanismo de manutenção e controle das posições sociais. Ler é
um exercício de libertação, mas que na contramão pode representar o enclausuramento. Daí a importância de se abrir espaços de discussão acerca de temas que
permeiam a vida do homem, em meio a tantas contradições. Nessa perspectiva,
o texto literário vem ao encontro dos objetivos em sala de aula ao suscitar o florescer das subjetividades, do espanto, da crítica, do humor, do ser um e vários ao
mesmo tempo. Podem alguns até argumentar que as crianças, por serem sujeitos
em formação, não conseguem fazer tamanhas abstrações. Até certo ponto isto
é verídico, pois estas (em especial as pequenas) precisam maturar-se biológica e
cognitivamente. Entretanto, questionamos se deve o professor das séries iniciais
utilizar o texto apenas com objetivos lúdicos, a resposta que nos parece no momento mais adequada aos nossos objetivos é não.
A abordagem da matriz africana pelo viés literário requer sensibilidade ao
que o texto pede em sua gênese. – A vivência do texto é o objetivo principal da
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
aula de leitura. Há uma linha tênue entre experenciar a literatura e aplicá-la
exclusivamente à determinada causa, por isso a atenção do professor-mediador
deve estar voltada para estas ciladas.
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RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo propor o ensino de literatura negro-brasileira como afirmativa de identidades inter-raciais, uma vez que ela não corrobora
as imagens cristalizadas dos sujeitos negros da literatura canônica brasileira, antes
problematiza-os, desestabilizando lugares apriorísticos. Isso porque o ensino de literatura hoje, nas escolas brasileiras, é pautado em obras que pouco (ou nada) representam esse ambiente de subjetividades e, principalmente, de multiplicidade. Desta
forma, partimos do seguinte questionamento: como pensar a literatura negro-brasileira no contexto escolar, propiciando uma educação para a multiplicidade e para a
singularidade? Como subsídio teórico, a nossa pesquisa baseia-se, inicialmente, nos
Documentos Oficiais: Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (2000) e
Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006). Cuti (2010), Rezende (2008)
e Justino (2015) nos subsidiam no que concerne à literatura negro-brasileira dessas
narrativas literárias contemporâneas e, por último, mas não por fim, Bakhtin/Voloshinov (2000) e Cereja (2005) nos orientam no que diz respeito à importância do
ensino de literatura sob uma perspectiva dialógica.
Palavras-chave: Literatura negro-brasileira, Multiplicidade, Ensino.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
A LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA NO
CONTEXTO ESCOLAR: A BUSCA POR UMA
EDUCAÇÃO PARA A MULTIPLICIDADE
Adeilma Machado dos Santos (UEPB)1
Introdução
Ao analisarmos o atual sistema de ensino da educação básica, percebemos
que a literatura ainda constitui uma modalidade de ensino engessada, tendo
em vista a dificuldade encontrada por professores no tocante às práticas desenvolvidas em sala de aula, assim como a dificuldade em selecionar os textos que
proporcionem uma leitura e discussão mais interativa. Isso porque a maioria
dos professores não domina uma prática que permita o envolvimento dos alunos
nesse processo, os quais, por sua vez, não leem os textos e as obras indicadas
pelo professor ou, simplesmente, demonstram resistência por considerarem a
linguagem difícil, as obras densas, ou por não se reconhecerem nos personagens
que protagonizam as narrativas.
Por conseguinte, a maioria dos livros didáticos ainda privilegiam o estudo
da literatura a partir de obras canônicas, as quais são rejeitadas pelos alunos, visto que os mesmos têm dificuldade em interpretá-las, levando-se em consideração que as temáticas, abordagens e métodos, na maioria das vezes, não atendem
1. Mestranda em Formação de Professores. E-mail: [email protected]. Programa de PósGraduação em Formação de Professor (PPGFP) – Universidade Estadual da Paraíba.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
às suas expectativas, proporcionando um distanciamento entre proposta de ensino e realidade dos envolvidos neste processo de ensino aprendizagem. Porém,
ao se depararem no 3º ano do ensino médio, a literatura “abre” uma fenda para
a inserção da literatura contemporânea e os professores, frequentemente, não a
exploram e tais obras são quase sempre apenas citadas e pouco problematizadas por conterem perfis que se distanciam dos canônicos, visto que retratam as
singularidades de suas trajetórias, descrevem suas vivências, além de possuírem
uma linguagem mais próxima da coloquialidade, quase sempre contendo termos
que “chocam” professores e alunos devido à sua enorme carga de realidade.
Desta forma, a literatura periférica2, mais propriamente a literatura negro-brasileira, proporciona determinado desconforto ao leitor, tendo em vista
que expõe a realidade e problematiza a questão da exclusão, promovendo uma
dialogia entre várias vozes dentro de um mesmo espaço discursivo: o sujeito
torna-se pluralizado.
Assim, o ensino e a abordagem da literatura a partir dos textos de literatura
negro-brasileira busca a promoção de um trabalho, não apenas com a linguagem,
mas abre um espaço de discussões acerca do indivíduo subalternizado e o lugar
ocupado pelo mesmo, desde o lugar social até o lugar dentro da literatura.
Para tanto, partimos da seguinte inquietude: como pensar a literatura negro-brasileira no contexto escolar, propiciando uma educação para a multiplicidade e para a singularidade?
A fim de fundamentarmos a nossa pesquisa, utilizamos como subsídio teórico os documentos oficiais Orientações Curriculares para o Ensino Médio –
OCEM (2006) e os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio – PCNEM
(2000), atentando às suas pertinências referentes às práticas do ensino e das
competências que devem ser desenvolvidas nos alunos da educação básica. Com
Silva (2010), problematizaremos as questões referentes ao uso da categoria negro
-brasileiro ao invés de afro-brasileiro, mais usualmente utilizado. Justino (2015)
2. Utilizamos aqui o termo periférica referindo-nos aos textos de autores que possuem origem na periferia
das cidades, assim como os textos que abordam perfis que estão à margem da sociedade. Daí, em outros
momentos, nominarmos tais textos de marginais.
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Adeilma Machado dos Santos
e Rezende (2008) nos subsidiaram no que se refere às expressões da literatura
contemporânea e a sua multiplicidade. E, por último, mas não por fim, Bakhtin/
Voloshinov (2000) e Cereja (2005) nos auxiliaram no tocante ao ensino de literatura sob uma perspectiva dialógica.
A escola e o ensino de literatura
Depois de longos anos no ensino fundamental, pelo menos uns oito anos,
em contato com as mais diversas manifestações da linguagem, os alunos chegam ao ensino médio e é nesse novo ciclo que eles mantêm o primeiro contato
(muitas vezes) com o ensino de literatura. Embora, nas séries iniciais, estudem
os gêneros poema, fábula e conto; é somente no ensino médio que os discentes
veem, de forma sistematizada, as chamadas Escolas Literárias. Isso, de acordo
com Cereja (2005), justifica-se, historicamente:
Pela necessidade de alcançar alguns objetivos, tais como a continuidade
do processo de aquisição de habilidades de leitura de textos, agora com
a diferença de serem sistematicamente estudados textos literários de
época; conhecimento da língua padrão e de suas capacidades expressivas e artísticas; compreensão e conhecimento da cultura brasileira,
particularmente no domínio de suas manifestações literárias; cultivos
de hábitos de leitura. Isso sem citar as razões ideológicas de fundo nacionalista-patriótico subjacentes à maior parte das leis de ensino e dos
programas escolares num período que vai do século XIX – como observou Marisa Lajolo em Usos e abusos da literatura na escola (1982) e em
outros de seres textos – ao início do século XXI (CEREJA, 2005, p. 10).
Trabalhar em sala de aula com o texto literário é um desafio. Dentre tantos
que poderíamos citar, o mais evidente justifica-se porque o aluno possui grande dificuldade em associá-lo a algo que, realmente, faça parte da sua realidade.
Não basta apenas o discurso do professor no tocante à importância da literatura
como algo que os leva à fruição ou que os leva a conhecer outros mundos. Isso já
não atende às expectativas da contemporaneidade. É preciso mais!
3557
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
A realidade mostra que os alunos ainda chegam e saem do ensino médio
apenas com o contato com a leitura, mas, na maior parte das vezes, esse contato
continua na superficialidade. Se assim não fosse, não teríamos tantos programas
oferecidos com vistas a otimizar o processo de ensino-aprendizagem e proporcionar o “prazer” pela leitura e pela leitura literária, em específico. Portanto,
resta-nos as questões: será que o ensino de literatura tem fracassado e quais os
motivos disso?
Diante desses questionamentos, podemos “procurar” réus: a literatura que
não atende mais às expectativas dos alunos ansiosos por novidades; os professores que não possuem conhecimento suficiente nem de obras e nem de práticas
diversas e acabam repetindo as mesmas aulas cansativas de leituras intermináveis; dos alunos que não se interessam pelos estudos e veem nas aulas de
literatura um momento difícil e maçante. Ou, ainda, do sistema educacional
que não diversifica as obras que são enviadas para comporem as bibliotecas das
escolas – quando há bibliotecas. Não sabemos a quem culpar ou culparemos a
todos. Porém, uma coisa é certa: é preciso buscar uma redefinição para o lugar da literatura no processo de ensino-aprendizagem, assim como estabelecer
uma análise atenta para o que, realmente, é relevante a fim de que essa atual
conjuntura possa mudar.
O que os documentos oficiais dizem...
Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM, 2000) pretendem favorecer ao aluno o desenvolvimento da sua capacidade crítico-reflexiva, o qual deve possuir habilidades diversas com a linguagem; ou seja, ser um
leitor efetivo, capaz de ler o mundo e as diversas culturas existentes. Assim, a
leitura do texto literário incide no sujeito-leitor, despertando a sua sensibilidade
para os dramas do Outro, além de favorecer o protagonismo juvenil e a sua autonomia enquanto leitor comprometido com as questões atinentes à sociedade,
sendo capaz de comunicar-se, efetivamentle, com o mundo:
3558
Adeilma Machado dos Santos
Comunicação aqui entendida como um processo de construção de significados em que o sujeito interage socialmente, usando a língua como
instrumento que o define como pessoa entre pessoas. A língua compreendida como linguagem que constrói e “desconstrói” significados
sociais. (BRASIL, 2000, p. 17).
Portanto, a escola encontra-se diante de um grande desafio: trazer os alunos
para o contexto do texto literário, pois as lacunas existentes no ensino de literatura são visíveis; também, a rejeição dos alunos ante a obra literária não pode ser
desconsiderada, pois é a partir dela que tentaremos buscar possibilidades que
favoreçam a aproximação dos alunos com o (con)texto literário.
Um grande aliado neste processo é o livro didático que, em grande parte dos
casos, é o único aporte metodológico que alguns docentes dispõem. Porém, ele,
muitas vezes, presta um desserviço ao ensino de literatura, uma vez que os textos selecionados para compor as páginas de atividades ou os boxes explicativos,
tendem a deixar de fora textos (poemas, contos, crônicas) contemporâneos que
evidenciam a multiplicidade existente no ambiente escolar.
Ainda de acordo com as OCEM (2006), as escolhas dos livros não são aleatórias, feitas “anarquicamente”, visto que passam por filtros os quais “variam
segundo o letramento literário das comunidades, antes mesmo que os livros tomem lugar nas estantes” (p. 62). Sendo assim, as escolhas feitas com base em
parâmetros ou necessidades diferenciadas, fazem com que o livro didático seja
também um elemento que centraliza e potencializa, de maneira sutil e velada,
relações de poder na sala de aula.
Em outra perspectiva, esse mesmo documento pontua a necessidade que há
em levar os alunos aos mais diversos textos da esfera literária, a fim de minimizar a lacuna direta existente no ensino médio entre o aluno e a leitura dos textos
literários, causada, muitas vezes, pela leitura de Best-sellers ou outras obras juvenis que possuem uma linguagem mais próxima do cotidiano e não os auxiliam a
entrar em contato com uma linguagem mais complexa. Para ele,
O desafio será levar o jovem à leitura de obras diferentes desse padrão
− sejam obras da tradição literária, sejam obras recentes, que tenham
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
sido legitimadas como obras de reconhecido valor estético −, capazes de
propiciar uma fruição mais apurada, mediante a qual terá acesso a uma
outra forma de conhecimento de si e do mundo. E é bom lembrar que
nem sempre a leitura literária, como experiência estética, flui de modo
espontâneo. Há pontos de resistência no aluno-leitor (seu repertório,
os lugares-comuns em que se assenta sua experiência de leitor), como
há tensões de difícil desvendamento em certos textos, especialmente o
poético. (BRASIL, 2006, p. 70).
Desta forma, as OCEM (2006) enfatizam visivelmente o texto literário enquanto valor estético, corroborando o padrão canônico literário, ou seja, devem
ser lidas nas escolas obras que sejam legitimadas e reconhecidas por seu valor
estético, afastando assim as inúmeras produções contemporâneas de escritores
autônomos que, embora escrevam textos cuidadosos, trazem em suas temáticas
as vozes das periferias e de perfis que, outrora, foram silenciados pela hegemonia literária nacional. Assim, enquanto a escolha do livro didático para chegar
às prateleiras e às escolas passa pelos filtros que convêm ao sistema editorial, os
textos que compõem os livros também seguem essa mesma regra e, consequentemente, os textos literários que “fogem” aos padrões estéticos literários, continuam encontrando resistência nesse espaço.
Do quilombo para o mundo: a literatura negro-brasileira
O surgimento do autor e da personagem negros na literatura brasileira vêm
mudando os rumos do cenário literário contemporâneo. Isso porque, a partir
de então, novas formas culturais, sociais e ideológicas aparecem delineadas nas
narrativas através dos temas propostos pelas mais diversas obras. Com isso, alguns temas que outrora foram apregoados pela literatura canônica, branca e elitista, como a exemplo da questão inter-racial, reaparecem, agora, descortinados
pelo sujeito étnico do discurso.
Embora muitos estudiosos da literatura brasileira em questão utilizem a
expressão afro-brasileiro para designar as narrativas brasileiras que trazem em
suas temáticas questões atinentes ao negro e sua resistência histórica, semanti-
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Adeilma Machado dos Santos
camente, o termo afro remete-nos a uma África que, mesmo estando em nossas
origens, não corresponde mais à nossa realidade por não possuir um comprometimento com as reais problemáticas brasileiras, principalmente no que concerne
ao racismo que permeia a nossa sociedade.
Desta forma, os escritores que se afirmam negros utilizam o próprio preconceito sofrido (racial, social, cultural) como matéria para as suas narrativas,
como forma de resistência, a fim de ocupar um lugar de “fala” que antes lhes fora
negado. Isso faz com que tais autores reclamem para si a autonomia de uma literatura negro-brasileira, tendo em vista que a mudança de nomenclatura implica,
sobretudo, em uma mudança nos paradigmas estético-ideológicos, pois:
Identificar-se com essa palavra é comprometer a sua consciência na luta
antirracista, é estar atento aos preconceitos e à consequente cristalização de estereótipos, é dar mais ênfase à criação diaspórica do que à
origem de seus produtores ou o teor de melanina em suas peles. Não há
cordão umbilical entre a literatura negro-brasileira e a literatura africana (de qual país?). (CUTI, 2010, p. 44).
Com base nisso, entendemos que a leitura é caracterizada como a interação entre leitor-livro e leitor-mundo, e é através dessa interação com o outro
e com o mundo que vamos construindo a nossa identidade (VIGOTSKI, 1987).
Sendo assim, a escolha das obras literárias no processo de ensino-aprendizagem deve ser algo atentamente analisado, visto que elas influenciarão, certamente, na formação leitora dos nossos alunos “por isso, faz-se necessário
e urgente o letramento literário: empreender esforços no sentido de dotar o
educando da capacidade de se apropriar da literatura, tendo dela a experiência
literária” (BRASIL, 2006, p. 55).
Atentando à importância do texto literário na formação identitária dos alunos, justifica-se a pertinência de textos negro-brasileiros visto que refletem as
vivências, costumes, apoiam-se em espaços diversos como as periferias e comunidades, assim como nos dramas dos sujeitos que cerceiam a nossa sociedade,
sujeitos esses que, muitas vezes, situam-se à margem dela. Além disso, estabelece o desejo de afirmação identitária negra, a qual vai muito além da aceitação
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
da cor da pele ou traços fenotípicos, mas uma aceitação através das artes e da
literatura enquanto espaço de conflitos, tensões e denúncia da realidade.
Os autores negros ou não-negros, mas que desenvolvem uma literatura
voltada para as questões sociais relacionadas à nossa realidade periférica, em seu
sentido mais profundo, brasileira, utilizam a palavra – muitas vezes a memória
através da palavra – como forma de resistência, a fim de proporcionar um resgate
da sua dignidade. Para isso, levantam problemáticas concernentes às questões,
sobretudo de natureza sociocultural.
É preciso dar um basta em histórias em que os negros precisam apoiar-se
em personagens brancos, redentores, para ascenderem, obterem prestígio social
ou proteção. A partir disso, a literatura negra explora não apenas questões atinentes à cor da pele ou fenotípicas, mas busca a afirmação de culturas diversas,
além de problematizar expondo infortúnios sociais, nos quais, o negro, o pobre,
o favelado, o mendigo, a prostituta tornam-se protagonistas das suas próprias
histórias, a fim de lançar aos olhos da sociedade o que ela teima em querer esconder debaixo do tapete social de um velado discurso de igualdade. Porém,
para isso, é preciso:
horizontalizar a literatura para que a capacidade da cultura de produzir práticas discursivas de resistência e aferir relações materiais de poder
possam nos livrar dos essencialismos que, à guisa de viés contra hegemônico, só repropõem o estigma em outra base. (JUSTINO, 2015, p. 166).
Desta forma, a partir de leituras de narrativas negro-brasileiras (romances,
contos e/ou poemas) no ambiente escolar, é possível proporcionar aos discentes
um encontro consigo mesmos ou deles com os outros, os múltiplos que fazem
parte da sociedade. Afinal, a escola também é uma sociedade.
3562
Adeilma Machado dos Santos
Literatura negro-brasileira: educando para a multiplicidade
Em março de 2003, foi aprovada a Lei Federal 10.639/033 que torna obrigatório o ensino da História e Culturas Africanas e Afro-brasileiras em todas as
escolas de Ensino Fundamental e Médio. Essa lei foi pensada com vistas a promover uma educação equânime e que valorizasse a diversidade existente tanto
no âmbito escolar quanto no Brasil como um todo.
O espaço escolar enquanto lugar de construção, não apenas de conhecimentos, mas de identidades, abriga e abrange culturas diversas as quais devem
ser valorizadas, a fim de que os sujeitos sintam-se contemplados e integrados no
processo de ensino aprendizagem. Além disso, a escola deve promover o diálogo
cultural entre realidades diferentes, refletindo, através de variadas perspectivas,
o trabalho com as relações sociais e inter-raciais. Assim, Osakabe citado por
Brasil (2006, p. 49) nos esclarece quanto à relevância da literatura na formação
dos discentes:
E nisso reside sua função maior no quadro do ensino médio: pensada
(a literatura) dessa forma, ela pode ser um grande agenciador do amadurecimento sensível do aluno, proporcionando-lhe um convívio com
um domínio cuja principal característica é o exercício da liberdade. Daí,
favorecer-lhe o desenvolvimento de um comportamento mais crítico e
menos preconceituoso diante do mundo. (OSAKABE, 2004).
De acordo com a concepção interacionista de linguagem dos estudos de
Bakhtin e do seu círculo, ler é produzir significados e a linguagem deve ser entendida como uma prática social, constitutiva da realidade social enquanto discurso
(BAKHTIN, 2000). Assim, a leitura do texto literário não pode ser desvencilhada
de seu contexto social pois, ler, neste caso, é acima de tudo estabelecer relações
necessárias de determinadas enunciações com outras enunciações, produzindo
3. Disponível em: < http://www.afroeducacao.com.br/images/stories/artigos/10639.jpg>. Acesso em: 10 de
julho de 2015.
3563
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
conhecimento. Nisto consiste a leitura dialógica: um espaço de tensões que reflete e refrata o seu contexto, pois o dialogismo é uma característica constitutiva
da linguagem, pois a linguagem integra diversas vozes sociais.
Diante disso, a escola enquanto aquela que abriga uma diversidade de sujeitos, torna-se um ambiente heterogêneo e múltiplo, portanto, um espaço de
desenvolvimento de atividades cognitivas e local da consciência, onde sujeitos
“falam” de lugares e identidades distintos e devem sentir-se representados nela.
E, justamente por isso, a escola não pode reforçar as desigualdades.
Assim, o estudo de textos literários negro-brasileiros no contexto escolar
busca proporcionar aos alunos um encontro consigo mesmos e com os outros,
visto que essa literatura favorece um espaço de denúncia, sobretudo por expor
discursos agenciadores da hegemonia – os quais funcionam como entraves dos
projetos de alteridade – não perpetuando tais discursos, mas com vistas a neutralizá-los.
Dentre os escritores que estão inseridos neste universo, destacamos Sacolinha, pseudônimo de Ademiro Alves de Souza. Formado em Letras é romancista,
contista, cronista e poeta. Ganhou esse apelido por entregar panfletos em faróis
e trabalhar como cobrador de lotação no Metrô Itaquera. Para ele, “a literatura
não te salva de uma morte física, te salva de uma morte alienada”. E é com esse
pensamento que o autor de Graduado em Marginalidade e 85 Letras e um Disparo
segue desenvolvendo trabalhos em presídios e nas Fundações CASA, através da
literatura.
Em seu conto Repercussão de uma escrita4, Sacolinha desenvolve uma narrativa de denúncia na qual um jovem negro, Gregório, morador da periferia, é
abordado por um policial quando chegava do trabalho, cansado, após a meianoite. O jovem é questionado pelo agente acerca do que continha em sua mochila. Quando Gregório responde “Cultura”, o policial sorri – exageradamente
– e pede a nota fiscal do celular que encontrou no bolso do rapaz. Não satisfeito
pelo rapaz ter a nota fiscal do objeto, o policial (chamado ironicamente pelo
4. Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/contos/24690> Acesso em: 07/08/2015.
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Adeilma Machado dos Santos
narrador de “funcionário da pátria”) pega uma arma e a coloca no queixo de
Gregório. Ao afirmar que conhecia os seus direitos, o policial o responde “Você
pode conhecer o direito que quiser, mas nenhum vai te ajudar se eu despejar
umas duas balas nessa cabeça de Paraíba. Pensa que só porque lê não corre perigo de morrer?” (SACOLINHA, 2005). Quando chega em casa, depois de tomar
banho e comer alguma coisa, Gregório resolve escrever para a coluna de um
jornal do seu município sobre o fato ocorrido. No dia em que viu o seu texto de
colaborador publicado, sentiu-se vingado. Para ele, a escrita era capaz de fazer
mais estrago do que a bala do policial.
Desta forma, Gregório representa a voz de muitos que não têm coragem
tão pouco, espaço para desabafar suas angústias ante uma sociedade corrupta.
Neste conto, Sacolinha desenvolve um personagem que foge aos estereótipos
literários (negro, pobre e malandro); ao contrário disso, vemos uma cena em
que um personagem negro, pobre, trabalhador e “culto” não se resigna diante
de uma situação que o subalterniza, pois ele possui uma arma poderosa contra
a corrupção: a escrita.
Assim, torna-se evidente como o texto literário e, em específico, a literatura negro-brasileira atua no imaginário dos sujeitos a fim de problematizar as
situações vividas pelos mais diversos sujeitos sociais que enredam a nossa sociedade brasileira. Para isso, ela se utiliza de memória e trajetória de vida – com
seus respectivos conflitos – com vistas a denunciar e desestabilizar os lugares
ocupados por esses sujeitos, desde o lugar social ao lugar dentro da própria literatura, uma vez que a voz que fala é desses próprios sujeitos étnicos do discurso.
Considerações finais
Buscarmos uma conceituação para a Literatura, hoje, é um trabalho bastante árduo, tendo em vista que estamos diante de um termo fluido na contemporaneidade. Estamos mais acostumados a “nominá-la” através das suas funções.
Porém, é relevante salientar que a literatura desempenha um papel crucial na
formação crítico-reflexivo-cidadã na emancipação humana, daí a necessidade de
analisarmos as relações que se estabelecem entre literatura e ensino, problematizando o lugar que o texto literário ocupa nas aulas de Língua Materna.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Nas escolas de ensino público ou privado, o ensino de literatura acontece,
em sua maioria, por meio da leitura de textos literários escolhidos desde o início
do ano letivo e (im)posto aos alunos para que adquiram as obras a fim de servirem de atividades para comporem determinada nota. Mas, embora a escola
tenha se esforçado para que os alunos adquiram o gosto pela leitura, ao que parece, ela não tem conseguido, pois os alunos saem da educação básica e sequer
conseguem desenvolver uma leitura que ultrapasse a decodificação. No mais, os
discentes saem da escola com pavor ante à leitura do texto literário.
Os motivos da aversão ou simples rejeição pelo texto literário, no mais das
vezes, acontece por vários motivos, entre eles 1) a linguagem de determinados
textos é complexa e os alunos não conseguem “ultrapassá-la”; 2) o professor não
desenvolve práticas para atuar em sala de aula, visando um letramento literário
ou 3) os alunos não se identificam com as histórias narradas por, simplesmente,
não fazerem parte de seu cotidiano. É bem verdade que, não necessariamente um indivíduo rejeitará uma narrativa porque a história não faz parte da sua
história. Se assim o fosse, não gostaríamos dos contos clássicos infantis ou das
histórias das 1001 Noites as quais, acredito, fomos – e muitos ainda são – apresentados na infância. A objeção encontra-se, justamente, no perfil de cidadão que se
desenvolve a partir de determinadas leituras literárias.
Desta forma, a literatura negro-brasileira, reunindo em si espaços sociais
e sujeitos discursivos distintos, reflete relações de poder (sociais, raciais), desestabilizando-as, além de comprometer-se com a luta antirracista, buscando
desfazer fios ideológicos (hegemônicos) que engendram as histórias dos negros
no Brasil, ideologias essas que a literatura canônica (branca e elitista) auxiliou a forjar e perpetuar refletindo no preconceito racial sentido até os nossos
dias. Assim, compreendendo a escola enquanto um ambiente heterogêneo e
múltiplo, é extremamente necessário buscar alternativas para uma educação,
considerando a multiplicidade que coexiste nesse ambiente, a fim de que se
valorize, sobretudo o outro como sujeito participante e atuante desse processo
de ensino aprendizagem.
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Adeilma Machado dos Santos
Referências
BAKHTIN. Mikhail. Estética da criação verbal. Maria Ermantina Galvão G. Pereira.
[Trad.]. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica.
Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio. Brasília: Ministério da Educação,
2000.
BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para o ensino
médio. Brasília: MEC/SEB, 2006. v.1.
CEREJA, William R. Ensino de Literatura: uma proposta dialógica para o trabalho com
literatura. São Paulo: Atual, 2005.
JUSTINO, Luciano Barbosa. Literatura de Multidão e Intermidialidade: ensaios sobre
ler e escrever o presente. Campina Grande: EDUEPB, 2015.
REZENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI.
Casa da Palavra: Rio de Janeiro. Biblioteca Nacional, 2008.
SILVA, Luiz (Cuti). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
VYGOTSKY, L. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
3567
RESUMO
O presente trabalho foi realizado no intuito de refletir acerca da necessidade do
professor de língua portuguesa, inserido numa sociedade tecnológica, estabelecer
diálogos entre literatura e as outras linguagens na escola. Para contextualizar, buscou-se tecer considerações sobre três aspectos. O primeiro sobre como e porque
estabelecer o diálogo entre a literatura e outras linguagens; o segundo sobre que é o
hipertexto na web e como abordá-lo na escola e o terceiro sobre como os suportes interferem nos modos de leituras dos textos literários. Para fundamentar esse estudo
se consideraram as contribuições da análise semiótica com aporte teórico de Roman
Jakobson, Jorge Furtado, Hélio Guimarães, Sandra Reimão dentre outros. E como
exemplo das outras linguagens destacaram-se a televisão, o cinema, as histórias em
quadrinhos e a música. Nesse prisma, o estudo conduziu a considerar a importância de se preservar a originalidade das obras literárias, as quais jamais deverão ser
substituídas pelas outras linguagens artísticas, pois estas deverão funcionar como
elemento motivador, ampliando os sentidos e despertando a atenção do aluno de
forma lúdica. Vale salientar que, a literatura não será substituída pela transmutação,
mas sim, a transmutação servirá de um suporte a mais para dinamizar o ensino de
literatura na escola.
Palavras-chave: Literatura, Linguagens, Tradução, Escola.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
A RELAÇÃO ENTRE LITERATURA
E OUTRAS LINGUAGENS NA ESCOLA
Lílian de Santanna Maia (UESC)
Luciana Oliveira do Nascimento (UESC)
Daiane Conceição Simões Santos (UESC)
Introdução
“A linguagem literária é eminentemente fundadora, inaugural. Nessa direção ainda a memória literária intrinsecamente
atada à memória social, indissolúvel e indissociável marcadas,
faces de uma mesma moeda. Verso e anverso, porém, não é
a linguagem moeda – tipo eu dou e eu recebo algo em troca –
mas a linguagem como fundação e até como transgressão. ”
(ARAÚJO, 2006)
No mundo contemporâneo é importante que o professor de Língua Portuguesa busque estabelecer um diálogo entre a literatura e outras linguagens artísticas
na escola, visando fomentar o processo ensino aprendizagem. Isso se justifica na
medida em que progressivamente novos modelos discursivos pautados na tecnologia impulsionam o aparecimento de novos gêneros textuais que constituem as
relações sociocomunicativas dentro e fora dos limites da escola.
Assim, gêneros textuais chamados multimodais, formados por diferentes modalidades de linguagens, verbal escrita, verbal oral, não verbal, imagética e sonora,
cada vez mais fazem parte do cotidiano tanto do professor quanto do aluno. Nesse
âmbito, se faz necessário promover os multiletramentos na escola, adequando os
métodos de ensino, relacionando a Literatura com outras linguagens artísticas.
Através da leitura das obras literárias é possível conhecer mundos imaginários e também percepções relativas a determinadas épocas, de acordo com a visão
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
de cada autor. Na fruição da leitura e da interpretação despertam-se sensações,
aguçam-se os sentidos, ativa-se a imaginação.
Na história das civilizações, a literatura sempre esteve ligada ao ensino, à
aprendizagem, à formação intelectual e cultural. Assim o é até os dias atuais, só
que com novas percepções, atrelando-a as outras linguagens artísticas.
A partir do fim do século XIX, ocorreram transformações nas formas de se
perceber as obras literárias, concebendo a existência de uma multiplicação de significados, permitindo daí então uma leitura múltipla ou plurissignificativa.
Começaram posteriormente a surgir, por exemplo, as alusões, citações e paródias, entre outros formatos que foram associados à organização do texto literário.
Nesse contexto admitiu-se a noção de intertextualidade, da perda da unidade
de texto, dando lugar a uma concepção da existência de correlações entre os diferentes discursos e diferentes textos. “A noção de intertextualidade abre um campo
novo e sugere modos de atuação diferentes ao comparativista[...]. Principalmente,
as novas noções sobre a produtividade dos textos literários comprometem a também “velha” concepção de originalidade.” (CARVALHAL, 1992, p.53)
Neste estudo visou-se explicitar de que forma as novas tecnologias podem interferir no processo ensino-aprendizagem em literatura. Para tanto, esta pesquisa
foi organizada refletindo sobre três questões: como e porque estabelecer o diálogo
entre a literatura e outras linguagens; o que é o hipertexto na web e como abordá-lo na escola e como os suportes interferem nos modos de leituras dos textos
literários.
Contribuições da semiótica
É bem comum os professores de Língua Portuguesa trabalharem com diversas linguagens em suas aulas. Ao lerem um livro, por exemplo, os estudantes devem fazer a sua releitura em forma de história em quadrinhos ou teatro. Neste
âmbito, entra a Semiótica, que estabelece ligações entre um código e outro código,
entre uma linguagem e outra linguagem. “Serve para ler o mundo não verbal: “ler”
um quadro, “ler uma dança, “ler” um filme – e para ensinar a ler o mundo verbal
em ligação com o mundo icônico ou não verbal. ” (PIGNATARI, 2004, p. 20).
O linguista russo Roman Jakobson definiu os tipos de tradução: a interlingual – entre línguas diferentes. A intralingual – na mesma língua de origem. A
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Lílian de Santanna Mai, Luciana Oliveira do Nascimento, Daiane Conceição Simões Santos
intersemiótica – ou transmutação, “ consiste na interpretação dos signos verbais
por meio de sistemas de signos não verbais, ou de um sistema de signos para
outro. ” (PLAZA, 2003, p. XI.) Então... é a “transmutação” da arte verbal para a
música, para a dança, para o cinema, para a pintura, entre outras artes. ”. Numa
tradução intersemiótica leva-se em consideração o contexto histórico-social em
que os signos foram produzidos, por isso o filme adaptado de determinada obra
literária jamais será igual ao livro, por exemplo. Cada um tem sua própria linguagem e aborda os aspectos linguísticos e histórico-sociais de sua época.
O diálogo entre literatura e outras linguagens
A transmutação da literatura para as linguagens audiovisuais pauta-se em
adaptar um texto escrito para uma outra modalidade, a qual privilegiará não somente o código escrito, mas também outros aspectos como o audível e o visível,
estabelecendo assim um diálogo entre a literatura e outras linguagens.
Furtado (2005), em seu artigo apresentado em uma palestra na 10ª Jornada de Literatura Nacional em Passo Fundo (RS), apresenta dois pontos de vista
acerca da transposição da literatura para as linguagens audiovisuais, o primeiro
técnico ou estético e o segundo ético. No que concerne aos aspectos estéticos,
ele afirma que: “há muitas diferenças entre a linguagem escrita e as linguagens
audiovisuais”. Quais são essas diferenças?
Ao trazer à tona esses aspectos, o autor apresenta três diferenças, dentre
elas, as duas primeiras se relacionam à linguagem e a última é mais técnica e se
refere ao tempo. A primeira diferença entre a literatura e a linguagens audiovisuais (cinema e a televisão) é, enquanto o texto literário possui uma linguagem
escrita, nas linguagens audiovisuais toda a informação é audível e visível, o que
parece bastante óbvio, contudo, ele enfatiza que só quem faz roteiro sabe o quão
é difícil resistir à tentação de escrever”. A segunda também relacionada à linguagem, prende-se a questão de como transpor um texto escrito para as telas do
cinema e televisão, o que para o texto escrito (a literatura) é dito por palavras, e
isso basta, no audível precisará a todo instante fazer escolha, no que diz respeito
às cores, formas, diálogos, entre outros.
No que se refere à linguagem cinematográfica, um filme utiliza tanto o verbal quanto o não verbal, a atribuição de sentidos por parte do sujeito está atre3571
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
lada à junção da imagem às “falas” dos personagens, além da trilha sonora - que
em uma cena é importantíssima para sugerir sensações ao espectador e, através
da trilha sonora, ele também poderá perceber o “estado emocional” dos personagens: alegria, tristeza.
Na perspectiva interpretativa da linguagem imagética, “... a imagem é como
uma palavra, a sequência é como uma frase, uma sequência constrói-se com
imagens assim como uma frase com palavras etc.” (METZ, p. 67, 1972), numa
montagem significativa e intencional.
Para se proceder a uma análise fílmica, segundo Vanoye e Goliot-Lété (1994,
p. 12), é necessário, não mais ver o filme, mas sim revê-lo e, mais ainda, “examiná-lo tecnicamente”. É ter uma outra atitude em relação ao objeto-filme. Dessa
forma, “desmontar um filme é, de fato, estender seu registro perceptivo e, com
isso, se o filme for realmente rico, usufruí-lo melhor” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ,
1994, p. 12).
[...] uma imagem não produz o visível; torna-se visível através do trabalho
de interpretação e ao efeito de sentido que se institui entre a imagem e o
olhar. Um olhar que trabalha diferente quando da leitura da imagem. Enquanto a leitura da palavra pede uma direcionalidade (da esquerda para
a direita), a da imagem é multidirecionada, dependendo do olhar de cada
“leitor” (SOUZA, 1998, p. 2).
Vanoye e Goliot-Lété (1994, p. 55) destacam que um filme pode ser utilizado
para se analisar uma sociedade, visto que ele oferece um conjunto de representações, as quais remetem à sociedade real, de modo direto ou indireto. Para uma
interpretação sócio-histórica, a hipótese diretriz é a de que um filme sempre faz
alusão ao presente, ao seu contexto de produção. No filme, “a sociedade não é propriamente mostrada, é encenada” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 56), independente da finalidade do projeto – seja descrever, distrair, criticar, denunciar, militar.
É importante ter um olhar mais amplo de pensar a adaptação da literatura
para a televisão/cinema, é entendê-la não como um processo de substituição de
uma em relação a outra, isto é: assistirei a minissérie A muralha que foi transmutada e não mais lerei o livro. Não é isso, até porque são coisas distintas, linguagens
diferentes, portanto, o recorte dado é diferente. Uma das intenções em fazer as
duas ações, refere-se à ampliação do olhar crítico acerca das leituras.
3572
Lílian de Santanna Mai, Luciana Oliveira do Nascimento, Daiane Conceição Simões Santos
Há também a transmutação da obra literária para a história em quadrinhos.
As HQs representam hoje, no mundo inteiro um meio de comunicação de massa
de grande penetração popular desde que criados nos fins do século XIX. Os séculos imediatamente posteriores ao aparecimento da indústria tipográfica foram
palco de uma infinidade de obras que aliavam, com bastante eficiência, a palavra
impressa a elementos pictóricos que atendiam aos mais diversos objetivos, desde a
doutrinação religiosa à disseminação de ideias políticas, passando ainda por simples entretenimento.
Entretanto, por muito tempo, esta arte fora julgada como imprópria no âmbito escolar certo que sua leitura afastava as crianças de “objetivos mais nobres” –
como o conhecimento do “mundo dos livros” e o estudo de “assuntos sérios” –, que
causava prejuízos ao rendimento escolar e poderia, inclusive, gerar consequências
ainda mais aterradoras, como o embotamento do raciocínio lógico, a dificuldade
para apreensão de ideias abstratas e o mergulho em um ambiente imaginativo
prejudicial ao relacionamento social e afetivo de seus leitores.
O desenvolvimento das ciências da comunicação e dos estudos culturais,
principalmente nas últimas décadas do século XX, fez com que os meios de comunicação passassem a ser encarados de maneira menos apocalíptica, procurando-se analisá-los em sua especificidade e compreender melhor o seu impacto na
sociedade e nas escolas.
Os parâmetros da área de Artes (...) mencionam especificamente a necessidade de o aluno ser competente na leitura de histórias em quadrinhos e
outras formas visuais, como publicidade, desenhos animados, fotografias
e vídeos. Os PCN de língua Portuguesa também mencionam os quadrinhos. No caso do ensino fundamental, existe referência específica à charge e à leitura crítica que esse gênero demanda. O mesmo texto menciona
igualmente as tiras como um dos gêneros a serem usados em sala de aula.
(VERGUEIRO E RAMOS, 2009, p. 10-11)
Segundo Vergueiro (2009) as leituras das histórias em quadrinhos auxiliam
o ensino porque “os estudantes querem ler os quadrinhos; palavras e imagens,
juntos, ensinam de forma mais eficiente”. Além disto, existe um alto nível de informação nos quadrinhos que podem facilitar a apropriação do texto para o aluno.
Eles também podem auxiliar no desenvolvimento do hábito de leitura haja vista o
“caráter elíptico da linguagem quadrinhística” que obriga o leitor a pensar e imaginar; podendo ainda ser usados em qualquer nível escolar e com qualquer tema.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
As primeiras adaptações de obras literárias surgiram da tentativa de aproximação da linguagem das HQs com a literatura, buscando uma aproximação
com o ensino. “Se considerarmos a adaptação em seu aspecto paradidático, todo
o interesse estará na obra original. A adaptação será uma ferramenta de acesso a
esse original. Nesse caso, é fundamental considerarmos o valor dessa adaptação.”
(GALO, 2010)
A vantagem de uma obra adaptada está nos recursos que utiliza e no aproveitamento que se pode fazer delas no processo de ensino e aprendizagem. A linguagem dos quadrinhos possui “ atributos didáticos que usam a linguagem icônica
para exemplificar os mais diversos assuntos, além de se configurarem como um
texto com elementos narrativos organizados de forma visual.” (GALO, 2010)
Além do cinema, televisão e quadrinhos, a obra literária pode também dialogar com a música, percebida neste estudo como linguagem que pode ser compreendida como fonte de abstração para o desenvolvimento da percepção nas aulas
de literatura.
Desde a Antiguidade, o texto literário adapta-se à música assim como a música adapta-se ao texto literário, especialmente ao poema. Tendo como exemplo o
Cântico dos Cânticos ou os Salmos, nota-se que foram escritos com a finalidade de
serem cantados ou recitados ao som de instrumentos musicais. Na Idade Média
houve a figura do trovador, poeta e músico, passando pelas ruas com seu alaúde e
poemas de caráter ora jocoso, ora erótico, ora satírico, ora sagrado.
A literatura e a música são campos de estudo distintos, mas que podem interagir, ampliando sentidos, principalmente por meio do simbolismo da linguagem. E, trazendo essa proposta para o contexto escolar contemporâneo, pode ser
enriquecedor para as aulas de Literatura promover tais diálogos em sala de aula.
Hoje já existem muitos estudos sobre o tema, considerando o percurso histórico da
música no Brasil e as suas relações com o mundo literário.
A sociedade contemporânea é permeada pela cultura do entretenimento, na
qual a música se afirma, influenciando todas as gerações. Destaca-se neste estudo,
a MPB – a qual identifica um gênero amplo, com difícil delimitação, apresentando
muitas nuances, mas reconhecido principalmente como tendo surgido a partir da
década de 50 com a Bossa Nova e dos anos 60 com a música de protesto e o Tropicalismo.
Como exemplo tem-se o gênero música popular brasileira –MPB- que é percebida por muitos críticos como linguagem que esboça a literatura, porque é elabora3574
Lílian de Santanna Mai, Luciana Oliveira do Nascimento, Daiane Conceição Simões Santos
da e culta, dado o universo cultural que retrata. Tal gênero musical foi difundido
no Brasil e no mundo por diversos artistas como Caetano Veloso, Chico Buarque,
Tom Jobim e Vinicius de Moraes.
Na tentativa de estabelecer relações de sentido entre a literatura e a música na prática
de sala de aula tem-se como exemplo a música E agora José, de Paulo Diniz, inspirada
no poema de Carlos Drummond de Andrade e a música Amor I Love you, de Marisa
Monte com leitura de Arnaldo Antunes que aborda um trecho da obra O Primo
Basílio, de Eca de Queiroz escritor português representante do realismo em Portugal.
O professor pode e deve utilizar a música, o cinema, a televisão, os quadrinhos e outras artes nas aulas de literatura, para motivar os estudantes, mas começando sempre da obra literária, no intuito de evitar que o sentido original da obra
literária se perca em sua tradução para as outras linguagens.
A visão mais englobante de pensar a adaptação da literatura para as outras
linguagens, é compreendê-la não como um processo substitutivo, por exemplo
assistirei a minissérie A casa das sete mulheres que foi transmutada e não mais
lerei o livro, ou ouvir a música e não ler o texto, ou ler os quadrinhos e não a obra
literária. Não é isso, até porque são coisas diferentes, linguagens diferentes, portanto, o recorte dado é diferente. As outras linguagens devem servir para ampliar
a compreensão, ampliar as discussões intertextuais, não para excluir a leitura do
texto literário.
Literatura e hipertexto
A palavra hipertexto foi lançada por Theodore Nelson, em 1960, para identificar a forma de escrita não linear no mundo da informática. O hipertexto acompanha a história do desenvolvimento da tecnologia de uso dos computadores e da
internet, oferecendo ao internauta interconexões interativas. “ O hipertexto pode
ser entendido como um texto exclusivamente virtual que possui como elemento
central a presença de links. ” (GOMES, 2011, p. 15.) Estes links são atalhos para caminhos diversos com funções diversas, como GOMES representa neste esquema:
3575
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
O hipertexto dinamiza a leitura pois coloca o leitor em contato com várias
possibilidades de leitura, diversos caminhos, que o próprio leitor escolhe no decorrer do texto.
[...] os hipertextos podem ser acessados sem que o leitor siga uma ordem
convencionada ou prefixada. Essa liberdade do leitor traz consequências
para a leitura e para a atribuição de sentidos, assim como também traz
consequências para o autor, já que inserir links em palavras, imagens ou
outros elementos do texto transforma o ato de escrever em algo bem mais
complexo. (GOMES, 2011, p.24/25)
Com a popularização do uso da internet/web, e a sua consequente extensão
ao ambiente escolar, essa interatividade promovida pelo hipertexto hoje é um facilitador no processo ensino aprendizagem, dinamizando e inovando as formas
de leitura e escrita, ampliando as possibilidades de aquisição de conhecimento em
todas as disciplinas, principalmente em Literatura. Existem softwares educacionais, mídias diversas e muitos sites literários que podem auxiliar neste letramento
literário. Pesquisamos alguns sites que trabalham com a leitura e a produção de
textos, e que podem e devem ser explorados por professores e estudantes.
• http://www.pixton.com/br/for-fun: Aqui a pessoa cria sua história em
quadrinhos, além de poder interagir com outros escritores e deixar
comentários.
• https://lerebooks.wordpress.com/2012/05/29/playfic-jogar-com-otexto/ : Este site divulga livros virtuais, os ‘e-books”. É gratuito e acessível a quem se cadastrar.
3576
Lílian de Santanna Mai, Luciana Oliveira do Nascimento, Daiane Conceição Simões Santos
• https://www.escrevendoofuturo.org.br/caderno_virtual/caderno/cronica/jogo.html : Se quiser entrar na história como um jogo, basta
acessar este link e entrar na cidade do Crogodó.
Considerando que a sociedade contemporânea é dominada pelos meios de comunicação que utilizam diferentes linguagens com diferentes propósitos para entreter e envolver as pessoas diariamente, e trazendo essa possibilidade para o ambiente de sala de aula, o professor deve utilizar nos novos suportes didáticos para
viabilizar outras linguagens e estará desta forma atendendo às diferentes formas
de aprendizagem dos alunos, além de tornar as aulas mais vívidas e motivadoras.
Considerações finais
A escola necessita se transformar para acompanhar as mudanças sociais, de
forma a continuar despertando a atenção dos alunos os quais fazem parte de uma
geração em que a tecnologia está ao alcance das mãos, e que é atraída todo o tempo pelas informações que chegam através de sons e imagens. Essas linguagens se
entrelaçam e se complementam. No ensino de literatura é possível dinamizar as
aulas relacionando com televisão, música, cinema, história em quadrinhos, por
exemplo, complementando a compreensão e a interpretação de um texto escrito.
Na contemporaneidade, as novas tecnologias de informação e de comunicação –TICS- têm exigido práticas letradas que requerem o deslocamento
de práticas canônicas realizadas pelos protagonistas do cenário das escolas do ensino médio, os professores e alunos. As TICS trouxeram para o
contexto escolar textos multimodais e multissemióticos que combinam
imagens estáticas (e em movimento), com áudios, cores e links. Esses
textos invadem o cotidiano dos alunos, leitores e escritores e exigem a
aquisição e desenvolvimento de habilidades de leitura escrita, conforme
as modalidades e semioses utilizadas, ampliando, como estamos vendo, a
noção de letramentos par multiletramentos. (DIAS, 2012 p. 95)
É importante salientar que aliar o ensino de Literatura às outras linguagens
é atrativo também do ponto de vista do professor. Já que ele também se encontra
inserido no atual mundo cada vez mais tecnológico, podendo sentir-se motivado a
planejar aulas mais dinâmicas, com recursos que tornem suas aulas mais “vivas”,
3577
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
através de recursos imagéticos e audiovisuais como filmes, e até sites na internet
que já são criados para abordar a Literatura de forma dinâmica, ampliando as possibilidades de interação com o conhecimento através dos estímulos dados à imaginação, através do olhar e da audição.
O ciberespaço possibilita o acesso a suportes didáticos que espelham a disseminação da tecnologia na contemporaneidade, que não eram usados anteriormente na escola. De forma contínua e gradual os professores de todas as áreas e
também de Literatura começam a inserir novos suportes ao planejamento de suas
aulas. A internet e seus suportes como o computador, o tablet, celular e o data show
[...] afetam as práticas de ensino de três maneiras distintas, possibilitam a
comunicação a distância (em tempo real ou não), propiciam ferramentas
técnicas que facilitam a produção de textos hipermídia, abrem o acesso
a um banco de informações potencialmente infinito, disponível na rede
mundial de computadores (www). Como era de se esperar, esse conjunto
de possibilidades criou novas práticas letradas e também reconfigurou
ressignificou práticas já existentes. (Braga 2009 p. 182)
No modo de leitura dos textos literários, os novos suportes podem interferir
positivamente, ao passo que possibilitam maior interação com diversos gêneros à
escolha do professor, conforme o programa de ensino. Dessa forma, surgem os novos gêneros digitais multimodais, que reunindo diversas linguagens ampliam as
possibilidades de leitura e compreensão/interpretação. Ou seja, os conteúdos das
aulas de Literatura podem ser trabalhados a partir de várias mídias, que podem
interferir diretamente na produção de sentido.
A convivência, portanto, com os multiletramentos advindos das novas
relações sócio-históricas e dos instrumentos multissemióticos que essas
relações materializam impulsiona a escola, especificamente a disciplina
de língua portuguesa, a desenvolver capacidades de linguagens com diferentes semioses, como as imagens estáticas ou em movimento, as cores,
os sons, os efeitos computacionais. (Garcia, Silvia e Felício 2012 p 152)
Portanto, não nos cabe mais pensar que o livro, sobretudo o literário corre o
risco de desaparecer por causa do surgimento de suportes tecnológicos, tais como
a televisão, os computadores etc., mas sim buscar inserir esses suportes ao cotidiano da escola, até porque eles já fazem parte de nossa realidade.
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Lílian de Santanna Mai, Luciana Oliveira do Nascimento, Daiane Conceição Simões Santos
Torna-se fundamental, levarmos em conta os Parâmetros Curriculares do Ensino Fundamental – PCNs, no que tange o ensino dos textos literários, posto que
na referida modalidade, não há um ensino de literatura com a intenção de fazer
os discentes compreenderem mais detalhadamente cada movimento literário, ainda o contexto histórico de cada um desses momentos, mas sim, o texto literário
na perspectiva de leitura, e, a partir da referida perspectiva, os docentes irão dar
significados aos textos literários, e para uma melhor compreensão do assunto os
docentes se valem da “tradução intersemiótica”.
Referências
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2006.
BRAGA, Denise Bértoli. Práticas letradas digitais: considerações sobre possibilidades
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multiletramentos in ROJO, Roxane Helena Rodrigues. Multiletramentos na escola. São
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GARCIA, Cintia B. SILVA Flávia Daniele Sordi e FELICIO, Rosane de Paiva. Project (o) arte:
uma proposta didática in ROJO, Roxane Helena Rodrigues. Multiletramentos na escola.
São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
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Disponível em: http://www.revistapontocom.org.br/entrevistas/literatura-e-televisao.
Acesso em: 25 de maio de 2015.
3579
RESUMO
A premissa deste trabalho reside na configuração de uma proposta didática para o
ensino de Literatura no contexto do Ensino Médio. Acredita-se que a análise dos
procedimentos de representação da Segunda Guerra Mundial no romance O Albatroz, de José Geraldo Vieira, autor cuja capacidade de produção ficcional tende a se
relegar ao esquecimento. Articulando-se o estudo da figura do escritor ao do contexto histórico em que está inserido, torna-se possível compreender suas referências,
produções e a influência que sofreu e exerceu no seu mundo. No tocante da prática
em sala de aula, segundo a crença ora sustentada, busca referência no conceito de
letramento literário especificamente, na sequência didática, de Cosson (2009) e na
perspectiva de Lajolo (1993) sobre a leitura literária. Julga-se possível a promoção,
subjacente, da reflexão acerca do engessamento da crítica literária brasileira no contexto da formação da Literatura Brasileira, abordando o lugar da prosa psicológica
no período modernista e como o período histórico em que é inserido a obra não
é um traço definidor da análise literária; logo, observa-se que na historiografia literária brasileira, os autores que se dispuseram a reconfigurar a cor local apresentam uma posição de destaque. Para discussão destas questões apresentam-se como
aportes crítico-teóricos: Candido (2011), Assis (1994) e Castelo (1999). O desenvolvimento da proposta centra-se no primeiro momento na sensibilização para temática
do absurdo da guerra, com trechos do filme O Amor sem Fronteiras, dirigido por
Martin Campbell e fotos dos pracinhas brasileiros participando da Segunda Guerra
Mundial. Em seguida, propõe-se a apresentação da narrativa O Albatroz, em que
sua leitura seguirá concomitantemente por registros em diário de leitura, por fim a
interpretação ocorrerá por provocações e pesquisas em grupos orientadas pelo professor. Espera-se que a proposta suscite diversas possibilidades de compreensão e
apure a análise do objeto literário em sala de aula.
Palavras-chave: José Geraldo Vieira, Segunda Guerra Mundial, O Albatroz,
Proposta didática.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
DO ESQUECIMENTO À SALA DE AULA:
A REPRESENTAÇÃO DA SEGUNDA GUERRA
MUNDIAL NA NARRATIVA DE
JOSÉ GERALDO VIEIRA
Daniele do Vale Silva
Introdução
A guerra se configura como o horror da humanidade, pois apresenta uma
lógica absurda e uma experiência que emudece, transforma o homem. Diante
desse absurdo – particularmente, contemplando o quadro da 1.a Guerra Mundial
–, Benjamin (1994) a vê como a causa de uma geração de indivíduos ricos em experiência e pobres de expressão. Considerando essa dualidade, o presente estudo
debruça-se sobre o romance O Albatroz, do escritor brasileiro José Geraldo Vieira, com o intuito de analisar os procedimentos de representação da 2.a Guerra
Mundial, articulando o discurso histórico e o literário, bem como, configurar
uma proposta didática situada para alunos do 3º ano do ensino médio.
A presença da guerra referenda e catalisa o absurdo da existência em O Albatroz, consistindo num elemento que transgride tendências literárias dominantes
na conjuntura de publicação do romance, o que possibilita o estudo de uma linha
alternativa do romance brasileiro. A sequência da narrativa, que não obedece à
linearidade do romance realista do séc. XX, revela o caos e desassossego causados
pela guerra; efêmeros momentos de paz são narrados no romance, em contraponto
com sucessivos eventos trágicos (nem todos diretamente relacionados ao conflito
mundial). As personagens tentam se acomodar perante as tragédias da guerra,
3581
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
porém só reforçam a grande carga existencialista e de absurdo que reflete a guerra
em suas experiências pessoais.
Apesar de O Albatroz ser um romance rico tanto no plano formal quanto
do conteúdo, identifica-se uma escassez de estudos; não só dessa obra, como de
outras escritas por José Geraldo Vieira, o que se contrapõe ao grande reconhecimento que o autor teve no período em que viveu. Garcia (2003, p. 9) afirma:
“Considerado por críticos respeitáveis, em muitos aspectos, um inovador do romance brasileiro, a maioria de seus romances, após sua morte, em 1977, está fora
do alcance da geração atual […].” Isso mostra, que além da escassez de estudos, há
também um desinteresse considerável na eventual republicação dos seus livros.
Observa-se, assim, a necessidade de recuperar a figura do escritor no contexto
histórico em que está inserido, numa tentativa de compreender suas referências,
produções e a influência que exerceu no momento de sua vida.
Um intelectual multifacetado
Descendente de condes açorianos (toda a sua família tem origem no arquipélago português), José Geraldo Manuel Germano Correia Vieira Drummond
Machado da Costa Fortuna nasceu no Rio de Janeiro, em 1897, e é responsável
por uma extensa obra (poemas, romances, contos e ensaios críticos). Um fato
curioso é que muitos estudos apontam que Vieira teria nascido nos Açores, porém, na verdade, trata-se de uma lenda, resultado de uma confusão dos leitores
e estudiosos com o personagem do conto publicado em O Jornal e que foi difundida pelo crítico Eloy Pontes devido a uma briga. (GARCIA, 2003, p. 21.)
Vieira, criado no bairro das Laranjeiras, vivia acompanhado de seu piano e
de seus livros. Teve duas irmãs e um irmão gêmeo que faleceu aos três messes de
idade. Estudou por bom tempo no colégio interno Santa Rosa. Após a morte de
seus pais, passou a ser criado pelo tio; desde muito cedo, escrevia; tanto poesia,
como narrativa. Escreveu uma saudação aos índios Bororos, que, considerada
sua primeira publicação, foi traduzida em dezesseis idiomas. Após um ano de
formado em Ciências e Letras, publicou seu primeiro texto literário, um poema.
Aos 22 anos, completa o curso de Medicina, escreve o poema O Triste Epigrama
e embarca em uma viagem para Europa.
3582
Daniele do Vale Silva
Em 1922, regressa ao Rio de Janeiro, cidade que é pano de fundo para várias
de suas obras. No seu depoimento à Academia Paulista de Letras afirma: “Voltei
ao Brasil, donde mais tarde sairia para inúmeras outras viagens. Passei a escrever romances. Isso, há quarenta anos. O Rio de Janeiro é o meridiano Greenwich
das minhas estórias, e o resto do mundo suas muitas paralaxes.” (VIEIRA apud
GARCIA, 2003, p. 241) Nesse mesmo ano, publica o livro de contos A Ronda de
Deslumbramentos.
O escritor se manteve trabalhando na área de saúde como radiologista, teve
dois casamentos, um com Elizabeth Câmera, com quem teve cinco filhos, e o
outro com a escritora Maria de Lourdes, no momento em que largou a medicina
e passou a trabalhar apenas com a literatura e a arte em Marília (São Paulo). Intelectual multifacetado, Vieira atuou como professor, tradutor, escritor, poeta e
crítico. No ano de 1948, entrou para a Academia de Letras Paulista.
A publicação das obras de José Geraldo Vieira começa no ano de 1922, com
sua tese Instinto Sexual, e termina com o romance A Mais que Branca, de 1974.
As obras A Quadragésima Porta, Terreno Baldio, O Albatroz apresentam certo
encadeamento devido à abordagem do horror da guerra, pois o primeiro ocupase da 1.a Guerra Mundial e outros conflitos; o segundo, do momento obscuro da
pós-guerra; e o terceiro constitui-se como uma fusão trágica das perdas e outros
absurdos que ocorreram nas guerras.
Aos 80 anos, no ano de 1977, falece em São Paulo, deixando uma riquíssima obra distribuída em 40 anos de dedicação e trabalho afinco. Isso lhe rendeu
grande reconhecimento no período da sua vida, chegando até a ser presidente
da União Brasileira de Escritores e conseguir a proeza de viver de literatura.
Vieira é considerado por Martins como “[...] um dos ficcionistas mais fecundos
da literatura brasileira do século XX, [...], que veem em sua ficção e produção intelectual um dos pontos culminantes da prosa moderna em língua portuguesa.”
(MARTINS, 2011, p. 1.)
O Albatroz
Publicado em 1952, O Albatroz apresenta como protagonista a personagem
Virgínia, que sofre com grande resignação as perdas dos varões da família, que
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
são denominadas na narrativa como Sarcófago inúteis. Boa parte das perdas é
causada pela guerra. A atmosfera em que se ambienta a narrativa configura-se
como trágica, porém, com alguns momentos em que o tom se revela suave e de
uma acentuada paz em sua ambientação. Percebe-se uma espécie de retomada
de fôlego dos personagens para o próximo acontecimento trágico.
O livro possui 18 capítulos divididos em primeira e segunda parte. Cada
uma possui, respectivamente, as seguintes epígrafes da filósofa francesa Simone
Weil: “Não procurar deixar de sofrer ou sofrer menos; e sim, não ser alterado
pelo sofrimento”; “A certa altura da desgraça não se é mais capaz de suportar que
ela continue, nem que cesse” (VIEIRA, 1978, p.8; p.132). Considerada anarquista
e pacifista, Simone Weil pensa sobre as mudanças que a dor suscita, as maneiras
de opressão da vida e o medo. (CASTRO, 2014, p. 4.) As epígrafes dentro da obra,
reforçam o caráter trágico e apresentam uma grande relação com o comportamento adotado pela protagonista Virgínia perante o sofrimento na primeira parte, em que corresponde a uma entrega que não é total a dor e na segunda parte
da narrativa, em que Virgínia após a morte de Fernando, ápice do sofrimento em
sua vida, torna-se uma figura soturna.
A transição da primeira para segunda parte é marcada pela transformação
do tempo e do espaço. Porém, não corresponde a uma linearidade, pois o autor
constrói um quebra-cabeça em que as peças vão tomando uma unidade de sentindo ao longo do romance, provocando no leitor vários momentos de epifania
na compreensão da história narrada. Percebe-se, ainda, no plano da forma da
narrativa, a presença da técnica da analepse, no caso, a pulverização das lembranças evocadas pelo personagem Maurício e a ligação do início da narrativa
com uma das partes encontradas no final do livro, na qual o próprio narrador faz
referência ao início da narrativa para situar o leitor: “Natural pois que, [...] Maurício se lembrasse de responder aquele telegrama de meses antes (a que se refere
o primeiro período do princípio deste livro) e que coincidência chegara horas
depois da notícia do desaparecimento de Fernando na linha de frente.” (VIEIRA,
1978, p. 259) Vale ressaltar que estas características apreendidas lembram a estrutura cinematográfica.
O romance encerra-se desvendando o misterioso desparecimento de Fernando do 1.o Batalhão do 1.o Regimento de Infantaria na 2.a Guerra Mundial, que
3584
Daniele do Vale Silva
se configura na revelação das circunstâncias trágicas da sua morte. Fernando,
metralhado no território inimigo, é o quarto Sarcófago Inútil da narrativa e o fator determinante para que as personagens Virgínia e Nanny acabem cumprindo
seus destinos de Hébuca e Cassandra.
Os mecanismos de representação da guerra no diário
Para uma análise aprofundada de como se configuram os procedimentos de
representação da guerra no romance, toma-se como núcleo do corpus o diário
de Fernando, neto de Virgínia, que se inicia com o personagem narrando sua
admissão na Força Expedicionária Brasileira para o exercício na 2.ª Guerra Mundial, as suas angústias e conflitos existenciais, que são destacadas no capítulo 14,
em que Fernando está viajando em direção a Nápoles (local do conflito), como
demostra o trecho destacado: “[...] Também esta atmosfera que meus pulmões
respiram em haustos já não traz os cincos elementos que eu cuidava eternos: a
saúde, a paz, a glória, a beleza e a cultura.” (VIEIRA,1978, p. 199). Além disso, são
registradas as experiências de guerra juntamente com reflexões de tudo o que é
vivenciado.
Historicamente, o evento que é o alvo dos relatos de Fernando em seu diário eclodiu em 1939 e se encerrou em 1945, tendo por motivo, essencialmente, o
avanço do Nazismo na Alemanha, resultado do saldo insatisfatório da 1.a Grande Guerra e à crença da suposta superioridade ariana. Trata-se de um conflito
que marcou a História, com um número de mortos que ultrapassou 50 milhões.
Devido ao jogo de interesses políticos e econômicos, como também invasões,
aliança entre os países foram se estabelecendo, o que gerou a formação do Eixo
Roma–Berlim (a que viria aderir o Japão) e a reunião dos aliados (Estados Unidos, Império Britânico e União Soviética).
A entrada do Brasil na 2.ª Guerra Mundial foi incentivada pelos “acordos
assinados com os Estados Unidos […], que marcam a crescente participação do
Brasil no esforço de guerra ao lado de Washington, num nível considerável para
os limites de um país periférico.” (PINHEIRO, 1995, p. 117). Em 5 de maio de
1944, tropas brasileiras foram enviadas à Itália: “imaginava-se que o envio da
FEB [Força Expedicionária Brasileira] à guerra conferiria ao Brasil voz ativa nas
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
conferências de paz em vias de realização. Antevia-se também a provável projeção do Brasil como grande potência” (Moura apud Pinheiro, 1995). O total
de brasileiros que foi mandado para a Europa gira em torno de 30 mil.
O ambiente de guerra que a personagem Fernando relata no diário é hostil
e opressivo: “[...] víssemos e sentíssemos a guerra, o que seja bombardeio de artilharia. A voz da guerra. A sua retórica. Não existe silêncio. Existe esse ressoo
fulminante, duma arrogância que convence e humilha […]” (VIEIRA, 1978, p.
209); “[...] me arrancam das aulas e dos teares e me jogam no lodo das trincheiras” (VIEIRA,1978, p. 215). Observa-se, nos trechos, não só a descrição do espaço,
mas também uma crítica veemente à guerra, especificamente ao acaso sugerido
pelos acontecimentos do conflito; por isso, a “arrogância que convence e humilha”, situação de vulnerabilidade que incomoda Fernando e que é reforçada pela
realidade de despreparo que a personagem assume em relação ao estar presente
naquele ambiente, que é descrito como sujo e impuro.
As analogias realizadas por Fernando são estabelecidas por meio do que é
vivenciado no conflito, o misticismo evocado por determinados lugares e pelas
lembranças da sua família:“[...] vestido de guerra, realizando a meu modo truculento, o antigo sonho de ser Alcebíades e Péricles, Platão [...] Não vim ver a
Acrópoles, as raparigas de Erectéion [...] Não duraram para que eu visse as cãs,
aqueles conhecidos de meu bisavô Aleixo […].” (VIEIRA, 1978, p. 199.) Há certa
nostalgia dos tempos passados do mundo europeu e uma carga de negatividade
existencialista, quando se assimilam as impressões durante a viagem do personagem ao local do conflito. A presença dessa característica não está apenas
nesse trecho, mas se expande durante todo o capítulo 14. Já nesta parte, extraída do mesmo capítulo “[...] estou nesta rocada para o Vale do Reno, um infante
numerado e extraído do Depósito de Pessoal, [...] para aquele ciclo de guerras
que banham a humanidade como marés periódicas.” (VIEIRA, 1978, p. 213), observa-se como a guerra “coisifica” as pessoas; Fernando é apenas um número, e o
mar, como um recomeço e fim. Esse conjunto de reminiscências e de referências
presentes em ambos os trechos reforça o caráter devastador da guerra, porém,
acrescenta à narrativa um tom que atenua o tratamento de questões tão agudas.
As múltiplas referências de Fernando que embasam as analogias e os comentários realizados durante sua experiência de guerra revelam o comporta-
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Daniele do Vale Silva
mento de um cidadão do mundo. Candido (2011, p. 30), contemporaneamente a
Vieira, não vê com bons olhos essa predileção pelo cosmopolitismo, acentuando
que o autor “[...] tinha vocação do cosmopolitismo e o culto da viagem à Europa, donde importava tudo, desde o leite condensado e a manteiga suíça. [...]”. O
jovem Candido, numa base marxista, acredita ser esse um traço que reveste a
ficção de Vieira de certa superficialidade, com as personagens a divagarem entre
as paisagens do Velho Mundo e com referências que se entrecruzam com as experiências do ficcionista. Segundo Candido, a tendência espiritualista possibilita
uma tão grande vazão para os sentimentos existencialistas, o individualismo
das personagens, que o leitor acaba perdendo a consciência da coletividade. No
entendimento do crítico, a obra perderia a instância política, deixando de agir na
realidade e transformá-la através da conscientização dos leitores.
No diário, Vieira não diz respeito apenas à camada ascendente, pois se registra a figura do personagem Tancredo: “Baiano, cabeça-chata, vendendo em
São Paulo a Lei do Inquilinato na esquina da rua 15 com a praça da Sé. Aqui é melhor.” (VIEIRA, 1978, p. 221). O nortista considera a guerra como uma ascensão
social, pois passa a ter um emprego fixo e atribui um grande valor de estima ao
desempenhá-lo. “Lá não sei que caminho tomaria... Aqui faço o bem. Comovome, capricho no trabalho. Parece que na Bahia andei treinando para isto aqui.”
(VIEIRA, 1978, p. 221). Destoa, assim, do quadro dos personagens envolvidos
no diário, que não apresentam um sentimento nacionalista, de luta pela pátria.
Capta-se, neles, uma insatisfação perante a realidade da guerra. Essa figura, no
diário, é um traço que distingue o trabalho de Vieira em relação a outro livro,
intitulado A Quadragésima Porta, em que, segundo Candido (2011, p. 34), sustenta-se a perspectiva de que a margem dentro do livro está a serviço da camada
burguesa. Já em O Albatroz, a figura popular tem voz e lugar na narrativa.
Ao longo do diário, nota-se que Fernando se assusta com a infecundidade da vida dentro do ambiente da guerra, o que faz com que a personagem
comece a refletir as circunstâncias das mortes, que, em sua perspectiva, são regidas por uma moral que se revela criminosa:
“[...] a dor física (ou a deformação) significa um sacrilégio à harmonia
da ordem criada.[...] Ver sangue banhando a morte duma criatura, ver
seus recessos expostos, é assistir à conspurcação eucarística.” (VIEIRA,1978, p. 207.)
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
“[...] parece então que não é só a guerra que é horrenda, e sim o fato da
ciência se vender ao sofrimento afoito do sobrenatural. Vender-se às cegas, sendo instrumental afoito de subserviência.” (VIEIRA,1978, p. 208.)
Esse refletir a partir da infecundidade do ambiente da guerra, revela uma
ótica absurda em que o filósofo Camus (2008, p. 53) acentua que: “[...] No mundo
absurdo, o valor de uma noção ou de uma vida se mede com a sua infecundidade.” Para Fernando, essa concepção da infecundidade é reforçada pela ciência
que se vende sem ter consciência do mal que está causando à mocidade de sua
época.
Nesse quadro, a personagem, autor do diário, denuncia o absurdo da guerra:
“Assim, a providência imediata é inventar para uso provisório e urgente a assimilação do absurdo, e criar uma filosofia sumária.” (VIEIRA, 1978, p. 207.) Apesar
de estar imerso num mundo absurdo e ver como saída à assimilação dos elementos desse mundo, o reconhecimento do caos e da desordem provocada pela
guerra vai além, há nele um grande inconformismo pautado pelo espírito e consciência social: “Como é que se joga a mocidade neste absurdo? Como não hão de
estar repletos os grupos suplementares do Serviço de Saúde em suas seções de
restauração psicológica, se só o troar da artilharia já basta para desequilibrar um
cérebro?” (VIEIRA, 1978, p. 226.)
Esse inconformismo e o fato de todo o tempo estar questionando a realidade
levam Fernando a assumir uma postura que aspira a dias melhores e, também,
vislumbrar um futuro melhor, mesmo tendo a dimensão das suas limitações e de
seu destino: “Se a minha geração servir para liquidar um estado de coisas, bem.
De fato o que está aí não pode continuar. [...] De modo que aqui vou eu no jeep
para fazer qualquer coisa infinitesimal em bem do mundo. [...]” (VIEIRA, 1978, p.
227.) A postura adotada pela personagem, em que não há uma aceitação perante
o sofrimento e uma resignação à realidade, faz com que Fernando destoe da essência do homem absurdo:
Aquele que, sem o negar, não faz nada para o eterno. Não que a nostalgia lhe seja estranha. Mas ele prefere sua coragem e seu raciocínio.
A primeira o ensina a viver sem apelação e a se bastar com o que tem,
o segundo o instrui sobre seus limites. Certo de sua liberdade a prazo,
de sua revolta sem futuro e de sua consciência perecível, prossegue em
aventura no tempo da sua vida. (CAMUS, 2008, p. 51.)
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Daniele do Vale Silva
Essa resignação sobre o sofrimento, de aceitar tudo, e ter consciência para
viver aquilo naquele momento parece ter uma relação direta com a protagonista,
de primeira ordem da narrativa, Virgínia, que sofre com as suas perdas e cumpri
seu destino, não há um sentimento de revolta por parte dela e sim de lamento.
Embora tentando burlar o destino de Fernando, criando o neto em uma redoma,
aciona a consciência de que sua liberdade é limitada em relação ao sofrimento e
entrega seu neto à guerra.
Observa-se também que o traço espiritualista é recorrente na narrativa do
diário, como uma forma de expor toda a revolta causada pela insensatez daquele
conflito. A reprodução da fala do profeta Habacuque – “Tendes os olhos puros demais para ver o mal e enxergar a iniquidade.” (VIEIRA, 1978, p. 207; p. 225) – não
é por acaso; assim como Fernando, “Habacuque baseou seus questionamentos em
sua experiência com os eventos históricos de seu tempo. [...] se indignou com a situação de injustiça, violência e opressão gritantes em Judá [...]” (MILHORANZA,
2013, p. 1-2). Quando o trecho é citado, a personagem sente na pele as situações de
apavoramento do horror da morte da guerra como diz o personagem – “[...] já não
se morre, se estoura!” (VIEIRA, 1978, p. 227) – e de indignação com as péssimas
condições sociais que cercam aqueles seres humanos. Este traço cria um ponto de
tensão entre o puro e o impuro; o questionamento basilar é o absurdo de corpos
puros ocupar um espaço nodoso de iniquidades. Vale ressaltar, ainda, que o recurso espiritualista é muito usual de Vieira.
Em relação, ainda, à representação da guerra no diário de Fernando, percebe-se que o autor não poderia ser mais feliz ao escolher o gênero diário para
representação da guerra, que se configura como um “apelo [...] ao universo particular” (MARTINS, 2011, p. 20) e aproxima o leitor do personagem e da situação
narrada.
A passagem sobre a guerra também não fica restrita à própria guerra.
Perpassa na narrativa, o que é mais interessante, uma visão mais humana e menos ideológica dos fatos. O homem que está ali em combate
ou prestes a combater re-avalia sua vida, refaz sua história, revê seus
conceitos, sente medo e sente a morte de muito perto. Isso o transforma
não para a vida, mas para a própria morte. (CASTRO, 2014, p. 5.)
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Desmonta-se, assim, o clichê de descrição de longas batalhas guiadas por
um sentimento nacionalista e o discurso panfletário sobre a guerra. No diário,
percebe-se a guerra pelo prisma do absurdo que é ampliado pelo horror, o medo
e o acaso que circunda os personagens nesse momento da narrativa.
Proposta didática
O caminho até aqui traçado, visa a instrumentalização do docente ao lidar
com o corpus e a temática sugerida pela proposta. Neste momento, o foco desloca-se para o desenvolvimento da prática em sala de aula. Seguindo a sequência
básica de Cosson (2009) que se divide em: motivação, introdução, leitura e interpretação, pretende-se atingir a motivação do aluno, no tocante da sua instrução
para o artístico, por conseguinte literário, já que se observa a forma superficial
que é tratado o texto literário, por parte do docente. Infelizmente, as aulas de literatura são quase que totalmente ofuscadas pelas de gramáticas, como também
nas poucas aulas que se tem a didática utilizada pelo professor é enfadonha e
desperta pouco ou nenhum interesse do aluno, como exposto em Lajolo (1993).
A proposta contempla o 3ºano do ensino médio e centra-se no primeiro momento na motivação através da sensibilização para temática do absurdo da guerra, com trechos do filme O Amor sem Fronteiras, dirigido por Martin Campbell
e fotos dos pracinhas brasileiros participando da Segunda Guerra Mundial. Nesta etapa, sugere-se que o docente enfatize nos trechos do filmes, as violências
(corporal e epistemológica) que geram as guerras e o caráter quase animalesco
das pessoas tanto para defender seus ideais como lutar pela sobrevivência. Em
relação, as fotos dos pracinhas brasileiros é interessante o foco nas expressões
dos soldados e das condições em que se encontram na Segunda Guerra Mundial,
articulando-se com o discurso acerca das razões que motivaram este conflito e
a participação do Brasil.
Em seguida, à luz desta temática da Segunda Guerra, na introdução propõese a apresentação da narrativa O Albatroz, juntamente com uma pequena contextualização sobre o autor José Geraldo Vieira e da sua grande importância no
cenário da literatura. Dando sequência, parte-se para explicação da proposta de
3590
Daniele do Vale Silva
leitura que será adotada, já que demanda um maior tempo e não é possível fazê
-la em sala de aula, na qual, consiste na leitura do romance concomitantemente
com registros da experiência dos alunos em relação a narrativa, em um diário
de leitura que será compartilhado em sala de aula. Estipula-se no decorrer desta
primeira parte o quantitativo de duas aulas.
Os registros presentes no diário serão explorados no período da interpretação e configurados como um guia para reflexões suscitadas pelo professor acerca
da narrativa como todo entremeadas com a análise especificamente do diário do
personagem Fernando atendendo a conjuntura explicitada anteriormente no artigo na seção: “Os mecanismos de representação da guerra no diário”, entretanto
deve ser adequada ao nível dos alunos. Outra sugestão, é que nesta exploração
também sejam empregadas questionamentos acerca da localização do escritor
sob uma mesma rubrica como a do modernismo, tal perspectiva apresentada
por Castro (2011), desconsiderando as diversas influências de outros períodos
literários, além disso, é importante que o ponto de vista de Cândido (2011) sobre
a suposta artificialidade de José Geraldo Vieira devido ao seu cosmopolitismo
seja colocado em discussão, ressaltando como os alunos observam a relação do
escritor com o Brasil e perguntando a opinião deles sobre os seguintes pontos:
O lugar onde se passa a narrativa é fator determinante da sua nacionalidade?;
O caráter nacionalista do regionalismo no modernismo é um dos motivos que
provoca mais destaque para este tipo de manifestação e o esquecimento da prosa
psicológica em que faz parte a obra de José Geraldo Vieira, consequentemente o
esquecimento deste autor? É interessante que a título de ilustração seja a apresentada a centralidade da discussão do ensaio “Instinto de nacionalidade” de
Machado de Assis que defende o sentimento íntimo do escritor como elemento
definidor do caráter nacional.
Levando em consideração, o que afirma Cosson (2009, p. 65): “[...] é preciso
compartilhar a interpretação e ampliar os sentidos construídos individualmente. A razão disso é que, por meio do compartilhamento de suas interpretações, os
leitores ganham consciência de que são membros de uma coletividade e de que
essa coletividade fortalece e amplia seus horizontes de leitura.” Propõe-se que ao
final deste trabalho, os alunos explorem pontos sobre as suas interpretações em
um trabalho em grupo, orientado pelo professor e por fim construam banners e
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
exponham para as outras turmas da escola. Vale ressaltar, que esta etapa pode
ser desenvolvida aproximadamente em seis aulas.
Considerações finais
A obra O Albatroz, do autor José Geraldo Vieira, é relevante para nossa literatura, pois apresenta uma estética bastante particular, que consegue juntar o
âmbito particular das personagens com a realidade da guerra, dando uma perspectiva universal que é a das perdas. A construção da narrativa, que corresponde
à instância mítica da obra, e sua tendência para voltar-se ao existencialismo dos
personagens são características que destoam das práticas literárias usuais no
Brasil da época, dominada por um regionalismo em que os olhares se voltavam
para o interior do país.
Observa-se, pela escassez de estudos, não só sobre a respeito de O Albatroz,
como sobre outros livros do autor, que o escritor tem sido, em certa medida, relegado ao esquecimento, talvez devido ao não enquadramento em um período
literário e o engessamento da crítica literária brasileira em relação ao cânone
literário. Espera-se que a proposta didática, colabore para um maior reconhecimento do autor José Geraldo Vieira e longe de ser considerada uma receita,
suscite diversas possibilidades de compreensão por parte dos alunos, bem como,
apure a análise do objeto literário em sala de aula.
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Daniele do Vale Silva
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3593
RESUMO
Para muitos ensinar literatura tem sido o mesmo que ensinar sobre historicização,
biografismos, ou mesmo escolas literárias. Para outros tem sido impor a leitura de
cânones e simplesmente descartar a “literatura popular”, que na maioria das vezes
está mais perto do povo através de folhetos ou mesmo dos best-sellers. É com essa
reflexão que nos propormos a discutir sobre o ensino de Literatura no ensino médio,
na tentativa de verificar como esse processo tem ocorrido, quais as literaturas estão
presentes em sala de aula, se os cânones, os best-sellers ou mesmo a literatura chamada de popular e, assim, compreender se esse ensino tem colaborado para a formação leitora e intelectual dos sujeitos. Realizamos uma pesquisa em uma escola pública do interior do Estado do Rio Grande do Norte, com uma docente de Literatura
e seis discentes de uma turma de 2° ano do ensino médio. Nosso corpus é composto
de questionários que foram aplicados aos pesquisados e um diário de bordo construído em quatro horas aulas de Literatura observadas na referida turma. Nos ancoramos nos estudos de Amarilha (2006), Candido (1995), Cosson (2009), Zilberman
(1988), dentre outros que refletem sobre a temática. Os resultados de nossa pesquisa
mostram que o ensino de Literatura na turma pesquisada ainda tem privilegiado a
história da literatura e biografismo de autores. Entretanto, percebemos que existe,
mesmo de maneira superficial, certa abertura para a diversidade literária e, embora a
professora solicite de seus alunos a leitura de cânones literários, tenta introduzir no
contexto de sala de aula literatura de cordéis e os chamados best-sellers, e vê esses
textos como uma porta aberta para o que chama de literatura oficial. Portanto, podemos afirmar que mesmo de forma parcial, o ensino de literatura aqui investigado
tem contribuído para a formação leitora e intelectual dos discentes.
Palavras-chave: Formação leitora, Best-sellers, Cânones, Ensino de Literatura.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
DOS BEST-SELLERS AOS CÂNONES:
A DIVERSIDADE LITERÁRIA CONTRIBUINDO
PARA FORMAÇÃO LEITORA DE ALUNOS
DE ENSINO MÉDIO
Maria Gorete Paulo Torres (UERN)
Ananias Agostinho da Silva (UERN)
Larissa Cristina Viana Lopes (UERN)
Para início de conversa...
Ensinar Literatura tem se constituído em grande desafio na contemporaneidade, haja vista que muito se tem discutido sobre o papel da literatura na
formação do sujeito e, ainda, que tipo de literatura deve ser trabalhado na escola.
Alguns consideram que somente os cânones devem ser propagados e até mesmo
solicitados pelos professores para leitura, mas outros compreendem que a diversidade literária deve fazer parte das aulas, pois os chamados best-sellers e mesmo a literatura de cordel ou literatura popular ajudam na formação do sujeito e
contribuem para aguçar o gosto pela leitura literária, sendo também uma porta
aberta para a introdução da chama literatura clássica.
Neste viés, nosso artigo tem como objetivo discutir sobre o ensino de Literatura no ensino médio na tentativa de verificar como esse processo tem ocorrido e
quais as literaturas estão presentes em sala de aula, se os cânones, os best-sellers
ou mesmo a literatura chamada de popular e, com isso, compreender se esse ensino tem colaborado para a formação leitora e intelectual dos sujeitos.
Nossa pesquisa se configura como descritiva e qualitativa. A mesma foi realizada em uma escola pública do interior do Estado do Rio Grande do Norte, com
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
01 (uma) docente de Literatura e uma amostragem de 06 (seis) discentes de uma
turma de 2° ano do ensino médio, turma na qual o referido profissional leciona.
Nosso corpus é composto de questionários que foram aplicados aos discentes e a
docente, bem como de um diário de bordo construído em 04 (quatro) horas aulas
de Literatura observadas na turma mencionada. Para tanto, nos pautamos nos
estudos de Amarilha (2006), Candido (1995), Cosson (2009),Silva (1998), Zilberman (1988), dentre outros que refletem sobre a temática.
Dessa forma, este artigo está composto por duas partes principais: na primeira delas, discutimos sobre as contribuições do ensino de Literatura na formação de sujeitos e sobre a importância da diversidade literária em sala de aula; na
segunda, trazemos os achados de nossa pesquisa através da descrição analítica
de nosso corpus. Temos ainda, nossas conclusões, na qual tecemos nossas considerações sobre a pesquisa realizada e os resultados nela obtidos.
O ensino de literatura, a formação do sujeito
e a diversidade literária na escola
Pensar a literatura como um direito humano e compreender que a mesma
auxilia na formação de sujeitos sociais ativos é entender que ela deve estar presente em salas de aula, e que é papel da escola oferecer acesso a diversidade literária. Entretanto, sabemos que nem todos têm acesso aos textos literários, por
segregação ou mesmo por desconhecimento, cabendo a escola mudar os rumos
do ensino de literatura na tentativa de cumprir um dos seus principais papéis
que é o de formar leitores proficientes. (CANDIDO, 1995; COSSON, 2009).
Para Candido (1995) a literatura é um poderoso recurso para educação e,
sendo vista como instrumento intelectual, pode favorecer a aprendizagem e a
formação do sujeito, já que para o autor a ela “[...] confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente
os problemas” (p. 243). Assim, a literatura deve ser defendida como direito humano, seja ela considerada cânone ou não. Isso nos leva a compreender que a circulação de textos literários deve ocorrer sem barreiras e independer dos fatores
de divisão social que julgam como bens incompressíveis à classe mais baixa apenas aquilo de menor porte, privando-a de conhecer ou participar, por exemplo,
das manifestações culturais da classe privilegiada. Não devendo haver, portanto,
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Maria Gorete Paulo Torres, Ananias Agostinho da Silva, Larissa Cristina Viana Lopes
uma separação entre cultura popular e cultura erudita como se uma fosse independente da outra e as esferas culturais incomunicáveis. Já que uma sociedade
justa implica a importância dos direitos humanos, bem como a fruição da arte e
da literatura em todos os níveis e camadas sociais como um direito inalienável.
Dizer que a literatura é um direito de todos, implica afirmar que a escola
precisa abrir espaço para um trabalho com a literatura sem preconceitos, no qual
ultrapasse o uso escolar de textos literários e o utilize-os como meios para contribuir na formação do sujeito, transformando-o em um leitor assíduo e sobretudo conhecedor da diversidade literária. A escola precisa entender que o ensino
de literatura deve ser o intermédio entre o sujeito e o mundo, já que a leitura
literária pode se constituir em uma vivência da realidade (ZILBERMAN, 1988),
visto que “em certo sentido, a leitura de textos se coloca como uma janela para o
mundo” (SILVA 1998, p.56).
Popularizar a leitura literária é, então, difundir a diversidade literária entendendo que não somente os chamados cânones da literatura contribuem para a formação dos sujeitos. E mais, é admitir que qualquer literatura pode auxiliar na “[...]
formação de uma consciência crítica ou, sob outra formulação, ao desenvolvimento de uma consciência reflexiva de cunho intelectual” (ZILBERMAN,1988, p. 32).
Contudo, compreendemos que na realidade o ensino de literatura no Brasil
tem se desenvolvido de forma aquém ao desejado, pois na maioria das escolas,
principalmente de ensino médio
O ensino da literatura limita-se à literatura brasileira, ou melhor, à história da literatura brasileira, usualmente na sua forma mais indigente,
quase como apenas uma cronologia literária, em uma sucessão dicotômica entre estilos de época, cânone e dados biográficos dos autores,
acompanhada de rasgos teóricos sobre gêneros, formas fixas e alguma
coisa de retórica em uma perspectiva para lá de tradicional. Os textos literários, quando comparecem,são fragmentos e servem prioritariamente para comprovar as características dos períodos literários [...]
(COSSON, 2006, p. 21).
Dessa forma, observamos que as aulas de literatura se constituem em aulas
de informações e que a leitura literária tem ficado em segundo plano, mas não
faltam datas, dados biográficos, características dos estilos e das obras para serem
decoradas, ou seja, “em nome da ordem, da liberdade ou do prazer, o certo é que
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
a literatura não está sendo ensinada para garantir a função essencial de construir e reconstruir a palavra que nos humaniza” (COSSON, 2006, p. 23).
Entra aqui a importância da presença da diversidade da literatura nas aulas de Literatura, mas temos que deixar claro que essa diversidade não significa o abandono do cânone, pois este [...] “guarda parte de nossa identidade
cultural e não há maneira de se atingir a maturidade de leitor sem dialogar
com essa herança, seja para recusá-la, seja para reformá-la, seja para ampliá-la”
(COSSON, 2009, p. 34). A diversidade literária tem que englobar o considerado
mais “clássico” texto literário até o menos conhecido e/ou valorizado. Cabe ao
professor selecionar textos que visem formar leitores literários maduros, o que
compreende a questão das obras contemporâneas, as quais devem ser distinguidas de obras atuais.
Segundo Cosson (2009),“Obras contemporâneas são aquelas escritas e publicadas em meu tempo e obras atuais são aquelas que têm significado para
mim em meu tempo, independente da época de sua escrita ou publicação”
(p.35). O cuidado com a seleção dessas leituras, segundo o autor, é algo imprescindível, pois a facilidade e o interesse dos estudantes pela leitura são gerados
por essa atualidade; assim, “muitas obras contemporâneas nada representam
para o leitor e obras vindas do passado são plenas de sentido para sua vida”
(COSSON, 2009, p. 34).
Por isso, a diversidade é mais um fator que se torna indispensável para nosso
crescimento como leitor e que se dá pelo desafio de partirmos progressivamente
de uma leitura mais “simples” para uma mais “complexa”, sendo assim “papel do
professor partir daquilo que o aluno já conhece para aquilo que ele desconhece”
(COSSON, 2009, p.35).
Destarte, podemos asseverar que “As obras precisam ser diversificadas porque cada uma traz apenas um olhar, uma perspectiva, um modo de ver e de representar o mundo”. Igualmente, o princípio da diversidade deve ser entendido muito
“além de uma simples diferença entre os textos”, mas sim com o propósito de, nas
escolas, os estudantes terem contato com “o novo e o velho, o trivial e o estético,
o simples e o complexo e toda a miríade de textos que faz da leitura literária uma
atividade de prazer e conhecimento singulares” (COSSON, 2009,p. 35-36).
Com esse pensamento, somos levados a assegurar que essas diferenças estão presentes em todos os tipos de textos literários e só cada realidade, cada
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Maria Gorete Paulo Torres, Ananias Agostinho da Silva, Larissa Cristina Viana Lopes
necessidade pode definir que texto deve estar presente em momentos diversos
ocorridos em sala de aula. Se o texto literário contribui para a formação do sujeito, não podemos esquecer que cada sujeito é único e que se forma/transforma de
maneira específica, individual, mesmo que coletivamente.
Os achados da pesquisa
Nesta pesquisa nos propomos a refletir sobre o ensino de Literatura no ensino médio e a verificarmos como esse processo tem ocorrido. Dessa forma, atentamos para quais literaturas estão presentes em sala de aula, se os cânones, os
best-sellers ou mesmo a literatura chamada de popular e, deste modo, pretendemos compreender se esse ensino tem contribuído de forma significativa para a
formação leitora e intelectual dos sujeitos.
Como já nos referimos anteriormente, nossa pesquisa foi realizada em uma
escola pública do interior do Estado do Rio Grande do Norte, com 01(uma) docente de Literatura e uma amostragem de 06 (seis) discentes de uma turma de
2° ano do ensino médio, na qual a citada profissional leciona. Nosso corpus é
composto de questionários que foram aplicados aos discentes e a docente, bem
como de um diário de bordo construído em 04(quatro) horas aulas de Literatura
observadas nessa turma.
A profissional docente desta turma, apesar de lecionar a disciplina de Língua Portuguesa, que se desdobra em gramática, redação e literatura, é Pedagoga
e Especialista em Educação Infantil e segundo a mesma nunca participou de
uma formação relacionada ao ensino de Literatura. A turma pesquisada é composta por 36 (trinta e seis) alunos, mas somente 06 (seis) participaram de nossa
pesquisa.
Ao realizarmos a fase de observação e com os questionários respondidos nos
debruçamos em nosso corpus para construirmos essa análise. Em um primeiro
momento, apresentamos os dados na visão da profissional pesquisada (respostas
do questionário) e realizamos uma espécie de “confronto” em relação às informações registradas no diário de bordo construído por essa equipe de pesquisadores. Em um segundo momento, apresentamos a visão dos alunos utilizando o
mesmo procedimento.
3599
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
O ensino de Literatura na voz do professor:
“todo mundo deve ler literatura”
Na tentativa de verificarmos como ocorre o ensino de Literatura no ensino médio em uma escola pública do interior do Estado do Rio Grande do Norte perguntamos a profissional que leciona a referida disciplina como e com que frequência
ocorrem as aulas na turma de 2° ano do nível já mencionado. A mesma responde:
As aulas de Literatura acontecem, geralmente, uma vez por mês, já
que essa disciplina não é ministrada separadamente, pois faz parte da
disciplina de Língua Portuguesa que é dividida com os conteúdos de
gramática, redação e literatura. Essas aulas são ministradas normalmente, nas quais trabalhamos a história da literatura, quais são os autores de cada época e os textos que predominaram.
Observando as informações dadas pela profissional, podemos compreender que há pouca importância à literatura no contexto escolar e bem menos aos
textos literários que não são mencionados pela professora, dando prioridade aos
historicismos, biografismos e escolas literárias em suas aulas. Esses dados condizem com nossas observações e registros, pois podemos perceber que as aulas
de Literatura na turma pesquisada, de certa forma, são monótonas, nas quais a
professora faz a leitura do conteúdo no livro didático, depois media um pequeno
comentário com a turma e em seguida pede para os alunos responderem as atividades solicitadas pelo livro didático.
Vale salientar que, ao observarmos informalmente o livro didático utilizado
pela turma, encontramos a presença de fragmentos de obras literárias dos períodos trabalhados, porém, em nenhum momento foi sugerido pela professora a
leitura desses fragmentos, nem muito menos das obras literárias.
Outro questionamento realizado a professora pesquisada foi se a mesma
incentivava a leitura literária, quais as literaturas dava prioridade, como e por
que. A mesma responde:
3600
Maria Gorete Paulo Torres, Ananias Agostinho da Silva, Larissa Cristina Viana Lopes
Sim, incentivo sempre! Priorizo as leituras dos clássicos, pois compreendo que os alunos precisam conhecer todas essas obras, pois futuramente vão precisar delas, na vida e na universidade. Peço a eles a leitura de
alguma obra depois solicito um trabalho da mesma.
Ao nos depararmos com a resposta da professora, realizamos vários questionamentos a nós mesmos e achamos cabível socializarmos aqui: Porque os sujeitos precisam conhecer todas as obras clássicas? Isso seria possível? Porque só
os clássicos contribuem para a vida e a universidade? Ao solicitar dos alunos a
leitura de um clássico e em seguida um trabalho, estamos realmente incentivando a leitura por prazer? Podemos até dizer que os estudos da área já oferecem
“respostas” e reflexões para esses questionamentos, mas esse tipo de conhecimento ainda não tem chegado a todos os profissionais da educação. Esse, talvez,
seja o principal problema enfrentado atualmente no ensino de Literatura, a falta
de profissionais qualificados para a função que exerce, como parece ser o caso da
professora pesquisada, que não tem uma qualificação adequada para a disciplina
que leciona.
Em seguida, solicitamos da professora que nos relatasse sobre a importância da leitura literária para formação do sujeito e, ainda, quais os resultados dos
trabalhos referentes a essas leituras realizados na turma pesquisada. Vejamos
sua afirmação:
A leitura literária é muito importante para a formação do sujeito, pois
através dela conseguimos muitas informações, aprendemos muito,
acho que todo mundo deve ler literatura. Não sei se posso expor aqui
os resultados, porque a maioria dos alunos dessa turma não gosta de
ler. Só uns dois que ainda vão à biblioteca e pegam livros e levam para
casa. Se lêem não sei.
Percebemos que apesar da professora ter a consciência da importância da
leitura literária para a formação do sujeito, ela a compreende como um recurso,
um pretexto para obter informação e/ou formação, esquecendo que essa leitura
3601
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
poderá proporcionar muito mais que esses fatores. Na verdade, compreendemos
que esses fatores são apenas consequências positivas da leitura literária. Todavia, não podemos esquecer que um dos papéis do professor é formar leitores
proficientes, e o melhor caminho para isso é incentivar o gosto pela leitura. A
leitura realizada pela busca do prazer poderá proporcionar inúmeras vantagens
e, a aprendizagem, como já nos referimos, vem em decorrência dessa atividade.
Notamos na fala da professora que a mesma parece não ter consciência da
importância do professor incentivador da leitura, pois deixa implícito não ser
culpado pela “falta” de leitura literária de seus alunos, deixando os alunos totalmente à vontade em relação a essa atividade. Vale destacar que quando recorremos aos registros de nossas observações não conseguimos identificar incentivos
da professora para a leitura literária, nem muito menos para realizar visitas planejadas na biblioteca, ficando a cargo apenas do aluno essa iniciativa. Verificamos também que na afirmativa acima a professora se contradiz, pois como vimos
na resposta aos questionamentos anteriores, ela diz incentivar a leitura literária.
Essa falta de incentivo tem sido natural na atualidade, e ainda encontramos
professores que dizem trabalhar literatura em suas aulas e incentivar a leitura
literária, no entanto, como nos afirma Martins (2006), acabam centralizando as
aulas de Literatura na história da literatura, no biografismo dos autores e alguns
aspectos ligados às obras, desvalorizando a verdadeira essência da literatura.
Segundo a autora,
é preciso que a escola amplie mais suas atividades, visando à leitura de
literatura como uma atividade lúdica de construção e reconstrução de
sentidos. [...] Tanto a leitura de literatura, quanto o ensino de literatura
deveriam estar presentes no contexto escolar, de modo articulado, pois
são os dois níveis dialogicamente relacionados (MARTINS, 2006, p.85).
Posteriormente, solicitamos que a professora elencasse algumas obras literárias que já leu/mediou/trabalhou com essa turma e porque o trabalho com
essas obras. Isso no intuito de verificarmos quais tipos de literatura a mesma
trabalha. Vejamos:
3602
Maria Gorete Paulo Torres, Ananias Agostinho da Silva, Larissa Cristina Viana Lopes
Confesso que pouco pedi a leitura literária, mas lembro de falar com
eles sobre os seguintes livros e textos. Iracema, Dez cordéis num cordel só, A hora da estrela, A culpa é das estrelas e alguns textos que
o livro didático traz. Mas sempre digo a eles que vão precisar fazer a
leitura das obras clássicas, mesmo sabendo que as outras literaturas
podem ajudar no entendimento dos clássicos.
Percebemos que existe, mesmo de maneira superficial, certa abertura para
a diversidade literária na turma pesquisada, pois a professora compreende que
os clássicos não podem faltar na vida dos sujeitos, e não se impõe as demais literaturas, até as indica e tenta introduzir no contexto de sala de aula literatura
de cordéis e os chamados best-sellers, vendo estas como uma porta aberta para
a literatura considerada oficial, pois ela compreende que as mesmas ajudam “no
entendimento dos clássicos”.
Fica-nos claro que a professora pesquisada ainda não conseguiu sistematizar um ensino de Literatura que incentive a leitura literária por prazer, e parece
não ser consciente de que esse trabalho deve ser uma prioridade da escola, principalmente das aulas de Literatura, mesmo que praticamente a disciplina não
tenha espaço no currículo escolar da instituição.Entretanto, vale salientar que a
profissional mesmo não tendo a qualificação necessária/desejada, tenta introduzir na sala de aula diversos tipos de leitura literária, indicando dos best-sellers
aos cânones ou mesmo dos cânones aos best-sellers.
A voz de alunos sobre o ensino de literatura: “com a
literatura conseguimos entender a nossa existência e
alimentar a nossa vida”
Partimos agora para compreender o que pensam os alunos da turma de 2°
ano da escola pesquisada sobre o ensino de Literatura e as contribuições para a
formação de leitores, bem como quais as literaturas estão presentes em seu cotidiano escolar. Para tanto, iniciamos, no questionário, indagando como e com que
frequência ocorrem às aulas de Literatura na referida turma. Os estudantes afir3603
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
maram de forma unânime que somente uma vez por mês e que são ministradas
dentro das aulas de Língua Portuguesa. Os conteúdos trabalhados são “a história
da literatura, quais são os autores de cada época e os textos dos autores” (A1)1. Essas
afirmações são confirmadas também pela fala da própria professora e nas observações realizadas pelas pesquisadoras.
Ao perguntarmos aos alunos se a professora incentiva a leitura literária e
como isso ocorre, responderam que “ela somente indica a leitura como, por exemplo, falou para nós sobre ‘A hora da estrela’, que ela pediu para lermos em casa e
depois assistimos um filme em seguida em grupo de quatro resumimos o livro/
filme” (A5).
Ao observarmos a fala do aluno, compreendemos que parece que as atividades de leitura literária, nessa turma, são realizadas sem muita preocupação de fomentar o gosto pela leitura. Parece ser mais uma atividade que cumpre o ritual de
uma disciplina na qual o papel do professor e do aluno se torna mecânico e passivo, podendo até dizer que sem criatividade, pois como nos informa o aluno 2 “essa
atividade estava sendo solicitada pelo livro, por isso que a professora pediu” (A2).
Requeremos dos alunos que relatassem sobre a importância da leitura literária para formação do sujeito e todos afirmaram considerá-la muito importante,
pois “ajuda na formação dos alunos, através da leitura aprendemos a escrever melhor, mas também conhecemos várias outras coisas, vários lugares, várias pessoas
mesmo que de forma imaginária” (A5). Dessa forma, percebemos que o aluno 5
tem compreensão do que seja uma leitura por prazer. Observamos que este estudante parece perceber que este tipo de leitura pode proporcionar muito mais
do que aprender a ler e escrever corretamente, pois como nos garante Amarilha
(2006, p.54) “devemos lembrar que ler literatura é uma atividade experiencial, isto
é propicia ao leitor vivenciar emoções, situações, sentimentos sobre os quais passam a ter algum conhecimento, portanto, passa a ter certeza sobre alguma coisa”.
Esse entendimento pode ser reforçado com o que nos afirma o aluno 1 quando diz:
“Ler é fundamental, com a literatura conseguimos entender a nossa existência e
alimentar a nossa vida” (A1).
1. Todos os alunos aqui serão identificados com a letra A e o número correspondente ao número do
questionário.
3604
Maria Gorete Paulo Torres, Ananias Agostinho da Silva, Larissa Cristina Viana Lopes
Outra solicitação feita aos alunos pesquisados foi que elencassem as principais obras literárias que foram lidas por indicação da professora de Literatura, ou mesmo durante os dois primeiros anos do ensino médio e que comentassem algo sobre essas obras. Nos chama atenção o fato de todos os alunos terem
citado “A hora da estrela”e “A culpa é das estrelas”. Quanto aos comentários
sobre as obras é interessante observarmos o que diz o aluno 1: “A culpa é das
estrelas é uma obra muito boa, pois além de tratar de um tema que chama a
atenção dos jovens e adolescentes pode ser comparado com a obra A hora da
estrela como disse a nossa professora” (A1).
Observando analiticamente a fala do aluno 1, podemos afirmar que um dos
principais passos dado pelos professores de Literatura para incentivar a leitura
literária por prazer é procurar oferecer o acesso ao livro e a literatura para os
jovens e adolescentes, introduzindo temas de interesses dos mesmos, os quais
encontramos não somente na literatura popular como também nos clássicos.
Cabe ao professor e a escola proporcionar essa vivência diária do aluno com
o texto literário, abrindo espaço para a leitura no ambiente e incentivando a
mesma nos demais ambientes.
Outro fator interessante na fala deste mesmo aluno é o fato da professora
ter indicado uma possível relação existente entre as duas obras, mesmo que
possivelmente essa relação seja de nomes. Mesmo assim, consideramos isso
um ponto positivo, pois parece que a referida profissional vê nas obras consideradas/chamadas de best-sellers como porta aberta para os clássicos, como afirmou-nos a própria professora. Alguns alunos afirmaram a presença em sala de
aula das “literaturas de cordéis” de “poemas de vários autores” e dos “clássicos.
Logo, podemos dizer que percebemos certa abertura para a diversidade
literária na turma pesquisada, já que verificamos a presença da literatura popular, dos best-sellers e das obras clássicas, o que nos leva a afirmar que, mesmo de forma parcial, o ensino de Literatura tem contribuído para a formação
leitora e intelectual dos sujeitos pesquisados.
3605
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Para efeito de fim...
Refletir sobre o ensino de Literatura tem sido algo bastante presente na
academia e pensar a leitura literária como um caminho prazeroso e instigante
para qualquer ser humano deve ser uma das prioridades do professor. É com
esse entendimento que realizamos esta pesquisa e nos deparamos com os seguintes resultados: na turma pesquisada o ensino de Literatura tem sido centralizado na história da literatura, o biografismo dos autores e alguns aspectos
ligados às obras, e acabam por não valorizar, como deveriam, a verdadeira essência da literatura e de um trabalho sistematizado com a leitura literária. Esse
fato pode ser atribuído a pouca qualificação da professora da disciplina e a falta
de uma formação continuada.
Mesmo diante dessas implicações, nossos resultados mostram que na turma pesquisada parece existir certa abertura para a diversidade de textos literários, embora isso ocorra de forma superficial, mais como uma indicação de
leitura, com pouco trabalho voltado para instigar o gosto pela leitura literária.
Mesmo assim, a professora solicita/indica aos seus alunos a leitura de cânones,
de literatura de cordéis e dos chamados best-sellers.
Essa diversidade literária, presente na turma pesquisada, é considerada
por nós muito importante, haja vista compreendermos que a mesma é fundamental para formação do sujeito e que tanto a literatura de cordel como a considerada popular, talvez estejam mais perto do povo e podem ser uma ponte
para a leitura da literatura considerada oficial. A própria pesquisa sugere que
poderá ser realizado um trabalho eficaz dos best-sellers aos cânones.
Portanto, nossa pesquisa mostra que, mesmo de forma parcial, o referido
ensino de Literatura no ensino médio tem contribuído para a formação leitora
e intelectual dos discentes envolvidos, mas que muito ainda necessita ser feito
para podermos dizer que esse ensino tem se apresentado de forma coesa, com
resultados concretos que instiguem o gosto pela leitura literária e formando
leitores proficientes.
3606
Maria Gorete Paulo Torres, Ananias Agostinho da Silva, Larissa Cristina Viana Lopes
Referências
AMARILHA, M. Alice que não foi ao país das maravilhas: a leitura crítica na sala de
aula. Petrópolis: Vozes, 2006.
CANDIDO. A. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.
SILVA, E. Elementos da pedagogia da leitura. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ZILBERMAN, R. A leitura e o ensino da Literatura. São Paulo: Contexto, 1988.
3607
RESUMO
O presente artigo pretende fomentar a discussão sobre o trabalho com literatura nas
aulas de língua materna do ensino fundamental. Embora estudiosos e documentos
oficiais defendam e orientem que a abordagem do texto literário possibilita também
a realização de atividades de análise linguística, o fato é que essa prática não é realidade em grande parte de nossas escolas, onde o texto literário, quando é utilizado, serve na maioria das vezes como pretexto para o reconhecimento de estruturas
gramaticais. Por considerar a necessidade de formar leitores (e por consequência
cidadãos) que possam assumir discursos e posicionamentos críticos, construtivos e
responsáveis nos diversos contextos que a sociedade nos impõe, apresentamos aqui
proposta pedagógica de trabalho articulado entre língua e literatura, na qual o texto
literário configura-se como ponto de partida do processo ensino/aprendizagem nas
aulas de Português. Sendo assim, o principal objetivo deste artigo é defender que o
trabalho contextualizado com a literatura possa acontecer a partir do ensino fundamental, e para isso, apresentamos exemplo de sequência didática ancorada em
descritores da Avaliação Nacional do Rendimento Escolar – Anresc (conhecida
como Prova Brasil) em torno do conto “Atlântico” (do autor cearense radicado no
Recife Ronaldo Correia de Brito) com a intenção de ilustrar que é possível o trabalho
articulado com as unidades básicas do ensino de língua – leitura, análise linguística
e produção textual – tomando como ponto de partida o texto literário.
Palavras-chave: Ensino de literatura, Leitura, Língua, Literatura.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
ENSINO DE LÍNGUA E LITERATURA:
POR UMA PRÁTICA DIALÓGICA
Manuela Travasso da Costa Ribeiro (UPE)
Introdução
Considerar que os usos da linguagem são a concretização dos modos como
compreendemos o mundo implica em concordar que as práticas de linguagem
constituem os sujeitos. Em um mundo permeado por inovações tecnológicas
e veículos de comunicação de massa, torna-se fácil e recorrente a repetição
do discurso alheio em lugar da ressignificação do que se percebe na interação
com o outro, da constituição de seres permanentes, enunciadores de discursos
próprios.
Em nossa sociedade, a escola desempenha um papel crucial em vários aspectos da formação dos sujeitos. Quando nos referimos à escola pública, não
podemos negar sua obrigação, em especial com as classes economicamente menos favorecidas, de prestar serviços que possibilitem aos cidadãos participar e
interferir de maneira ativa nos contextos em que estão inseridos. Assim, é necessário considerar as atividades de leitura como elementos-chave desse processo
tão complexo.
É sabido que o trabalho com a linguagem em sala de aula deve acontecer no
intuito de formar pessoas capazes de assumir-se enquanto sujeitos do próprio
discurso, e nesse sentido, a inserção do texto literário no currículo influencia fortemente o desenvolvimento das várias maneiras de se expressar, como “predicar,
formar e apresentar, pelo discurso, um ponto de vista” (BOSI, apud LEITE, 2012. p.
19). Além disso, por meio da leitura literária o usuário da língua obtém subsídios
para a construção de discursos mais subjetivos, já que através da leitura do texto
3609
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
literário “a obra passa de um mero artefato artístico a um objeto estético, passível
de contemplação, entendimento e interpretação” (ZILBERMAN, 2001, p. 51).
Há pelo menos três décadas os problemas relacionados ao trabalho com leitura literária no ambiente escolar vêm sendo discutidos, e observa-se na maior
parte das vezes o insucesso de práticas descontextualizadas que não resultam
na formação de leitores capazes de interagir socialmente ou de destacar-se no
mercado de trabalho.
Assim, não é difícil observar que na escola pública brasileira raramente os
estudos de língua e de literatura integram-se durante as aulas de língua materna, cabendo aos professores com a intenção de realizar um trabalho interacional
- que a partir do uso da linguagem possa inscrever socialmente o sujeito – enfrentar os desafios que existem quando há tentativas de superar a dicotomia
língua/literatura na prática escolar cotidiana
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa - PCNLP
(1998) – colocam como um dos objetivos do ensino fundamental possibilitar ao
estudante “posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos
e de tomar decisões coletivas”. Assim sendo, é mister que as aulas de português
possam trabalhar língua e literatura de maneira articulada e dinâmica, em sua
relação com sujeitos que, como se disse, ao mesmo tempo as constituem e nelas se constituem.
A adoção de estratégias metodológicas que associem à leitura literária o
trabalho com as outras unidades básicas do ensino de Língua Portuguesa deve
configurar-se, então, como um dos objetivos centrais dos planejamentos de ensino desse componente curricular no ensino fundamental.
A propósito da problemática que se pretende levantar aqui, apresentamos
proposta de sequência didática (anexo I) elaborada de acordo com as ideias de
estudiosos como Geraldi (2014); Leite (2014) e Cosson (2006), entre outros, a
ser desenvolvida em turma de 9º ano do ensino fundamental, na qual partindo
da leitura de um conto, seja possível a abordagem de aspectos linguísticos que
ajudem a construção, pelos alunos, de competências de aprendizagem previstas
pelos descritores da avaliação nacional do rendimento escolar – ANRESC (mais
conhecida como prova Brasil).
3610
Manuela Travasso da Costa Ribeiro
A (não) abordagem do texto literário durante
o ensino fundamental
Apesar das discussões sobre a relação entre literatura e ensino de língua
não serem novidade, essa é uma temática extremamente pertinente à formação
cidadã que deve ser promovida pela escola. Exceções à parte, continua sendo
comum que a abordagem de língua e de literatura no ambiente escolar aconteça
de forma a considerá-las como sistemas fechados em si, autônomos em relação
a seus usuários e leitores. Se for objetivo dessa escola, no entanto, inserir o educando como sujeito crítico nas práticas de leitura e nos circuitos comunicativos
como preconizam estudiosos da linguagem (a exemplo de GERALDI, 2012), tornar-se-á fundamental a superação de conceitos ultrapassados de leitura, ensino
de língua e de literatura principalmente por parte dos educadores.
Ao concordar que “o texto literário usa de todas as modalidades da língua e
de toda a criatividade do falante” (LIMA, 2006, p. 111), concebemos a importância do trabalho constante de leitura e escrita a partir dessa categoria de texto,
em especial nos primeiros anos do processo de educação formal. Vale lembrar
aqui que, se durante o ensino médio o trabalho com o texto literário mostra-se
problemático, podemos constatar a quase ausência de práticas consistentes que
considerem as peculiaridades desse tipo de texto durante os anos que correspondem ao ensino fundamental. Além disso, se formos buscar nos documentos oficiais orientações que norteiem o trabalho com literatura especificamente
durante o ensino fundamental II, iremos nos deparar com uma grande lacuna a
esse respeito, o que dificulta bastante a realização de um trabalho que enfatize
o uso do texto literário, e mais ainda que o uso desse texto esteja articulado com
as abordagens gramaticais e de produção textual.
Diante disso, a realização de estudos e pesquisas objetivando a análise da
utilização do texto literário nas aulas de língua portuguesa no ensino fundamental, bem como a proposição de estratégias metodológicas que possam conectar a
literatura aos demais âmbitos do ensino da língua materna apresentam-se como
questões de extrema importância no panorama socioeducacional da atualidade.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Concepção de literatura e de aula de língua portuguesa
Os questionamentos sobre como superar a relação contraditória entre língua e literatura em sala de aula dão origem a outras dúvidas e problemas. Ocasionalmente entre eles, a confusão de ideias, por parte do professor, sobre que é
ensinar português. Podemos refletir “em que medida e em que sentido é possível
ensinar a língua materna a pessoas que a utilizam com todo o domínio necessário para se expressar e se comunicar na sua vida cotidiana? É ensinar a norma culta? É ensinar a língua escrita?” (LEITE, 2012, p. 19). Sobre essa questão,
Suassuna (2006), afirma que a aula de português deve ser, acima de tudo, um
momento de produção simbólica e constituição de subjetividades, no qual concretizam-se interações, e que desse processo serão decorrentes visões de mundo
e expressões delas.
Nessa perspectiva, um fazer pedagógico que não subestime o uso do texto
literário pode evitar visões de mundo alienadas e limitadas, pois esse recurso
reforça não só nossa identificação com o discurso do outro, como também a
aprendizagem sobre nossas próprias subjetividades.
Partindo do pressuposto de que as atividades que incluam o texto literário
devem fazer parte do cotidiano escolar desde cedo, inclusive porque a linguagem da arte explora recursos que estimulam o imaginário e a criatividade do ser
humano, defende-se aqui a responsabilidade da escola em relação ao ensino do
texto literário:
O exercício dessa função [...] é delegado à escola, cuja competência precisa tornar-se mais abrangente, ultrapassando a tarefa usual de transmissão de um saber socialmente reconhecido e herdado do passado. Eis
porque se amalgamam os problemas relativos à educação, introdução à
leitura, com sua consequente valorização, e ensino da literatura, concentrando-se todos na escola, local de formação do público leitor. (ZILBERMAN, 1991, p.16)
Reconhecendo a escola como o local onde as relações entre língua e literatura devem ser oficialmente construídas, o professor atua como um dos principais sujeitos para que o elo entre essas instâncias do ensino de língua materna
possa de fato existir. Torna-se conveniente apresentar, então, as concepções mais
3612
Manuela Travasso da Costa Ribeiro
comuns do que vem a ser literatura, já que a prática do professor estará intrinsecamente ligada à forma como concebe arte literária. Consideraremos aqui, as
significações elencadas por Leite (2012, p. 21):
(I)
(II)
(III)
(IV)
(V)
Instituição nacional, patrimônio cultural.
Sistema de obras, autores e público.
Disciplina escolar que se confunde com história literária.
Texto consagrado pela crítica como literário.
Qualquer texto, mesmo não consagrado, com intenção literária,
visível num trabalho da linguagem e da imaginação, ou
simplesmente esse trabalho enquanto tal.
Para que a obra literária possa dialogar com o contexto em que se insere, as
premissas I, III e IV, que ainda vigoram na prática de nossas escolas, não deveriam fazer parte da concepção de literatura do professor, pois servem à reprodução de valores sociais hierarquizantes e que vão de encontro aos ideais de uma
educação que se proponha a lutar contra as mais diversas formas de desigualdade social.
Apesar da importância do estudo da literatura também enquanto sistema
de obras e autores (II), para Leite (2012, p. 22), é mais importante e proveitoso que
o exercício da leitura e da escrita com base no texto literário aconteça considerando a vivência do processo gerador do objeto artístico: a criatividade no trabalho com a linguagem. Por essa linha de pensamento, a acepção V possibilitaria o
ensino integrado de língua e literatura:
Essa concepção mais ampla da literatura nos leva a pensar nas possibilidades de uma educação diferente daquela que a escola burguesa propõe.
Crítica e transformadora do modelo de sociedade que sustenta, supõe,
também, como já dissemos, outra concepção da linguagem e da própria
língua, que transcenda aquela tradicionalmente dominante na escola,
de instrumento cujo domínio técnico asseguraria a comunicação escrita ou falada. (LEITE, 2012, p. 22)
Sob a perspectiva de um trabalho pedagógico interacionista em língua portuguesa, ao darmos um lugar de destaque ao texto literário em sala de aula, não
é possível desconsiderar o papel do leitor quando da interação com esse tipo de
3613
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
texto. Sendo a literatura uma linguagem constituída por vários significados, a
materialização do uso criativo dos recursos oferecidos pela língua, a inserção do
texto literário num determinado contexto possibilita que o leitor aceite ou não o
discurso do texto, baseado em suas vivências e experiências prévias, como bem
afirma Benvenuti (2012, pp. 29/30):
A realidade de um texto se encontra na imaginação do leitor, assim,
por essa natureza, a obra tem maior chance de transcender sua posição
histórica. Isso pode mostrar que os textos literários resistem ao curso
dos tempos, não porque representem valores eternos supostamente independentes no tempo, mas porque sua estrutura permite ao leitor continuamente colocar-se dentro do mundo ficcional. (...) Portanto, a obra
de arte literária só existe verdadeiramente graças ao leitor; pois o autor
coloca suas ideias no texto, mas quem se converte em sujeito delas é o
leitor no ato de ler. Aí se desvanece a separação entre sujeito e objeto,
divisão inerente a todo processo de conhecimento e percepção. A leitura se torna, então, uma possibilidade especial de acesso à experiência de
outro mundo, já que o leitor está ocupado pelos pensamentos do autor.
Para que os leitores (que aqui se concretizam nos estudantes presentes em
nossas salas de aula) possam exercer práticas leitoras e de produção de textos
que realmente circulam na sociedade, ou seja, possam ser considerados cidadãos
letrados, faz-se necessário que o trabalho dialógico entre língua e literatura - já
que o texto literário tem características bastante peculiares - aconteça levando
em consideração o conceito de letramento literário: prática social de construção
de sentidos que deve ser promovida pela escola (COSSON, 2011, p. 23), porque,
ainda de acordo com o autor, esse tipo de letramento é capaz de proporcionar
um modo privilegiado de inserção no mundo da escrita, uma vez que conduz ao
domínio da palavra a partir dela mesma. Cosson (2011) reafirma constantemente
que a escola é necessária e fundamental na realização do processo do letramento
literário, porque para que ele aconteça, deve haver procedimentos educativos
específicos.
Levando em conta o que foi colocado até então, cabe sintetizar ao problema
que estamos discutindo: como deve ser a abordagem do texto literário nas as
aulas de português por professores com a intenção de proporcionar a seus estudantes uma formação, além de linguística, humanitária e cidadã? Ou,
3614
Manuela Travasso da Costa Ribeiro
até que ponto a separação estanque entre ensino de língua e ensino de
literatura é necessária à separação didática das disciplinas. Ou até que
ponto ela é fruto de uma concepção estreita tanto da língua quanto da literatura que permite domesticá-las em conteúdos inofensivos à adequação do jovem à sociedade burguesa pela escola burguesa. Até que ponto
integrar dinamicamente língua e literatura na escola põe em questão
essa concepção, desvendando as possibilidades formadoras de um trabalho com a linguagem que abra novas alternativas para a escola e para
a sociedade? (...) até que ponto também se a literatura para de ser mero
veículo de conteúdos gramaticais ou outros e a língua deixa de ser mero
sistema de normas a decorar, e se integram dialeticamente numa prática
de alunos-sujeitos do dizer e do pensar, o que se está superando é toda
uma concepção de saber como soma de informações a consumir, um conhecimento sedimentado a reproduzir sem inventar, e se está afirmando
o saber como um trabalho do pensamento? (LEITE, 2012, pp. 24/25)
Sendo assim, e ainda de acordo com Leite (2012, p. 25), é essencial que a concepção do fazer pedagógico em língua portuguesa supere a alienação que subjaz à concepção tradicional de literatura, de língua e de aprender, e que nosso objetivo como
professores seja ajudar a construir uma capacidade linguística plural, contrariando
o atraso que continua presente nas práticas que predominam em nossas escolas e
contribuindo para formar sujeitos que agem para a transformação do mundo.
Gêneros textuais e ensino de língua materna
As pesquisas sobre o aperfeiçoamento de procedimentos para o ensino de
língua materna têm gerado resultados bastante relevantes nos últimos tempos,
destacando-se entre as surgidas desde o final do século passado, os postulados
sociointeracionistas sobre os processos de aprendizagem de Vygotsky; os avanços no campo dos estudos sobre o letramento - que investigam as práticas sociais
envolvendo leitura e escrita e as teorias a respeito dos conceitos de texto e discurso. Aplicados à prática, esses estudos possibilitaram considerar a língua em
seu aspecto social. É a partir daí que passamos a levar em conta que os fatores
cognitivos, políticos, linguísticos e de enunciação colaboram em conjunto para
que haja o ensino e o aprendizado de língua.
Teorias fundamentadas nos estudos de Bakhtin (2000), Schneuwly e Dolz
(2004), deram origem ao conceito de gênero textual: “Em geral, são chamados gê3615
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
neros textuais os textos particulares, que têm organização textual, funções sociais, locutor e interlocutor definidos”. (BEZERRA, 2005, p. 40)
Ao concordar com Koch (2011), que defende a ideia de linguagem como interação, a sequência que apresentamos aqui considera que os sentidos do texto se
constroem a partir da interação entre autor e leitor, pois a autora está de acordo
com a teoria bakhtiniana de que o texto constitui um evento sociocomunicativo.
Diante disso, as pesquisas sobre o ensino de língua materna com base no
estudo dos diversos gêneros textuais que circulam em sociedade tornam inaceitável que práticas docentes descontextualizadas ainda tenham vez, pois
... a linguística aplicada, preocupada com o ensino de língua materna,
defende a ideia de que se deve favorecer o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos e, para isto, os textos escritos e orais
sejam objeto de estudo (leitura, análise e produção). Assim, o gênero é fundamental na escola, visto que, segundo Schneuwly e Dolz, é
ele que é utilizado como meio de articulação entre as práticas sociais
e os objetos escolares, mais particularmente, no domínio do ensino
da produção de textos orais e escritos. (...) O estudo de gêneros leva
em conta seus usos e funções numa situação comunicativa. Com isso,
as aulas podem deixar de ter um caráter dogmático e/ou fossilizado.”
(BEZERRA, 2005, p.41)
Quando o ensino de língua na escola acontece a partir da ideia de gênero textual o processo educativo não se torna mais simples apenas para o professor (que
pode planejar e trabalhar de maneira mais sistemática), pois os estudantes, por
sua vez, são desafiados a interagir com textos que de fato circulam na sociedade,
e que em seu caráter discursivo, acrescentam a esse aprendizado além dos óbvios
elementos linguísticos, os elementos históricos, sociais, políticos e ideológicos.
A seleção textual
A escolha de trabalhar a partir do gênero conto, cuja acepção literária da palavra é apresentada por Moisés (1997, p. 15) como “ficção” ou “invenção” (originada do vocábulo latino commentu), se deu levando em consideração o caráter narrativo do gênero, que além de possibilitar uma maior aproximação do universo
do público com que trabalhamos (adolescentes de 9º ano) permite a abordagem
3616
Manuela Travasso da Costa Ribeiro
de situações da realidade através de analogias com elementos ficcionais. Evidentemente que outros gêneros narrativos, como o romance, poderiam atender
a esses critérios, porém a extensão do gênero escolhido também foi considerada, pois em linhas gerais, o conto apresenta menor complexidade no enredo (se
comparado a narrativas mais longas) e consequentemente menos personagens,
permitindo o planejamento de uma sequência mais “enxuta” e dinâmica, geralmente mais propícia, de acordo com nossa vivência docente, ao público adolescente. Sobre a relação entre leitura e extensão do gênero, Edgar Allan Poe, em
sua Filosofia da Composição (2000), considera que
Se uma obra literária é muito extensa para ser lida de uma só assentada,
devemos resignar-nos a eliminar o efeito, soberanamente decisivo, da
unidade de impressão; porque quando são necessárias duas assentadas,
interpõem-se entre elas os assuntos do mundo, e o que chamamos de
conjunto ou totalidade cai por terra.
A opção por basear nosso trabalho em torno do gênero conto, levou em consideração também o que sugerem os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998,
p.24) a respeito da seleção de textos para o trabalho com língua portuguesa durante o ensino fundamental (terceiro e quarto ciclos),
Os textos a serem selecionados são aqueles que, por suas características e usos, podem favorecer a reflexão crítica, o exercício de formas de
pensamento mais elaboradas e abstratas, bem como a fruição estética
dos usos artísticos da linguagem, ou seja, os mais vitais para a plena
participação numa sociedade letrada.
Em consonância com o que orientam os PCN, a escolha de trabalhar com
“Atlântico”, do autor cearense radicado no Recife Ronaldo Correia de Brito, se
justifica também devido às temáticas da tensão e dos conflitos decorrentes das
relações entre classes sociais e da violência contra a mulher, visto que esses não
são apenas assuntos/problemas de interesse da sociedade como um todo, mas se
mostram especialmente latentes no contexto em que a maior parte dos estudantes das escolas públicas brasileiras estão inseridos.
3617
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Atlântico” e o retrato de uma sociedade dividida
“Atlântico” tem como fio condutor a história da adolescente Cecília, que vive
na periferia da cidade do Recife com a avó e irmãs, pois não conhece o pai e a
mãe morreu após seu parto. A protagonista é uma estudante de escola pública
de ensino médio moradora de uma cidade onde uma linha tão tênue quanto
intransponível separa não só prédios de luxo de casebres, mas divide seus moradores pela reprodução constante de uma hierarquia social imposta por raça,
dinheiro e gênero. A história da estudante se passa às margens do Capibaribe,
rio que se apresenta como elemento fundamental na construção da família de
Cecília, e que figura também, em “Atlântico”, como divisor de classes sociais. A
separação de classes que o Capibaribe metaforicamente estabelece no conto reforça a desigualdade de gênero e consequentemente a violência que se impõe sobre as mulheres, especialmente às que constituem as populações mais carentes.
Em paralelo à vida de Cecília, o leitor é apresentado a mais duas histórias
marcadas pela violência imposta a figuras femininas que claramente aludem a
fatos ocorridos na realidade além ficção, mas que no conto, imbricadas com a
história da jovem, constroem uma narrativa rica em elementos que proporcionam uma leitura que automaticamente faz refletir sobre as relações sociais instituídas em nosso cotidiano.
Dessa forma, ao apresentar os estudantes a um autor contemporâneo e conterrâneo e pouco conhecido (ou até desconhecido) do ambiente escolar, procuramos atender também às recomendações dos PCN (1998), que sobre o processo
de leitura de textos escritos, deve-se esperar que “seja receptivo a textos que
rompam com seu universo de expectativas, por meio de leituras desafiadoras
para sua condição atual, apoiando-se em marcas formais do próprio texto ou em
orientações oferecidas pelo professor”.
Diante disso ressaltamos a pertinência temática dessa leitura com relação
ao público a que se destina: o texto é construído a partir de um primoroso trabalho linguístico - característico do bom texto de literatura, que se soma ao fato
do enredo elencar muitos fatores que se assemelham à realidade de nossos estudantes, o que reforça as possibilidades de conduzir uma sequência didática contextualizada considerando a realidade dos alunos, e corroborando com a ideia de
aula de português de Suassuna (2006) como momento de produção simbólica e
construção de subjetividades.
3618
Manuela Travasso da Costa Ribeiro
A avaliação nacional do rendimento escolar e as
matrizes de referência de língua portuguesa
Como foi anteriormente mencionado, é importante enfatizar aqui que além
de constatarmos a carência de orientações a respeito do ensino de literatura por
parte dos documentos oficiais, praticamente inexistem registros ou recomendações que tratem da articulação pedagógica entre o texto literário e o estudo de
aspectos linguísticos em aulas de português. Embora em muitas situações as diretrizes que norteiam o trabalho com leitura contemplem a abordagem do texto
literário, pontuamos a necessidade de orientações mais detalhadas e direcionadas ao trabalho com esse tipo de texto, posto que o texto de literatura, em seus
diversos gêneros, apresenta características bastante específicas.
Por conta dessa ausência de orientações, elencamos aqui descritores relativos aos tópicos que compõem a matriz de referência de língua portuguesa para
o 9º ano da avaliação nacional do rendimento escolar (Anresc), mais conhecida
como Prova Brasil, para nortear as habilidade e competências que podem ser
construídas pelos estudantes a partir da vivência pedagógica proposta.
A Anresc/prova Brasil é uma das avaliações externas que compõem o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que por sua vez, objetiva a avaliação
da educação básica brasileira no intuito de compreender o que influencia o desempenho estudantil; elevar a qualidade da educação; possibilitar a universalização do acesso à escola e oferecer elementos que ajudem a formular, reformular
e monitorar políticas públicas para esse nível de ensino. Participam desse processo de avaliação alunos do 5º ano e do 9º ano do ensino fundamental de escolas
públicas que tenham pelo menos vinte alunos compondo as referidas turmas.
A respeito da avaliação em língua portuguesa, o site do Instituto Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP, entidade
pública federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC), diz o seguinte:
O ensino da Língua Portuguesa, segundo diretrizes do Conselho Nacional de Educação e dos Parâmetros Curriculares Nacionais, deve voltarse para a função social da Língua. Deve-se constituir como requisito básico para que o indivíduo ingresse no mundo letrado e possa construir
seu processo de cidadania, integrando a sociedade como ser participan-
3619
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
te e atuante. Os testes de Língua Portuguesa da Aneb e Anresc (Prova
Brasil) têm como foco a leitura. Seu objetivo é verificar se os alunos são
capazes de apreender o texto como construção de conhecimento em
diferentes níveis de compreensão, análise e interpretação. A alternativa
por esse foco parte da proposição de que ser competente no uso da língua significa saber interagir, por meio de textos, em qualquer situação
de comunicação
As competências esperadas dos estudantes que são submetidos à avaliação
são apresentadas, por etapa (série) nos descritores da Matriz de Referência de
Língua Portuguesa. Seis tópicos compõem a matriz de referência de língua portuguesa, que estão relacionados a habilidades que devem ser desenvolvidas pelos
estudantes. Cada tópico apresenta descritores (diferentes para cada série) ligados
às competências desenvolvidas. Para direcionar a elaboração de nossa sequência,
e elegemos os seguintes descritores:
D1 – Localizar informações explícitas em um texto; D3 – Inferir o sentido de uma palavra ou expressão; D4 – Inferir uma informação implícita
em um texto; D6 – Identificar o tema de um texto; D11 – Distinguir
um fato da opinião relativa a esse fato; D12 – Identificar a finalidade de
textos de diferentes gêneros; D20 – Reconhecer diferentes formas de
tratar uma informação na comparação de textos que tratam do mesmo
tema, em função das condições em que ele foi produzido e daquelas
em que será recebido; D2 – Estabelecer relações entre partes de um
texto, identificando repetições ou substituições que contribuem para
a continuidade de um texto; D9 – Diferenciar as partes principais das
secundárias em um texto; D10 – Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a narrativa; D11 – Estabelecer relação
causa/consequência entre partes e elementos do texto; D13 – Identificar
as marcas linguísticas que evidenciam o locutor e o interlocutor de um
texto.
Ressaltamos que a utilização desses descritores como referencial para os objetivos de aprendizagem pretendidos pela proposta apresentada se dá, além dos
motivos já expostos, pelo fato da Prova Brasil representar a principal avaliação
3620
Manuela Travasso da Costa Ribeiro
do rendimento dos estudantes de ensino fundamental de escolas públicas em
nosso país. Sugerimos também a adoção desses descritores para auxiliar a elaboração de planejamentos de aulas de Português de acordo com os princípios que
procuramos apresentar neste artigo, ou seja, que possibilitem uma abordagem
do texto literário contextualizada e não dissociada dos outros aspectos do ensino
de língua.
A sequência didática
De acordo com o que temos exposto, apresentamos aqui exemplo de sequência didática (em anexo) que de maneira esquematizada sintetiza as ideias
discutidas até então. O trabalho foi elaborado de acordo com o conceito de sequência de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p.97): “conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral
ou escrito”. Propomos, assim, o planejamento de atividades didáticas encadeadas
em que o texto literário, além de ser explorado em suas peculiaridades, propicie
o trabalho articulado com conteúdos mais essencialmente linguísticos do ensino
de Português e contribua para construir competências de aprendizagem necessárias ao uso proficiente da língua nos âmbitos da leitura, análise e produção
textual.
Algumas considerações sobre a incompletude do estudo
Acreditamos na educação como alternativa “libertadora” na vida dos sujeitos que constituem nossa sociedade, correspondendo à escola um dos papeis
fundamentais do processo educacional. O trabalho dos profissionais de educação deve acontecer, em primeiro lugar, objetivando a diminuição das diferenças
sociais que em nosso país ainda são tão latentes.
Diante disso, as aulas de língua materna figuram como elemento chave
nesse contexto, pois o uso proficiente da língua em situações variadas é determinante para a formação cidadã plena dos indivíduos. O presente artigo propõe
que voltemos a atenção para temas que carecem de ser mais pensados e discutido por educadores e linguistas: a abordagem do texto literário em salas de aula
3621
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
do ensino fundamental e sua articulação com o trabalho de análise linguística e
produção textual nessas aulas.
É por conceber a literatura como representação simbólica da vida e considerar a riqueza de possibilidades com que a linguagem pode ser trabalhada, que
nossa proposta traz o texto de literatura como centro do planejamento didático. O exemplo apresentado não pretende representar um modelo a ser seguido,
mas um esboço de sequência fundamentada nas recomendações de documentos
orientadores oficiais e em teóricos como Cosson (2006), Koch (2007), Marcuschi
(2005), Suassuna (2006) e Zilberman (1991), entre outros, e passível ser vivenciada numa turma de 9º ano do ensino fundamental.
Destacamos que na ocasião da apresentação deste estudo, o referido planejamento ainda não havia sido posto em prática pela autora. Dessa maneira,
esclarecemos que pretendemos posteriormente complementá-lo com o registro
e a análise da experiência vivenciada. Vale ressaltar também que o exemplo de
sequência que apresentamos é flexível e possível de ser adaptado (temática, gênero enfocado, conteúdos) de acordo com o perfil dos estudantes a que se destina. Essa abertura também se refere ao presente estudo como um todo, visto que
a bibliografia sobre a problemática levantada ainda é escassa, e que toda contribuição que possa somar é bem-vinda.
Nossa intenção é, portanto, principalmente de contribuir para a discussão
sobre abordagem do texto literário nas aulas de língua portuguesa, já que acreditamos na relevância da leitura e do trabalho linguístico partindo dessa modalidade textual para a formação de cidadãos capazes de utilizar a língua com autonomia, raciocinar e atuar com criticidade e autenticidade, e interferir de maneira
positiva na construção de uma sociedade menos injusta e desigual.
Referências
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BEZERRA, Maria A. Ensino de língua portuguesa e contextos teóricos metodológicos.
In:DIONÍSIO, Angela; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria A. Gêneros textuais e
ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
3622
Manuela Travasso da Costa Ribeiro
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verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
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– elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófona). In: SCHNEUWLY,
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KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos dos textos.
2. ed. São Paulo: Contexto, 2007
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O texto na sala de aula. São Paulo: Anglo, 2012.
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fora da escola. In: ZILBERMAN, Regina; RÖSING, Tania (Orgs.). Escola e leitura: velha
crise; novas alternativas. São Paulo: Global, 2009.
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blogspot.com.br/2015/06/quem-o-machismo-matou-hoje-por-luce.html#!/tcmbck>acesso
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Disponível em http://www.elsonfroes.com.br/filosofia.htm>acesso em 06/08/2015
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ZILBERMAN, R. Leitura literária e outras leituras. In: BATISTA, A. G., GALVÃO, A. M. de O.
(Org.). Leitura: práticas, impressos, letramentos. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
3623
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Anexo I - sequência didática
(tema: conflitos de classe/violência contra a mulher)
UNIDADE
DE ENSINO
Leitura /
Literatura
CONTEÚDOS
OBJETIVOS
PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS
RECURSOS
DIDÁTICOS
CH
I.
I.
I.
I.
2h
Explicitação de
elementos da
narrativa - diálogo
e cenário
- Identificar
em um conto
estratégias de
construção de
um diálogo;
- Realizar leitura de
trecho do conto
"Atlântico" (p. 5-9)
- Lousa.
- Ficha com
trecho do conto
"Atlântico"
- Mapa do
Recife
Reconhecer
diferentes formas
de tratar uma
informação na
comparação de
textos que tratam
do mesmo tema,
em função das
condições em que
ele foi produzido e
daquelas em que
será recebido;
- Identificar
em um conto
estratégias de
construção de
cenários.
- Pedir que alunos
avaliem quem são
os participantes do
diálogo inicial e qual
o contexto em que
acontece.
- Induzir os alunos
sobre a situação de
abuso sexual presente
na narrativa e da
ocultação da voz da
mulher no trecho
como maneira de
reforçar a violência
- Discutir com os
alunos a forma como
o autor apresentou
o cenário, seguindo
o curso do rio,
localizando os bairros
no mapa da cidade.
3624
Manuela Travasso da Costa Ribeiro
Leitura/
Análise
linguística /
Literatura
II.
II.
II.
II.
- Conceito de
intertextualidade.
- Identificar
elementos
intertextuais em
texto ficcional;
- Dar continuidade
à leitura do conto
"Atlântico" (p. 9-13)
- Lousa.
- Ficha com
trecho do conto
"Atlântico"
- Explicitação de
elementos da
narrativa - tempo,
cronologia,
flashback
- Violência de
gênero
- Reconhecer
marcas de
fragmentação
do tempo
na narrativa
(espaço de
respiro)
- Discutir a
violência de
gênero
- Ler trecho em que
se cita o filme "Tess",
de Roman Polanski e
apresentar o conceito
de intertextualidade.
- Apresentar sites
ou textos de vídeo
que façam referência
ao filme "Tess" e ao
caso do estupro de
Samantha Geimer por
Roman Polanski.
- Discutir com os
alunos o uso dos
espaços de tempo
entre os fragmentos da
narrativa e apresentar
o conceito de narrativa
não linear.
- Questionar os alunos
sobre os diálogos
presentes no conto
(p. 5 e p. 13), fazendoos entender que não
se referem ao tempo
presente, sendo
caracterizados como
flashbacks.
3625
- Projetor/
notebook
2h
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
UNIDADE
DE ENSINO
Leitura/
Oralidade
CONTEÚDOS
OBJETIVOS
PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS
RECURSOS
DIDÁTICOS
CH
III.
III.
III.
III.
4h
- Violência de
gênero
- Tensões sociais;
- O mito de
"Cinderella"
- Refletir sobre
temas presentes
num texto
literário
- Ler trecho do conto
"Atlântico" (p. 13-21).
- Lousa
Ficha com
trecho
do conto
"Atlântico"
- Projetor/
notebook
- Trecho
da novela
"Babilônia"
Reconhecimento
de marcas
ideológicas em
um texto
Identificar o tema
de um texto
- Estimular o
debate oral
através de temas
suscitados por
um texto literário.
- Perceber a
construção do
discurso de
"conciliação de
classes" presente
em narrativas
televisivas
- Extrair dos alunos que
temas acreditam que
são problematizados no
trecho do Country Club
(tensão social, corrupção
da sociedade em todas
as camadas) e do caso
Guadalupe (o perigo das
relações entre classes
diferentes, a violência
contra a mulher)
- Solicitar que os alunos
procurem na internet e
tragam na aula seguinte
casos de violência contra
a mulher no estado de
Pernambuco nos últimos
anos.
- Caso os alunos
não tenham trazido,
apresentar matéria sobre
o caso "Serrambi" e induzir
os alunos a refletir sobre
a relação com o caso
Guadalupe, presente no
conto.
- Exibir trecho da
novela "Babilônia" com
personagem Regina
e provocar os alunos
a refletirem sobre a
ocorrência na vida real do
mito de Cinderella (relação
entre pessoas de classes
diferentes)
3626
Manuela Travasso da Costa Ribeiro
Leitura/
Literatura
IV.
IV.
IV.
IV.
- Explicitação
de elementos
da narrativa tensão/ conflito
- Fazer alunos
identificarem a
tensão presente
nas relações entre
personagens
- Leitura de trecho do
conto "Atlântico" (p. 21 a
26).
- Lousa
- Ficha com
trecho
do conto
"Atlântico"
Distinguir um
fato da opinião
relativa a esse
fato
Identificar o
conflito gerador
do enredo e os
elementos que
constroem a
narrativa;
- Fazer alunos
compreenderem
a construção
de conflitos das
personagens
- Analisar com os alunos a
ação da protagonista ao
se aproximar de pessoas
de classes mais abastadas
(estaria correndo o mesmo
risco das meninas do
caso Guadalupe? O que a
motiva?).
- Analisar com os alunos as
relações entre as irmãs e o
conflito estabelecido entre
elas e a avó.
Leitura/
V.
V.
V.
V.
Literatura/
- Explicitação
de elementos
da narrativa
- reviravolta/
revelação
- Refletir sobre
estratégias de
construção e
desconstrução
das personagens
através de
revelações sobre
seu passado
- Ler trecho do conto
"Atlântico" (p. 26-34)
- Lousa.
- Conceito de
tragédia clássica
e romântica.
2h
- Reconhecer em
uma narrativa
a presença de
uma reviravolta
através de uma
revelação
- Analisar os dados novos
apresentados sobre o
passado da avó e colocar
em perspectiva o medo
das relações da neta com
pessoas ricas.
- Extrair dos alunos o
que consideram ser uma
"tragédia"
- Apresentar aos alunos
a estrutura da tragédia
clássica e da tragédia
romântica (citar exemplos
como "Édipo Rei" e "Os
miseráveis"), mostrando
a diferença de classes
(nobres na tragédia
clássica e pobres na
tragédia romântica)
3627
- Ficha com
trecho
do conto
"Atlântico"
4h
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Leitura/
Análise
linguística
VI.
VI.
VI.
- Caracterização
dos gêneros
crônica e conto
- Identificar
características
que aproximam
e distanciam
os gêneros
crônica/ conto
(ficcionalidade).
- Ler crônica "Bom dia,
Maria Alice"
- Conceito de
texto ficcional/
fictício
- Conceito de
intergenericidade
- Elementos da
crônica - narrador
- Reconhecer a
intergenericidade
em uma crônica
que utiliza a
estrutura de uma
carta.
- Discutir com os alunos o
gênero a que pertence o
texto.
2h
- Lousa
- Ficha com
crônica
"Bom dia,
Maria Alice"
- Explicitar características
do conto e da crônica ao
comparar "Bom dia, Alice"
com "Atlântico"
Inferir uma
informação
implícita em um
texto
- Provocar os alunos sobre
o final de "Atlântico", a
partir da insinuação da
tragédia. Teria Cecília o
mesmo fim da avó? Seria
vítima como as meninas
do caso Guadalupe?
Identificar
as marcas
lingüísticas que
evidenciam
o locutor e o
interlocutor de
um texto
- Identificar a construção
do narrador na crônica
(narrador real ou ficcional),
bem como o interlocutor
da "carta".
Identificar
a finalidade
de textos de
diferentes
gêneros;
Leitura/
Literatura
VII.
VII.
VII.
VII.
- Explicitação
de elementos da
narrativa - quebra
de expectativa
- Identificar
em um texto
a ruptura da
expectativa da
estrutura da
tragédia
- Ler trecho do conto
"Atlântico" (p. 34-41)
- Lousa
Estabelecer
relação causa/
conseqüência
entre partes e
elementos do
texto;
3628
- Ficha com
trecho
do conto
"Atlântico"
2h
Manuela Travasso da Costa Ribeiro
UNIDADE
DE ENSINO
Leitura/
Produção
de texto
CONTEÚDOS
OBJETIVOS
PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS
RECURSOS
DIDÁTICOS
CH
VIII.
VIII.
VIII.
VIII.
4h
- Características
da crônica
argumentativa
- Identificar em
uma crônica as
estratégias de
argumentação.
- Ler crônica "Quem
o machismo matou
hoje?"
- Lousa
- Elementos
da crônica referências
à realidade,
ficcionalidade e
argumentação.
Análise
linguística/
Produção
de texto
- Comparar
uma crônica
argumentativa
com uma crônica
ficcional.
- Analisar com
os alunos as
referências a casos
reais de violência
de gênero.
- Ficha com
texto "Quem o
machismo matou
hoje?"
- Caneta e ficha de
produção
- Analisar
estratégias de
argumentação da
autora.
Inferir uma
informação
implícita em um
texto
- Produzir
uma crônica
argumentativa
com elementos
ficcionais
IX.
IX.
IX.
IX.
- Síntese dos
elementos
da narrativa
e da crônica
trabalhados;
- Reescrita
da crônica
produzida para
refinamento dos
elementos da
narrativa e da
argumentação.
- Após a correção
dos textos,
exemplificar
problemas
encontrados,
cotejando
elementos
da narrativa
trabalhados
(cenários,
personagem etc).
- Lousa
- Analisar o texto
“Uma galinha”
(C. Lispector),
explicitando seu
caráter alegórico:
como o conto por
refletir a condição
feminina?
3629
- Produções dos
alunos.
2h
RESUMO
O estudo discute as relações tecidas entre o fenômeno literário da poesia e as ideias
ecológicas, observando, sobretudo, a relação do homem com o seu meio, seja qual
for o tipo de relação estabelecida em que se deixa entrever, a partir de uma perspectiva ecocêntrica, ou antropocêntrica, o texto literário e sua relação com meio
ambiente. A reflexão tem por foco a análise de obras poéticas de cordel de autoria
do cordelista João Gomes Sobrinho, o Xexéu, com fins de verificar de que maneira
este trata o mundo exterior no texto produzido esteticamente e de que modo influencia a forma de o ver. Terá como apoio teórico, os estudos voltados para a teoria
literária, a representação social, a Ecocrítica e literatura e ensino. No contexto do
ensino, essa matéria poética tende a ser uma importante ferramenta de conscientização ecológica. Isso porque se tem a literatura como uma forma que possibilitará
não só enriquecer as leituras, ao compreender o universo no qual se vive, por meio
dos múltiplos discursos inerentes às relações socioculturais implícitas nas questões
a respeito do homem na relação com a natureza, mas também, em âmbito social,
no sentido de despertar as consciências adormecias em matéria de ecologia. Com
efeito, tende a compreender o papel estético da literatura, bem como a função social
desta manifestação artística.
Palavras-chave: Poesia, Meio ambiente, Consciência ecológica.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
FENÔMENO LITERÁRIO E ECOLOGIA:
ENTRE A ESTÉTICA E O SOCIAL
Maria Suely da Costa (UEPB/PROFLETRAS)
Introdução
O interesse em refletir sobre as relações entre literatura e meio ambiente na
poesia de João Gomes Sobrinho, o Xexéu, surge a partir de investigações tecidas
em pesquisas de iniciação científica já concluídas no universo da poesia popular
de cordel, cujos resultados proporcionaram a compreensão de aspectos específicos dessa literatura, da realidade local, assim como do país1. Deve-se ainda aos
estudos realizados na linha de pesquisa “Literatura e Cultura: Representações do
Nordeste”, vinculada ao Departamento de Letras, Campus III, da Universidade
Estadual da Paraíba.
No diálogo entre o mundo empírico e o universo ficcional, a literatura pode
produzir um significado para o contexto em que vivemos, sobretudo ao possibilitar o processo de humanização de homens e mulheres e melhorar a forma de
cada um se relacionar com o ambiente em que vive. No que tange à significação
da palavra, o poema é um gênero textual/discursivo cuja intencionalidade não
difere dos outros gêneros, pois visa sanar ou atenuar, produzir, localizar, enfim,
alimentar algum sentido. Como forma de compreender cada vez mais as relações
1.A exemplo do projeto de pesquisa (PIBIC – período 2012-2013) cujo objetivo estava em catalogar
textos de cordéis que tiveram por referência a natureza. Com efeito, a proposta tem por observância a
Lei 9795/99 que compreende por educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a
coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para
a conservação do meio ambiente, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
estabelecidas entre literatura e meio ambiente, esta proposta de pesquisa se inscreve na condição de ser mais um instrumento de investigação dessas relações
no contexto literário, cuja produção poética tem alcançado o status de presença
nos mais diversos espaços. Estamos nos referindo especialmente à literatura popular de cordel e seu interesse em tomar como matéria literária o meio ambiente
natural numa perspectiva ecológica.
É válido ressaltar que esse gênero de poesia popular, tão bem aceito pelo seu
público original, tem conquistado grande interesse de outro público, o de estudiosos, dando forma a uma considerável bibliografia, em que se incluem teses,
artigos e relatórios resultantes de pesquisas acadêmicas. Muitos são os focos
temáticos da poesia popular de interesse não somente do leitor, mas também de
estudiosos e pesquisadores. Dentre esses, um dos temas caros à sociedade tem
sido as questões relacionadas ao meio ambiente. Segundo Viera (2008, p. 01),
Nos últimos anos, as questões ambientais têm adquirido uma grande importância em nossa sociedade. Com as mudanças que o mundo vem sofrendo, a partir da crise da modernidade, acentuaram-se os números de
estudos na busca de soluções para os problemas sociais, ambientais, políticos e econômicos que se está passando. Assim começam a surgir novos paradigmas que visam uma direção mais sistêmica e complexa de sociedade.
Frente a um contexto contemporâneo em que o exercício artístico-cultural
associa-se também, em sentido amplo, aos movimentos de preservação e conscientização ecológica, a partir de uma tomada de consciência da situação precária do meio ambiente, interessa saber se a literatura popular de cordel, mais especificamente voltada para a produção do poeta João Gomes Sobrinho, o Xexéu,
também se caracteriza em ser uma forma atuante e permanente na disseminação de informações e representação de práticas educativas sobre meio ambiente
com foco na dimensão ambiental.
Conforme Sato (2002, p. 23-24), a Educação Ambiental é um processo de
reconhecimento de valores e clarificação de conceitos, objetivando o desenvolvimento das habilidades e modificando as atitudes em relação ao meio, para entender e apreciar as inter-relações entre os seres humanos, suas culturas e seus
meios biofísicos. Sendo assim, a Educação Ambiental também está relacionada
com a prática das tomadas de decisões e a ética que conduzem para a melhoria
da qualidade de vida.
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Maria Suely da Costa
A pesquisa aqui em foco tem possibilitado compreender, por meio de uma
análise mais específica da representação da natureza no texto de Xexéu, o modo
como formas de expressão literária da cultura popular se relacionam com os processos de construção da identidade cultural da região. Refletir sobre tais representações é identificar a literatura de cordel sob uma ótica mais contextualizada,
transformadora, comprometida com o social. Para tanto, implicou ainda buscar
compreendê-la inserida em uma ação educativa, voltada para a construção de
uma sociedade comprometida com os aspectos relacionados à qualidade de vida
humana e do planeta. Nesta perspectiva, compreende-se a literatura sob uma
função social, uma vez que ela fixa seu tempo, deixando ali marcas do momento
que vivemos, e, neste processo, é capaz de ampliar a capacidade de concentração, memorização, raciocínio e reflexão, além disso, em alguns casos, também
se revela capaz de incentivar e motivar aqueles que precisam de exemplos a ser
seguidos (CULLER, 1999).
Considerando que o desafio da sociedade atual está centrado na investigação, na reflexão e na intervenção sobre a natureza, esta produção literária tende
a contribuir, pois, na discussão em torno de questões que, sendo atuais, podem
ser vistas também a partir da linguagem estética marcada por uma abordagem
conscientizadora e, portanto, também educativa.
Este estudo teve por base os pressupostos teóricos da ecocrítica; teoria fundada no estudo das relações tecidas entre literatura e meio ambiente, sobretudo,
da relação do homem com o seu meio, seja qual for o tipo de relação estabelecida, que se deixa entrever a partir de uma perspectiva ecocêntrica no texto literário, pondo em questão o lugar e o contexto da escrita e sua recepção (GARRARD,
2006; BARRY, 2009).
A mudança da visão sobre os recursos ambientais como algo finito tem relação com a mudança de paradigma que a própria produção do conhecimento
vem sofrendo. A concepção de que estamos ligados com todos os indivíduos do
mundo, de que as ações praticadas em um dado contexto podem interferir em
outros muito distantes, de que a poluição ou devastação ambiental de dado continente ameaça a vida de todo planeta também é possível de se configurar na
literatura. Daí adotar como aporte teórico os estudos da ecocrítica que discutem
a interdependência, nem sempre óbvia, entre a imaginação humana, em todas
as suas formas, e o ambiente. Para tanto, a ecocrítica tende a condensar metodo-
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
logias das diversas disciplinas, numa perspectiva interdisciplinar, para a análise
do fenômeno literário.
Assim também percorremos os referenciais da teoria literária, uma vez que
se manuseia um texto de natureza literária; compreendendo-se aí que as determinações da realidade são os pressupostos da arte, cabendo, pois, à análise
literária esclarecer como um sujeito histórico reflete uma realidade também histórica (MAGALHÃES, 2005). Desse modo, significativas tornaram-se as referências a respeito do meio ambiente, principalmente as formulações sobre natureza
e visão ecológica, particularmente para se compreender os potenciais e limites
dessa abordagem para a construção da identidade regional. A compreensão é de
que Literatura de Cordel, voltada, mais especificamente, para a obra de Xexéu,
pode perfeitamente contribuir para uma educação voltada para a realidade, na
medida em que apresenta ao leitor uma visão de mundo, que pode se assemelhar ou não à sua, mas que suscita variados questionamentos que podem levar a
uma reflexão sobre sua posição social, política, econômica e cultural dentro do
contexto em que se vive. Nesse sentido, apreender o mundo popular significa
mergulhar nos significados produzidos pelos objetos sociais no interior de determinado grupo social.
Acrescentam-se ainda, dentre os referenciais de apoio à pesquisa, os estudos sobre a representação do meio ambiente a partir da história cultural e
da literatura brasileira, tendo por foco aqueles estudos que problematizam as
relações entre literatura e sociedade. Assim também foram relevantes os estudos específicos da literatura popular de cordel, como também ligados à questão ambiental. Na relação posta entre literatura e sociedade, adquire destaque o
foco sobre questões relacionadas ao meio ambiente social que são tomadas como
matéria literária. A compreensão é a de que a literatura se inscreve como uma
espécie de resposta a uma necessidade inerente ao ser humano, e, neste caso
específico, funciona como um mecanismo para despertar a consciência adormecida em matéria ecológica.
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Maria Suely da Costa
O poeta e sua produção
João Gomes Sobrinho, popularmente conhecido por Xexéu, nasceu e cresceu no Sítio Lajes, município de Santo Antônio – RN, em 13 de maio de 1938. Conforme registros biográficos, “foi o único que sobreviveu, dos 17 filhos de Elizeu
Gomes de Carvalho e Genuína Gomes de Carvalho. Os outros 16 morreram ainda
crianças, nos primeiros meses ou anos de vida. Caçula da família, Xexéu nasceu
quando sua mãe já ultrapassava os 40 anos” ((MORAIS, 2010, p. 26). Ainda criança, Xexéu já era fascinado pela literatura popular. Seu encontro com os cordéis se
deu, inicialmente, quando ele ia às feiras e ouvia os cantadores.
Xexéu nunca chegou a frequentar os meios formais de uma sala de aula.
Nasceu e cresceu em um espaço pautado pela oralidade o que lhe foi convidativo
à leitura, atividade que despertou sua paixão em ler e produzir cordéis. Aos nove
anos, escrevia versos de improviso, algo que, no decorrer da vida, o fez ser reconhecido, sobretudo pelos seus poemas memorialísticos e ficcionais, com base
em uma recomposição do vivido (MORAIS, 2010, p. 26). Atrelou, portanto, sua
produção literária a momentos da própria vida, na qual se pode enxergar um
poeta/escritor que dialoga, em semelhanças, características e sentimentos, com
o eu-lírico/narrador, ainda que se entenda ser esse um processo de construção
ficcional comprometido com a expressão artística.
Uma das características marcantes da obra deste cordelista é a temática
centrada na preservação da natureza. Suas inspirações costumam vir do ambiente natural onde vive, seja quando se remete ao passado ou mesmo quando
retrata uma questão contemporânea. O poeta expressa, de maneira singular, sua
proximidade com a natureza, tanto que revela não sentir vontade de sair da calma do sítio para os espaços urbanos agitados, sobretudo porque é pelo contato
direto com as árvores e os animais que ele se sente mais acolhido e mais vivo,
consciente de sua origem e cultura, inteiramente ligados aos espaços rurais.
Dentre sua produção literária, identificam-se cordéis que, dentro de suas
particularidades, retratam a presença do aspecto natural/ambiental sob várias
abordagens - sentimental, memorialística, ficcional, contemporânea, sociocultural, etc. - com prevalência para a perspectiva ecocêntrica em boa parte de
sua produção, ainda que não se negue o antropocentrismo diante de algumas
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
ações humanas narradas. O pensamento ecocêntrico não significa, no entanto,
a negação do ser humano em determinado espaço como a resolução de todos os
problemas ambientais da atualidade, mas a reafirmação de que, ao longo de sua
evolução, o planeta sempre teve um valor em si, ainda mesmo quando intocado,
estando em pleno avanço independente do homem, e que este lhe é dependente
para viver, desenvolver projetos, crescer a economia, explorar e, consequentemente, destruir riquezas que foram conquistadas, de forma lenta e natural. Em
oposição a essa visão, o antropocentrismo “se baseia na hipótese de que a natureza não possui valor em si, mas constitui numa reserva de recursos naturais a
serem explorados pela humanidade” (BARROS, 1999), o que contribui para um
pensamento que se revela conflitante com os interesses de preservação ambiental e desenvolvimento sustentável, na medida em que encara o espaço natural
como algo a ser explorado indistintamente, colocado à serviço do homem e de
sua “sede” pelo acúmulo de riquezas.
Com uma abordagem de foco ecocêntrica, o poeta conduz sua produção
dentro de uma perspectiva que valoriza as características naturais e, por conseguinte, a natureza em toda sua dimensão, como sendo superior e independente
ao homem, de maneira que a influência humana sobre ela traz certos transtornos ao equilíbrio e a boa relação entre um e outro. A questão ambiental se apresenta, então, como uma maneira de se refletir sobre como o homem enxerga a
natureza, saindo de um comodismo cultural no qual ela é apenas um presente
divino dado ao homem, semelhante a uma propriedade, ao estágio atual em que
ela se apresenta: um espaço que não se sustenta mais se for apenas explorada.
A voz da Tamarineira
O cordel A Voz da Tamarineira foi publicado em 2006, durante a programação do 12º Congresso Brasileiro de Folclore, possui 16 estrofes, cada uma com oito
versos, a maioria em redondilha maior e no esquema rímico ABBCDEEC. Narrado em 3ª pessoa, conta a história de uma árvore que, mesmo oferecendo inúmeros benefícios, como sombra, ar puro e lar para os pássaros, é cortada de forma
desumana pela “cumadre”, que não consegue enxergar a mais perfeita e única
companhia que ela tem próxima a sua casa. Nos primeiros versos, enxergamos a
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Maria Suely da Costa
valorização feita aos benefícios que a árvore traz, representando uma forma de
se demonstrar o quanto ela é essencial à vida humana, não havendo, portanto, a
necessidade de derrubá-la e utilizá-la com outros fins:
Agradeço a Deus por tudo
Quanto a árvore predomina
Poesia e medicina
Beleza, aroma e sonora
Mesmo sendo desprezada
No recanto do monturo
Filtrar o ar e mandar puro
Para onde a gente mora.
(XEXÉU, 2006, vs. 01-08)
Nos versos, um ponto interessante é a utilidade medicinal que as árvores
podem apresentar, bem como o ar puro, essencial à vida. Sobre os dois aspectos,
é possível de se verificar duas considerações: o fato de que, em algumas cidades
extremamente quentes em virtude do asfalto, é comum desenvolverem projetos
de arborização com vistas a atenuar o calor e reduzir a incidência de problemas
respiratórios que advém de áreas com ar seco; depois, quanto ao aspecto medicinal, talvez muitos não se deem conta, ao uso fazer uso do medicamento comprado em farmácia, que é graças a muitas plantas e áreas florestais que é produzida
grande parte dos remédios. Nesse contexto, o poema exprime sua função educativa face ao leitor, possibilitando-o enxergar que a nossa sobrevivência sempre
dependeu – e depende – da natureza.
Além disso, é preciso notar a grande importância das árvores para o ser
humano e as principais formas de vida do planeta. Em um contexto amplo, observamos a própria interdependência do homem e sua cultura com elas, o que
deve despertar nas pessoas a consciência dos prejuízos causados por queimadas,
desmatamento e outras intervenções humanas.
O poema A voz da tamarineira apresenta, ainda, os traços humanos da alegria, do abandono, do sofrimento e, por fim, da morte da árvore a partir de uma
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
visão particular do poeta que tende a ser compactuada com o leitor. É uma forma
de encarar todas as situações pelas quais passam a figura da árvore como se fosse
o elemento humano a sofrer toda essa brutalidade, o que sugere uma comoção,
uma aproximação de quem lê com quem protagoniza a situação no texto (humano e não-humano em pleno contato):
Uma árvore no terreiro
Da casa que a gente mora
Além do cheiro da flora
Que ramagem contém
Agasalha o passarinho
Que logo cedo desperta
Para nos dá o alerta
Quando o novo dia vem
(XEXÉU, 2006, vs. 16-23)
Nessa estrofe, são apresentados benefícios que a árvore, na figura da tamarineira, traz ao ser vivo, aqui representado pelo pássaro, ou seja, numa representação da natureza que depende e interage consigo mesma. Há, no poema, uma
abordagem que sugere a visão ecocêntrica, na qual o homem é convidado a viver
em harmonia com o seu meio, ao invés de explorá-la, contrapondo-se, assim, ao
sentido meramente econômico que, quase sempre, tende a prevalecer, na medida em que o lucro se torna fator mais importante que o meio no qual se vive.
No entanto, A Voz da Tamarineira pode ser inserida sob duas abordagens, tanto
apresenta um viés voltado para a preservação da natureza quanto para o econômico/exploratório, ainda que a defesa seja para o primeiro. Na 4ª estrofe, têm-se
claramente as duas formas de encarar a natureza:
Tem gente que planta árvore
Perto da casa que habita
Pra ouvir a voz bonita
Suave da plantação
E tem gente que derruba
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Maria Suely da Costa
Corta os galhos, faz queimadas
Para vê-la transformada
Em pó, cinza e carvão.
(XEXÉU, 2006, vs. 24-31)
Embora a carga temática do texto esteja voltada para o despertar de uma
conscientização das pessoas quanto ao elemento natural, aqui representada pela
planta, que é capaz de beneficiar o ser humano com uma convivência harmoniosa, há também aqueles que encaram essa árvore como um meio de lucratividade. O ato de desmatar como uma forma de enriquecimento de alguns e, ao
mesmo tempo, privação de outros, sobretudo dentro de uma perspectiva na qual
se impera ainda a ilegalidade nessa forma de trato da natureza, se assemelha à
mesma “maldade traiçoeira” (verso 75) da “cumadre” que, no poema, promove a
chacina da tamarineira, pondo-a em sofrimento após sofrer a ação do machado
que lhe corta o tronco e todas as formas de vida que ali habitavam, passando a
ser descrita, pelo poeta a partir da dor e lamentação que o próprio leitor passa a
compartilhar, de tão real e fidedigna a cena é apresentada, inclusive com traços
de personificação, já que o foco estar para sentimentos e reações humanizadas:
A bela tamarineira
Nessa hora agonizante
Mudou de cor num instante
Capaz de fazer notar
Como quem dizia assim
Deixe em paz minha raiz
Por todo o bem que te fiz
Não queira me assassinar!
(XEXÉU, 2006, vs. 88-95)
No tom exclamativo, ecoam-se os gritos da árvore tal qual um pedido de
socorro, de modo a “interpretar a voz da tamarineira” (vs. 126-127) como um
clamor à luz dos olhos e ouvidos de quem lê. É nesse ponto que a preocupação
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
ecológica se torna firme no poema, de modo que deixa de ser vista apenas como
uma representação no texto e passa a dialogar com o leitor.
A fauna pedindo paz
O cordel A Fauna pedindo Paz foi publicado em 2006 durante o 12º Congresso Brasileiro de Folclore, em Natal – RN. É narrado em 3ª pessoa. Possui 10 estrofes e 100 versos. Apresenta um esquema rítmico em ABBAACCDDC, obedecendo
a um padrão, para as décimas, que Abreu (1999, p. 111-112) se refere como sendo
“um tipo coincidente com o estabelecido para as apresentações orais (...) e que
permite reconhecer uma obra como sendo ou não “de cordel”. Nesse sentido, se
observa a preocupação do poeta em padronizar a sua composição dentro de um
modelo de rima que atendam às exigências desse gênero literário.
O poema mostra a pureza do meio ambiente, exaltando a liberdade dos animais e, consequentemente, o direito à vida em toda a sua existência. Para isso, o
poeta traça em seus versos dois mundos, o que liberta e o que aprisiona, pontuando uma crítica severa à caça dos animais que, posteriormente, são mantidos
enjaulados tal qual um criminoso pelo homem; chamando a atenção para o “ser
único capaz de responsabilidade e responsável por aquilo que faz” (PENA-VEGA,
2005, p. 19). Na apresentação desses espaços, o poeta começa seus versos descrevendo como é a vida de um pássaro livre, bem como as diferenças entre ele e o
seu companheiro que vive aprisionado:
Na mata verde florida
O passarinho tem tudo
Do maior ao mais miúdo
Pra viver feliz da vida
Tem refeição e dormida
Onde tudo é pureza
Amor, perfume, beleza
De variados sabores
Pode cantar entre as flores
Sou rico por natureza.
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Maria Suely da Costa
A vida é um lazer
Do passarinho no mato
Bebe água no regato
Juntinho a seu bem-querer
De tudo tem pra comer
No cardápio do jardim
Mesmo que seja cupim
Faz bem à sua garganta
Como quem diz quando canta
Foi Deus quem me fez assim.
Seu viver é diferente
Daquele ex-companheiro
Que está prisioneiro
Na gaiola impaciente
Sem pai, sem mãe, sem parente
Só porque é cantador
Quando cantava louvor
A Deus Pai Onipotente
Caiu traiçoeiramente
No laço do caçador.
(XEXÉU, 2006, vs. 01-30)
O poema destaca o pássaro como um ser que não necessita de muito da
vida. Destaca dois fatores que alicerçam a sua felicidade: a presença dos que ama
ao seu lado e a possibilidade de obter a comida necessária para mantê-lo vivo. A
proposta do homem ao capturá-lo e levá-lo para uma gaiola é exatamente oposta
a isso, uma vez que, preso, ele se mantém distante de outros de sua espécie e é
alimentado de forma regrada. De forma que muitos, uma vez preso, passam a
definhar de tristeza, longe do habitat natural. Cabe, pois, ao homem rever sua
prática.
No texto, as impressões, tanto objetivas quando subjetivas do animal, vão
formando uma imagem que prevê e/ou intenciona a conscientização do leitor so-
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
bre a prática de aprisionamento que agride, de forma violenta, o espaço natural,
mais especificamente a fauna, já que reduz a expectativa de vida do animal, na
medida em que o coloca em um ambiente alheio, para o qual ele não seria obrigado se adaptar, caso estivesse livre na natureza:
O passarinho detento
Não come bem e nem dorme
Devido ao contraste enorme
Em vez de divertimento
Um monstro sem sentimento
Lhe conduziu sequestrado
Ressentido, magoado
Sem poder voltar para o ninho
Não tem como um passarinho
Ver o sol nascer quadrado.
O passarinho não tem
De que viver assustado
Não comprou nada fiado
Não deve nada a ninguém
O homem que pensa bem
No futuro promissor
Deixa o pássaro cantador
Sobrevoar no arbusto
É crime fazer um justo
Pagar sem ser devedor
(XEXÉU, 2006, vs. 41-50)
O poeta recorre ao elemento humanizador que permeia as práticas sociais – o
sentimento, através de uma visão intimista que interioriza a leitura, engajando-a a
um viés reflexivo em que a natureza é apresentada sob um perfil o mais próximo
possível do leitor, que recorre à literatura para nela/ ou a partir dela imprimir suas
ideias sobre o espaço em que vive. Esse viés se torna presente na obra de Xexéu, na
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Maria Suely da Costa
medida em que se verifica uma poesia engajada em causas sociais, problemas específicos e contemporâneos, o que tende a contribuir para uma possível mudança
de comportamento das pessoas sobre o que se observa no dia a dia, a exemplo da
relação com o espaço natural.
Nota-se, no verso “Ver o sol nascer quadrado”, uma intensificação da proximidade do texto com a sociedade, pontuando uma reflexão sobre como agir
diante de uma injustiça. A literatura consegue, assim, transpor o elemento escrito, pontuando uma relação do poético com o social, abrindo espaço para a
discussão, tendo em vista que, sob essa ótica, não temos apenas um pássaro no
texto, mas atrelado a ele há uma série de situações, muitas delas marcadas pela
injustiça vivida pelo próprio ser humano. Assim, podemos associar o pássaro a
uma metáfora do humano, a problematizar situações do cotidiano de qualquer
pessoa vitimada pela violência ou incompreensão de outrem. A penúltima estrofe do poema constrói-se sob um paradoxo entre o que o ser humano faz, como
age, e o que não quer que lhe aconteça. Para isso, recorre-se, como em toda a
composição, ao elemento agredido – a natureza:
A floresta quer viver
Aconchegando araponga
O homem quer viver vida longa
Mata, mas não quer morrer
E nem tão pouco sofrer
Cadeia nem hospital
Quem imitou um chacal
Não quer assumir seus atos
Jamais os pássaros e os matos
Que não lhe fizeram mal
(XEXÉU, 2006, vs. 71-80)
A produção poética de Xexéu acaba por trazer uma reflexão ecológica, pautada numa filosofia de vida que defende outras vidas, sejam elas humanas, vegetais ou animais, tendo em vista que “os ecossistemas são englobados numa entidade de conjunto (...) que forma a biosfera” (PENA-VEGA, 2005, p. 20), revelando
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a interdependência de espécies em plano global. Assim, é preciso compreender
que as formas de encarar a vida na terra dependem de uma observação mais
atenta do ser humano sobre a importância que ele mesmo dá a tudo aquilo que,
estando ao seu redor, possui valor e, consequentemente, precisa ser preservado.
Por fim, o texto acaba por chamar a atenção para o fato de que precisamos de
atitudes pacificadoras não apenas entre as guerras travadas entre homens, mas
também entre os conflitos gerados pelo o homem diante dos animais e do espaço
natural.
A Terra pede socorro
No cordel A Terra pede Socorro, não constam a data e a editora em que foi
publicado. É narrado em 1ª pessoa, possui 32 estrofes e 192 versos. É um cordel
convidativo à preservação do meio ambiente, ao trazer duas realidades distintas
– o antes e depois na impressão do poeta – o ambiente natural de quando ele era
um menino e o que acontece atualmente no planeta.
Quando eu era menino
O transporte que havia
Não tinha caixa de marcha
Volante nem bateria
Nem queimava combustível
Nem gente nele morria
O carro que existia
Era feito de madeira
Puxado por uma jumenta
De boi manso de primeira
Chegava onde queria
Sem precisar de carreira
(XEXEU, vs. 01-12)
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O poema de Xexéu reflete um quadro sobre como era viver no Brasil há
algumas décadas, sobretudo nas pequenas cidades, longe das tecnologias e dos
transportes atuais. Não que os avanços pouco tenham contribuído com a humanidade, o problema está em como ele se deu, sem respeito ao planeta e com visão
do lucro exagerado. Em virtude disso, entramos em guerra com o planeta e “ultimamente, se transformou numa guerra total, porque com as novas tecnologias,
o atacamos em todas as frentes, no ar, no solo, no mar, no interior da matéria e
no coração da vida”. (BOFF, 2010, p. 52).
O poema A Terra pede Socorro concentra-se em destacar as mudanças e os
prejuízos pelos quais passou o meio ambiente ao longo dos anos, sobretudo porque “a terra se encontra em fase avançada de exaustão. O trabalho e a criatividade, por causa da revolução tecnológica, da informatização e da robotização, são
dispensados e os trabalhadores excluídos até do exército de reserva do trabalho
explorado. (BOFF, 2009, p. 132). Xexéu destaca essa discussão à medida que observa e nos apresenta como se intensificaram os problemas ambientais a partir
de uma influência humana impensada e focada apenas em um desenvolvimento
econômico unilateral, alicerçado em lucro e sem preocupação ecológica.
Onde foi mata sombria
Hoje é solo esturricado
(XEXÉU, vs. 55-56)
O homem modernizado
Tem tudo para fazer guerra
(XEXÉU, vs. 61-62)
Economia crescente
Ganância pelo poder
Bombas, armas e indústria
Para mais desenvolver
Como salvar-se o planeta
Sem isso retroceder.
(XEXÉU, vs. 103-108)
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O discurso que permeia o fazer ecológico não pretende se comportar cegamente e desconsiderar possíveis avanços trazidos pelo desenvolvimento exploratório. A intenção é formalizar uma visão crítica junto ao leitor, capacitando-o e
chamando-o a encarar também os problemas ambientais, refletir sobre eles e, a
partir dessa reflexão, promover, buscar meios que os solucionem ou amenizem,
mas isso, em nenhum momento, pode ser feito com bombas, armas e ganância.
Nesse sentido, “a literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo uma sobre
as outras e sobre os leitores, e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a”. (CANDIDO, 2011, p. 84)
Candido (2011) reforça a ideia de que quando encontramos uma reflexão do
leitor sobre o texto é que obtemos o almejado – a interferência social. Nesse sentido, é preciso encarar a leitura que Xexéu nos propõe em sua obra sob um viés
crítico, formador e transformador. É necessário fazer e fazer-se interferir dentro
dessa temática, transpondo-a a realidade e a partir desta apresentar resultados
significativos à sociedade sobre a qual atuamos.
Considerações finais
O debate em torno das questões que problematizam a degradação ambiental é comum nos estudos científicos, na medida em que se torna latente a preocupação com o relacionamento entre o ser humano e o ambiente onde ele vive,
no sentido de haver uma maior conscientização sobre os danos causados pelas
interferências humanas no espaço natural. É importante, pois, que se destaque
o compromisso da literatura com essas questões palpáveis. No que se refere à
poesia popular, entendemos como sendo uma produção literária preocupada
em questionar, criticar, ironizar, possibilitando ao leitor uma reflexão sobre a
representação da natureza e as discussões que emergem a partir desse recorte
temático.
Nessa perspectiva, nota-se que há um compromisso do poeta cordelista em
não apenas retratar o meio ambiente ou o espaço no qual se situa, mas também
em trazer um discurso reflexivo e questionador, comprometido com o caráter
pedagógico e seus efeitos sobre a realidade. Além disso, em sua obra, há um apelo para que o ser humano reforce a ideia de pertencimento em relação ao lugar
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onde vive, valorizando-o, e não como um presente divino que deva ser explorado
de todas as formas.
A partir da análise dos textos catalogados nesta pesquisa, é possível observar que, nas produções voltadas para a temática do meio ambiente, o cordelista
João Gomes Sobrinho (Xexéu) demonstra estar preocupado em mostrar a soberania e a importância do espaço natural para a preservação de todas as formas
de vida no planeta. Ao colocar o ser humano como sendo uma entre as muitas
formas de vida, Xexéu deixa claro que os males cometidos pelo homem ao meio
ambiente trazem prejuízos ao próprio homem, ao frisar que não é o planeta que
depende de nós, nós é que somos dependentes dele, em todas as circunstâncias.
Os textos poéticos analisados revelam também a proximidade do poeta com
sua terra, na medida em que ele demonstra estar ligado e familiarizado, desde
o nascimento, com seu meio, o pequeno sítio Lajes, na cidade de Santo Antônio,
Rio Grande do Norte. A vida do poeta se entrelaça com a localidade onde ele
vive ciente de sua história e sua cultura como princípios determinantes para a
sua identidade, formação enquanto sujeito, meios de vida e produção literária,
tanto que ele atribui à própria natureza os ensinamentos e as inspirações para
compor suas poesias. De outro modo, a sua produção poética não se fecha na
individualidade de seu autor ou mundo em volta, ao contrário disso, se expande,
se universaliza ao problematizar questões humanas.
A visão ecocêntrica da obra de João Gomes Sobrinho põe em destaque a natureza como vítima das ações humanas sobre ela. O homem, com sua corrida em
prol do desenvolvimento econômico, sempre se manifestou contrário a necessidade de cuidar melhor dos recursos naturais, minimamente preocupado com a
ideia de um desenvolvimento mais sustentável e ecologicamente correto. O retorno, depois de tudo isso, não poderia ser outro que não uma série de desastres
ambientais, mudanças e inconstâncias climáticas em todo o mundo, o que tem
colocado em risco a própria preservação da vida humana neste planeta.
Garrard (2006) afirma que todos os problemas ecológicos desapareciam se
mudasse a estrutura política da sociedade, para que os recursos fossem utilizados para atender as necessidades reais e não para o acúmulo de riqueza. A poesia
de Xexéu demonstra que o homem, ao passar anos fazendo o oposto disso, na
tentativa de acumular riqueza, começa a sentir os efeitos negativos que colocam
em risco o que ele tem de mais importante – a vida. O discurso literário chama
3647
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
a atenção para atitudes sustentáveis, valorização cultural do espaço e ações individuais como as únicas chances de se reverter esse problema, tendo em vista que
“(...) a natureza não pode ser separada da cultura, e precisamos aprender a pensar transversalmente as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos
de referência sociais e individuais” (GUATTARI, 2012, p.25). Tem-se a literatura
como uma forma de problematizar e clarificar os nossos velhos conceitos: se a
estrutura da sociedade não muda, mudemos em nós a forma como a vemos e,
por consequência, como vemos o mundo a nossa volta. A mudança de consciência tende a contribuir para a tomada de novas atitudes perante o outro, em um
espaço de interações entre as diversas formas de vida.
Diante do exposto, a contribuição deste estudo está, pois, em colaborar
com os estudos voltados para a relação literatura e meio ambiente, na medida em
que se propõe compreender as estratégias discursivas e de organização estética
atuante na produção literária do cordelista Xexéu. Sua apresenta traços de uma
escrita que requer uma mudança de paradigma na vida pessoal, na convivência
social, na produção de bens de consumo e, principalmente, no relacionamento
com a natureza. Sendo assim, possibilitará não só enriquecer as leituras, ao compreender o universo no qual se vive por meio dos múltiplos discursos inerentes
às relações socioculturais implícitas nas questões a respeito do homem na relação com a natureza, mas também, em âmbito social, despertar as consciências
adormecidas em matéria de ecologia. Por fim, tende a compreender o papel estético da literatura, bem como a função social desta manifestação artística.
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3649
RESUMO
Literatura em sala de aula, sobretudo no Ensino Fundamental, é um desafio tanto
para o professor quanto para o aluno. De um lado, temos profissionais desmotivados
pela precariedade do sistema, de outro, alunos que sequer compreendem o significado da importância da leitura. Levando em consideração esse contexto, este artigo
contempla o relato de experiência da leitura do livro de contos “Tchau” (2012), de
Lygia Bojunga, realizado com alunos dos sétimos anos, da E.E.E.F. Dom Hélder Câmara, localizada em Campina Grande – PB. A escolha do livro teve forte influência
das leituras de Coelho (2000), que afirma que na faixa etária em que os alunos se encontram nessa fase escolar, eles têm a capacidade de reflexão em maior profundidade, portanto, são capazes de lançar um olhar mais atento e pontual sobre as leituras.
Os contos de Bojunga, trazem justamente temáticas que envolvem o pensamento
crítico, no contexto infanto-juvenil, como: a amizade de dois meninos de poderes
aquisitivos distintos; o abandono de lar de uma mãe; os problemas íntimos de uma
adolescente. Assim, tivemos certa facilidade em atingir nosso objetivo inicial, que
era voltar a atenção do aluno para textos que envolvessem sua realidade e também
compartilhassem da estética literária. Para tanto, o texto foi fundamentado tomando como base em Colomer (2007), Sandroni (2011), Hunt (2010) e Cosson (2006).
Palavras-chave: Literatura infanto-juvenil, Ensino, Contos.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
HORA DE DAR “TCHAU” À MONOTONIA:
LEITURA DO LIVRO DE CONTOS DE
LYGIA BOJUNGA
Paloma do Nascimento Oliveira (UFCG)
Introdução
É preciso ouvir a experiência do outro não como menor,
ou menos universal, mas como diferente.
(Hélder Pinheiro)
Sabemos que Literatura em sala de aula, sobretudo no Ensino Fundamental,
é um desafio tanto para o professor quanto para o aluno de escola pública. De
um lado, temos profissionais desmotivados pela precariedade do sistema, pela
falta de recursos e pelo poder aquisitivo do próprio alunato; de outro, alunos que
sequer compreendem o significado da importância da leitura, não sabem o que é
a arte literária e sequer leram algum livro em suas vidas escolares.
O professor de português deve ter como uma de suas metas a formação do
leitor literário. Deve-se levar em conta que o aluno é um cidadão em constante
formação e que este deve adquirir competência em suas leituras. Apenas a vivência e o confronto com o texto levarão o sujeito ao desenvolvimento das habilidades leitoras; assim, fica com o educador o papel de dar o primeiro passo para a
aquisição dessa experiência.
Infelizmente, a experiência com o texto literário ainda se atém bastante ao
professor de português, sobretudo o do Nível Médio. A ausência da aplicabilidade
de um Projeto Político Pedagógico voltado à interdisciplinaridade é uma realidade
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
latente nos centros de ensino. Assim, a prática literária fica restrita à sala de aula e
às temáticas desenvolvidas especificamente pela área de Língua Portuguesa.
Outro impasse encontrado é a ausência de leituras integrais de obras. Muito possivelmente este fator esbarra no Livro Didático que geralmente seleciona
trechos de textos e cola nos livros, tornado as leituras insatisfatórias. O modelo
historicista de elaboração de livros contribui significativamente para essa prática
fragmentária.
Neste contexto, nasceu a necessidade de inserir a leitura enquanto uma ação
diária na vida escolar, sem desconsiderar as arestas que permeiam o cotidiano
das escolas públicas. O presente trabalho surgiu dessa necessidade urgente de
levar uma literatura sem amarras à escola, de maneira leve e atrativa.
Assim, observando que os alunos das turmas A e B dos 7°s anos, do Ensino
Fundamental, demonstravam uma pequena vivência com a leitura, sobretudo,
literária, elegemos as duas turmas para compartilharmos a leitura do livro de
contos: Tchau (2012), de Lygia Bojunga. Nas linhas a seguir, será discutido um
pouco sobre a importância da literatura infanto-juvenil em sala, assim como será
relatada a experiência na escola com a leitura desse livro.
Literatura infanto-juvenil na escola
A literatura infanto-juvenil, como o nome já diz, é uma vertente da literatura voltada para um público que vai da criança ao adolescente. Ela deve ser leve,
mas não alienada; doce, mas não boba; divertida, mas não deslocada; reflexiva e
não um panfleto pedagógico. De acordo com Coelho (2000, p. 15), “a literatura,
em especial, a infantil tem uma tarefa fundamental a cumprir nesta sociedade
em transformação: a de servir como agente de formação, seja no espontâneo
convívio leitor/livro, seja no diálogo leitor/texto estimulado pela escola”.
Esse agente (trans)formador tem como objeto o livro e como meio o professor que desenvolve papel fundamental na jornada. A escola é o local que deve
repensar seus comandos oriundos de um sistema autoritário e assumir um papel
mobilizador e reflexivo, permitindo que o aluno seja inserido no mundo com um
olhar distinto.
Para tanto, Coelho (Op. cit.) lançou sete pressupostos para um projeto de
ensino/estudo da literatura infantil. São eles: 1) Pensar na criança como um ser
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Paloma do Nascimento Oliveira
educável, ou seja, um indivíduo em constante aprendizado, sobretudo, da cultura em que está inserido; 2) A literatura como um fenômeno de linguagem resultante de uma experiência existencial/social/cultural; 3) Valorizar as relações
entre literatura, história e cultura; 4) Compreender a leitura como um diálogo
entre leitor e texto; 5) Compreender a escrita como um ato cultural; 6) Certificarse de que os meios didáticos são neutros, sem nenhum tipo de manipulação; e 7)
Ter certeza de que a escola é o espaço privilegiado para que se comece o processo
de autorrealização do ser humano.
Levar em conta todos esses pressupostos é assumir um papel importante
enquanto formador de cidadãos. A responsabilidade do professor diante desses
pressupostos aumenta quando ele toma conhecimento de tais princípios. Este,
enquanto instrumento de propagação, se torna o principal veículo para a formação de novas mentalidades. Desse modo é importante estar atento a valores
atuais e se adequar a eles.
A autora supracitada nos mostra tais valores e atitudes: espírito solidário;
questionamento da autoridade; sistema social fundado na valorização do fazer
como manifestação autêntica do ser; moral da responsabilidade ética; sociedade
sexófila; redescoberta e reinvenção do passado; concepção de vida fundada na
visão de mundo da condição humana; intuicionismo; a criança ser em formação
e o antirracismo.
O professor tem como papel incitar o exercício desses valores e atitudes,
fazendo com que os alunos abandonem determinadas práticas tradicionais que
não contribuíam para sua formação enquanto sujeito em construção. Rouxel
(2013, p. 20) atenta para essa formação e diz que devemos pensar no ensino de
literatura enquanto “formação de um sujeito leitor livre, responsável e crítico –
capaz de construir o sentido de modo autônomo e de argumentar sua recepção”.
A autora leva em conta a concepção da personalidade do indivíduo que deve se
abrir ao mundo desvendado pela própria literatura.
O sujeito leitor deverá ser incentivado a partir de estímulos do educador e
não da imposição interpretativa que muitos colocam em prática nas escolas. Faz-se necessário o convite à leitura enquanto uma aventura de descobertas, para
que a partir da recepção o leitor possa administrar os saberes que se apresentam
diante dele.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Rouxel (Op. cit.) destaca esses saberes que contribuem para o desenvolvimento da leitura: os saberes sobre os textos – que envolvem o conhecimento de
gêneros, funcionamento dos discursos; os saberes sobre si – que tratam da afirmação da subjetividade no ato da leitura; os saberes sobre o ato léxico ou saberes
metaléxicos – que dizem respeito a interpretação a partir de uma subjetividade
equilibrada, evitando um “delírio interpretativo”.
Após levar em conta os aspectos discutidos, é imprescindível refletir a escolha da obra e no impacto que esta pode causar no leitor. O primeiro ponto a se
pensar é a escolha do gênero literário pautada nos gêneros tradicionais, mas não
se esquecer de que o mundo hoje abre as portas para novos gêneros como: história em quadrinhos, em que obras clássicas sofrem adaptações para este, assim
como as sagas, as trilogias que permeiam o universo midiático.
Outro ponto é propor obras das quais os alunos extrairão um ganho simultaneamente ético e estético, obras cujo conteúdo existencial deixe marcas, como
afirma Rouxel (Op. cit.). Segundo a autora, o tempo que levamos enfatizando o estudo formal em detrimento do conteúdo, foi o motivo da desafeição do aluno pela
literatura. O desafio da escolha mora aí, em levar textos que explorem a experiência humana, que tragam elementos significativos para o leitor e deixem marcas
no seu íntimo, mostrando que a leitura faz parte do enriquecimento de uma vida.
A literatura infanto-juvenil oferece uma mina de obras de qualidade
para esse aprendizado da leitura literária. Há um grande número de
obras nesse domínio – álbuns, romances, peças de teatro – cujas feições
correspondem às grandes obras da literatura contemporânea. A leitura
dessas obras tende a criar um novo horizonte de expectativas para os
alunos. (ROUXEL, Op. cit., p. 27)
Temos de fato um grande arsenal na área infanto-juvenil, só precisamos,
enquanto profissionais da educação, vislumbrar a forma de mediação obras, de
modo que não seja mera imposição de opinião.
A experiência de ouvir o outro é extremamente válida. O aluno não chega à
escola vazio, sem vivências. Ele traz consigo uma bagagem de histórias, experiências, dores, alegrias, uma miscelânea de sensações e recordações que poderão
ser ativadas no momento da leitura. E o professor deverá estimular esta busca
sensorial, isto fará da leitura um momento de contemplação.
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Paloma do Nascimento Oliveira
O leitor traz para os livros: a atitude para com eles; as atitudes para com
a vida; o conhecimento a experiência com os livros; o conhecimento e a
experiência da vida; a formação e preconceitos culturais; a raça, classe,
idade e atitudes sexuais; e inúmeros outros pormenores de sua personalidade, formação e educação. Tudo isso afetará o modo como produzimos o sentido – o que entendemos e tomamos como importante”.
(HUNT, 2010, p. 110 – 111)
É essa atitude que o aluno leva para os livros que deve ser respeitada, estimulada e administrada pelo mediador. Só assim a experiência com a leitura
poderá se tonar um ato prazeroso e atrativo.
O livro
A escolha do livro foi influenciada por um curso de Literatura Infanto-Juvenil, para a graduação de Letras - UFCG, no qual fui ministrante no início deste
ano. Durante quatro meses li com os alunos livros teóricos e da área. Essas leituras andavam em paralelo com a experiência em sala de aula no Fundamental II.
Daí surgiu a ideia de eleger um livro que contemplasse as crianças e a disciplina
da graduação.
Não foi difícil chegar até Lygia Bojunga, citada por autores como Coelho
(2000) e Sandroni (2011), ela é uma autora que difunde social e lúdico, trazendo
para o leitor a oportunidade da discussão do real e do embarque no imaginário.
Apesar de obras mais famosas serem: Os colegas (1972), Angélica (1975) e
Sapato de Salto (2006), houve uma grande dúvida se adentrávamos no teatro ou
no romance. Finalmente escolhemos o conto – as narrativas curtas podem ser
muito amigas em situações em que os alunos ainda não tem habilidades leitoras
definidas.
O livro Tchau é formado por quatro curtas narrativas: “Tchau”, “O bife a pipoca”, “A troca e a tarefa” e “Lá no mar”. Cada conto traz uma temática distinta,
mas todos enlaçam enredos com crianças e seus pensamentos mais íntimos. Em
meio à fantasia, os ‘pequenos’ personagens são ativos e têm uma visão diferenciada do mundo em que vivem.
No primeiro conto, homônimo ao título do livro, a autora apresenta a personagem Rebeca que recebe a notícia de que sua mãe irá embora com o novo
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
namorado grego, Nikos. A criança inicialmente não entende a gravidade da situação até ver o pai em um bar bebendo e chorando por saber que sua esposa o
abandonará junto com os dois filhos. Neste momento a personagem compreende, à sua maneira, a dimensão da saída de sua mãe e acredita que escondendo a
mala e se agarrando na mãe, ela mudaria de ideia. O conto termina com a ida da
mãe, mas a manutenção da esperança de Rebeca, de que tudo se resolverá:
Querido pai, não deu para eu cumprir a promessa. A Mãe foi mesmo embora. Mas a mala dela ficou. Eu acho que assim, sem mala, sem roupa para
trocar, sem escova de dente nem nada, não vai dar pra Mãe ficar muito
tempo sem voltar. Não sei. Vamos ver. Eu arrastei a mala e escondi ela
debaixo da sua cama, viu? Um beijo da Rebeca. (BOJUNGA, 2012, p. 41)
A menina mostra uma mistura de esperteza e ingenuidade, expectativa e
incerteza. A realidade foi cruel com ela, mas as letras da autora a protegem em
sua idade e em sua inocência. No fim de tudo, mesmo abandonada, ela acredita
que as coisas poderão se resolver, mesmo admitindo não ter certeza. Seu inocente coração não perdeu a esperança.
O segundo conto, intitulado “O bife e a pipoca”, toca no viés social. A amizade de Turíbio Carlos (Tuca) e Rodrigo ultrapassa as esferas do preconceito
e une dois meninos distintos para transmitir uma bela narrativa de amizade.
Oriundo da favela, Tuca ganha uma bolsa para estudar na escola de Rodrigo. Já
no primeiro contato, o menino rico se compadece da fome do colega e divide
seu sanduíche.
Ambos começam a estudar juntos e surge o convite da parte de Tuca para
Rodrigo ir comer pipoca no seu barraco, dividido com a mãe e mais cinco irmãos.
Recebido o convite o garoto retribui chamando-lhe para o almoço em seu apartamento. Neste momento surge o impasse do sistema: o dinheiro e a miséria.
Tuca conhece um bife que afunda um garfo e sente vergonha de mostrar sua vida
no morro ao amigo.
Ambos vão à casa de Tuca, mas este trata Rodrigo muito mal, após ele ver
a mãe do menino caída no chão bêbada. Ao contrário do que estamos acostumados, quem sofre preconceito é o menino rico. Tuca se precipita e imagina que
Rodrigo irá lhe julgar por sua condição financeira. Ambos brigam, mas no fim se
acertam. Este é início de uma longa amizade.
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Paloma do Nascimento Oliveira
Bojunga trata da violência social que crianças sofrem todos os dias de uma
maneira muito delicada e envolvente. O leitor consegue entender ambos os lados
e observa as realidades distintas sem preconceitos, tornando a leitura uma porta
para a reflexão.
Em “A troca e a tarefa” há uma exploração do íntimo de uma menina cujo
nome não é revelado. A garota conhece o ciúme muito cedo e convive com as
comparações constantes que a família faz com a irmã mais velha. Esse ciúme a
leva ao mundo da escrita, onde ela pode se expressar e deixar de lado todos os
sentimentos que a perturbam.
A narrativa de Lygia Bojunga Nunes lida como problema da autoridade,
deslocando-o para a perspectiva da própria criança. Ela assume como
seus, de forma extremamente sensível, as angústias e os problemas
existenciais da infância frente ao adulto que crê ser o dono de todas as
verdades. (SANDRONI, 2011, p. 111)
A família neste conto é fundamental para entendermos os momentos em
que universo infantil se sente reprimido, incompreendido. Ainda segundo Sandroni (op. cit.), “A família e a escola são agentes privilegiados da opressão institucionalizada que o adulto exerce sobre a criança sob o disfarce da proteção”.
Das queixas que a menina do conto tem, todas se voltam para a família. A
mãe que não presta atenção, o pai que a compara com a irmã mais velha, a irmã
que rouba a atenção de um amor secreto que ela nutria pelo vizinho Omar – fruto de seu primeiro poema chamado “O mar”. Neste contexto, ela dribla as adversidades e se torna uma grande escritora, transferindo sua paixão para o papel.
O último conto trazido pelo livro, “Lá no mar”, talvez seja o mais lúdico, por
trazer como protagonista um barco. O enredo acontece em dois momentos: no primeiro, o barco tem um dono e ambos são tão íntimos que sabiam a hora exata de
pescar o peixe, mas, num dia em que o mar estava furioso, o dono do barco morre
e o barco fica à deriva; no segundo momento um pescador e seu filho encontram o
barco e tentam levá-lo. O barco oferece resistência e só se deixa levar quando percebe que seu novo dono, a criança, iria lhe contar novas histórias e vivê-las com ele.
Os quatro contos do livro abarcam o tema central de toda a obra de Bojunga: a infância. Sandroni (op. cit., p. 73) lembra que a autora “constrói narrativa
impregnada de riquíssima fantasia que tem por base elementos tomados do real
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
e como objetivo discutir os comportamentos sociais frutos da ideologia dominante sem, no entanto, deixar de lado sua função lúdica”. Em Tchau, Lygia Bojunga Nunes põe em prática essa mescla do real e da fantasia, do social e do lúdico,
abrindo perspectivas para a criança leitora entender o mundo ao seu redor assim
com o seu próprio mundo.
Em sala de aula
Antes de relatar a recepção dos alunos, é interessante apresentar a sequência para o letramento literário com as turmas. Foi elaborada uma sequência sem
muitos detalhes, mas que produziu efeitos relevantes no processo de letramento.
Esta sequência básica envolveu três etapas: introdução, leitura e interpretação (o
eu no texto).
Na introdução foi apresentado um pouco de Lygia e sua obra. Nessa etapa,
sabendo do contato mínimo que os alunos tinham com a leitura, foi utilizada a
técnica da motivação, que segundo Cosson (2006, p. 54 - 55) é “o primeiro passo
da sequência básica do letramento literário” – é neste momento que o professor
deve preparar o aluno para entrar no texto – “O sucesso inicial do encontro do
leitor com a obra depende de uma boa motivação. Neste sentido, cumpre observar que as mais bem-sucedidas práticas de motivação são aquelas que estabelecem laços estreitos com o texto que se vai ler a seguir”.
Foi a partir desse estreitamento que o livro foi introduzido para os alunos.
Sem que se fossem adiantadas as surpresas da narrativa, foi necessário tocar nos
temas trazidos pelos contos para que a turma despertasse o interesse pela leitura
da obra. Houve uma conversa com os alunos antes da leitura do conto “Tchau”,
por exemplo, sobre a questão da separação de pais e filhos. Nas duas turmas,
ouviu-se muitos relatos de pais que abandonaram as mães e deixaram à sorte da
vida, assim como mães que também deixaram seus lares. Muitos alunos relataram viver com suas avós, tios e até irmãos.
Essa aproximação favoreceu bastante a aceitação do texto. Assim que começaram a ler o conto, perceberam a semelhança entre eles a personagem principal: entendedores de sua incapacidade de impedir que um parente os deixe, mas
fortes para seguir em frente com o que a vida lhes deixou.
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A segunda etapa foi de iniciação da leitura. Os contos foram lidos um a cada
mês do ano, todos com estratégias semelhantes. Após terem seus temas introduzidos e discutidos com os leitores, todos iam para o pátio, acomodando-se de
acordo com sua vontade, e começava-se a ler em voz alta.
Esta primeira ação, realizada pelo professor, tem um papel fundamental
para as primeiras percepções do aluno. Ao passo que ele vai escutando a narrativa, com a devida entonação, há um envolvimento direto com personagens e
enredo. O ato de ler se torna um momento de prazer e estímulo de concentração,
o que acabará ajudando na apreensão dos conteúdos escolares em geral.
Com os contos lidos mais ou menos até a metade, aula ficava livre para o
momento individual, onde cada aluno levaria seu exemplar para descobrir o fim
da história. Esse passo tem relevância no sentido de que com a leitura individual é possível respeitar o ritmo de cada um. O tempo do aluno, no momento de
imersão na leitura, é muito particular e deve ser valorizado nesta etapa.
Na terceira e última etapa da sequência, que é a interpretação, é o instante
de construção de sentido daquilo que foi lido. Construção essa enfatizada por
Cosson (2006, p. 64) como “um diálogo que envolve autor – leitor – comunidade”.
O aluno sentirá nesta fase os efeitos da introdução e da leitura, assim como de
sua vida social.
Do mesmo modo, a história de leitor, as relações familiares e tudo mais
que constitui o contexto de leitura são fatores que vão contribuir de
forma favorável ou desfavorável para esse momento interno. A interpretação é feita com o que somos no momento da leitura. Por isso, por mais
pessoal e íntimo que esse momento interno possa parecer, ele continua
sendo um ato social. (COSSON, 2006, p. 65)
Neste momento final, o professor deve conciliar as interpretações pertinentes e explicar o motivo das superinterpretações não serem válidas. É imprescindível também que o mediador escute a experiência interpretativa dos
leitores, valorizando as peculiaridades ressaltadas por cada aluno. Os universos
compartilhados serão responsáveis pela construção de uma interpretação coletiva e relevante.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
As impressões dos alunos
Após o trabalho com todo o livro, foram lançadas três perguntas aos alunos
para que fosse possível realizar um diagnóstico sobre todo o processo. Foi pedido que houvesse bastante sinceridade nas respostas, pois eles foram informados
de que suas respostas ajudariam outros professores a entender melhor o universo deles e poder levar boas leituras e estratégias para outras turmas.
Os questionamentos1 foram:
• O que você esperava do livro Tchau antes de começar a lê-lo?
• Qual o seu conto preferido? Por quê?
• O que você achou do livro? Explique.
Foram selecionados seis dos vinte e três questionários aplicados com os alunos presentes no dia. Todos foram aplicados com os alunos do 7° ano B. A seguir,
temos as respostas dos alunos e logo abaixo os comentários.
Questionário 1
1. Foram feitas perguntas simples aos alunos para que eles pudessem ter a liberdade de se expressar da
forma que quisessem. As respostas foram as mais variadas e foram postas as imagens para manter a forma
de escrita de cada um.
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Questionário 2
Questionário 3
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Questionário 4
Questionário 5
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Questionário 6
A primeira pergunta contemplou o horizonte de expectativa do aluno. Não
se sabia quais seus pensamentos sobre o livro antes da leitura e eis que a maioria relatou que acreditava que encontraria pela frente um livro chato, como o
aluno do questionário 4 enfatizou: “como qualquer outro livro cheio de contos”;
e a aluna do questionário 2, que disse achar que “era complicado, com uma linguagem diferente”, acreditou que não iria gostar.
Esse ‘achar não gostar’ reflete a herança de um ensino voltado para a leitura
obrigatória e mal direcionada que, infelizmente, nosso sistema educacional ainda tem. Alguns relataram verbalmente que não gostavam de ler porque a ‘tia’ do
Fundamental I não trabalhava com livros ‘legais’. Por traz desse discurso está a
falta de formação continuada e professores que utilizam a leitura apenas para
cumprir os conteúdos exigidos.
A segunda pergunta se direcionou para observar o gosto pessoal de cada
aluno, assim como para avaliar os aspectos intrínsecos que os levaram à escolha do conto. Dos seis, quatro elegeram como favorito “A troca e a tarefa”. Nessa
amostra de questionários houve uma maioria que levou em conta um enredo
que tem como pano de fundo o ato de escrever.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
A aluna do questionário 2 justifica sua preferência baseada na personificação do Ciúme, que é tratado com alguém pela personagem principal: “achei
muito interessante quando o “Ciúmes” é dito como se fosse uma pessoa”. Os
alunos dos questionários 5 e 6, justificaram sua preferência por pura identificação: “por causa do enredo da história e que em alguns pontos eu me identifico”;
“Pois sua história fala de uma menina que tem ciúmes e eu me identifiquei com
esse personagem”.
Já os outros dois questionários, o 3 e o 4, direcionaram sua preferência para
“O bife a pipoca”; ambos apontaram sua justificativa para a ausência de discriminação social entre os amigos: “os dois amigos tinham diferença social, mas
nem por isso pararam de ser amigos”; “achei muito legal como o menino trata
o outro da favela”. Estes dois alunos prestaram atenção no enredo e na sensibilidade com que a autora tratou a amizade permeada por diferenças sociais. A
identificação muito possivelmente partiu de suas realidades, por viverem numa
comunidade bastante precária, próxima à escola.
Na última pergunta se procurou saber que conclusão o aluno tirou das
leituras, externando se aprovaram ou não a escolha do livro. Todos os vinte e
três questionários tiveram respostas positivas e, dos seis que expusemos aqui,
foi possível observar determinados elogios consistentes, como a observação da
linguagem acessível – “um livro interessante com gramática fácil” (Questionário 5) – e dos elementos que tornam a narrativa interessante – “eu amo livros
que terminam com esses suspenses, me deixa mais ansiosa, me dá vontade de
terminar de ler logo” (Questionário 2), “as histórias também contém suspense,
romance, aventura e outros. E essas características fazem o livro muito melhor”
(Questionário 6).
Todas as perguntas tiveram respostas satisfatórias. Levando em conta a idade e a pouca experiência com leitura, os alunos souberam expor suas opiniões
deixando clara a relevância desse primeiro contato com a leitura no 7° ano.
Conclusão
Acredito não ser possível fazer um diagnóstico completo sobre a situação de
cada aluno a nível de leitura, mas pelo trabalho feito foi possível chegar a algumas conclusões. Primeiro, a de que não devemos nos subjugar a um sistema que,
3664
Paloma do Nascimento Oliveira
quando não impõe, omite o acesso à boa literatura; com iniciativa é viável levar,
sim, a leitura literária às escolas públicas. Transferir a ‘culpa’ da falta do hábito
de ler para os alunos ou suas famílias, muitas vezes desestruturadas, é apenas
uma desculpa encontrada por quem não enxerga no seu aluno um indivíduo com
um grande potencial.
É preciso muito pouco para estimular o aluno ao interesse pela leitura, sua
imersão no letramento literário deverá vir mediada pelo professor, quando não
existir a instigação por parte da família. O jovem, de modo geral, tem uma aceitação maior do novo comparado ao adulto, portanto, apresentar novas obras e
escritores talentosos é uma iniciativa que pode dar certo. O prazer da aquisição
de novas fontes pode ser um presente reconhecido.
Incitar a descoberta de novos autores e novos sabores literários é uma missão doce para o professor que pretende ver o crescimento intelectual de suas
turmas. Ao concluir o trabalho com o livro ficou a sensação de que aquele estava
sendo apenas o primeiro passo para o crescimento daqueles novos leitores.
Referências
BOJUNGA, Lygia. Tchau. 19ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2012.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna,
2000.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.
HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac
Naify, 2010.
ROXEL, Annie. Aspectos metodológicos do ensino da literatura. In: DALVI, Maria Amélia;
REZENDE, Neide Luzia de; JOVER-FALEIROS, Rita. (Orgs) Leitura de literatura na escola.
10 ed. São Paulo: Parábola, 2013, p. 17 – 33.
SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga: as reinações renovadas. 2 ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2011.
3665
RESUMO
O presente artigo busca elencar e analisar os resultados de um trabalho de pesquisa
desenvolvida ao longo de quatro semestres nos cursos de formação de professores, na Licenciatura em Letras e em cursos de Especialização em Língua Portuguesa
e Literatura Brasileira, em Petrolina – PE, onde se procurou catalogar as práticas
de interpretação/análise textual desenvolvidas pelos professores de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira na Educação Básica, especialmente, no Ensino Médio.
O projeto de pesquisa foi inicialmente idealizado com os objetivos de conhecer e
analisar as práticas de leitura/compreensão em sala de aula, além de oferecer material de pesquisa aos professores locais. E o resultado inicial foi um rico acervo
de informações relevantes e atualizadas acerca dessas práticas utilizadas nas aulas
de Língua Portuguesa em escolas públicas da região. Assim, os objetivos iniciais da
pesquisa foram plenamente alcançados. No entanto, percebeu-se a necessidade de
aprofundamento dos estudos específicos sobre os diversos tipos de análise, aqui denominadas Análises Isoladas, exemplificadas pela Estética, Estilística, Semântica e
Pragmática. Os aportes teóricos foram baseados nos estudos de gêneros textuais, de
Marchuschi e Koch; Modalidades Tipológicas, de Travaglia; contextualização e ensino, de Kleiman e Orlandi; práticas de interpretação de diversos teóricos. A proposta
final tomou ares de capacitação dos professores formados em Letras na construção/
desenvolvimento e teorização de mecanismos de compreensão dos diversos gêneros
textuais literários da contemporaneidade, cada dia mais complexos, principalmente
pela relação de proximidade com outras artes (música, artes plásticas, cinema). O
artigo apresenta algumas interpretações e sinaliza para que o estudo desses aspectos
isolados sirva exclusivamente para o aprofundamento teórico dos professores, e defende, ainda, que o texto literário, assim como outros textos, deve ser compreendido
em sua contextualização e intertextualidade, jamais isoladamente, como pode ser
feito com os referenciais teóricos.
Palavras-chave: Análise estética, Estilística, Semântica, Pragmática.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS A PARTIR
DE ANÁLISES ISOLADAS
Roberto Remígio Florêncio1
Introdução
Muito comum em concursos, inclusive na quase totalidade das questões
do ENEM, a interpretação de textos passou a ser foco dos estudos de cursos
de graduação, pós-graduação e cursinhos preparatórios para o ENEM e/ou concursos públicos. No entanto, a formação de professores para atuar nessa área
especificamente não ocorreu com a mesma velocidade nem empenho. O que
foi detectado nos cursos de formação de professores está bem distante do que
a realidade apresenta e a contemporaneidade exige do mercado: professores recém-formados em Letras ou Especialistas quem têm um domínio razoável das
regras da Gramática Normativa, adquiriram noções básicas e interessantes sobre
os estudos de Linguística, conseguem produzir e avaliar textos dissertativos a
contento, mas que têm, em sua maioria, uma estrema dificuldade de interpretar
textos, principalmente os literários e mais especificamente os da Literatura Brasileira Moderna e Contemporânea.
Muitos professores de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, formados em Letras e, muitas vezes, especialistas em Língua Portuguesa e Literatura queixam-se da falta de qualidade em suas formações/capacitações no que
concerne às atividades de interpretação textual. Detecta-se uma grande de-
1. Professor de Língua Portuguesa do Instituto federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão
Pernambucano – IF Sertão campus Petrolina Zona Rural; aluno do mestrado pelo Programa de Pósgraduação em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos (PPGESA/UNEB).
3667
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
satualização quando não desinformação acerca das análises linguísticas, especialmente, de gêneros textuais literários. O artigo que ora se apresenta é
o resultado de um estudo desenvolvido nos cursos de Graduação em Letras e
Especialização em Língua Portuguesa e Literatura, oferecidos por uma instituição de Ensino Superior privada na cidade de Petrolina, durante o período de
junho/2013 a junho/2015. A referida IES atende profissionais em busca de formação, em níveis de graduação e pós-graduação, em toda região do Vale do São
Francisco e sertão pernambucano. A metodologia utilizada para a pesquisa foi
a observação participante e os métodos de interpretação dos dados foram baseados na Análise do Discurso. Os resultados iniciais apontaram uma grande
deficiência teórica, por isso, foram desenvolvidos cursos e oficinas sobre análise e interpretação durante os estudos, envolvendo os pesquisadores (alunos
do curso de especialização em Língua Portuguesa e Literatura) e interessados
(alunos dos cursos de letras e especializações em áreas afins e professores da
rede pública de educação básica). Os resultados finais mostram um estudo teórico-prático das questões que envolvem análises linguísticas e interpretações
de textos literários, aqui apresentado como Interpretação de Textos a partir de
Análises Isoladas. As formas de análise são apresentadas isoladamente apenas
para didatização dos estudos a serem desenvolvidos pelos profissionais da área.
O problema mais comumente apresentado pelos professores está na dificuldade de interpretar um texto com propriedade teórica e profundidade analítica, levando em consideração a flexibilidade de informações que a linguagem
literária. Buscou-se pontuar que nenhum texto será efetivo e definidamente
interpretado sempre haverá algo a dizer, pois os textos são caminhos abertos,
mas não rotas traçadas. É preciso estar atento ao que o texto nos apresenta
em toda a sua formação comunicativa e para isso, um bom exercício pode ser
tentar responder a uma série de perguntas suscitadas pelo poder comunicativo
dos textos: quem é o autor?, quando foi escrito?, quais as intenções?, quem é o
público mais diretivo?, que linguagem foi utilizada e por quê?, por que foi utilizado este canal ou suporte?, o que a construção gramatical pode ter influenciado na realização final do texto?, com que(quais) outro(s) texto(s) dialoga?,
seria possível seu entendimento de outra forma?, qual a escola literária?, qual
3668
Roberto Remígio Florêncio
a influência do período literário para a formatação do texto?, há algo contextual que justifica a referida produção textual?, que sentidos podem trazer suas
palavras e expressões?, qual o contexto sócio-histórico da produção?, qual foi o
reflexo para a Literatura?, enfim, qual a sua mensagem final?
Práticas de interpretação de textos
Desde poemas clássicos dos cânones da Literatura Brasileira a letras de
música da MPB (de autores como Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso,
Renato Russo ou Cazuza), para dar a ideia de atualidade, é comum ver alguma
música, poema ou conto da literatura contemporânea brasileira sendo “explorado” em alguma análise linguístico-literária no ensino médio e fundamental,
mesmo que de forma direcionada para um determinado estudo gramatical ou
linguístico. As mensagens são parcamente discutidas e as análises, em geral,
são parciais e objetivas. Alguns temas tornam-se recorrentes: diferenças sociais, acontecimentos notórios ou inusitados e violência. Nas obras mais líricas,
também se veem nuances de assuntos como medo, solidão, angústia ou revolta.
E, assim, não deixam de fazer parte de um consciente coletivo que vai tecendo
a teia que pode ser definida como a cultura popular brasileira da atualidade.
Uma das temáticas mais abordadas está relacionada ao amor, principalmente
quando envolve início ou fim de relacionamentos, paixões avassaladoras, amores não correspondidos ou retornos conjugais. As questões sociais são temas
marcantes nas letras da MPB engajada, principalmente no período da Ditadura
Militar. Aqui, listaremos algumas interpretações de letras de música, desenvolvidas em oficinas de produção, pelos professores de L.P. e alunos da graduação
em Letras e da especialização em L.P. e Literatura. Os nomes dos autores serão
preservados.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Análise da música ‘Epitáfio’ - Titãs (Sérgio Brito)
Devia ter amado mais
Ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais e até errado
mais
Ter feito o que eu queria fazer
Queria ter aceitado as pessoas como
elas são
Cada um sabe a alegria e a dor que
traz no coração
Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com
problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza
que vier
Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr.
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...
À primeira leitura do texto, fica claro que o eu lírico arrepende-se da vida
que levou ao cravar em seu “epitáfio” (mensagem escrita em lápides e túmulos
para homenagear o morto) que deviria ter se entregado mais aos prazeres da
vida, sem receio dos resultados. Dá para perceber o quanto ele está arrependido
das coisas que devia ter feito e não as fez. Aqui, há uma relação com a poética de
Cecília Meireles em relação à efemeridade da vida.
É possível se analisar as questões gramaticais de formação do sentido do
texto: as reticências no final do refrão evidenciam o quanto ele irá andar distraído; o verbo pôr no final do texto é uma exceção nas regras de acentuação
da língua portuguesa; questões de concordância e a ordem inversa de algumas
orações podem ser trabalhadas em sala de aula (Ex. A cada um cabe alegrias e a
tristeza que vier).
Analisando o contexto, podemos dizer que a música de Sergio Britto, composta em 2008, é bastante atual e subjetiva. É visível, em quase todos os versos
da canção, que o autor escreveu essa música vivenciando o atual sistema capitalista, onde o dinheiro é visto como um dos bens mais preciosos, e agora, depois
3670
Roberto Remígio Florêncio
de morto, estaria arrependido e analisando os erros cometidos. Hoje percebemos
o quanto trabalhamos muito, complicamos muito, damos muito importância aos
bens materiais. Agora, arrependido, ele fala que devia ter se importando menos,
com problemas pequenos.com uma linguagem simples, o autor possibilita várias
interpretações, mas evidencia o arrependimento em uma releitura do famoso
texto “80 anos”, do escritor argentino Jorge Luiz Borges.
Análise linguístico-literária da música ‘Cidadão’
(Lúcio Barbosa)
“Criança de pé no chão aqui não pode
estudar”
Tá vendo aquele edifício, moço?
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição, era quatro
condução
Duas pra ir, duas pra voltar
Hoje depois dele pronto
Olho pra cima e fico tonto
Mas me vem um cidadão
E me diz desconfiado:
“Tu tá aí admirado ou tá querendo
roubar?”
Essa dor doeu mais forte
Por que é que eu deixei o norte
Eu me pus a me dizer.
Lá a seca castigava, mas o pouco que
eu plantava
Tinha direito a comer.
Tá vendo aquela igreja moço, onde o
padre diz amém
Pus o sino e o badalo, enchi minha
mão de calo
Lá eu trabalhei também
Lá foi que valeu a pena, tem quermesse, tem novena
E o padre me deixa entrar
Foi lá que Cristo me disse:
“Rapaz deixe de tolice, não se deixe
amendrontar
Fui eu quem criou a terra
Enchi o rio, fiz a serra, não deixei nada
faltar
Hoje o homem criou asas e na maioria
das casas
Eu também não posso entrar”.
Meu domingo tá perdido, vou pra casa
entristecido
Dá vontade de beber
E pra aumentar meu tédio
Eu nem posso olhar pro prédio que eu
ajudei a fazer
Tá vendo aquele colégio moço
Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Fiz a massa, pus cimento, ajudei a rebocar
Minha filha inocente vem pra mim
toda contente
“Pai vou me matricular”
Mas me vem um cidadão:
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
A música “Cidadão”, de Lúcio Barbosa, fez sucesso também na voz de Zé
Ramalho, mas é o carro-chefe da obra musical de Zé Geraldo. A letra apresenta
uma linguagem simples, de fácil compreensão e tem como principal temática a
saga de um eu-lírico que trabalha como pedreiro, mas em razão da sua condição humilde, não pode frequentar (quase) nenhuma das obras por ele construídas. Além disso, aborda alguns temas importantes, como a migração do nordestino que foge da seca e da vida dura do sertão, acreditando que na cidade terá
uma vida melhor. Porém após chegar naquele “mundo novo” percebe que a vida
não será muito diferente, porque ele se depara com as mesmas injustiças sociais:
a discriminação e a exclusão.
O título “Cidadão” foi colocado de forma proposital para denunciar a desigualdade social em que mostra a “classe oprimida” e o seu distanciamento
com os indivíduos privilegiados. A letra da música traz à tona a vida injusta
dos pobres e uma crítica às elites. Além disso, retrata a falta de acesso à escola
para os pobres, comprovada no verso “Criança de pé no chão aqui não pode estudar”. Já nesses versos mostra a extensa jornada de trabalho do pedreiro: “Tá
vendo aquele colégio moço, eu também trabalhei lá. Lá eu quase me arrebento,
fiz a massa, pus cimento, ajudei a rebocar”. A letra da música também trata da
temática da fé, pois já no final do texto, quando o pedreiro afirma que só tem
direito a entrar na igreja, ele destaca que até Cristo que criou o mundo diz “que
o homem criou asas e na maioria das casas também não pode entrar.”
A referida música foi composta na década de 1970, pelo poeta baiano Lúcio
Barbosa, em homenagem ao seu tio Ulisses. Zé Geraldo, no ano de 1978, saiu-se
vitorioso do Festival de Ilha Solteira com a canção “Promessas de um idiota às
seis da manhã”, onde conheceu o compositor Lúcio Barbosa, segundo colocado. Barbosa lhe mostrou a música “Cidadão” e Geraldo então pediu para gravar:
com esta canção, Zé Geraldo é reconhecido nacionalmente até os dias de hoje.
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Roberto Remígio Florêncio
Análise semântica da música ‘Eu Era um Lobisomem
Juvenil’ - Legião Urbana (Renato Russo)
Luz e sentido e palavra,
Palavra é que o coração não pensa
Ontem faltou água, anteontem faltou luz
Teve torcida gritando quando a luz voltou
Não falo como você fala, mas vejo bem o
que você me diz
Qual foi a semente que você plantou?
Tudo acontece ao mesmo tempo
Nem eu mesmo sei direito o que está acontecendo
E daí, de hoje em diante
Todo dia vai ser o dia mais importante
Se o mundo é mesmo parecido com o que
vejo
Prefiro acreditar no mundo do meu jeito
E você estava esperando voar
Mas como chegar até as nuvens com os
pés no chão
Se você quiser alguém prá ser só seu
É só não se esquecer eu estarei aqui
Não digo nada, espero o vendaval passar
Por enquanto eu não sei o que você me falou
Me fez rir e pensar porque estou tão preocupado
Por estar tão preocupado assim
O que sinto muitas vezes faz sentido e outras vezes
Não descubro um motivo que me explique
porque é
Que não consigo ver sentido no que sinto,
que procuro
O que desejo e o que faz parte do meu
mundo
Mesmo se eu cantasse todas as canções
Todas as canções, todas as canções
Todas as canções do mundo
Sou bicho do mato
Mas se você quiser alguém, prá ser só seu
É só não se esquecer eu estarei aqui
Ou então não terás jamais a chave do meu
coração
O arco-íris tem sete cores e fui juiz supremo
Vai, vem embora, volta
Todos têm, todos têm suas próprias razões
A música Eu Era Um Lobisomem Juvenil faz parte do disco “As quatro Estações” da banda de rock Legião Urbana. Essa canção traz para o público o reflexo
do tímido eu–lírico: possivelmente fazendo referência ao adolescente, perdido
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
em dúvidas, confusões e medo; aquele ser “diferente” que talvez tivesse duas faces, assim como um lobisomem. Provavelmente autobiográfico.
Na 1ª estrofe, o eu-lírico já expõe os seus sentimentos (“Luz e sentido e palavra, palavra, é que o coração não pensa”) e faz críticas (“Ontem faltou água,
Anteontem faltou luz/Teve torcida gritando quando a luz voltou”), fazendo com
que o público-alvo rapidamente se identifique por sentir as mesmas emoções e
ter vivido as mesmas experiências.
Em “Se o mundo é mesmo parecido com o que vejo, prefiro acreditar no
mundo do meu jeito”, interpretamos que o mundo que existe não é na realidade
o que gostaríamos, então é melhor acreditar em um mundo de sonhos e imaginação, isso fica explícito quando ele conclui “E você estava esperando voar, mas
como chegar até as nuvens com os pés no chão”. Não podemos viver nos sonhos,
se estamos presos ao chão, à realidade.
Ainda com dificuldades para inserir-se “nesse mundo”, e todos os conflitos existentes por conta dessas: “O que sinto muitas vezes, faz sentido e outras
vezes, não descubro um motivo, que me explique porque é que não consigo ver
sentido, no que sinto, que procuro, o que desejo e o que faz parte do meu mundo”. Aqui, o autor conquista toda a identificação possível entre os jovens, público
importante no contexto do rock.
Quando pergunta: “Qual foi a semente que você plantou?” e afirma que:
“Tudo acontece ao mesmo tempo, nem eu mesmo sei direito, o que está acontecendo” e chega a conclusão: “E daí, de hoje em diante, todo dia vai ser o dia mais
importante”, temos uma reflexão: Muitas vezes não compreendemos o porquê de
estarmos enfrentando determinadas situações, porém tudo é resultado do que
plantamos, e independentemente da semente brotar (bom fruto, ou não), a partir daí todos os dias vão ser os dias mais importantes, seria o mesmo que “viver
um dia de cada vez”, então “Carpe Diem”.
Ao longo da canção fala-se em atos precipitados e conclusões, já que não se
diz nada, enquanto a confusão não passar, por exemplo: “Não digo nada, espero
o vendaval passar, por enquanto eu não sei o que você me falou, me fez rir e pensar, porque estou tão preocupado.” E, na 8ª estrofe, o eu lírico chega à conclusão
de que por mais que tente, deixará de ser um “bicho do mato”, que parece, aliás,
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Roberto Remígio Florêncio
ser a única ligação lógica com o título da música, e continuará sendo um lobisomem juvenil, que é uma lenda viva, com suas diversas faces, em corpo de jovem.
Análises isoladas: teorização e prática
A partir da necessidade de teorização, procurou-se elaborar um percurso
didático onde as análises fossem aprofundadas em seus diversos tipos, aqui denominadas e explicadas:
a) Análise Estética: O texto literário é classificado em prosa ou verso. No entanto, não é uma definição tão fácil, pois a escrita de
diálogos nas estruturas de peças teatrais é bastante particular, assim como, a abolição dos versos nos poemas concretos, visuais ou
na poesia-práxis. A estética está associada ao estudo dos gêneros
textuais, que, a partir de Marchuschi, “deve ser visto como uma
prática e não como um objeto ou artefacto empírico” (MARCHUSCHI, 2008, P. 56). Portanto, analisar um texto esteticamente não
se restringe a classifica-lo em prosa ou verso, moderno ou clássico,
longo ou curto. Mas, depreende-se dele toda a gama de significação contida em seu significante. Ainda de acordo com Marchuschi,
“os gêneros são fenômenos históricos profundamente vinculados à
vida cultural e social. Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do
dia-a-dia” (2002, p. 56). Os gêneros textuais são formas de ação
social, por isso, são elementos textuais altamente maleáveis em
suas funções, estruturas, meios ou fins.
b)Análise Estilística: compreende toda a complexidade da linguagem poética em relação às figuras de composição textual: de linguagem, de som e de construção morfissintática. Nos textos literários, as figuras de linguagem fazem parte do poder conotativo
da linguagem e são necessários maiores empenhos por parte dos
analistas, e grande poder de abstração por parte dos leitores em
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
geral. Nos poemas, isto pode significar entender ou não a mensagem do texto. Citaremos adiante alguns textos analisados para
melhor elucidação da linguagem literária.
c) Análise Gramatical: Se o texto é uma unidade semântica anterior
à unidade morfossintática, volta-se à concepção de contexto anterior à de texto: o segundo existe pela existência do primeiro. Aqui,
empreende-se mais que um analise gramatical, mas uma interpretação linguística do texto, do seu conteúdo e das suas intenções.
Orlandi nos diz que “o trabalho com a linguagem traz a marca do
múltiplo e do mutável. Isto se deve à plasticidade inerente à linguagem e ao fato de que ela está presente em todas as formas de
ação do homem” (1989, p. 09). A sociolinguística deve ser a marca dos estudos morfossintáticos da Literatura Brasileira Moderna/
Contemporânea: isto é melhor compreendido ao analisarmos os
poemas da 1ª Geração Modernista e dos poetas marginais e da Poesia-Práxis.
d)Análise Semântica: Os significados são aqui trabalhados em sua
extensão: a semântica estuda a multiplicidade significativa dos
signos e estes, por sua vez, asua forma. Segundo Ilari & Geraldi,
para se analisar semanticamente, é preciso fazer relações recorrentes com a forma, a gramática e a língua, mas é o no contexto
que a mensagem se realiza (1990, pp. 41-43). Ainda segundo os
autores, “na estrutura semântica de ‘Pedro parou de fumar’, a semântica moderna distingue a informação asseratada de que Pedro
não fuma hoje e a informação pressuposta de que ele fumava no
passado.” (ILARI & GERALDI, 1990, p 88).
e) Análise Pragmática: A pragmática é o ramo dos estudos de interpretação que estuda o contexto linguístico, mesmo os seus aspectos não linguísticos (como o uso de outros signos que não sejam
linguísticos) ou extralinguísticos (elementos do contexto externo
3676
Roberto Remígio Florêncio
ao texto, como o autor, por exemplo). Os especialistas falam de
microtexto (quando o contexto linguístico é dado por uma palavra
imediata dentro do enunciado) e de macrotexto (o significado do
texto não é imediato, uma vez que é dado por um contexto mais
afastado). Dá-se o nome de contexto extralinguístico ao conjunto
dos interlocutores potenciais, do local, do tipo de registro e do
momento em que decorre um ato linguístico. Estas circunstâncias
têm impacto sobre o entendimento da situação linguística. A literatura pode extrapolar qualquer tentativa de normatização dessas
vias naturais de compreensão textual. O contexto é a construção
cognitiva (ou quadro) que o falante faz da situação comunicativa:
o falante percebe somente aqueles elementos da realidade circundante que considera relevantes para o desenvolvimento da interação. É o contexto que nos diz se uma frase como “Estou limpo”
significa: 1. “Já me lavei” (criança ao sair do banho); 2. “Não usei
drogas” (toxicodependente em tratamento), 3. “Não tenho cadastro” (alguém ao ter saldado suas dívidas); 4. “Perdi todo meu dinheiro” (perdedor em uma mesa de jogo); 5. “Sou inocente” (réu
diante do julgamento); além de outros diversos sentidos. Para se
compreender um texto em sua totalidade comunicativa, é necessário saber informações que fazem parte de sua produção: 1. Em qual
momento histórico ele foi produzido; 2. A que situações internas
ou externas o texto se refere direta ou indiretamente; 3. Quais elementos textuais, não textuais e extratextuais foram utilizados em
sua formação: 4. Que suposições de resposta visavam encontrar os
seus produtores.
Análises aprofundadas: interpretação de textos poéticos
Análise inicial de ‘Tecendo a manhã’, de João Cabral
de Melo Neto
O limite entre o texto em sua composição linguística (morfossintática e
semântica) e o contexto em sua abrangência extralinguística (semântico-prag3677
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
mática) foi profundamente abordado em alguns poemas de João Cabral de Melo
Neto (Recife, 1920 – Rio de Janeiro, 1999). Para fins de entendimento da visão
do autor sobre o contexto, salientamos que o poeta guardava as características
de laborar exaustivamente na composição dos seus versos e ser um profundo
conhecedor da língua portuguesa, tanto como objeto da cultura popular como
das intransigências normativas do idioma. Em “Tecendo a manhã”, João Cabral
aborda a questão da coletividade na construção de um “objeto” extraordinário:
Tecendo a manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(NETO, J.C.M. Objetiva, 2010, p. 12)
Seria necessária maestria analítica para se compreender toda a extensão do
que o “Engenheiro da Palavra” quis efetivamente dizer em sua composição léxico-semântica: tanto pode ser a construção poética (onde galos seriam os poetas,
“ourives” da língua, segundo Olavo Bilac), como a construção do mundo (onde
galos seriam os trabalhadores, os seres humanos), ou ainda o poeta poderia estar
abordando a construção de sentido, de textos (onde galos seriam os interlocutores, os falantes). A terceira concepção aqui nos interessa mais e principalmente
3678
Roberto Remígio Florêncio
pela análise do uso dos vocábulos ligados a “tecer”, de tecido, tessitura (urdida,
trama), textum.
O poema inicia formulando interessante paráfrase do dito popular “uma
andorinha só não faz verão”, o que já sinaliza para o uso da contextualização.
Sem o texto original, não haveria a compreensão do segundo. Depois, seguem-se
vocábulos e expressões que lembram a construção de um texto e a necessidade
de um encadeamento próprio ao contexto: tecem, grito, “de um que apanhe esse
grito que ele/ e o lance a outro”. Aqui, percebe-se a genialidade do poeta no uso
da palavra “ele” (do verbo elar), ao invés do pronome “ele” sem a ação correspondente (verso 3), em uma ação consciente do verso, característica pela qual João
Cabral é reconhecido entre os cânones da Literatura Brasileira. O contexto está
no grito que é repassado de galo em galo, até que uma grande “teia tênue”, onde
cabem todos, seja formada.
Outros poemas do mesmo autor dialogam com essa temática: em “Catar
feijão” (1966), o poeta descreve metaforicamente o ato de escrever, fazendo uma
analogia entre escolher as palavras certas e o ato de catar o feijão que será cozido
e servido; em “Rios sem discurso” (1966), a metáfora utilizada está na analogia
entre o texto (discurso) e o rio (curso).
Pequena análise literária da música ‘Língua’,
de Caetano Veloso
O que Caetano deseja passar através desta letra tão complexa? Esta indagação já permite conceber teorias para elucidação da mensagem final: o poder
da língua. Ele cita Luís de Camões, Guimarães Rosa e Fernando Pessoa, entre
outros, para demonstrar a apreciação pelas mais importantes obras escritas em
língua portuguesa.
O conjunto de expressões que compõem o refrão constrói a imagem do que
é a língua portuguesa dentro da nação brasileira: língua nova, composta de aportes, neologismos, estrangeirismos e variedades linguísticas.
Na segunda estrofe, Caetano insere a primeira pessoa do plural: “Vamos/Sejamos”, que remete à voz típica daqueles que promovem uma campanha em favor
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
de uma conscientização ou que querem convencer por um outro motivo. Caetano
demonstra o objetivo de conscientizar o sujeito interlocutor para que não deixe
de valorizar a língua nacional, chamando atenção para “a sintaxe dos paulistas”
/ “o falso inglês relax dos surfistas”, para a influência dos estrangeirismos, que
são próprios da língua brasileira. “Sejamos imperialistas” clama pela participação dos sujeitos interlocutores, trazida pela voz da ideologia de conscientização.
Nesse caso, com relação à língua nacional, que deve predominar perante a língua
estrangeira. Além disso, essa expressão lembra as exclamações da ideologia de
luta de classes, que são manifestadas pela luta de direitos.
Outra marca que remete ao exterior discursivo em todo o texto é, sem dúvida, a variedade linguística, representada principalmente em: “Vamos na velô
da dicção choo choo de Carmem Miranda”. Uma das grandes tendências do homem moderno é a de reduzir as palavras, transformando-as em neologismos, em
virtude da rapidez das informações. Assim, as palavras vão perdendo sílabas, a
fim de permitir uma comunicação mais rápida, como no caso de velocidade, representada pela própria metáfora: “velô”. “Velô” remete também ao nome de família de Caetano Veloso, como forma abreviada A citação de “Carmem Miranda”
remete também à construção de outro sentido: Carmem Miranda foi a cantora
portuguesa que saiu do Brasil, permanecendo nos Estados Unidos. Seu inglês era
com sotaque português, a expressão “dicção choo choo” ironiza o sotaque adquirido pela cantora, no qual remanescia, no lugar do som linguodental, o viciado.
Nesta mesma estrofe, Caetano traz o nome de uma emissora de TV que é
referência nacional, a “TV Globo”, e pede: “Ouçamos com atenção os deles e os
delas da TV Globo”, e logo depois completa com a filosófica “Sejamos o lobo do
lobo do homem”, provavelmente chamando a atenção para que o interlocutor
não seja mero receptor, mas um sujeito participativo, que analise o uso o conteúdo do que é transmitido pela mídia e endossado pelas classes dominantes.
A terceira estrofe inicia-se com uma exclamação: “Incrível!”, expressão que
constrói o sentido de ironia, voz sempre presente quando diante de situações
aparentemente sem solução. Depois de apresentar um rol de escritores na estrofe anterior, o sujeito enunciador ironiza, afirmando: “Incrível! É melhor fazer
uma canção/ Está provado que só é possível filosofar em alemão/ Se você tem
uma ideia incrível é melhor fazer uma canção”. E esta é uma característica ti-
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Roberto Remígio Florêncio
picamente brasileira: fazer festa, ser criativo, mesmo diante das adversidades.
Caetano eterniza estereótipos também como uma forma crítica de analisar o
povo brasileiro. Alguns estereótipos são atenuantes na promoção do movimento
de progressão textual, no entanto, são agravamentos da crise contextual que se
pretende compreender nos contextos de espaços delimitados. Exemplo: a riqueza
europeia em contraponto com a pobreza dos países africanos é fator preponderante do discurso mundialmente estabelecido e, a reboque deste entendimento
previamente internalizado pelo consciente coletivo, torna-se impossível aceitar
um europeu pobre e um africano rico nos discursos comumente estabelecidos.
Caetano Veloso, nos versos da canção “Reconvexo” (VELOSO, Caetano in: Bethânia, Maria; Memória da pele; Polygram, 1989), faz uma analogia assegurada
pelo princípio do consciente coletivo quando diz: “Eu sou a chuva que lança areia
do Saara sobre os automóveis de Roma”. O entendimento destas metáforas pode
estar no lugar-comum de se identificar a África como pobre (areias do Saara) e a
Europa como rica (automóveis de Roma), além da questão das migrações ilegais
que ocorrem nas fronteiras destes dois continentes. Muitas outras composições
do poeta do Recôncavo Baiano podem ser trabalhadas em sala de aula, pois Caetano tem se tornado referência em letras de música com aspectos linguísticos
poéticos dignos da Literatura Brasileira Contemporânea.
Procurando (e encontrando) o contexto na poesia
de Drummond
Em seu poema “Procura da poesia”, do livro “A rosa do povo”(1945), Carlos
Drummond de Andrade inicia uma lista de “mandamentos” de como não se construir um poema com o que muitos entendem como crítica aos que utilizam fatos
do cotidiano para fazerem literatura: “Não faças versos sobre acontecimentos (...)
Nem me reveles teus sentimentos (...) Não cantes tua cidade (...)”. No entanto,
pela vida e obra do poeta mineiro (Itabira, 1903 – Rio de Janeiro, 1986), é possível
certificar-se de que ele não foi um poeta-escritor omisso aos acontecimentos sócio-políticos do país. Pelo contrário, sempre questionou tanto os desmandos do
poder quanto a capacidade literária de sua própria poesia.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Procura da poesia
(A Rosa do Povo, 1945)
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a
poesia. (...)
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável
corpo, tão infenso à efusão lírica. (...)
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam
a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é
poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
(...)
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em
mentir.
Não te aborreças. (...)
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.(...)
Nos versos seguintes, Drummond não parece refestelar-se no fazer poético
enquanto alegria imatura da construção perfeita, mas não deixa de se embriagar
da alma poética que ronda a sua aura. Por isso, defende a palavra como instrumento primordial para esta imersão poética (até dolorida, mas aparentemente
única) a que ele se propõe. Por isso, sugere:
Penetra surdamente no reino das
palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser
escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de
dicionário.
Convive com teus poemas, antes de
escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te
provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do
limbo.
Não colhas no chão o poema que se
perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e
concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as
palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela
resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
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Roberto Remígio Florêncio
Drummond encerra o teor informativo/injuntivo do seu poema com a palavra “chave” e a interrogação da dúvida que ele agora divide com seus colegas.
Somos poetas? Drummond dedicou extensa parte de sua composição à dualidade do fazer poético; essa dúvida de ser poesia ou não, ou a própria procura
da poesia, está presente em quase todos os seus textos, desde a indignação irrequieta de “No meio do caminho”. Porque ficar com a dúvida apenas para si? Fiquemos todos. Alguém trouxe a chave? E encerra o poema de maneira delicada,
para estremar sua concepção humana, dura, ainda que lírica: a beleza singular
da parte final pode ser a realização pessoal do sentimento universal do fazer
poético. Seria a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiam na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Considerações finais
A literatura, enquanto a arte da palavra, acompanha o homem tanto nas
suas mais importantes e fantásticas criações como na banalidade do seu dia a
dia, recheado de repetições e tédios, como em “Eta vida besta, meu Deus”, de
“cidadezinha qualquer”, da obra Alguma Poesia (Drummond, 1930). E, destes
cenários tão contrários, complexos ou simples, retira matéria prima para sua
mimese. Exemplos disso são os próprios poemas produzidos nas vanguardas
citadas. A maioria dos temas destaca uma mudança, ou pelo menos uma tentativa, de mudar os conceitos da arte literária. Isto também seria uma epifania,
a corporização daquilo que se quer dizer, em uma situação metalinguística.
Observando a II Guerra como marco na história da humanidade, é impossível
não lembrar do poema “A Rosa de Hiroshima”, de Vinícius de Moraes, que, com
toda sua subjetividade, “desenhou” poeticamente a “rosa radioativa, estúpida
e inválida” .
Mas, a arte tem seus melindres e mistérios. Muitas vezes, não expõe sua
ideia central à primeira leitura. “Quadrilha”, de Drummond, aponta-nos um
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
bom exemplo de como “esconder” a ideia central de uma obra de arte, como
muito bem fez Leonardo da Vinci, com a sua enigmática Monalisa. Lili, a personagem “diferente” dos demais participantes de “Quadrilha” (João, Tereza,
Joaquim, Maria e Raimundo), aparece como elemento problematizador da teia
narrativa, em que o tema, mesmo parecendo ser sobre as desilusões do amor,
aborda os interesses econômicos que a personagem tem ao casar (sem amar
ninguém) com J. Pinto Fernandes, que era de outro nível, pois não havia entrado na história (na quadrilha, típica dança popular) (PLATÃO e FIORIN, 2001;
p. 342).
Mesmo quando se volta para si mesma, a literatura consegue trazer excelentes reflexões para o pensamento humano. Em “Traduzir-se”, Ferreira Gullar
expõe sua preocupação com a criação poética ao tempo em que tenta se autoconhecer, como poeta e cidadão. Mas, poucos fizeram um trabalho de análise pessoal tão filosófico, e ao mesmo tempo, psicológico, quanto Machado e Lispector,
nos séculos XIX e XX, respectivamente.
Enfim, a relação entre homem/sociedade e a arte/literatura é de tal importância para o desenvolvimento da humanidade que não se percebe o homem
no contexto histórico sem a sua literatura. Massaud Moisés (1988) diz que a
desvinculação um do outro (homem x literatura) torna a compreensão de um
incompleta e, por vezes, equivocada. Situar a literatura em um determinado
contexto é conhecer o homem naquele período histórico e vice-versa.
Referências
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KLEIMAN, Angela. Oficina de Leitura: teoria e prática. 7. ed. Campinas: Pontes, 2000.
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MARCHUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. São
Paulo: Parábola Editorial, 2002.
______. Produção Textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola
Editorial, 2008.
3684
Roberto Remígio Florêncio
MOISÉS, Massaud. Literatura: Mundo e forma. (1982). São Paulo: Nova Fronteira, 1988.
ORLANDI, E., GUIMARÃES, E., TARALLO, F. Vozes e contrastes. São Paulo: Cortez, 1989.
PLATÃO & FIORIN. Francisco & José Luiz. Para entender o texto: leitura e redação. São
Paulo: Ática, 2001.
TRAVAGLIA, L. C. Um estudo textual-discursivo do verbo no português. Campinas:
Tese de Doutorado / IEL / UNICAMP, 1991.
3685
RESUMO
O professor em processo de formação está a todo o momento sendo mobilizado
por diferentes saberes que constituirão sua bagagem de conhecimento acerca da
disciplina que deseja lecionar. No caso do licenciando em Letras, são inseridos,
na grade curricular, componentes que abrangem domínios lingüísticos, literários,
pedagógicos, dentre outros. Mas, apenas o saber teórico sobre múltiplas questões
inerentes ao ensino de língua e literatura não são suficientes para a formação do
discente. Deste modo, o Estágio Supervisionado apresenta-se como uma disciplina das mais relevantes nos cursos de licenciatura, pois os saberes proporcionados
por diversas áreas de estudo da língua são refletidos na prática, através do contato
inicial do universitário com a realidade escolar. Neste trabalho, apresentamos os
resultados de uma experiência desenvolvida, na disciplina Estágio Supervisionado
IV, do curso de Licenciatura Plena em Letras, da Universidade Estadual da Paraíba,
Campus VI – Poeta Pinto do Monteiro. A experiência a ser relatada demonstra como
pode ser significativo um encontro com o texto literário através de uma metodologia que privilegie o leitor, despertando-o para o prazer estético que a poesia pode
proporcionar. Para tanto, evidenciaremos o trabalho desenvolvido com os poemas
“Esta Nega Fulô”, de Jorge de Lima e “O caso do Vestido”, de Carlos Drummond de
Andrade, mostrando como a realização da sequência didática foi satisfatória tanto
para os alunos graduandos em Letras, quanto para os discentes do ensino médio.
Para a concretização do objetivo proposto, nos fundamentamos em Alves (2005,
2006, 2007, 2008); Martins (2006); Jauss (1979, 1994); Aguiar e Bordini (1988) , Jouve
(2002), Cosson (2006); dentre outros.
Palavras-chave: Literatura, Ensino, Estágio supervisionado, Educação básica.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
LITERATURA E ESTÁGIO DOCÊNCIA:
DIÁLOGO ENTRE TEORIA E PRÁTICA
Andreia Bezerra de Lima (UFRPE/UAST)
Introdução
O professor em processo de formação está, a todo o momento, se deparando
com diferentes saberes que constituirão sua bagagem de conhecimento acerca
da disciplina que deseja lecionar. No caso do licenciando em Letras, são inseridos, na grade curricular, componentes que abrangem domínios lingüísticos, literários, pedagógicos, dentre outros. Mas, apenas o saber teórico sobre múltiplas
questões inerentes ao ensino de língua e literatura não são suficientes para a
formação do discente. Deste modo, o Estágio Supervisionado apresenta-se como
uma disciplina das mais relevantes nos cursos de licenciatura, pois os saberes
proporcionados pelas diversas áreas de estudo da língua são refletidos na prática, através do contato inicial do universitário com a realidade escolar.
Pimenta (2009) defende que o estágio deve ser uma pesquisa do cotidiano
da escola, envolvendo os comportamentos de observação, reflexão crítica, reorganização das ações, o graduando/estagiário tem a oportunidade de desenvolver,
em sua formação inicial, a capacidade de refletir e orientar sua própria prática,
assumindo a postura de um pesquisador para ter, na prática docente futura, características de um professor crítico, reflexivo e pesquisador.
No curso de Letras, habilitação em Língua Portuguesa, essa disciplina enfrenta um desafio – preparar os alunos para atuar nas diversas áreas que a habilitação exige. As abordagens metodológicas realizadas nesse componente devem
possibilitar ao graduando condições para ministrar aulas de Língua e Literatura,
correlacionando as teorias estudadas ao longo do curso com a prática docente.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
A nossa experiência como professora de Estágio Supervisionado, na Universidade Estadual da Paraíba, nos mostrou que os discentes têm uma formação
melhor no que concerne ao ensino de Língua, principalmente, porque o Projeto
Político Pedagógico não contempla o ensino de Literatura nos Componentes
Curriculares Estágio I e II, visto que são direcionados ao ensino fundamental.
Dessa forma, compreende-se que só no Estágio III e IV se deve incluir o ensino de Literatura, pois tais disciplinas estão relacionadas ao ensino médio. No
entanto, em alguns campi (a exemplo do Campus VI), trabalhar com os textos
teórico-metodológicos a respeito do ensino de Literatura e preparar os alunos
para a prática didática, utilizando como base o texto literário, dependerá da
formação do professor que assumirá o componente de estágio supervisionado.
Considerando-se o que até agora foi exposto, neste artigo, refletiremos a respeito da formação docente, quanto ao ensino de Literatura, no componente Estágio
Supervisionado e relataremos uma experiência realizada pelos concluintes de
Letras no ano de 2010, em curso-piloto1 oferecido na própria Universidade.
Ensino de literatura e formação docente no estágio
supervisionado
Pensar sobre o ensino de literatura na disciplina Estágio Supervisionado envolve discussões de caráter teórico-metodológico. É necessário considerar quais
são as concepções de literatura, leitura e leitor dos licenciandos estagiários. E,
também, se perguntar se existe uma prática de leitura em sala de aula capaz de
gerar a conscientização do estagiário como autor do seu pensamento de modo
que ele não só tenha um bom desempenho durante a intervenção de aulas no
estágio, mas, sobretudo, amplie sua visão crítica sobre o ensino de literatura.
Os textos teóricos que são utilizados nas disciplinas de Estágio Supervisionado visam fornecer suportes para uma análise mais criteriosa da prática de
sala de aula. Por isso, o componente no curso de Letras se subdivide em Estágio
de Observação/monitoria e de Intervenção, respectivamente Estágio III e IV.
1. Foi oferecido um curso-piloto, porque neste semestre houve greve nas escolas estaduais, dessa forma não
pudemos levar o aluno-estagiário a se aproximar da realidade escolar, intervindo diretamente em sala de aula.
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Andreia Bezerra de Lima
A disciplina denominada “Estágio Supervisionado IV”, oferecida no último
período aos alunos concluintes do Curso de Letras da UEPB, possui 120 horas/
aula e pode ser ministrada por dois professores, um de língua materna e outro
de literatura, ou por um só docente2. A ementa 3da disciplina considera quatro
momentos: preparatório (em que se discutem textos teóricos e metodológicos
sobre ensino), planejamento (em que se escolhem textos e elabora-se sequência
didática e exercícios), intervenção (em que o aluno ministra aulas em uma turma do ensino médio) e escrita de um relatório (em que o estagiário descreve e
reflete acerca da prática por ele exercida).
É relevante que o docente de Letras tenha conhecimento sobre teorias a
respeito do ensino de literatura, visto que outro desafio que o professor de prática de ensino enfrenta consiste em trabalhar com o aluno a fim de que ele possa
produzir sequências didáticas que privilegiem a leitura e o debate do texto literário fazendo com que o aluno/estagiário reflita sobre a importância de levar para
sua prática docente um ensino que se utilize do objeto literário a partir de uma
perspectiva não historicista, embora a metodologia historiográfica pareça ser
mais cômoda ao exercício em sala de aula dada à objetividade que lhe é própria:
Os historiadores da literatura apóiam-se no ideal de objetividade da
historiografia, à qual cabe apenas descrever como as coisas aconteceram. Comprometidos com esse ideal, limitam-se à apresentação de um
passado acabado, apegando-se ao cânone seguro das obras-primas.
Conseqüentemente, afastam-se, pelo menos, das duas últimas gerações que cultivaram o texto literário (CAMPOS, 1999, p.131).
Vale ressaltar que este modelo, apresentado por Campos (1999), ainda
predomina no ensino médio e que, infelizmente, muitos recém-graduados em
Letras o reproduzem, seja pelo caráter de praticidade, seja por não conhecerem
outro paradigma. Desta forma, segue-se a prática tradicional, abordando os
conteúdos de literatura a partir da sequência dos movimentos literários e deixa-
2. No Campus que a disciplina é ministrada por um único docente, este tem que trabalhar com os alunos a
fim de prepará-los para ministrar aulas de Língua e Literatura.
3. Avaliação, elaboração e aplicação de material institucional didático no ensino médio. Planejamento, autoavaliação e avaliação processual do ensino aprendizagem.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
se de trabalhar o texto literário, com ênfase na interação texto-leitor. Campos
(1999, p. 132) ainda afirma que:
A tendência mecanicista imprime ao ensino uma imagem da literatura
centrada no autor, nas fontes ou na História; o professor trata o texto
como objeto de explicação, não desenvolvendo as várias leituras possíveis. Esse enfoque reduz a literatura a um inventário de autores e obras
no qual a história individual apaga o quadro dos gêneros, transformando o estudo do texto literário em mero pretexto.
Com base na assertiva acima, ressaltamos que a discussão em torno da
formação de professores de literatura durante o Estágio Supervisionado exige
uma reflexão sobre o objeto (a literatura) a ser ensinado de modo que se possa
pensar em ações que auxiliem a redescobrir os instrumentos necessários para
conhecer e articular as especificidades do texto literário. Visto que, enquanto
disciplina obrigatória nos currículos escolares do ensino médio, a relevância
que é dada ao ensino de literatura se relaciona, principalmente, com as seleções
para ingressos no ensino superior. Desse modo, um desafio para o estagiário
consiste em pensar estratégias motivadoras para o aluno, diferentes daquelas
geralmente adotadas na educação básica que se limitam à utilização de trechos
de obras; resumos, análises prontas e características de escolas literárias.
Na etapa de preparação das aulas de Estágio Supervisionado, a orientação
foi realizada com base em documentos oficiais – Orientações Curriculares para
o Ensino Médio (2006) e Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba (2006); assim como, o uso de textos teórico-metodológicos que discorrem a
respeito do ensino de literatura. Os Referencias Curriculares da Paraíba (2006)
oferecem propostas para um ensino de literatura que priorize o texto nas séries iniciais e desloque o estudo da historiografia literária para o último ano
do ensino médio. O documento propõe que no 1º ano inicie-se com o gênero
lírico, começando com poemas modernos ou contemporâneos aos alunos e no
2º ano trabalhe o conto, por ser um gênero menos extenso do que o romance e
a novela, o que favorece a leitura em sala de aula. Sendo assim, é interessante
que o estagiário trabalhe o texto literário a partir da perspectiva dos gêneros.
O aluno deve organizar antologias poéticas, de contos e/ou crônicas e elaborar
uma sequência didática que parta do texto para o contexto.
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Andreia Bezerra de Lima
Em nossa experiência como professora orientadora de Estágio Supervisionado, na Universidade Estadual da Paraíba, dentre as várias vivências que
tivemos, pudemos realizar um trabalho com o gênero lírico em um curso piloto,
no Campus de Monteiro. Este foi deveras satisfatório, uma vez que a turma concluinte era pequena e nos permitiu ampla discussão sobre o ensino de Literatura, planejamento e execução das aulas, antes de ministrá-las para os discentes
do Ensino Médio e reflexão sobre a prática desenvolvida, elencando os pontos
positivos e negativos.
Essa negra fulô na sala de aula: relato de uma experiência
A intervenção pedagógica foi delineada com base em sequência didática,
que foram elaboradas pelos graduandos e orientada por nós enquanto professora da disciplina Estágio Supervisionado IV.
Propomos utilizar o recurso da sequência didática tendo em vista ser uma
modalidade que apresenta, segundo Dolz & Schneuwly (2004, p. 51), “uma sequência de módulos de ensino, organizados conjuntamente para melhorar uma
determinada prática de linguagem”. Deste modo, planejamos uma série de atividades a partir dos seguintes poemas: “Valsa”, de Casimiro de Abreu, “Essa
negra Fulô”, de Jorge de Lima, “Outra negra fulo”, de Silveira Oliveira, “O caso
do vestido”, de Carlos Drummond de Andrade, dentre outros textos literários.
As atividades foram pensadas a partir de uma antologia que buscou privilegiar a afinidade temática entre os textos. Cada tema foi trabalhado em um
encontro que tinha duração de três horas-aula. No momento da intervenção,
a cada semana, uma dupla de estagiários lecionava um conteúdo previamente
discutido. Assim, todos assistiam às aulas uns dos outros, visando manter a linearidade das discussões e dos conteúdos trabalhados. O curso teve a duração
de dois meses e participaram 35 alunos das três séries do ensino médio.
A teoria que direcionou a proposta de trabalho no Estágio IV, durante o
período letivo de 2010.1, foi a Estética da Recepção. Essa teoria surgiu na Alemanha, na década de sessenta, e tem como principal nome Hans Robert Jauss.
A abordagem dos teóricos alemães propõe analisar a relação texto-leitor, focalizando o leitor, em vez de sobressaltar as qualidades dos textos e dos autores;
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logo, o leitor deixa de ser figura sem valoração no fato literário, para traçar nele
toda a produção da literatura. (LIMA, 2009, p. 67). A recepção de uma obra literária é vista pelos teóricos de Constança como “uma concretização pertinente
à estrutura da obra, tanto no momento de sua produção como no da sua leitura,
que pode ser estruturada esteticamente [...]” (AGUIAR E BORDINI, 1988, p.82).
É necessário ponderar que tanto o leitor quanto a obra estão submersos em
horizontes que precisam se encontrar para que se obtenha a interação e, consequentemente, o prazer estético.
A esses horizontes, os teóricos da Estética da Recepção nomearam de horizontes de expectativas, os quais incluem todas as convenções estético-ideológicas que possibilitam a recepção do texto, “uma vez que as expectativas
do autor se traduzem no texto e as do leitor são a ele transferidas. O texto se
torna o campo em que os dois horizontes podem identificar-se ou estranhar-se”
(AGUIAR e BORDINI, 1988, p. 83).
Com o desejo de levar ao aluno do ensino médio da cidade de Monteiro o
contato com a literatura de forma diferenciada, nos apoiamos na teoria descrita
acima para realização do trabalho com o texto poético. Vale ressaltar que o texto poético está presente em sala, mas, por vezes, é utilizado como pretexto para
exercícios gramaticais, não explorando as possibilidades que este gênero tem
de encantar e de tocar a sensibilidade do leitor. Porém, pensando na relevância
do trabalho com o gênero lírico, faz-se necessário reiterar que, ao adotar uma
concepção teórica, o professor deve também levar o estagiário a conhecer as
diferentes teorias desenvolvidas ao longo dos séculos, pois um trabalho com a
poesia pressupõe não só levar em consideração o papel do leitor na atualização
da obra literária, mas também saber, como pode ser ensinada a Literatura a partir dos pressupostos dos formalistas russos, que enfatizam elementos internos
como verso, ritmo, metro, rima e como estes atuam na construção do significado da obra. No entanto, “mesmo privilegiando outros métodos, que não sejam
o recepcional, a discussão deve permear as atividades em sala de aula; qualquer
método de abordagem textual, direta ou indiretamente, pode (e não deve dispensar) lançar mão do debate” (ALVES apud LIMA, 2009). Foi baseando-nos em
estudos como estes acima mencionados que orientamos a produção da sequência didática da experiência que, por ora, relataremos.
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Andreia Bezerra de Lima
No primeiro encontro foi trabalhado o poema “Valsa”, de Casimiro de
Abreu, objetivando aproximar os alunos4, participantes do curso piloto, do texto poético, foi mostrada a importância da métrica para a composição e sentido
do poema5. Essa aula era de total relevância, pois por ser o contato inicial dos
discentes com o curso e por termos ouvido deles que não gostavam de Literatura, precisávamos enquanto turma de estágio ganhar os alunos para que participassem até o final e principalmente desmistificar a aversão de alguns pelo texto
literário. Conforme Martins (2006), a literatura na escola representa, muitas
vezes, um padrão de escrita, levando os alunos a encararem os textos literários
como modelos a serem seguidos em produções textuais. Assim, a leitura de tais
textos é tomada apenas como forma de ampliar os conhecimentos lingüísticos
dos discentes, tornando-se algo cansativo. Logo, todo trabalho desenvolvido,
nessa tarde, permitiu que as demais sequências desenvolvidas fossem bem recebidas pelos alunos.
No segundo encontro, trabalharam-se os poemas “Essa negra Fulô”, de Jorge de Lima e “Outra negra Fulô”, de Silveira Oliveira. A dupla de estagiários começou retomando a aula anterior, a fim de verificar o efeito obtido do encontro
dos alunos com o texto poético. Em seguida, entregaram o poema de Jorge de
Lima para que os alunos fizessem uma leitura silenciosa. Logo após, os estagiários realizaram algumas indagações acerca da recepção do poema, buscando
dialogar com o encontro da semana antecedente. Foi perguntado aos discentes se eles conseguiam fazer alguma relação com o poema “Valsa”, a maioria
respondeu que não, justificaram que se tratava de assunto totalmente diferente. Partindo dessa ideia, questionaram se havia mais alguma diferença, então,
como resposta foi dito que o texto parecia estar contando uma história. Essa foi
uma porta de entrada interessante para se discutir a linguagem empregada nos
poemas, mostrar as datas de produção, o possível objetivo que teria cada poeta
ao escrevê-los, sobretudo, foi demonstrado que o poema de Casimiro de Abreu
4. A partir deste momento, sempre que colocarmos alunos ou discentes, estamos nos referindo aos alunos
da Educação Básica.
5. Essa sequência foi bastante proveitosa, alcançamos os nossos objetivos e os alunos matriculados no curso
saíram encantados com o texto poético. Não relatamos esta experiência porque será publicada em um livro
sobre Estágio Supervisionado.
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também teria “uma narrativa”, mas, a percepção dos alunos se aguçou no texto
“Essa Negra Fulô”, provavelmente, por causa da linguagem mais cotidiana e
aproximada deles. Assim como pela forma como o eu - poético inicia o poema
“Ora, se deu que chegou/ (isso faz muito tempo)/no bangüê dum meu avô/uma
negra bonitinha/chamada Negra Fulô. Percebe-se com clareza a proposta narrativa e os verbos no passado.
Em seguida, começaram uma discussão sobre a temática posta no texto,
quem seria a negra Fulô, que período histórico o poema retratava etc. Vale ressaltar que antes de a aula ser realizada com os alunos do Ensino Médio, nos
encontros de Estágio Supervisionado, todos os textos escolhidos foram analisados, realizaram-se as sequências com os graduandos da turma a fim de que
todos estivessem bem preparados para trabalhar o texto poético e proporcionar
momentos prazerosos com a arte literária. Ademais, enquanto professora de Literatura, entendemos que só despertaremos o gosto literário de nosso aluno se
em nós mesmos isso for aparente, como diz Pinheiro (2005, p.10):
Um professor que não é capaz de se emocionar com uma imagem, com
uma descrição, com o ritmo de um determinado poema, dificilmente
revelará na prática, que a poesia vale à pena, que a experiência simbólica condensada naquelas palavras são essenciais em sua vida. Creio que
sem um mínimo de entusiasmo, dificilmente poderemos sensibilizar
nossos alunos para a riqueza semântica da poesia.
Logo, visando sensibilizar os estagiários, ao vivenciarmos os poemas em
sala, o futuro professor, então graduando de Letras, tinha a oportunidade de
se aproximar do texto poético e descobrir novas formas de trabalhá-lo tanto no
curso piloto quanto em sua experiência, já que alguns já ministravam aula em
sua cidade.
O poema, entre os alunos do ensino médio, rendeu uma excelente discussão, pois a turma foi instigada a perceber que a negra tinha sua voz silenciada e
só obedecia aos mandos da Sinhá.
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
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Andreia Bezerra de Lima
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!
Além de realizar todas as tarefas domésticas, colocar as crianças para dormir e satisfazer os caprichos da Sinhá, a pobre da negra Fulô ainda era injuriada, “Cadê meu frasco de cheiro/ Que teu senhor me mandou?/- Ah! foi você que
roubou!/ Foi você que roubou!”. Após cada estrofe, tem uma repetição, quase
como se fosse refrão: “Essa Negra Fulô/Essa Negra Fulô”. Assim, após debate de
todos os aspectos constitutivos do poema em relação à temática, as possibilidades de diálogos com o período escravagista brasileiro; possível visão preconceituosa do eu – lírico e por fim, questões sobre abusos sexuais que as negras
sofriam por parte dos senhores de engenho; propuseram aos alunos que fizessem um circulo para cantar o poema. Como ora descrito, há no texto de Jorge de
Lima uma repetição dos versos “essa negra Fulô”, este pode ser lido em diversos
tons, uma vez que é sempre a fala do eu – poético e dependendo da forma como
é realizada a leitura oral já desperta no ouvinte suspeitas sobre a negra Fulô.
Conforme Bosi (1996) para uma boa leitura, temos que encontrar o tom, o afeto,
a entonação que, possivelmente, possa estar ligada aos sentimentos; isso contribuirá para uma boa interpretação.
Os discentes foram organizados em círculo, estrofes do poema foram entregues a alguns alunos, e todos receberam o que denominamos de refrão. O
estagiário, com um atabaque, conduziu o canto. A proposta era que todos cantassem “Essa negra Fulô; essa negra Fulô; ô Fulô, ô Fulô”, o som do instrumento
parava em conjunto com o último “Fulô” e quem estava com a estrofe leria, na
ordem do poema. Lembrando que os educandos conheciam o poema na íntegra,
pois já tinha sido lido silenciosamente, para reconhecimento do texto, lido por
um aluno e depois pelo estagiário para demonstrar a relevância da entonação
na leitura e comparação com o texto poético “Valsa”, mostrando ao participante
do curso, “Ensino de Literatura: vivenciando o texto em sala de aula”, os vários
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
ritmos de um poema, as diversas formas de leitura e a importância de uma boa
vocalização para o entendimento do texto. Então, a turma cantou o poema, no
início com certa timidez, mas, aos poucos foram se desinibindo e participando
da experiência de forma prazerosa. Enquanto, observadora, percebíamos a satisfação tanto dos alunos quanto dos graduandos em Letras. E com essa “brincadeira” puderam também vivenciar a cultura africana, isso foi deixado claro
pelos estagiários.
Para finalizar essa tarde, desfez-se a roda e foi entregue o poema “Outra
negra Fulô6”, de Oliveira Silveira. Depois da leitura, houve um bom debate e
comparação com o poema de Jorge de Lima. Os alunos foram levados a perceber a diferença entra as duas “personagens”, a primeira discussão relacionou-se
com o verso “O Sinhô foi açoitar a outra negra Fulô”, os estagiários instigaram
a dúvida sobre quem seria essa negra, pois o verso descrito confirma o título
do texto, “Outra negra Fulô”, mas, em seguida, encontra-se “ou será que era a
mesma?” Logo, com base na própria pergunta feita pelo eu – lírico, iniciou-se
o debate. Muitos entenderam que era outra, porque era corajosa, tinha atitude,
“matou” o sinhô, não se deixou apanhar, nem abusar. Outros disseram que era a
mesma, no entanto o escritor deu voz a ela, colocou como “protagonista” da his-
6. O sinhô foi açoitar a outra nega Fulo
— ou será que era a mesma?
A nega tirou a saia, a blusa e se pelou.
O sinhô ficou tarado, largou o relho e se engraçou. A nega em vez de deitar pegou um pau e sampou nas
guampas do sinhô.
— Essa nega Fulo!
Esta nossa Fulo!,
dizia intimamente satisfeito
o velho pai João
pra escândalo do bom Jorge de Lima,
seminegro e cristão.
E a mãe-preta chegou bem cretina
fingindo uma dor no coração.
— Fulo! Fulo! Ó Fulo! A sinhá burra e besta perguntou onde é que tava o sinhô que o diabo lhe mandou.
— Ah, foi você que matou!
— É sim, fui eu que matou — disse bem longe a Fulo,
pro seu nego, que levou
ela pro mato, e com ele
Aí sim ela deitou.
Essa nega Fulô! Esta nossa Fulô!
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Andreia Bezerra de Lima
tória, trouxe outros negros que a apoiaram. Diante desta riquíssima percepção,
houve uma construção analítica, mostrando as diversas possibilidades de leitura
do texto literário. Deixou-se claro que a literatura é plurissignificativa, passível
de diversas interpretações, no entanto, sem liberdade total, pois os vocábulos e
o próprio texto conduzem para as várias nuances de leitura interpretativa.
Os discentes intuíram que os fatos narrados estavam nos dois poemas, o
açoite, a negra sem roupa, o comportamento do sinhô, então, possivelmente
era a mesma estória, mas, com uma atitude diferente por parte de Fulô que não
estava tão subserviente. A reescritura promove um diálogo, conhecido como
intertextualidade, no entanto, nos seguintes versos, “A nega em vez de deitar/
pegou um pau e sampou/nas guampas do sinhô”, a lógica se inverte, uma vez
que Fulô reage de outra maneira, assim percebe-se claramente a crítica a visão
da mulher negra como objeto sexual e que atraía os senhores com a sensualidade. Outro destaque interessante está nos versos:
Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!,
dizia intimamente satisfeito
o velho pai João
É perceptível a diferença na repetição, “esta nossa Fulô”, passando a ideia
de que o eu – poético também pertence à etnia negra. Possivelmente, o observador dos fatos era o “velho pai João” que estava satisfeito com o que presenciara.
A Sinhá também é retratada de forma diferente “burra e besta” e não mais vítima da sensualidade da negra. Tudo isso foi posto em xeque, levado em consideração e bem demarcado ao longo da discussão proposta, sempre com perguntas
instigantes e conduzindo o aluno a retirar as respostas do próprio texto.
Dessa forma, acreditamos que a literatura atingiu uma de suas principais
funções, de acordo com Antonio Candido (1999, p. 82), a função humanizadora,
uma vez que:
A produção e fruição desta (a literatura) se baseiam numa espécie de
necessidade universal de ficção e de fantasia, que de certo é coextensiva ao homem, pois aparece invariavelmente em sua vida, como individuo e como grupo, ao lado da satisfação das necessidades mais ele-
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
mentares. E isto ocorre no primitivo e no civilizado, na criança e no
adulto, no instruído e no analfabeto. A literatura propriamente dita é
uma das modalidades que funcionam como resposta a essa necessidade universal [...]
Assim, defendemos que a Literatura deveria ocupar uma posição de destaque nas aulas destinadas a Língua portuguesa, em função de sua natureza específica e de sua estrutura de linguagem. Pois, ainda conforme Candido (1999),
a literatura é capaz de satisfazer às necessidades de ficção e fantasia do homem
tanto daquele que produz como daquele que recebe. Ela ainda cumpre uma
função social e desperta o prazer através da leitura. Desde o primeiro encontro, percebemos o encanto dos alunos em face dessa nova prática de ensino, o
que nos permite ratificar que se a Literatura for escolarizada adequadamente, é
possível formar leitores emancipados e melhor preparados para lidar com a vida
real em função do acúmulo de experiências vividas esteticamente.
O caso do vestido: dialogando artes na prática docente
No terceiro encontro, trabalhou-se o “Caso do vestido”, de Carlos Drummond de Andrade. Aplicou-se uma motivação inicial, a partir do título ouviu-se
a opinião dos alunos sobre as possíveis temáticas presentes no poema. A sequência didática, para esse momento, baseou-se nas estratégias de leitura defendidas por Cosson (2006). Para este autor o sucesso inicial do encontro do leitor
com a obra depende da motivação.
Nesse sentido, cumpre observar que as mais bem-sucedidas práticas
de motivação são aquelas que estabelecem laços estreitos com o texto
que se vai ler a seguir. A construção de uma situação em que os alunos
devem responder a uma questão ou posicionar-se diante de um tema
é uma das maneiras usuais de construção da motivação. [...] Devemos
observar, entretanto, que a aproximação dos alunos com a obra objeto
da leitura literária feita pela motivação não precisa ser sempre de ordem
temática, embora, essa seja a ligação mais usual. (COSSON, 2006, p.56)
Tomando por base, a assertiva acima, antes de entregar o poema, houve
uma discussão inicial especulando o tema abordado por Drummond no texto.
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Andreia Bezerra de Lima
Os alunos ficaram no obvio, dizendo que seria a estória de um vestido, alguns
disseram que houve uma traição e o vestido seria a prova. Entretanto, é interessante destacar que esses discentes que levantaram a hipótese de traição,
propuseram que essa foi realizada pela mulher. Nesse momento, houve certo
confronto de gênero, e algumas alunas relembraram o primeiro encontro com
“Valsa”, ressaltando que havia preconceito por parte dos escritores, pois a mulher “nunca tinha voz”. Sabemos que é comum os estudantes, do nível básico de
ensino, confundirem eu – poético e/ou narrador com o escritor, mas, como se
tratava de uma motivação, o debate estava acalorado e de certa forma havia se
chegado perto do assunto retratado no texto, os estagiários não interromperam
a discussão para realizar a distinção entre escritor e eu – lírico; o que nós concordamos por defendermos que mais importante que algumas teorias literárias
é o encontro com o texto e a prática que privilegie o debate, como já expomos
outrora numa citação de Aguiar e Bordini (1988).
Em seguida, apresentaram-se os primeiros versos do poema, “Vossa mãe, o
que é aquele/ vestido, naquele prego?”, e retomando a discussão anterior, todos
se convenciam que se tratava de uma infidelidade, mas, estavam confusos sobre
quem havia praticado e curiosos para saber o porquê do vestido está pregado na
parede. Então, antes da entrega do texto na íntegra, os discentes foram levados
a perceber que apesar de ser um poema, aproximava-se da prosa, pois novamente se tratava de uma “narração” e aparentava uma linguagem simples, mas,
pediu-se que os alunos atentassem para os vocábulos usados e a forma como as
filhas se dirigiam à mãe. Os estagiários ainda lembraram que num texto literário nada é gratuito, tudo tem que ser levado em consideração. Depois destas ressalvas, entregaram o poema. Seguiu-se a prática semelhante as demais, leitura
silenciosa e depois em voz alta, por parte do aluno-professor. No entanto, como
o texto em questão é muito grande, para não haver dispersão e desinteresse, a
leitura foi realizada por partes. Desde o momento que se solicitou a leitura individual, até a vocalização.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?
Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.
Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?
Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.
Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.
Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.
O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.
Após a motivação e com conhecimento dos versos acima transcritos, começou-se uma análise, trabalhou-se desde a linguagem a relação familiar. A turma
foi levada a perceber como as filhas se dirigiam a mãe de maneira respeitosa e
até formal demais, as respostas evasivas dadas por ela e o aparente medo do pai,
demonstrado pela matriarca e estendido as filhas.
Nas demais partes do texto, as respostas foram aparecendo, confirmando
as suspeitas de alguns discentes, que, por isso, demonstravam grande entusiasmo na continuação da leitura.
3700
Andreia Bezerra de Lima
Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!
Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.
Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se.
E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós, Com as respostas dadas pela mãe, surge outra pergunta: “se o pai enamorou-se e foi embora, por que ele estava chegando a casa, na estrofe lida anteriormente? Novo, debate, e a oportunidade dos estagiários explorarem os vocábulos,
a possível época em que tal estória se passara, a relação marido e mulher, as metáforas e os símbolos presentes no poema. Foi indagado o porque do vestido está
pregado na parede. Com as novas conjecturas eram entregues as demais partes
do texto e retomava-se algo que se entendia relevante para o melhor entendimento da linguagem literária.
me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,
mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.
Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,
me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,
que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...
Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.
Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
É perceptível a subserviência feminina, o que rendeu grande discussão, em
seguida a mãe narra que procurou “a mulher do demo”, essa ficou com o marido, mesmo sem amá-lo e a “protagonista” da estória, mãe devotada, mulher fiel
e religiosa narra seu sofrimento às filhas, até a cena inesperada que é a mulher
“do demo” chegando à casa da “narradora”.
Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,
[..]
Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,
que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido, última peça de luxo
que guardei como lembrança
[...]
Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.
Mas então ele enjoado
confessou que só gostava
de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,
Com a continuidade dos fatos, os alunos conhecem toda a história, o léxico
é bastante apreciado, a fim de que se entenda a relevância de sentido a partir do
estudo do vocabulário. Os, então, professores destacaram que apesar do poema
em sua estrutura ser simples, a linguagem é bem diferente do poema de Jorge
de Lima, mesmo, sendo escrito, ambos, no século XX. A redução do papel feminino é percebida pela turma, que, novamente, entende como um preconceito
por parte dos poetas. Nessa hora, os estagiários puderam mostrar como a Literatura além de retratar épocas diferentes, pode trazer denúncias e ser atual em
seus temas, mesmo os textos sendo escritos numa outra época.
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Andreia Bezerra de Lima
Como atividade final, a sala foi dividida em dois grupos, cada um deles produziu um esquete para representar a estória narrada, mas, eles deveriam adaptar, não precisaria memorizar as falas, nem construir todas as cenas presentes
no texto. Os graduandos levaram um vestido vermelho, pregaram na parede, foi
dado o tempo necessário para que os discentes se organizassem e viessem apresentar sua versão da “narrativa”. Foi um trabalho instigante, e como nas aulas
anteriores, houve interação e vivência dos poemas, a turma não ficou inibida, ao
contrário produziram excelentes adaptações. Algo que nos chamou atenção foi
o fato de não ter havido desistência, assim como a percepção clara de satisfação
por parte de todos os envolvidos no processo. O que só corrobora para o que
expusemos anteriormente, a escolarização adequada da Literatura, respeitando
sua especificidade de linguagem, permitindo a interação do aluno com o texto
literário, permite a formação de leitor e pode despertar sensibilidades e criticidade na visão de mundo deste indivíduo.
Considerações finais
A partir destes exemplos, percebemos que uma questão fundamental que
se impõe ao aluno em formação docente de literatura é a criação de um espaço
de discussão em que os estagiários possam expressar seus pontos de vista, refletir a respeito da prática que prioriza o objeto literário e a formação de leitor. Defendemos que haja uma atitude dialogal, respeitosa e democrática entre alunos
e professor de estágio supervisionado. Desse modo, tanto os sujeitos envolvidos
nesse processo obterão a oportunidade de dialogar as teorias estudas ao longo
das disciplinas de Literatura e de Teoria e Crítica Literária, quanto terão uma
formação que lhes possibilitem realizar uma prática significativa, priorizando o
texto literário e o leitor.
Alves (2001) corrobora com esta ideia, expondo que uma metodologia que
privilegie o trabalho com o texto facilita ao jovem leitor, depois de vivenciar a
leitura das obras, compreender, mais adiante, a história literária com seus diversos estilos de época e até atentar para os limites da periodização literária.
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Dessa forma, através do Estágio Supervisionado, o saber fazer e o saber teórico se concretizam com maior eficiência quanto ao ensino de literatura, pois
o diálogo entre o texto e o leitor se dará de maneira significativa e esta vivência
ajudará a formar professores leitores do texto literário que provavelmente, despertarão os seus futuros discentes para a leitura tanto do texto poético quanto
dos demais gêneros.
Ao final desta experiência nos sentimos bastante recompensada com o resultado observado a cada encontro. Foi gratificante ver a participação daqueles
alunos, a colaboração deles nas discussões, e, ainda, a interpretação que deram
aos poemas trabalhados. Assim como o envolvimento dos graduandos em Letras, Campus VI, nos sentimos agraciadas por colaborar com a formação deles.
Terminamos a disciplina com a grata sensação de dever cumprido, mas, principalmente com o sentimento de ter proporcionado um olhar diferente sobre o
ensino de Literatura, uma vez que no início do semestre toda a turma se ressentia de não saber trabalhar com o texto literário em sala de aula.
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3705
RESUMO
Desde as primeiras manifestações literárias que se tem notícia, a relação entre a literatura e a sociedade, entre a literatura e o homem vem mudando. Seja com caráter
predominantemente oral, tendo sido acompanhada por música, sendo encenada em
palcos, declamada, adaptada ou traduzida, a literatura carrega em si traços essenciais. São estes traços que nos interessam neste trabalho. Desejamos entender como
se evidencia, numa literatura em que não mais a comunidade e sim o “eu” domina a
voz do texto, a presença do “nós” e do mundo inseridos nela, ou seja, aquilo que faz
com que as leituras e interpretações não se esgotem. Também buscamos compreender a forma como os mitos se atualizam e mudam de figura mantendo sua essência
de “drama humano condensado” (DIEL, 1991, p.10). Enfim, propomos compreender
as relações aqui entre o “eu” e o “nós” na arte literária, não do ponto de vista filosófico, mas, a partir das teorias e críticas sobre arte moderna, especificamente sobre o
romance na literatura. Para compor o arcabouço teórico nos pautamos em Lukács
(2000); Adorno (1982); Frye (1957); Lima (1983); Eliade (2010), dentre outros. Por
fim, nossa postura diante do nosso objeto de estudo, é aquela já colocada por Said
(2007, p.82), “adentrar no processo da linguagem já em funcionamento nas palavras
e fazer com que revele o que pode estar oculto, incompleto, mascarado ou distorcido”. É a leitura minuciosa do texto que envolve recepção e resistência, situando o
texto como parte de uma rede de relações.
Palavras-chave: Literatura, Romance, Mito, Contemporaneidade.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
Literatura moderna: o “nós” e os
mitos no romance contemporâneo
Amanda Barros de Melo Moura1
Introdução
Sabemos que parte da literatura moderna possui em sua forma e conteúdo
um forte apelo ao referencial externo ao texto, ­- “por referencial entendemos o
elemento extraverbal, que, indagado, dá lugar à verificação da presença de um
elemento não verbal, mas cultural” (LIMA, 1974, p. 42) - a exemplo de alguns
autores da segunda metade do século XIX (Balzac, Flaubert, etc.), suas obras evidenciam preocupações científicas, racionais e objetivas que se colocavam como
premissas para produção literária e demais criações humanas. Esse tipo de literatura considerada “realista” trazia para cena personagens e enredos representativos de questões sociais, históricas, políticas e filosóficas nas quais seus autores
estavam inseridos de algum modo. No entanto, cada texto se comporta diante
da “realidade” de maneiras diferentes, e, frente a estas obras em que o referente
externo se sobressai, surgiu uma literatura (século XX) quase “autorreferencial”
(Joyce, Clarice Lispector, etc.) se é que podemos classificá-la de tal forma. Uma
literatura voltada para o eu interior e para os conflitos mais profundos e incompreendidos do homem. Naturalmente muda-se a forma, os mecanismos de construção pautam-se no monólogo interior, na pouca ou quase nenhuma ação e na
predominância de fluxo de pensamento em detrimento dos diálogos.
No entanto, nas duas faces da literatura mencionadas acima, podemos perceber que as personagens encerram em si questões que vão do particular ao universal e vice-versa, sejam motivadas por um contexto histórico e social ou por
uma angústia propulsora de reflexões existenciais. As crises do homem moderno
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
em sua essência são partilhadas por muitos, afinal, a literatura trata de temas
e problemáticas relativas ao homem, seu criador. Portanto, mesmo a obra mais
individualista carrega em si uma natureza que nos é comum, e que nos une a todos. Até no extremo da ilogicidade pós-moderna, nós leitores somos capazes de
encontrar certa identificação mediante a própria ilogicidade da vida e do mundo.
Concordamos que “os textos literários são ‘produtores de códigos’ e ‘transgressores de códigos’, bem como ‘confirmadores de códigos’: eles podem nos ensinar novas maneiras de ler, e não apenas reforçar as já existentes” (EAGLETON,
1991, p. 171). Ou seja, mesmo se tratando de obras “antigas”, podemos encontrar
certas transgressões que garantem que ela sobreviva fora de seu contexto de origem, representando questões atuais, sejam elas de caráter coletivo ou individual.
A literatura enquanto obra feita por homens irá sempre representar esse “humano” de alguma forma, forma esta que muda com o tempo, o contexto e que se
concretiza no ato da leitura, no momento da interpretação. Trataremos da forma
do romance moderno mais à frente.
Para Costa lima (1966), a arte contemporânea vive sob o signo da transitoriedade e da problemática entre a razão de sua existência e seus componentes. Isto,
“explica a quebra das fronteiras tradicionalmente mantidas dos meios artísticos
de expressão” (LIMA, 1966, p.14). Portanto, se torna cada vez mais complexo definir objetivamente o que seja literatura, mediante o contexto que estamos inseridos. Uma das possibilidades é encará-la enquanto ficção, o que naturalmente
não dá conta do todo, e, como qualquer outro conceito, é limitante e limitador.
No entanto, para fins de demarcação teórica, vejamos a definição de Iser (1975)
sobre a literatura enquanto ficção,
nela, o real e o imaginário se entrelaçam. [...] Nela, sempre se dá a
representação de algo. Ao mesmo tempo, porém, por sua ficcionalidade, o que por ela se representa tem apenas a qualidade de um ‘como
se’, que não é idêntico nem ao real, nem ao imaginário; à diferença do
imaginário, ele é dotado de forma, e à diferença do real, é irreal. (ISER,
1975, p.379)
Esse caráter de “como se” possibilita que a literatura e a ficção de um modo
geral sejam relacionadas a outra coisa, numa pluralidade infinita de sentidos e
realidades. Afinal, “a origem e a fonte de toda realidade, seja de um ponto de
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Amanda Barros de Melo Moura
vista absoluto, seja prático, sempre está, em nós mesmos” (SCHÜTZ apud LIMA,
1983, p. 191). Por conseguinte, mesmo que a literatura trate de uma única “realidade interior”, o eu e o outro, o sujeito e o objeto estarão condensados e serão
percebidos e projetados pelo leitor. Pois, como bem coloca Iser (1975, p.385) “há
no texto ficcional muita realidade que não deve ser só identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional”. Ainda
sobre as possibilidades da ficção, Costa Lima (1989) afirma,
porque complexa [...] admite interpretações várias. Esta variedade é a
condição para que ela logo não se esgote no tempo. [...] É pela articulação entre estes dois pontos – complexidade interna e suplemento do
intérprete – que as ficções podem perdurar além de sua ambiência histórica original (p.74).
Confirmando nossa afirmação anterior, Costa Lima evidencia os pontos em
que se sustentam a longevidade de uma obra, além disso, para por luz em nossa
postura diante da urdidura entre o eu e outro, o sujeito e o objeto, James, (1995)
afirma, ele mesmo um dublê de ficcionista e crítico/teórico, que
[…] o romancista deve escrever a partir de sua experiência.
[…] Há um ponto em que o sentido moral e o sentido artístico se aproximam muito; e isso sob a luz bastante óbvia de que a qualidade mais
profunda de uma obra de arte sempre será a qualidade da mente do
criador. (JAMES, 1995, p. 28; p. 44.)
Contudo, de acordo com Iser (1975), a ficção se configura como um ato de
fingir, que por si só já é transgressor, a partir do momento que há uma “repetição” da realidade. No entanto, esta “repetição” se dá através do imaginário,
que perde seu caráter difuso para se converter em determinação, segue-se outra
transgressão: a do imaginário. Esse ato de fingir se desdobra em três ações distintas: Seleção, Combinação e Desnudamento de sua ficcionalidade. Iser afirma
que “na relação do texto ficcional com o mundo, há uma seleção necessária dos
sistemas contextuais preexistentes, sejam eles de natureza sociocultural ou mesmo literária” (1975, p.388). Na sequência, Iser elucida que “como um ato de fingir,
a seleção encontra sua correspondência intratextual na combinação dos elementos textuais” (1975, p.391), por fim, o outro ato de fingir seria o desnudamento
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
de sua ficcionalidade: “na dissimulação de seu estatuto próprio, se oferece como
aparência da realidade” (1975, p.398) que se configura na representação do mundo real, como ele bem afirmou “pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo
organizado no texto literário se transforma em um ‘como se’.” (1975, p.400)
Consideramos pertinentes as asserções de Iser no que se refere a ficcionalidade um texto literário, e ao modo de representação literária que acrescenta algo
ao que já conhecemos, afinal, o mundo com que o texto se relaciona não é simplesmente repetido nele, mas, experimenta ajustes e correções. Tendo em mente
que cada época tem seus próprios sistemas de sentido, não obstante as essências,
é interessante também notar que “a literatura é o lugar dialético onde se articulam estruturas textuais e extratextuais” (MACHADO & PAGEAUX, 1998, p.120),
e que, conforme Zéraffa (1991, p. 13), “o paradoxo do romance é o de toda obra de
arte: ela é irredutível a uma realidade que, entretanto, traduz”. Enfim, sabemos
que toda literatura contém elementos do real, sejam eles de ordem social ou
emocional, se assim não fosse, não haveria o reconhecimento por parte do leitor
nem a efetivação dos sentidos que a obra propõe.
Para por um fim provisório sobre estas questões neste artigo e introduzir
outras, trazemos para discussão um último teórico, controverso e rechaçado pela
academia, mas em quem nós encontramos posições favoráveis às já explicitadas
aqui. Afirma Sábato (2003, p.36)
A preocupação do ser humano sempre esteve submetida a um ritmo: do
Universo ao Eu, do Eu ao Universo. É curioso que sempre tenha começado por interrogar o vasto universo: muito antes de Sócrates se perguntar
sobre o bem e o mal, sobre o destino de nossa vida e sobre a realidade
da morte, os filósofos-crianças da Jônia haviam procurado o segredo do
Cosmos, a missão da água e do fogo, o enigma dos astros. Hoje, como
cada vez mais o ciclo platônico retorna ao ponto catastrófico, o homem
dirige sua atenção ao seu próprio mundo interior. E o grande tema da
literatura não é mais a aventura do homem lançado na conquista do
mundo externo, mas a aventura do homem que explora os abismos e
covas de sua própria alma.
Diante das vivências do século XX e seu contexto histórico, movido por
guerras e grandes deslocamentos, que alteraram o modo de vida das pessoas,
e, até certa efervescência teórica no que diz respeito a estudos críticos de arte,
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Amanda Barros de Melo Moura
percebe-se consideráveis mudanças. As obras literárias modernas são objetos de
estudo que, via de regra, assumem um caráter experimental, onde a tradição é
questionada, retrabalhada ou levada aos seus limites máximos. No entanto, se
faz necessário entender como se operou esta mudança, e nosso foco será especificamente o romance moderno. Conforme Benjamin (1994), o romance se diferencia dos gêneros anteriores, especificamente da epopeia em sentido estrito
(mas que o contém em si), porque está essencialmente vinculado aos livros e a
invenção da imprensa, além de não proceder da tradição oral. Para o autor “a origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente
sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe
dá-los”(BENJAMIN, 1994, p.201). Corroborando, em certa medida, com a citação
anterior sobre o tema da literatura do século XX, a saber, a aventura do homem
explorando sua própria alma.
Lukács também se pronuncia nesse sentido ao afirmar que
descobrimos em nós a única substância verdadeira: eis porque tivemos
de cavar abismos intransponíveis entre conhecer e fazer, entre a alma e
estrutura, entre eu e mundo, e permitir que, na outra margem do abismo, toda a substancialidade se dissipasse em reflexão; eis porque nossa
essência teve de converter-se, para nós, em postulado e cavar um abismo tanto mais profundo e ameaçador entre nós e nós mesmos. Nosso
mundo tornou-se infinitamente grande e, em cada recanto, mais rico
em dádivas e perigos que o grego, mas essa riqueza suprime o sentido
positivo e depositário de suas vidas: a totalidade. (2000, p.30-1)
A totalidade que garantia o sentido e a explicação para o mundo grego se
perde em meio à fragmentação do homem e do mundo moderno, logo, o sujeito dessa perda se torna ensimesmado, sua busca pelo sentido e a completude
permanecem, mas sem resposta e em constante conflito consigo mesmo e com
o mundo que rodeia. Tal proposição poderia dar a impressão de que os sujeitos,
no caso, o eu e outro, estariam apartados entre si diante do caos da existência,
no entanto, diante de nossas vivências e leituras, podemos afirmar que é justamente nessa dissonância que há a união. O homem moderno tem em sua raiz a
complexão desse dilema. Considerando o conceito de modernidade como posto
por Baudelaire, “a modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a
metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável” (1988, p.131). Esta
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
outra metade imutável é que garante a resposta que este artigo busca dar, o entrelaçamento do sujeito e do objeto, dos homens em si, se encontra nessa “completude incompleta” da arte, guardadas as devidas imprecisões de tais termos.
Como bem coloca Lukács “[...] a arte é somente uma esfera entre muitas, ela tem
como pressupostos de sua existência e conscientização, o esfacelamento e a insuficiência do mundo [...] introduzindo assim nas formas a fragmentariedade da
estrutura do mundo” (2000, p. 36).
Sobre essa fragmentariedade nas formas, o autor também afirma que a forma do romance, como nenhuma outra, é “uma expressão do desabrigo transcendental” (LUKÁCS, 2000, p.38), característica do homem moderno em contraponto ao homem clássico. Além disso, Benjamin, por seu turno, afirma que
“o sentido da vida é o centro em torno do qual se movimenta o romance” (1994,
p.212) e este sentido seria revelado a partir da morte, no entanto, a morte estaria
cada vez mais expulsa do mundo moderno, revelando de certa forma, a impossibilidade de resposta. Cabe aqui, mais uma vez, a ênfase no comum que une
as artes e o homem de um modo mais amplo, ou seja, a procura pelo sentido da
vida, o “desabrigo” do homem, e a angústia da morte pela descoberta do Nada.
Ainda sobre os aspectos da forma romanesca, Lukács(2000) elucida,
o romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da
vida não é mais dada de um modo evidente, para a qual a imanência do
sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por
intenção a totalidade (p.55)
O autor coloca que o romance possui em si uma totalidade e completude
interna, mas que é imperfeita, “pois a fragmentariedade pode ser apenas superficialmente encoberta, mas não superada, e tem assim, rompendo os frágeis
vínculos, de ser flagrada como matéria-prima em estado bruto” (p.72). Afinal, a
falta de imanência do sentido à vida transforma tanto o “herói” num ser problemático quanto seu próprio mundo. Na epopeia havia uma comunhão de valores
entre o herói e seu mundo, no romance há uma relação dialética entre herói e
o mundo, ele partilha desse mundo, mas sua essência não encontra totalidade
neste. Lukács (2000) afirma que “a forma exterior do romance é essencialmente
biográfica” (p.77), a busca agora se torna individual e não mais coletiva, e essa
busca é que vai orientar o romance deste “herói” problemático e cindido. Pois,
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no romance haveria uma procura por valores autênticos num mundo degradado,
por um herói também degradado, a exemplo de “Dom Quixote”, considerado por
muitos como primeira expressão do romance moderno.
Sobre essa problemática do romance e da imanência de sentido à vida, também podemos trazer para discussão as asserções de Adorno (2003, p.56), “o que
se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada e em si mesma
contínua, que só a postura do narrador permite”. O homem moderno, especificamente do século XX, viveu as grandes descobertas da ciência, as guerras, o
progresso tecnológico e as novas formas de se relacionar, estas impõem à sua
consciência a fragmentação e liquidez de tudo e todos, e tal fato se exprime nas
obras de arte de nosso tempo, seja por afirmação ou negação. De todo modo,
não há como sair incólume às questões mais prementes da (pós) modernidade. E
para Adorno esse processo de desencantamento do mundo reflete-se diretamente na forma do romance, no caso deste, na impossibilidade de narrar. Além disso,
a experiência da leitura também se modificaria, pois a diminuição da distância
estética que tais obras trazem, tiraria a tranquilidade contemplativa do leitor,
provocando-o. Conforme destaca Adorno, todas as obras de arte, e a arte em
geral, são enigmas; isso desde sempre irritou a teoria da arte. O fato de as obras
de arte dizerem alguma coisa e no mesmo instante a ocultarem coloca o caráter
enigmático sob o aspecto da linguagem (ADORNO, 1982, p.140)
Segundo Adorno, a linguagem é afetada por fatores externos – daí a impossibilidade das obras do século XX, de permanecerem orgânicas e harmonizadas
no plano construtivo e expressivo. A fragmentação das palavras reflete a fragmentação e descontinuidade do mundo exterior; logo, o estudo da arte literária,
e, por consequência, da palavra, deve envolver questões políticas e sociais, não
podendo separá-las. Os artistas encontram essa necessidade de desintegração
na feitura das próprias obras. É inegável o fato de que um vínculo indissolúvel
está presente entre o caos social e o “caos” das narrativas do século XX. Como
nos aponta Adorno (1982, p.60), bem envolvido pelo espírito da época, “o belo
deixou de existir”. Para Adorno, “as obras de arte que se apresentam sem resíduo
à reflexão e ao pensamento não são obras de arte” (1982, p. 142), justamente pelo
fato citado anteriormente – a inevitável ligação da arte literária com os acontecimentos sociais brutais e aparentemente ilógicos do capitalismo tardio.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Um outro ponto interessante a ser observado na teoria adorniana é o destaque que esta apresenta da negatividade das obras de arte:
As obras de arte são negativas a priori em virtude da lei da sua obectivação: causam a morte do que objectivizam ao arrancá-lo à imediatidade
da sua vida. A sua própria vida alimenta-se da morte. Isso define o limiar qualitativo para a modernidade. As obras modernas abandonamse mimeticamente à reificação, ao seu princípio de morte. [...] Se, após
o começo da modernidade, a arte absorveu objetos estranhos à arte que
se integram na sua lei formal não inteiramente modificados, a mimese
da arte abandona-se, até a montagem, ao seu contrário. A arte é forçada
a isso pela realidade social. (ADORNO, 1982, p. 154)
Portanto, como já mencionado, a arte, que é parte da realidade, ao “negá-la”,
estabelece sua ligação com a mesma. A arte é, assim, forçada a alimentar-se de
morte do que representa; ou seja, esta não pode isentar-se de seu contexto. Para
Adorno, “a aporia da arte, entre a regressão à magia literal ou a transferência
do impulso mimético para a racionalidade coisificante, prescreve-lhe a sua lei
de movimento, tal aporia não pode remover-se” (ADORNO, 1982, p. 69). Afinal,
“o paradoxo de toda arte moderna é adquirir ao mesmo tempo o que rejeita”
(ADORNO, 1982, p. 157). Diríamos que o que aparentemente tem de morrer para
que a arte seja possível, ou seja, a realidade em seu caráter mais concreto e direto, é exatamente o elemento propulsor da criação de algo mais vivo do que o próprio “real”, que consegue transcender várias limitações que a realidade sequer
nos permitiria conceber.
Por fim, segundo Lukács,
o romance é a forma da aventura do valor próprio da interioridade; seu
conteúdo é a história da alma que sai a campo para conhecer a si mesma, que busca aventuras para por elas ser provada e, pondo-se à prova,
encontrar a sua própria essência. A segurança do mundo épico exclui a
aventura, nesse sentido próprio: os heróis da epopeia percorrem uma
série variegada de aventuras, mas que vão superá-las, tanto interna
quanto externamente, isso nunca é posto em dúvida; os deuses que presidem o mundo têm sempre de triunfar sobre os demônios. (2000, p.91)
Sobre este aspecto das diferenças entre o mundo clássico e o romance moderno, aqui se insere o segundo objetivo deste trabalho: compreender como o
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mito é apreendido numa literatura que só trata do “eu”, um texto em que os “demônios” interiores triunfam sobre os deuses. De certo modo, acreditamos como
dito anteriormente, que na “dissonância” entre o eu e o mundo e na busca desse
eu por sentido, encontram-se unidos os homens. Encerrados em si mesmos, e
através da literatura e da leitura, cada um experimenta e clareia seu próprio
isolamento e problemáticas individuais, evidenciando de tal forma contornos
universais que nos unem. Também no mito, enquanto forma simples,
o homem quer compreender o universo, quer entendê-lo como um todo,
mas também em seus pormenores. [...] Quando o universo se cria assim
para o homem, por pergunta e resposta, tem lugar a Forma a que chamamos Mito (JOLLES, 1976, p. 88)
Para Jolles, o Mito, enquanto forma encerra-se em si mesmo, ou seja, a própria resposta encerra a pergunta. Nessa busca por sentido já poderíamos citar de
forma genérica uma primeira aproximação e sobrevivência mítica no romance
moderno pelo impulso humano. Os homens sempre buscaram e continuarão
buscando respostas, e, nisso, as civilizações mais primitivas e as mais modernas
se unem. Claro que para o mundo antigo, as respostas estavam em certa medida,
dadas pelos mitos, e hoje, num mundo de descrença e quase isenção do simbólico em nossa consciência racional e lógica, os mitos não bastam. No entanto, essa
busca primordial, está sempre presente nas artes.
Para Frye (1957), “em termos de sentido ou diánoia, o mito é o próprio mundo” (p.138), nele “vemos isolados os princípios estruturais da literatura” (p.138),
no entanto, para o autor, estes princípios não são simplesmente repetidos no processo de composição literária, é necessária técnica para adequação, e a este artifício usado pela técnica ele dá o nome de “deslocação”. Para Frye, “o que pode ser
identificado metaforicamente num mito pode apenas ser vinculado, na estória
romanesca, por alguma forma de símile: analogia, associação significativa, imagem incidental agregada, e semelhantes.” (p.139) É deste modo que poderemos
reconhecer ao mitos na literatura moderna, por implicitude ou por associações,
cuidando em perceber as sutilezas da forma. Lévi-Strauss (2007), por seu turno,
afirma que
o valor intrínseco atribuído ao mito provém de que estes acontecimentos, que decorrem supostamente em um momento do tempo, formam
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
também uma estrutura permanente. Esta se relaciona simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro (p.241).
É válido também ressaltar que para Lévi-Strauss (2007) o valor do mito persiste a despeito da pior tradução, isso comprovaria o valor superior do mito à
própria língua, dado o seu caráter permanente. Ainda segundo o autor “as verdadeiras unidades constitutivas do mito não são as relações isoladas, mas feixes
de relações” (p. 242), ou seja, o mito não se compreende de forma eficaz isoladamente. Frye (1957) também coloca que o mito ocupa uma posição canônica fundamental. Como então a literatura moderna individualista poderia “livrar-se”
completamente de tal disposição. Os mitos sobrevivem de diferentes formas no
mundo contemporâneo, se travestem e reinventam, mas, mantém sua referência, mesmo que disfarçada. A própria designação do termo “mito” muda com a
história, em sua origem seria algo “vivo” que conferia à humanidade possibilidades de significação e valor da existência, hoje, para nós, se reveste de um valor
ficcional, a despeito de tudo que já foi definido aqui do que seja ficção.
Segundo Eliade (2010, p. 11) “o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada em perspectivas múltiplas
e complementares”. O homem moderno sofre, assim como em todas as outras
épocas, a influência de toda uma mitologia (mesmo recalcada ou camuflada) nas
mais diversas esferas da atividade humana. Por vezes, e na maioria delas, sem tomar consciência de tal fato. De acordo com Souza (1995, p.18) “O mito precedeu
o lógos. [...] À pergunta fatal: ‘que significa? ’ a resposta é ‘o mito dá significação
ao que por si a não tinha”.
Acreditamos que a arte moderna parte em busca das essências, despindo ou
recriando a “razão” das coisas, o artista busca a expressão intrínseca escondida
no “real”. É um reencontro com sua “alma do mato” como diria Jung (1977), daí o
caráter abstrato, experimental e até incompreensivo de algumas obras. Logo, as
ferramentas racionalistas não captam, nem acolhem seu profundo simbolismo.
Segundo Eliade (2010, p.125) “o mito ‘fala’ ao homem, e, para compreender
essa linguagem, basta-lhe conhecer os mitos e decifrar os símbolos”. E continua: “Melhor ainda, é possível dissecar a estrutura ‘mítica’ de certos romances
modernos, demonstrar a sobrevivência literária dos grandes temas e dos personagens mitológicos” (p.163). A literatura, portanto, seria uma via de acesso à
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Amanda Barros de Melo Moura
compreensão dos arquétipos, também à compreensão da reprodução de certos
comportamentos míticos, tais como, a angústia perante seu tempo e o desejo de
fuga/volta a um tempo primordial (mito da perfeição dos começos), os modelos
a imitar (herói, Don Juan), a luta entre o bem e o mal, os mistérios da mulher,
dentre outros.
Nossa premissa não é aleatória considerando, como afirma Eliade (2000),
que os arquétipos míticos sobrevivem nos grandes romances modernos e, além
disso, “parece que um mito, tal como os símbolos que usa, nunca desaparece da
atualidade psíquica: muda simplesmente de aspecto e disfarça as suas funções”
(p.20). Para o autor, os temas míticos sobrevivem hoje, mas não são facilmente reconhecíveis porque sofreram um longo processo de laicização. No entanto,
“somos sempre contemporâneos de um mito” (ELIDADE, 2000, p.22). Vem-nos à
memória Camus e sua obra “o mito de Sísifo”:
Este mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que seria a sua
pena se a esperança de triunfar o sustentasse a cada passo? O operário
de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas, e esse
destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em
que se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição: pensa nela
durante a descida. A clarividência que deveria ser o seu tormento consuma, ao mesmo tempo, sua vitória. Não há destino que não se possa ser
superado com desprezo. [...] A felicidade e o absurdo são dois filhos da
mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce
necessariamente da descoberta absurda. Às vezes ocorre também que o
sentimento do absurdo nasce da felicidade. “Creio que está tudo bem”,
diz Édipo, e esta frase é maldita. Ressoa no universo feroz e limitado do
homem e ensina que nem tudo foi experimentado até o fim. Ela expulsa
deste mundo um deus que havia entrado nele com a insatisfação e o
gosto pelas dores inúteis. Faz do destino um assunto humano, que deve
ser acertado entre os homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence. A rocha é sua casa. Da mesma forma,
o homem absurdo manda todos os ídolos se calarem quando contempla
seu tormento. (CAMUS, 2010, p. 123-4)
Guardadas as devidas proporções, mediante ao aspecto político inerente ao
texto, aqui podemos encontrar vários pontos para problematizar a presença do
mito hoje. Na primeira frase temos a afirmação de que o mito só é trágico por-
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que seu herói é consciente, diferentemente do herói quase passivo da epopeia,
na tragédia, especificamente neste mito, Sísifo engana os deuses e é discordante
de suas imposições, ele evidencia o desejo humano de vencer a morte, a constatação do esforço inútil, e, o pessimismo está evidente como forma de realidade
inevitável. Estes aspectos do mito de Sísifo em Camus, também aparecem na
literatura moderna; Como em “vidas secas” de Graciliano Ramos, por exemplo,
e no próprio “Estrangeiro” de Camus. É a consciência do homem moderno, do
“homem absurdo” que contempla o próprio absurdo do mundo em si mesmo. Por
fim, ainda sobre a citação anterior, vimos que Sísifo fez de seu destino um assunto humano e manda os ídolos se calarem enquanto contempla seu tormento,
acreditamos que esta postura também elucida como o mito se revela na literatura moderna hoje, mesmo em narrativas em que o eu prevalece, essa tomada de
posição diante do destino, já se configura como um impulso mítico. É a ausência
de um deus que atribua significação à existência, é a busca pelo sentido; a própria negação do mundo e supervalorização do eu interior, funcionam como uma
espécie de afirmação pela negação de uma falta essencial e não preenchida por
conta do próprio afastamento do homem moderno de sua dimensão simbólica e
mística, uma das possibilidades do vazio existencial.
Também cabe lembrar alguns aspectos existentes entre o mito de narciso e
este tipo de modalidade literária. Um aspecto interessante seria a incapacidade
de se comunicar com outrem senão consigo mesmo, pela sua supervalorização;
hoje, poderia evidenciar-se neste tipo de literatura centrada no “eu”, no próprio
caráter altamente individualista de nossa sociedade em que as potencialidades
do eu são levadas ao extremo, e até na chamada “crise de identidade” do mundo
globalizado. Vale também ressaltar o processo de autocontemplação, valorização
máxima desse eu, expressos numa paixão que leva à “queda”, o indivíduo que se
perde em si, e ao mesmo tempo a presença do duplo intrínseco a si mesmo. Ou
seja, como o outro contido em si próprio, numa fusão de si e seu reflexo na água,
caracterizando um indivíduo partido, fragmentado, como é o sujeito moderno.
Confirmando nossa postura neste artigo, Eliade (2010) afirma, “o que deve
ser salientado é que a prosa narrativa, especialmente o romance, tomou, nas
sociedades modernas, o lugar ocupado pela recitação dos mitos e dos contos
nas sociedades tradicionais e populares” (p.163). O autor elucida que o surrealismo também marcou uma elevação dos temas míticos e dos símbolos pri-
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mordiais, bem como a literatura de cordel e os romances populares. Como dito
anteriormente, é possível encontrar a sobrevivência de grandes temas míticos
na literatura moderna (busca por sentido, a solidão, o isolamento, etc.) além dos
personagens mitológicos (Don Juan masculino e feminino, niilista, apaixonado
infeliz, etc.). Por fim, ainda sobre esta questão, o autor afirma:
De modo ainda mais intenso que nas outras artes, sentimos na literatura uma revolta contra o tempo histórico, o desejo de atingir outros
ritmos temporais além daqueles em que somos obrigados a viver e trabalhar. Perguntamo-nos se esse anseio de transcender o nosso próprio
tempo, pessoal e histórico, e de mergulhar num tempo “estranho”, seja
ele extático ou imaginário, será jamais extirpado. Enquanto subsistir
esse anseio, pode-se dizer que o homem moderno ainda conserva pelo
menos alguns resíduos de um “comportamento mitológico”. Os traços
de tal comportamento mitológico revelam-se igualmente no desejo de
reencontrar a intensidade com que se viveu, ou conheceu, uma coisa
pela primeira vez; de recuperar o passado longínquo, a época beatífica
do “princípio”. (ELIDADE, 2010, p.165)
Para finalizar a resposta de como o mito é apreendido na literatura moderna, os aspectos citados acima, mais claramente se verificam nos romances em
que o “eu” é o centro da narrativa: o desejo de mudar o tempo, a angústia existencial por sentir-se inadequado ao seu tempo, a busca de algo primeiro, de um
tempo remoto em que a vida poderia revestir-se de um sentido essencial. Enfim,
parece improvável nos libertarmos completamente dos mitos. “Os mitos, entendidos em seu sentido oculto, tratam, portanto de dois temas: a causa primeira da
vida (o tema metafísico) e a conduta sensata da vida (o tema ético)” (DIEL, 1991,
p.27). Desses dois grandes planos temáticos surgem as singularidades dos mitos
e a força que os sustenta através dos tempos; por se tratar de questões prementes
ontem e hoje, os mitos não podem sumir simplesmente das nossas vidas e das
nossas manifestações artísticas, sejam elas as mais distintas possíveis. Concluímos, então, à maneira de Fernando Pessoa no poema Ulisses: “o mito é o nada
que é tudo”.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
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RESUMO
Convém lembrar que, na literatura brasileira, se pode estudar em alguns escritores a
questão da constituição da identidade dos seus personagens. Pretende-se compreender como as marcas do duplo se configuram na prosa lispectoriana, observando
que o espelho, no conto “Devaneio e embriaguez duma rapariga,” instiga uma forma
de apropriação metafórica do mito de Narciso. Nesse sentido, a literatura lispectoriana apresenta-se como uma ficção que dá margem a essa representação simbólica,
pois os seus personagens, em sua maioria, se veem diante de situações que, na busca
de seu eu, conflitam com o eu e o outro. Convém destacar que esse estudo é de caráter bibliográfico, pois está enquadrado no método dedutivo, e, como tal, pressupõe
que as verdades já afirmadas sirvam de base para se chegar a conhecimentos novos.
Portanto, essa análise foi realizada com base em uma vertente comparativa, cuja
metodologia pressupõe o estabelecimento do diálogo da obra entre si e do diálogo
desta com um aparato teórico que dê conta de uma leitura crítica acerca das categorias de análise escolhidas. Assim sendo, para respaldar esse estudo, reporta-se
a alguns teóricos, como: Mello (2000), Bravo (1998) e Lamas (2004), Eliade (1991,
1992, 2007), Cassirer (1946, 1992, 1994), Campbell (1988), Poe (1997), que retratam
desta temática. Por fim, na narrativa em questão o descentramento da personagem,
desperta para o eu e o não-eu, o que contribui decisivamente para o desfecho. O que
se observa, ainda, é que ela não consegue resolver seus conflitos, não se desprende
da vida esvaziada, embora ciente da incapacidade de resgatar a identidade perdida;
é tanto que retoma sua vida sem questionamentos.
Palavras-chave: Conto, Duplo, Narciso, Identidade, Metáforas.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
METAMORFOSES DE NARCISO EM CONTOS
DE CLARICE LISPECTOR
Maria da Luz Duarte Leite Silva (UFRN)
Considerações iniciais
Num cenário que tem sido comumente nomeado de modernidade1, marcado pelo multiculturalismo, pelo consumismo, o indivíduo apresenta-se cada vez
mais deslocado, com fronteiras não definidas, representando o que no debate
atual se denomina da chamada “crise de identidade”. Um traço característico
deste momento é o novo modo de constituição da identidade dos indivíduos. Tal
como afirma Hall (2006), na atualidade as identidades dos sujeitos são marcadas
pelo caráter de esfacelamento e fragmentação. Nesse sentido, se antes as questões identitárias eram sólidas, ou seja, os sujeitos sabiam das suas individualidades, hoje se encontram com fronteiras indefinidas e mutáveis, ou seja, os sujeitos
se apresentam quase sempre indagando sobre o eu e o não eu. A partir disso, é
possível dizer que a identidade é algo que não é realizada ou construída de forma
definitiva, uma vez que, conforme afirma Bauman (2005, p. 35), “as identidades
ganharam livre curso, e agora cabe a cada indivíduo, homem ou mulher, capturá-las em pleno voo, usando os seus próprios recursos e ferramentas”. Não
é característica só do sujeito moderno, pois, desde a Antiguidade, o indivíduo
apresentava-se com aspectos relacionados ao duplo.
1. Foi utilizado o tema modernidade ao invés de pós-modernidade, mesmo tratando de teóricos pósmodernos, para evitar polêmicas.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Vale destacar que o tema do duplo não é exclusivo da literatura, pois aparecem em vários campos, como o mitológico, o psicanalítico, o religioso, o filosófico e muitos outros. Esse tema é explorado na literatura por meio da ficção, da
comédia, desde a Grécia antiga, com Aristófanes, Platão, Moliére e tantos outros,
apresentando-se através dos gêmeos, que usurpavam identidades; ou seja, o duplo é visto como um outro em si mesmo, um eu incógnito, que se reconhece por
meio do processo de estranhamento. É a partir de tal perspectiva que busca-se a
conexão existente entre mito e literatura, procura-se analisar as marcas do mito
de Narciso no conto de Clarice Lispector, sobretudo o modo da atualização do
referido mito na representação das personagens. Para isso, centra-se a investigação na análise do conto: “Devaneio e embriaguez duma rapariga,” de Clarice
Lispector, que constitui o corpus dessa pesquisa.
Pretende-se compreender como as marcas do duplo se configuram na prosa lispectoriana, observando que o espelho, no conto “Devaneio e embriaguez
duma rapariga,” instiga uma forma de apropriação metafórica do mito de Narciso. A literatura clariceana apresenta-se como uma ficção que dá margem à representação simbólica, destacando indícios do mito de Narciso, pois as personagens
do conto selecionado se veem diante de situações conflitivas, na busca do seu
eu. Narciso, no seu diálogo com o reflexo nas águas, busca constituir-se de um
modo cego. Os Narcisos lispectorianos demonstram certa cegueira até o despertar para seu esfacelamento. Conforme afirma Mello (2000, p.113), “[...] a cisão do
eu apresenta-se sob múltiplas formas, pela sombra, retrato, ou imagem refletida
no espelho.”. Assim, detém-se, nessa pesquisa, na observação de metáforas que
indiciam o diálogo contemplativo com o reflexo. Essas metáforas se constituem
em marcas de prestigio para uma reflexão sobre a identidade moderna e, em
particular, em recurso fundamental para o reconhecimento dos dramas das personagens de Clarice Lispector.
É a partir desse viés temático que se pretende mostrar o modo de atualização do mito de Narciso na representação das identidades dos seres ficcionais de
Clarice Lispector, pois compreende-se que há um elo entre mito e literatura, já
que, como ressalta Brunel (1998), o conhecimento mitológico vem-se através da
literatura. Na ficção lispectoriana, encontra-se significativos indícios do mito,
visto que, em suas narrativas, as suas personagens são marcadas pelo sentimento de ruína e vazio, ocasionando uma busca constante de seu objeto faltante,
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Maria da Luz Duarte Leite Silva
trazendo a tona o clássico questionamento: “Quem sou eu?”; indicando novos
caminhos para a reflexão da constituição do si mesmo. Nas narrativas lispectoriana, é presente a dualidade na completude do ser; as suas personagens vivem
quase sempre se projetando no outro, integrando-se nas convenções e estereótipos da sociedade moderna, sendo a sua individualidade um processo doloroso e
angustiante.
Vale destacar que os contos que integram Laços de família são os que apresentam maior número de análises razão pela qual se optou por inseri-los em
nosso universo de pesquisa, no sentido de contribuir com os estudos acerca da
prosa lispectoriana. O motivo que levou a analisar os indícios do mito de Narciso
no conto escolhido é o fato da narrativa em questão apresentar variadas metáforas e formas diversas de atualização desse mito; logo o propósito da pesquisa
é identificar o modo de ressignificação do mito na ficção da autora, com foco na
representação das personagens. Para sustentação da análise, fundamentou-se
em alguns teóricos e pesquisadores. Para refletir sobre a relação entre o duplo e a
literatura, tomou-se como base os estudos de Mello (2000), Bravo (1998) e Lamas
(2004), Eliade (1991, 1992, 2007), Cassirer (1946, 1992, 1994), Campbell (1988). Poe
(1997), (Platão, 2008, 2009; Ovídio, 2003); Poe (1997); (Freud e Jung, 2000, 2008),
dentre outros que tratam da temática em estudo.
Por fim, observou-se a atualização e apropriação do mito no conto: “Devaneio e embriaguez duma rapariga”, de Laços de família. Convém destacar que
esse conto retrata a protagonista que necessita do outro para, num processo
epifânico, despertar para o autoconhecimento. Nesse conto, constatou-se a presença do espelho como metáfora do vê-se e do reflexo sobre o eu e o outro. Na
leitura da narrativa, percebeu-se que a ficção de Lispector é permeada de marcas
metafóricas ligadas ao mito de Narciso.
A trajetória do esfacelamento da protagonista
no conto “Devaneio e Embriaguez duma Rapariga”
O conto Devaneio e embriaguez duma rapariga é a história de uma personagem que não apresenta nome. É uma mulher que procura refugiar-se por trás de
máscaras como o álcool, o espelho, o outro, o olhar e muitas outras, como forma
de superar a rotina de sua vida. Nesse conto, logo no início, percebe-se a vontade
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
da portuguesa em conhecer-se, ou individuar-se, e viu-se como uma rapariga
ainda jovem: “Teve a visão de seu sorriso claro de rapariga ainda nova, e sorriu
mais fechando os olhos, a abanar-se mais profundamente. Ai, ai, vinha da rua
como uma borboleta.” (LISPECTOR, 1998 p. 9-10). Essa ideia remete às palavras
de Jung (2008), quando reflete a respeito da individuação do sujeito, e seu despojamento dos laços da “persona.” Isso é percebido na protagonista do conto em
questão, visto que a portuguesa reflete sobre o seu eu. A borboleta é mais uma
simbologia que a narradora utiliza para se compreender o eu da protagonista,
levando a pensar que a rua possibilita ao sujeito ter liberdade, e essa liberdade,
no conto, é metaforizada pela borboleta, uma vez que esta pode simbolizar a libertação da alma e a transformação da mulher - a protagonista - que ocorre por
meio de seus devaneios, pois se deixa levar por fantasias, lembranças, sonhos,
sendo dominada por esse estado de espírito.
Esse conto, na opinião de Nádia Gotlib (1994, p. 322), é “o mais humorado de
toda ficção de Lispector.” Nele é patente o devaneio da portuguesa que, morando no Brasil, consegue como tantas outras personagens de Lispector, através de
acontecimentos aparentemente banais, e por meio da tão famosa introspecção
psicológica, escapar da rotina. Envolta nesse escapismo, a personagem indaga
sobre “Quem sou eu?.” Isso ocorre, nesse conto, através do processo metafórico
como o olhar reflexivo sobre si e o outro, além da embriaguez da protagonista.
Vê-se o olhar-se da “mulher” no espelho como uma representação do seu esfacelamento, pois o espelho é constituído de três pedaços, remetendo à ideia
de reflexo e reflexão e podendo também proporcionar a fragmentação de quem
nele se projeta. Essa divisão do espelho em três faz vê que a portuguesa estava descentrada, despedaçada, o que provocou a crise em sua identidade, pois a
imagem pode representar o que ela é e como deseja ser, ou seja, o eu possível e
o que a sociedade projeta para ela. Assim sendo, a personagem pode se ver de
três maneiras diferentes ou não se reconhecer. Olhar-se ao espelho pode ser
visto também como uma maneira de encontrar-se ou reencontrar-se, seja como
o duplo em que o indivíduo projeta e concentra as imagens que faz de si próprio,
ou simplesmente vendo sua imagem refletida. “Os olhos não se despregavam da
imagem, o pente trabalhava meditativo, o roupão aberto deixava aparecerem nos
espelhos os seios entrecortados de várias raparigas.” (LISPECTOR, 1998, p. 9).
Este trecho permite perceber a dualidade da protagonista, ou o seu drama. Con-
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Maria da Luz Duarte Leite Silva
forme afirma Rosset (2000, p.90), “O espelho não mostra o eu, mas o inverso, um
outro; não meu corpo, mas uma superfície, um reflexo.” Esta fala remete ainda
à ideia de que o espelho é um meio que possibilita o descentramento do sujeito,
e, é isso que ocorre com a rapariga do conto em questão. Assim, a presença do
espelho serve como metáfora do vê-se e do reflexo sobre o eu e o outro, servindo, sobretudo, como uma forma de apropriação metafórica do mito de Narciso.
Pode-se dizer que, no decorrer da narrativa, o espelho e a embriaguez serviram
para a portuguesa refletir sobre a sua constituição como sujeito. É tanto que
essa senhora se vê duplicada entre dois papéis, ora vista como uma dona de casa
numa vida rotineira, ora vista como uma mulher à espera de uma nova vida.
“Acordou com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos que voltariam
à tarde das titias, ai que até me faltei ao respeito”. (p.12) E ainda continua: “[...]
Quando o amigo do marido a viu tão bonita e gorda ficou logo com respeito por
ela”. (LISPECTOR, 1998. p.18)
Nesse jogo de duplos, se pode relacionar a constituição da protagonista do
conto Devaneio e embriaguez duma rapariga com o mito de Narciso, pois ambos
trazem a metáfora do espelho. Entende-se que o olhar-se em Narciso está relacionado à busca da identidade relativa ao ego, ao impulso, para a diferenciação
do eu em relação ao não-eu. Além disso, vale lembrar que, nesse conto, o duplo se apresenta através de diversos tipos de relações, nas quais a duplicidade
é proporcionada através do outro, este configurando-se através da loira e do eu
exterior da personagem, ou seja, o outro serve de inquietação à portuguesa na
construção da imagem de si. “Ouvia intrigada e deslumbrada o que ela mesma
estava a responder: que dissesse nesse estado valeria para o futuro em augúrio já agora ela não era lagosta, era duro signo: escorpião”. (LISPECTOR, 1998, p. 14).
Atrasada para a tarefa de descascar batatas a protagonista deixa transparecer uma de suas atividades rotineiras. Já o olhar do negociante próspero, a deixa
lisonjeada e com esperança de uma vida diferente; antes desse jantar a portuguesa vivia em um mundo restrito ao lar e aos cuidados de uma dona de casa.
A partir dessa saída de casa, essa mulher encontra-se como um ser que não se
conhece, isso é visto no refletir sobre as suas ações ou comportamentos, como
nesse trecho: “Ai que esquisita estava.” (LISPECTOR, 1998, p. 13). Outro fato interessante é quando “a mulher” vê uma outra no restaurante, uma loira magra,
com pouco busto; o que inquietava a portuguesa é o fato de essa mulher estar
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de chapéu e, para a protagonista não está usando esse acessório a deixava desnudada: “Seus olhos de novo fitaram aquela rapariga que, já d´entrada, lhe fizera
subir a mostarda ao nariz.[...]. Oh, como estava humilhada por ter vindo á tasca
sem chapéu, a cabeça agora parecia-lhe nua.” (LISPECTOR, 1998,p. 15). Neste
momento, a personagem se sente ameaçada e começa um dos seus devaneios,
pois fica a pensar se aquela moça seria vista como sendo mais importante do que
ela. Nesse caso, a protagonista fica a refletir sobre o seu corpo e o daquela figura
feminina que a perturbava. A sua contemplação se dá relacionada à diferença
em relação àquela loira, uma vez que compara o seu físico de mulher casada a
um outro, que não sabia de certo quem era. Isso é perceptível nessa fala: “E a
outra com seus ares de senhora, a fingir de delicada” (LISPECTOR, 1998, p.15).
Vê-se também que aquela é o elemento que propicia à protagonista o refletir sobre a sua individualidade, visto que, mesmo tendo sido admirada pelo amigo, a
“mulher” fixa-se em detalhes da outra - a loira. À luz do pensamento de Adorno
(1985, p. 24), através de seu conceito de esclarecimento, a loira funciona para
a portuguesa como o signo do esclarecimento: “Os homens recebem o seu eu
como algo pertencente a cada um, diferente de todos os outros [...]”.
Vale salientar que a comparação do corpo da portuguesa com o da loira
pode estar relacionada à questão da constituição do si mesma. A mulher, pelo
caráter da diferença, constitui-se como um reflexo e, assim, é pelo signo da divergência que a portuguesa toma conta do não-eu. Nesse caso, é através do outro
que a portuguesa é capaz de saber quem é aquela diferente dela. Isso é representado pelo narrador: “E vai ver que, com todos os seus chapéus, não passa duma
vendeira d´hortaliça a se passar por grande dama” (LISPECTOR, 1998, p.15). O
julgamento do outro também é patente nesse fragmento, pois a portuguesa julga
a mulher pela aparência: “loira como um escudo falso, toda santarrona e fina.”
(LISPECTOR, 1998, p.15). Essa fala da protagonista sugere um certo sentimento
de inveja, o que revela uma característica do narcisismo. O sujeito narcisista não
apresenta apenas uma condição patológica, mas também constrói um protetor
do psiquismo, ou melhor, uma imagem de si unificada e perfeita. Na narrativa,
percebe-se que a protagonista pensa que essa moça não é capaz de parir. Mesmo
pensando assim, a portuguesa via na loira um reflexo, ainda que diferente do
seu, o que possibilita o refletir sobre o seu eu, uma das principais características
do mito de Narciso.
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A figura do negociante próspero, amigo do esposo da portuguesa, também
serve para fazê-la refletir sobre a sua individualidade, visto que a conversa com
esse negociante conquista sua atenção, pois a personagem sentiu-se importante
e, em devaneio, conclui que tudo valeria a pena. É como se passasse no seu pensamento que ela era uma pessoa especial. Isso se confirma nesse trecho: “Ouvia
intrigada e deslumbrada o que ela mesma estava a responder: - já agora ela não
era uma lagosta, era um duro signo: escorpião.” (LISPECTOR, 1998, p.14). Essa
ideia a transformou, pois, a partir desse momento, ela se tornou uma pessoa
decidida, poderosa e apaixonada. É tanto que, ao chegar à sua casa, resolve dar
um esfregaço na sujeira, e, sobretudo, retomar a sua vida. A embriaguez da protagonista faz emergir a vontade de conhecer-se a si mesma; e, ao comunicar-se
com o negociante com certa espontaneidade por conta do álcool, apresenta certo
sentimento de grandeza. Fala com espontaneidade, “Pois palestrava naturalmente. Pois que não lhe faltava assunto nem capacidades.” (LISPECTOR, 1998, p.13).
O olhar ao espelho por sua natureza dual desencadeou a duplicidade da
protagonista, visto que se sentia dividida em três reflexos que emblematizam a
cisão do eu. Assim, a personagem, por uns momentos, reflete sobre o seu “eu”,
provocada pelo álcool e por sua condição de vida; e isso possibilita fazer-se a analogia com o mito de Narciso, visto que o devaneio provocado pelo olhar decorre
do reflexo no espelho, bem como da imagem do outro e do próprio desassossego inerente ao estado de depressão da personagem. Daí a constituição e semelhança da portuguesa com Narciso. Essa ideia encontra pertinência na visão de
Cavalcanti (1992, p.205), “No episódio do espelho, estamos novamente diante da
questão da construção da identidade da formação do eu”. É nesse momento que
a personagem descobre que, por traz do eu cotidiano, existe um outro, o não-eu.
É como se ela possuísse dois eus, sendo que a sua duplicidade estava atrelada a
um sujeito possível. A busca desse novo ser ocorre sugestivamente, através da
fuga do real, ocasionada pela embriaguez, vista pela protagonista como única
forma de suportar a sua vida rotineira. Depois da experiência com o álcool, a
portuguesa descobre que não é mais a mesma: deixa de ser uma lagosta para se
transformar num escorpião. Ao ver-se intrigada e deslumbrada sobre o que ela
mesma estava a pensar, a personagem está diante do processo de introspecção
psicológica, refletindo, pois, sobre o seu verdadeiro ser. É nesse cenário propício às reflexões que a portuguesa deixa de ser, momentaneamente, uma mulher
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atrelada à vida simples, para tornar-se a mulher possível que representa força,
coragem e iniciativa, cuja senhora só se apresenta quando usa algum tipo de
mascaramento. Torna-se oportuno lembrar o que assinala Sant´Anna (2007, p.5,
apud HOHFELD, 1998) sobre as personagens de Lispector: “Percepção de uma
realidade atordoante quando os objetos mais simples, os gestos mais banais e as
situações cotidianas comportam iluminação súbita na consciência dos figurantes [...]”. É o que acontece com a portuguesa que, a partir de um simples olhar-se
ao espelho, inicia-se um processo de autoconhecimento.
É bom lembrar que nem sempre a portuguesa sentia-se decidida, vive a
maior parte do tempo deitada em seu quarto, desligada de tudo e de todos, fato
raro na vida da mulher: “E, já que os filhos estavam na quinta das titias em Jaquarepaguá, ela aproveitou para amanhecer esquisita: túrbida e leve na cama,
um desses caprichos, sabe-se lá.” (LISPECTOR, 1998, p.10). Ainda refletindo sobre o retorno dos filhos, observa-se que a portuguesa sente-se um pouco entediada, começando mais um dos seus devaneios. O mal estar tomava conta da
personagem, de modo que essa não fazia mais nada; e isso lhe causa sofrimento
emocional e, consequentemente, existencial. Essa característica faz lembrar os
postulados de Lowen (1983, p.9), quando apresenta que: “Em nível cultural o narcisista pode ser considerado como perda de valores humanos – uma ausência de
interesse pelo meio ambiente, pela qualidade de vida, pelos seus semelhantes”.
Isso tudo é o que acontece com a portuguesa, visto que esta preferia ficar o dia
inteiro na cama, no silêncio da casa, sem a presença das crianças, sem o marido, enfim sozinha. O dia, para essa senhora, durava uma eternidade. “A manhã
tornou-se uma longa tarde inflada que se tornou noite sem fundo amanhecendo
inocente pela casa toda.” (LISPECTOR, 1998, p. 11). Aqui também se observa o
quanto a vida rotineira dessa senhora contribuiu para a sua depressão. Fazia todos os dias à mesma coisa, sem contar que vivia confinada em seu quarto. “Na
cama a pensar, a pensar, quase a rir como a uma bisbilhotice. A pensar. O que?
Ora, lá ela sabia. Assim deixou-se a ficar.” (LISPECTOR, 1998, p.11). Quando a
personagem ficava a rodar de um lado para outro no quarto, desnorteada, pensando que podia estar doente, é mais um indício de seu descentramento.
Percebe-se que o álcool pode ser entendido, nessa narrativa, como “embriaguez narcótica” de que fala Adorno (2008), em que o sujeito embriagado expia
com sono parecido à noite a euforia na qual o indivíduo se sente suspenso. Uma
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tentativa do eu fugir dos seus tormentos, por isso a personagem despreza o carinho do esposo e os afazeres domésticos “– Larga-te daí! – E o que tens? Pergunta-lhe o homem atônito, a ensaiar imediatamente carinho mais eficaz” (LISPECTOR, 1998, p 11). Essa cena sugere o momento de isolamento porque passava
aquela senhora, pois nada motivava o seu interesse pela vida. Outro indício desse retraimento pode ser identificado no ato de guardar o próximo pensamento,
mantendo-se em sua ociosidade, deitada no quarto até adormecer de boca aberta,
com a baba a escorrer no canto de sua boca, este fato é mais uma característica
de quem não está normal. Sem contar que ela não se incomodava com os afazeres domésticos e os cuidados com o marido. Mesmo consciente da sua limitação
diante da vida, expressava constantemente a vontade de constituir-se como um
sujeito diferente, que não fosse uma pessoa presa ao universo da casa. A expressão “[...] a manhã pressurosa do sol” permite perceber que suas atividades diárias
eram coisas que deveriam ser executadas. Vale lembrar que foi a partir da ida da
portuguesa ao pasto que essa mulher começou a refletir sobre o seu eu.
No retorno para casa, após o jantar, continua o processo introspectivo da
personagem sobre si mesma; ela sente estar voltando ao seu tamanho normal,
condição de mulher que cuidava de filhos, esposo e casa. “[...]quando ela voltasse
ao seu tamanho comum, o corpo anestesiado estaria a acordar latejando e ela iria
pagar pelas comilanças e vinhos”. (LISPECTOR, 1998, p.16). A protagonista, em
seu devaneio provocado pela embriaguez, sentia-se cheia de palavras, parecia que
era outra mulher. Conforme já afirmado por Lowen (1983), os sujeitos narcísicos
apresentam sentimentos intensos de fantasias, de grandeza, de inferioridade, de
admiração, de aprovação externa. Essa ideia leva a refletir sobre o mascaramento
do sujeito moderno, especificamente o da protagonista desse conto, uma vez que
se entende a sua embriaguez como uma espécie de escapismo.
Toda a narrativa é perpassada por devaneios da protagonista, inclusive no
momento em que ela ouve o estremecer do “guarda-loiça” na sua sala, e aguarda
seu próximo pensamento. São esses e outros fatos do conto que comprovam a
fuga da portuguesa, justamente com o estado de sua embriaguez. Dito de outro modo, as personagens lispectorianas quase sempre deslocam-se no espaço,
estando também submetidas à introspecção dos pensamentos. Há sempre um
momento em que elas tentam escapar de sua vida rotineira, de seus papeis, deixando emergir um outro ser.
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Vale lembrar que o espelho pode admitir múltiplos significados simbólico,
podendo estar ligado à verdade, à sinceridade e à pureza. Conforme o dicionário
de símbolos, de Chevalier & Gheerbrant (1992), os espelhos podem ser vistos
como instrumentos de autocontemplação e reflexão do eu do outro e do universo;
ligados ao mito de Narciso podem representar a consciência humana, simbolizando o pensamento em si mesmo. Assim sendo, a partir da acepção da palavra,
que vem de speculus, o sentido de espelho resulta em especular, podendo significar observar, analisar, refletir, etc. Mas o objeto especular pode ter sentido ambíguo, uma vez que pode simbolizar a verdade ou a mentira, provocando enganos
e imagens deturpadas. Os espelhos também podem ser símbolos de pureza e
sinceridade, ao se apresentarem límpidos; bem como podem trazer significados
pejorativos, como a vaidade. Portanto, sugestivamente, o espelho pode está presente na vida cotidiana, seja na simples representação física do objeto, seja, nos
símbolos que trazem o reflexo como forma de conhecer-se a si mesmo. Segundo
Eco (1989, p.13), “No momento em que se delineia a ‘virada’ do eu especular para
o eu social, o espelho é a ‘encruzilhada estrutural’ ou, como dizíamos, fenômeno
-limiar.” Assim, vemos que o espelho pode ou não ajudar o sujeito a encontrar-se
consigo mesmo. Ao desenvolver seu pensamento interior, a personagem pensa
por alguns momentos que não é mais ela mesma, ou melhor, a mulher, acomodada com a vidinha de dona de casa, passa a ser um outro ser. Essa retrospecção
de personalidade é destacada em: “[...] com um muxuxo amuado, importunada,
que ao me venhas a maçar com carinhos; desiludida, resignada, empanturrada,
casada, contente, a vaga náusea”. (LISPECTOR, 1998, p.17). Pode-se dizer que ao
sentir-se empanturrada, casada, contente e com náusea, a portuguesa mostra-se
procurar a resposta do “Quem sou eu?”. A sua inquietação é mais uma prova do
seu esfacelamento. Isso acontece em várias passagens do conto, inclusive quando ela começa a se refletir no outro, na loira despertando um ato contemplativo.
Reportando a Adorno e Horkheimer (1985, p.22), percebe-se que a portuguesa só
pode alcançar o seu eu “Enquanto tal imagem e semelhança que o homem alcança a identidade do eu que não pode se perder na identificação com o outro, mas
toma definitivamente posse de si mesma como máscara impenetrável”.
Nesse conto, se percebe nitidamente o quanto a portuguesa valoriza o status, e este é buscado por meio do outro, seja real, seja como forma de reflexo.
Todo processo reflexivo da portuguesa ocasiona a crise de identidade da prota-
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gonista. Percebe-se isso no deslocamento da sua estabilidade interior, pois se
arrumou toda para o jantar, comprovando que ela também, enquanto sujeito
moderno está preocupado com sua imagem. Daí observa-se, no modo de representação da protagonista, marcas ideológicas típicas da modernidade, visto que:
“[...] ela com vestidito novo que não se não era cheio d´enfeites era de bom pano
superior, desses que lhes ia durar a vida afora.” (LISPECTOR, 1998, p.12). Quando
se refere a pano do vestido como sendo superior lembra a representação que é
dada à portuguesa, uma mulher de classe média que morava em capital, por isso
conhece o que é bom e sofisticado.
Assim como o Narciso moderno é consciente de sua dualidade, a portuguesa, na qualidade de ser ficcional inserido no contexto moderno, também se
coloca como sujeito que sabe de sua condição de ser cindido; o que pode ser conferido no trecho que segue: “E ela cada vez maior, vacilante, túmida, gigantesca. Se conseguisse mais perto de si mesma, ver-se-ia inda maior.” (LISPECTOR,
1998, p.16). A personagem se encontra como Narciso, desdobrada, em processo
de transformação, pois, dialoga consigo mesma e com o outro para individualizar-se, do eu e do não-eu. Outro fato que merece destaque, e o egocentrismo
da portuguesa quando está diante do homem próspero e do marido; o que se
pode confirmar quando o narrador diz: “E se quisesse podia permitir-se o luxo
de se tornar ainda mais sensível, ainda ir mais adiante: porque era protegida
por uma situação, protegida como toda gente que atingiu uma posição na vida”.
(LISPECTOR, 1998, p.14). Ainda, em se tratando dessa proteção, vê-se como a
protagonista se sente regozijada no restaurante quando há duas pessoas que, aos
olhos da personagem, são seus protetores. Por isso, ao sentir-se protegida pelo
comerciante próspero e pelo marido, imaginava ser outra. O jantar com uma
pessoa importante causava-lhe deslumbramento, dando espaço para os seus devaneios, como em: “Bem que sei o que te falta, fidalguia, e ao teu homem amarelo! E se pensa que t’invejo e ao teu peito chato, fica a saber que me ralo, que bem
me ralo de teus chapéus. A patifas sem brio como tu, a se fazerem de rogadas,
eu lhas encho de sopapos. (LISPECTOR, 1998, p.15). Será que esse outro que a
personagem esperava acordar não é o seu duplo? Será que, nesse momento, se
entrelaçava, no pensamento dessa mulher, o que seria a sua vida real e a sua vida
possível? Sugestivamente, acredita-se que o eu interior da portuguesa era, sim,
o seu duplo, pois se sentia por várias vezes bipartida, como no momento em que
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se via refletida no espelho, em várias raparigas, bem como quando se projetava
na loira no restaurante. Esses são alguns exemplos que possibilitam perceber o
embaraçamento entre vida real e projeção/imaginação.
A protagonista do conto Devaneio e embriaguez duma rapariga, ao encontrar-se momentaneamente consigo mesma, percebe que também tem o seu valor, como se pode confirmar nessa fala: “Ai que se sentia tão bem, tão áspera,
como se ainda estivesse a ter leite nas mamas, tão forte.” (LISPECTOR, 1998,
p.18). Esse fato mostra ainda mais a semelhança dessa narrativa com o mito de
Narciso, pois este, ao perceber que amava a si mesmo continuou a admirar-se,
ocasionando o seu definhamento. Segundo Cavalcanti (1992, p.208), “Narciso
brinca com a imagem de si mesmo no outro e do outro em si mesmo, buscando
a sua identidade, sua condição de ser no mundo”.
Ao se parar para pensar na presença da busca da constituição do si mesmo
nesse conto, se ver indícios, no próprio título, quando, por exemplo, se devaneia
estar-se um tanto fora do real, sonhando, fantasiando, imaginando, delirando,
desvairando-se, devaneando, meditando, pensando vagamente em coisas e acontecimentos, dizendo coisas sem nexo, absorvendo-se em vagas meditações. E
embriaguez se refere ao estado em que o sujeito apresenta-se entusiasmado, com
êxtase, o que acontece em várias passagens dessa narrativa, como por exemplo:
“No sábado á noite a alma diária perdida, e que bom perdê-la, e como lembrança
dos outros dias apenas as mãos pequenas tão maltratadas”. (LISPECTOR, 1998,
p. 13). Percebe-se, nesse fragmento, que o devaneio era uma saída para essa senhora, pois, quando diz que é bom perder a alma diária, confirma esse fato. Ainda recorrendo à fala da protagonista, o narrador procura mostrar que, através
da expressão “mãos pequenas e maltratadas”, essa mulher pode ser uma pessoa
delicada por apresentar mãos pequenas e ao mesmo tempo um sujeito de vida
dura por ter as mãos maltratadas. Isso remete à ideia de que sua vida era de dona
de casa responsável por todos os afazeres domésticos; daí o estrago das mãos.
Vale lembrar que o narrador apresenta a personagem da história como a
portuguesa ou a mulher, e que traços definidores dessa senhora são sugeridos
por meio da sua interioridade, do psicologismo e de suas ações cotidianas. Assim, é através dos devaneios, ocasionados pela embriaguez, da conversa, e de
seus questionamentos, bem como da vontade de ser um eu possível que a protagonista se questiona diante do espelho e de outros reflexos. Veja, a seguir, como,
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Maria da Luz Duarte Leite Silva
nesse conto, o nome do sujeito apresenta relevância na constituição do eu: “Bons
dias, sabes quem veio a me procurar cá em casa? pensou como assunto possível
de palestra.” Pois não sei, quem?[...]. A Maria Quitéria, homem!”(LISPECTOR,
1998, p.10).Observa-se como diz o narrador, que a portuguesa introduz nesse
fragmento assunto banal, suscitando uma conversa com o marido, em que indica que Maria Quitéria a procurou em casa. O descentramento dessa mulher
é tanto que, o simples ato de o marido não responder como ela queria desencadeou, nessa personagem, uma certa impaciência; daí responder com um tom de
raiva: “A Maria Quitéria, homem!.”( LISPECTOR, 1998, p10).
Vê-se, toda a narrativa em questão é repleta de momentos de delírios. O
dicionário web atribui a essa palavra à acepção: “estado mórbido que leva o paciente a proferir palavras sem nexo, exaltação, e entusiasmo, perturbação intelectual, produzida por doença e excesso de sentimento”. Talvez se pode verificar
o comportamento da protagonista de maneira exemplar, por ser o conto uma
narrativa que se pode ler em uma assentada só como dialoga Poe (1997, p. 912):
“ Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito intensamente importante que se deriva
da unidade.” Quando o marido chega em casa e ela o rejeita é porque quer se
distanciar dele e da vida cotidiana. Percebe-se que no quarto ela pode dedicarse ao processo de autoconhecimento. “Ai que quarto suculento! Ela se abanava
no Brasil.” (LISPECTOR, 1998, p.10). Por não lhe dá muita importância, o esposo
suspeita que sua esposa está doente, pois, continua a devanear, pensando no
jantar a que fora com o marido e o negociante abastado. “Que desprezo pelas
pessoas secas do restaurante, enquanto estava grossa e, pesada, generosa a mais
não poder”. E tudo no restaurante tão distante um do outro como se jamais um
pudesse falar com o outro. (LISPECTOR, 1998, p.14).
É nesse jantar que a duplicidade de sua vida como esposa e como mulher
é revelada, no momento em que reflete interiormente por estar sendo galanteada pelo patrão do marido, bem como no momento em que desenvolve inveja
pela moça loira, apresentada pelo narrador como de peitos chatos, cintura fina
e usando chapéu. Quando a protagonista demonstra que a loira, apesar de mostrar-se com alguns padrões de beleza eleitos pela sociedade, talvez não fosse
casada, remete à ideia de que a personagem via no casamento uma forma de
aquisição de respeito. Mesmo assim, pensa em encher a loira de pancadas. “A
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
patifas sem brio como tú, a se fazerem de rogadas, eu lhas encho de sopapos.”
(LISPECTOR, 1998, p. 15). Apesar de apresentar essa vontade de ser melhor do
que a outra a loira, ela indaga sobre si mesma, pensando que não passava de uma
dona de casa com seus afazeres domésticos. Isso se confirma no trecho a seguir:
“Se conseguisse chegar mais perto de si mesma, ver-se-ia inda menor.” (LISPECTOR, 1998,16). Observa-se que a protagonista apresenta medo de encontrar-se
com o verdadeiro eu. Ao conseguir individualizar-se a personagem descobre que
sua vida é rotineira, daí encontrar no mascaramento a única solução de fuga.
Um outro momento na narrativa em que se percebe o descentramento da
protagonista é na hora em que fica surda e mete um tapão em seu rosto. Nesse instante, ela sente uma “sensação maliciosa e incômoda”, e suspirava apresentando uma saciação conformada: “Pros raios que os partam, disse suave, e
aniquilada” (LISPECTOR, 1998, p.17). Outros elementos no conto que são importantes para perceber-se a vontade de mudança de identidade da portuguesa
são o sabão e a água, que simbolizam a censura, a compostura e a repreensão; e
servem também, no conto, como metáfora que pode representar uma maneira
de limpar aquela vida monótona, rotineira, ou seja, representa o lavar algo sujo.
Sugestivamente, a sujeira aqui pode significar o descaso consigo mesma e com
os outros. Veja-se, a seguir: “Mas depois de amanhã aquela sua casa havia de ver:
dar-lhe-ia um esfregaço com água e sabão que se lhe arrancariam as sujidades
todas” (LISPECTOR, 1998, p.18). Mas, é no devaneio provocado pela náusea que
a protagonista encontra o si mesma: é esposa, tem filhos, tem tarefas domésticas
a realizar, e, como forma de rever suas ações, a protagonista resolve arrumar sua
casa. A busca de sua identidade ocorre de modo tortuoso, de modo que no final
do conto a protagonista se compara a uma cadela. “Então a grosseira explodiulhe em súbito amor: cadela, disse a rir.” (LISPECTOR, 1998, p.18).
Considerações finais
Na leitura empreendida do conto Devaneio e Embriaguez duma Rapariga, de
Clarice Lispector, optou-se por observar o modo de configuração da identidade
das personagens, atentando aos indícios do mito de Narciso, expresso através de
metáforas como o espelho, o olhar, a maquiagem, dentre outros. Nessa análise,
constatou-se que a personagem central apresenta-se em constante busca de sua
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Maria da Luz Duarte Leite Silva
identidade. É recorrente a polaridade ser e não-ser, essência e aparência, eu e
outro; o que leva a pensar uma problemática denominada, na modernidade, de
crise de identidade.
Observa-se o modo de configuração da arquitetura ficcional de Clarice Lispector, sobretudo, o modo de representação das personagens, de modo a perceber que a construção da identidade ocupa espaço privilegiado em suas narrativas. Nesse conto, as protagonistas configuram-se como sujeito descentrado,
em permanente busca pelo autoconhecimento. Verificou-se que uma das características da contística lispectoriana, é o drama das personagens em entender
o “Quem sou eu?”. Essa pergunta acaba desencadeando em suas protagonistas
uma cegueira narcísica, uma cegueira que é o signo de sua alienação em relação
a si mesmo e aos seus mundos. Na busca do autoconhecimento, os seres ficcionais lispectorianos constituem-se como Narcisos modernos, aqueles que, num
diálogo silenciado permanente adquirem consciência de sua dualidade, de seu
esfacelamento.
No conto elencado, o descentramento da personagem é patente. Na Portuguesa, isso acontece ao projetar o seu reflexo no espelho, e diante do outro
e do álcool. Um traço presente nesse conto é a presença metafórica do mito de
Narciso na representação da personagem: No conto em questão, a personagem
central, encontra-se dividida entre o seu eu e o seu duplo. Esse jogo dual é um
atributo que se coloca como decorrente, na produção narrativa da escritora;
esse acontecimento decorre da negação do eu verdadeiro. Dessa forma, a problemática do mito de Narciso é atualizada na representação da personagem do
conto estudado, visto que o descentramento ocasionado pelos vários reflexos
remonta um problema que é de Narciso e também das figuras femininas de
Clarice Lispector.
Para compreender como as marcas do duplo se configuram na prosa de Lispector, observou-se, no conto Devaneio e embriaguez duma rapariga, a metáfora
do espelho, do outro, do álcool, que vem reforçar a presença do mito de Narciso.
O espelho representa o ver-se a si mesmo ou o diferente, o álcool apresenta-se
como uma fuga do eu, e o outro metaforicamente representa o reflexo daquele
que é diferente do si mesmo. Portanto, no conto elencado o duplo é expresso
através da figura, do espelho, do jogo entre verdade/ mentira e o bem e mal.
Essas metáforas refletem, na narrativa, a reatualização do mito de Narciso mo-
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
derno, pois a personagem do conto analisado é considerada sujeito narcísico,
porque experimenta a tirania da imagem perfeita e é consciente da existência do
não-eu.
Percebe-se que, na literatura, o mito adquire um sentido novo por meio de
metáforas expressas em diferentes situações narrativas. E constatou-se que, na
narrativa em questão, o duplo configura-se de forma heterogênea, uma vez que
a personagem, quando se olha no espelho, enxerga como um eu esfacelado. A
Portuguesa, ao ser refletida no espelho de três ângulos, torna-se consciente do
desdobramento do eu. Em outras palavras, as personagens lispectoriana vivem
à procura do autoconhecimento, tornado-se conscientes de que suas identidades
transitam entre o que são e o que os outros querem que sejam.
A personagem pode ser tomada como exemplo de apropriações metafóricas do mito de Narciso, suscitando uma reflexão sobre a constituição do sujeito
moderno. Além disso, possibilita a analogia entre essência e aparência/ verdade
e mentira, original e cópia, traços que revelam a natureza do duplo em Clarice
Lispector.
Nessa narrativa, o descentramento da personagem desperta para o eu e o
não-eu, o que contribui decisivamente para o desfecho. O que se observa é que
ela não consegue resolver seus conflitos, não se desprende da vida esvaziada,
embora ciente da incapacidade de resgatar a identidade perdida; é tanto que retoma sua vida sem questionamentos.
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3739
RESUMO
Este trabalho demarca o percurso trilhado para a produção da pesquisa intitulada
de Narrativa, Espaço e Tempo em Pedro e Lina, de Antônio de Santana Padilha, projeto no segmento Literatura/Teoria Literária. De antemão, consideramos o gênero
romanesco extremamente apto à elaboração de um conteúdo cujo teor central é o
caráter de formação e revisitação simbólicas de uma dada história. Deste modo, por
meio da análise da obra Pedro e Lina, buscou-se averiguar os possíveis recursos/
artifícios de que o escritor petrolinense Antônio de Santana Padilha se serviu para,
ao contrário do que aprioristicamente possa se perceber, compor um painel literário
cujo suporte baseia-se na efetuação de um resgate histórico-memorial da respectiva
cidade pernambucana de Petrolina. No presente caso, nosso enfoque maior centrou-se na construção de um panorama analítico que abarcasse tanto as questões
intrinsecamente estruturais da obra quanto os recursos sociolinguísticos presentes
no romance. Para tanto, recorremos à Teoria da Literatura aliada à Etnografia como
mecanismos de trabalho, por entendermos que a união destes campos do conhecimento auxilia de forma efetiva e gradual no saber do progresso sociocultural de um
determinado local e de sua respectiva população. A leitura de livros de diversos autores, assim como a observação minuciosa de materiais audiovisuais ligados ao tema
do projeto, terminou por alicerçar ainda mais o objetivo a que o projeto se destina.
Palavras-chave: Teoria literária, Etnografia, Romance.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
NARRATIVA, ESPAÇO E TEMPO EM PEDRO E
LINA, DE ANTÔNIO DE SANTANA PADILHA
Germano Viana Xavier (UPE)
Introdução
Narrativa, Espaço e Tempo em Pedro e Lina, de Antônio de Santana Padilha
é o título desta pesquisa, que discorre sobre as prováveis nuances ou marcas
linguístico-textuais que situariam a obra do escritor petrolinense Antônio de
Santana Padilha no que hoje se convenciona chamar, na esfera literária analítica,
de narrativa épica ou romance épico.
No intuito de operar um exercício de organização e aferição de informações histórico-narrativas presentes no único romance do autor referido, aliando
a isso uma espécie de confrontação dos dados adquiridos com os instrumentos
da análise e da criação literária, o presente estudo entra em contato direto com
o espectro da formação identitária de uma literatura regional preocupada não
somente em ser objeto de entretenimento, mas também de ser uma forma de
arquivamento do tempo histórico-humano.
Trata-se de uma pesquisa que pretende mostrar, através do estudo analítico
da obra Pedro e Lina, como se apresentam alguns dos recursos narrativo-linguísticos utilizados pelo autor Antônio de Santana Padilha em seu romance, e
que concedem à obra literária referida, mesmo que simbolicamente, um caráter
épico/de épica ou, num sentido mais abstrato, de epopeia, haja vista que o livro
conta uma história – ficcional – que auxilia na preservação da memória histórica
do município pernambucano de Petrolina, assim como a de seu povo.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Objetivos de análise
Embora o foco principal esteja voltado para a obra em si, o conhecimento
que envolve os estudos acerca da narrativa e da teorização da literatura faz-se de
extrema necessidade para a clareza de entendimento e resolução da questão em
evidência.
Para tanto, alguns questionamentos direcionam o campo de estudo até chegarmos ao ponto crucial: O que seria o gênero textual épico e/ou romanesco?
Como surgiram? Que acontecimentos históricos marcaram o início do gênero na
literatura mundial? Que características podem ser definidas como pertencentes
ao gênero narrativo e como elas são trabalhadas no romance Pedro e Lina, de
Antônio de Santana Padilha?
São objetivos fundantes deste trabalho: a) Identificar, a partir da análise do
livro Pedro e Lina, de Antônio de Santana Padilha, elementos inerentes ao gênero
textual épico/narrativo; b) Identificar variantes conceituais conexas aos termos
épico/épica/epopeia/narrativa/romance, tendo como base as teorias pré-existentes; c) investigar os aspectos sociais e históricos que ajudaram a fundação e a
organização estrutural do gênero romanesco, assim como suas ligações com a
literatura em geral; d) Compreender a inserção da obra Pedro e Lina, de Antônio
de Santana Padilha, no contexto da literatura dita regional; e) Verificar, a partir
de análises textuais, a presença de elementos linguístico-temáticos essenciais ao
universo da literatura romanesco-épica.
A significação do tema escolhido para o âmbito local, seu caráter de novidade, sua oportunidade e seus valores acadêmicos e sociais são demasiado evidentes, haja vista – como já fora mencionado aqui - o parco acervo documental
-histórico concernente à questão da literatura produzida na região do Vale do
São Francisco e, em especial, na cidade pernambucana de Petrolina, abrangendo
assim os seus principais sintomas positivos e negativos, suas maiores demandas,
tanto ao que tange à esfera da própria academia quanto ao debate social.
Um olhar geral sobre Pedro e Lina
Quando lemos um romance como Pedro e Lina, sem muito nos questionarmos acerca do que estamos pondo em desafio aos nossos olhos, apercebemo-nos
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Germano Viana Xavier
logo de que estamos diante de um texto estritamente literário ou, para ainda
mais abrangê-lo, artístico.
É com extrema fluidez de crítica que ficamos inteirados de que a literatura,
vista a partir da obra em questão, faz mesmo parte da cultura de um povo, e que
ela afirma, por si só, uma identidade ou uma ordem natural de coisas e acontecimentos em específico. Veloz, a palavra presente no romance Pedro e Lina recolhe
e provoca sensações de ordem estética, preocupada que é com sua função inerente de obra de arte.
Consciente da empreitada em que estava a investir firme o seu tempo, e decidido a contar uma história - ou senão a história - de sua cidade natal, o autor,
ainda nos dizeres de Moreira (2007), sozinho adentrou na memória de Petrolina,
descobriu papéis e velhos registros que fizeram com que aumentasse a preocupação já aflorada dentro de si no tocante ao papel histórico que sua obra poderia
agregar.
Moreira (2007), que teve a oportunidade de ler os originais da obra ainda
antes de ver a publicação vingar nos idos de 1980, relata no prefácio que:
Pedro e Lina é, sem dúvida, a obra-prima de seu Toinho Padilha, como
o chamam os mais chegados e amigos. Não só pela envergadura, um romance de 250 páginas no original, mas como ponto culminante de toda
sua produção anterior. (PADILHA, 2007, p.13)
O livro conta com um elemento pré-textual denominado de “Explicações”,
uma espécie de nota, curta, onde o autor Antônio de Santana Padilha traça um
breve perfil do histórico processo de mudanças de nomenclatura ao qual a cidade de Petrolina passou, empregando-lhe insinuações desde quando ainda era
conhecida simplesmente por “Passagem do Juazeiro”.
Ao final destas “Explicações”, o autor questiona a si mesmo e a quem lê,
dizendo: “E este livro, PEDRO E LINA, o que significa? O que pretende? O que
insinua? O que afirma?” (PADILHA, 2007, p.21). Quem lê se vê absorto, meio que
perdido, marcado pelas perguntas já tão penetrantes e de tão cedo surgimento.
Porém, como quem suspeita ou tenciona almejar um saber sobre devidos, o mesmo responde: “Nada. É apenas uma estória com ingredientes de ficção e realidade – o desejo de que tivesse acontecido assim.” (PADILHA, 2007, p.21).
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Abaixo das numerações, a presença constante de uma espécie de epígrafe
que, na presente obra, não passa de um conjunto de frases retiradas de dentro
dos respectivos capítulos, e que pretendem funcionar como um chamativo, podendo ser comparada a uma manchete jornalística por seus assemelhados efeitos de persuasão no conjunto do texto.
Assim justapostas, as epígrafes em Pedro e Lina ganham status de parte
ativa do texto e servem como pontos de partida para a execução da leitura, cumprindo com distinção suas funcionalidades particulares.
Veja os exemplos da primeira e da última epígrafe presentes na obra: “alguém percorre vereda estreita e sinuosa da caatinga sertaneja”. (PADILHA, 2007,
p.23); e:
Toda vez que frei Henrique dizia Pedro e Lina, sorria-se na assistência.
No seu acentuado sotaque italiano, na palavra Pedro, abria o som do e,
trocava a letra d por t e elidia a vogal final com o e da conjunção – pronunciava claramente: PETROLINA. (PADILHA, 2007, p. 337)
Afora isto, ainda num olhar sobre a superfície da obra, já de cara emerge
do romance um estilo que carrega o leitor na direção de uma internalização da
uma reflexão crítica no que acerca diversos fatores, proporcionando maior acesso leitor X obra, mesmo que este acesso signifique diálogos de dúvida para com
o universo pouco mítico e muito realista “criado” pelo autor.
Narrativa, espaço e tempo
Parece haver, desde os instantes iniciais da ação romanesca em Pedro e Lina,
uma tentativa de correção à disciplina literária dita erudita e, também, a sua
rigidez um tanto que monótona. Tais assertivas podem ser percebidas através
da assimilação do falar espontâneo que se mostra presente nos diálogos entre as
personagens do livro.
Expressões como “desculpe-me” dá lugar a “adiscurpe”, “filha” vira “fia”, “escapuliu” torna-se “inscapuliu”, a conjunção “e” cede seu posto para o som da letra
nordestinizada “i”, o verbo “assustar” perde o r e ganha acento agudo no a e fica
“assustá”, “sou” vira “sô”, “família” vira “famía”, “solteiro” fica “sorteiro”, só para
citar alguns exemplos.
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Germano Viana Xavier
No tocante a isto, SANT’ANNA (1979, p.19), reforça a ideia de que este tipo
de narrativa, de estrutura simplificada:
[...] tem muita vinculação com uma forma de narrar que repousa sobre a
oralidade e que se comporta de uma maneira ingênua, natural e primitiva. Tal narrativa revela muito interesse em endossar as formas convencionais de comportamento social e literário do que efetivar uma crítica
do sistema de ideias e de atitudes da comunidade. Por ser uma maneira
cômoda de contar, ela não chega a perturbar o público e o sistema.
Tal recurso linguístico de base sociológica e contextualizada aproxima a
obra de seus mais prováveis leitores - os petrolinenses e/ou leitores residentes
no Vale do São Francisco -, assim como enraíza de uma vez por todas as características essenciais aos personagens no que concerne à fidedignidade do modo
de discurso produzido nos diálogos e conversas da obra e, também, sua apresentação ao público letrado.
Ao invés de o emprego desse recurso se tornar um grave problema para
os âmbitos de valoração da obra de arte, que porventura acometem muitos dos
escritores conscientes e empenhados, não no propósito de germinação de neologias enfáticas, que passam fatalmente com as brisas e as modas, em Pedro e Lina
o autor investe numa arquitetura de conciliação do que se é falado e do que se é
impresso, do que se é escrito e do que ainda não atravessou a fronteira do inescrito, forjando assim uma aparelhagem que gera nuances de maior veracidade
e, quando não, de verossimilhança para com o que é natural à realidade por ora
descrita.
Pode-se colocar a narrativa de Pedro e Lina, tomando como base a conceituação e diferenciação feita por SANT’ANNA (1979), no espaço destinado ao que
o autor resolveu chamar de narrativa de estrutura simples, ou seja, aquela em
que os eventos narrados se organizam na esfera mais próxima da denotação, do
significado, do palpável.
Ainda de acordo com SANT’ANNA (1979), a narrativa de estrutura simples
diferencia-se da narrativa de estrutura complexa por estar atrelada ao mítico e
ao ideológico de tal forma que esboça uma intenção veemente em dar continuidade ao que é de ordem real ou se assemelha fielmente ao real.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
A narrativa de estrutura complexa é uma ruptura com o ideológico na
sua versão do real e distancia-se do mítico para se desenvolver no imaginário-em-aberto. É a narrativa centrada em si mesma situando-se no
pólo da conotação e do significante. (SANT’ANNA, 1979, p.18)
Já no longo primeiro parágrafo do primeiro capítulo da obra, o narrador nos
apresenta a geografia do local onde o personagem protagonista emprega uma
fuga precipitada e, ao mesmo tempo, dramática. É sem nenhum camuflamento
que várias características intrínsecas ao que se convencionou chamar de sertão
aparecem no texto.
A visualização facilitada de um espaço nada oblíquo, porém de agudeza
natural, fortalece o ímpeto de uma narrativa predominantemente regionalista,
regionalizante e regional, sem deixar nunca de ser ela espelho e retrato do mundo como um todo. Observe:
Tudo lhe é familiar: os caminhos, as árvores, os animais. Passa debaixo
de um umbuzeiro folhudo, pejado de frutos verdes e amarelos, o chão
lastrado, o ar impregnado do odor adocicado e azedo das frutas podres.
Assusta-o, adiante, o vôo inesperado, quase aos seus pés, de uma codorniz. Instintivamente pega na espingarda, que leva a tiracolo, hábil e
rápido, no tiro, como era. A ave, porém, já estava longe e ele tinha que
andar. Agressiva e barbuda, moita de xiquexique lhe barra o caminho,
mas não lhe custa contorná-la. O hábito de procurar cortiços fá-lo parar
debaixo de uma umburana, examinando os galhos grossos, à caça de
abelhas. (PADILHA, 2007, p.23)
Na visão de Dimas (1987), a exposição exagerada de certos elementos pertencentes ao enredo da narrativa tanto podem dificultar a adesão à leitura quanto, também, ser um motivo a mais para a sua repulsa. O espaço visto no início
da obra Pedro e Lina, por não estar diluído no interior da narrativa, obtém papel
primordial no texto.
O espaço em Pedro e Lina é um capítulo à parte, destoa de todo o complexo
literário restante que forma o romance. A observação e adentramento do leitor o
quanto antes na atmosfera geográfica requerida por Antônio de Santana Padilha
em sua obra favorece por demais o desenvolvimento de uma compreensão mais
eficaz e nítida acerca da proposta do livro.
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Para verificação de tais afirmações, eis como se apresenta o primeiro período do primeiro capítulo de Pedro e Lina:
Alta madrugada, guiando-se pela luz das estrelas, caminhando cautelosamente por dentro do mato, vencendo a galharia agressiva das ramadas espinhentas, a macambira rasteira lhe mordendo os calcanhares e
as fitas verdes de caroá lhe abarcando as pernas, (queriam retê-lo) alguém percorre vereda estreita e sinuosa da caatinga sertaneja, por onde
transitam somente animais. (PADILHA, 2007, p.23)
Destarte, pode-se aferir que a questão espacial em Pedro e Lina é, desde seu
início, fator “prioritário e fundamental no desenvolvimento da ação, quando não
determinante”. (DIMAS, 1987, p.06)
O aparecimento de marcas regionais nitidamente vinculadas à região nordeste do Brasil reforça ainda mais os tons de uma espacialidade dita sertaneja,
determinada por uma ordem natural que se insinua inimiga ao andar diário do
homem. Expressões como “macambira”, “caroá”, “juremal”, “xiquexique” e “ calumbis” introduzem o sujeito-leitor, quase que instantaneamente, numa ampla
esfera de significações concernentes a um dado panorama geográfico, ou seja,
acabam por demarcar o solo próprio do sertão e, por consequência, do sertanejo
e seus semelhantes.
Rezas, curandeirismo, o hábito de fazer beberagens, o uso de animais para
o transporte pessoal ou de carga, os armamentos rudes de caça e defesa, entre
tantos outros aspectos, tudo fortifica a ideia de uma tradição cultural marcadamente popular, traço de uma determinada região brasileira, fato que aumenta o
caráter de verismo e/ou verossimilhança da obra.
Neste tipo de geografia literária, o que está em pauta não é a visão de
mundo transfigurada e remodelada pelo artista, capaz de dotar a realidade histórica de atributos outros que não os simplesmente exteriores,
mas, antes, a insistência em localizar o modelo que funcionou como
ponto de partida. (DIMAS, 1987, p.07)
A princípio, estes exercícios fotográficos extremamente realistas empreendidos em Pedro e Lina podem soar como qualquer coisa, menos com literatura.
Porém, como diz Dimas (1987, p.08): “Não se trata, no entanto, de desmerecê-los
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
pura e simplesmente, mas de enquadrá-los numa perspectiva correta, a fim de se
evitar uma valorização inadequada”.
Acerca da modelagem físico-criativa usada por Padilha em Pedro e Lina,
SANT’ANNA (1979, p. 20) esclarece que:
O processo de endosso do mítico através do ideológico testifica-se pelo
artifício da reduplicação dos modelos da narrativa. Afastados os ingredientes exteriores e aspectuais, tirada a máscara dos personagens, subjaz uma mesma estrutura que repousa num maniqueísmo que visa ele
mesmo ser um preenchimento de um vazio. Estipulando um mundo de
mais ou menos, de positivo e negativo, claro e escuro, sonho e realidade,
e muitas outras variantes [...].
O que marcará definitivamente o caráter literário ou não de uma obra escrita não é o que nela está contida, mas sim de que forma os elementos estruturantes de uma respectiva literariedade foram arrumados ou agrupados em si, assim
como a sua preocupação com a estética artística em geral, a provocação sensorial
e emotiva que é capaz de despertar.
Até porque, como diria MONTELLO (1980, p.03), “ao ler um romance, uma
poesia ou conto, incorporamos à nossa consciência a experiência do romancista,
do poeta ou do contista, além de apreciamos a maneira por que exprimiu a sua
experiência”.
No respectivo caso, é a imaginação do autor quem serve de guia ao leitor,
mesmo este já tendo conhecimento prévio do local onde a narrativa se desenrolará.
A imaginação não descansa na contemplação da superfície do real e no
arranjo dos seus componentes; ao invés, responde ao desafio do caos
em todas as esferas onde se encontra: somente poderosas imaginações
são capazes de aceitar o repto e sair ilesas do combate com a anarquia
do mundo. Quando o conseguem, recriam um caos simultâneo ao do
mundo, onde o leitor culto se debruça para melhor compreender-se e
compreender a realidade circundante. Realiza-se, desse modo, o superior destino do romance e da própria arte literária como forma de conhecimento. (MOISÉS, 2006, p.341)
Todavia, há sim marcas ostensivas de um espaço geográfico bastante conhecido dos petrolinenses de todas as gerações, ou melhor, de todos os nordestinos.
Pode-se verificar a similaridade do que é narrado na obra com os modos de vida
3748
Germano Viana Xavier
ainda cultivados na região, em maior ou menor grau, mesmo após mais de cem
anos de emancipação da cidade e de quase trinta anos de publicação da primeira
edição do romance, através desta passagem do segundo capítulo do livro:
Logo mais, de remo em punho, cavalgava o rio, alimária diferente das
que domava no interior, homem do mato que era. O rio, porém, para ele,
não era um estranho. Se havia seca no sertão, acabavam as pastagens,
secavam as aguadas, salvava-se o gado nas roças do rio. Aí, o homem do
interior, na faina diária, se tornava homem beiradeiro. Aprendia plantar
de vazante, pescar de anzol, de fojo, de tarrafa e, o principal, remar e
dirigir uma embarcação. (PADILHA, 2007, p.27)
O rio fica evidente diante do que lhe acontece ao redor. Assim o é para boa
parte dos viventes da região, pescadores e ribeirinhos. O rio São Francisco, que
nasce em Minas Gerais e parece um mundo d’água sem fim, que acoberta muitas
almas ao longo de suas margens, forja uma espécie de homem dotada de qualidades intrínsecas e por demais adequadas ao ambiente.
Literatura e não-literatura, como afirma Amora (1977, p.49), “são maneiras
muito diferentes de expressar a realidade, e não querem incorporar a seu espírito
uma expressão da realidade, sem saber da natureza e do valor dessa expressão”.
As concepções marcadamente distintas de realidade subjetiva e física, intuitiva e racional-universal, são provas mais do que suficientes para se poder
apontar, com toda certeza, que o romance Pedro e Lina, mesclando uma realidade essencialmente psicológica com outra percebida pelos órgãos sensoriais e/ou
emotivos, e enveredando-se por um caminho onde a realidade exposta é fruto
não só de uma experienciação coletivizada e comum, como também de um olhar
profundamente individual e imaginado, sem nenhuma espécie de constrangimento conceitual, pode ser situado no mais transparente dos campos literários.
O romance moderno (re)produz o real como caos, porque sabemos que
ele assim se apresenta e que somente se organiza por um esforço imaginativo ou racional. Mais ainda: a imaginação depara, nessa conjuntura,
com sua máxima dificuldade, porquanto se vê impelida a (re)produzir
a anarquia do mundo, a divisar o fragmentário da realidade e a transpô
-lo, não como reflexo num espelho, mas como criação de um universo
paralelo: a Literatura, sabemo-lo bem, é a criação de uma para-realidade. (MOISÉS, 1967, p.341)
3749
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Padilha, sem sombra de dúvidas, deixa evidente que é conhecedor nato do
saber intuitivo e individual usado em toda a composição do romance, seja no que
está inteiramente ligado ao fator espacial, seja com relação à caracterização das
personagens e suas ações.
Acerca deste saber, AMORA (1977, p. 51) infere:
O conhecimento intuitivo e individual é aquele que cada um de nós
tem, naturalmente, dos fatos e das coisas: sabemos o que se passa dentro de nós (sentimentos, idéias, imaginação) e em volta de nós (o comportamento das pessoas, fenômenos naturais e sociais, etc.) – e tudo
isso somos capazes de expressar, a viva voz ou por escrito. Ora, o mesmo ocorre com um escritor e, por isso, dizemos que sua obra (como
qualquer obra de arte) expressa seu conhecimento individual e intuitivo
da realidade.
Em Pedro e Lina, são duas narrativas que caminham dentro do mesmo espaço de criação literária. O tempo narrativo é marcado por duas partes, que caminham separadas e unidas ao mesmo tempo.
O primeiro impacto dessa proposital repartição ocorre logo no terceiro capítulo da obra, quando o narrador, depois de iniciar contando a história do ponto de
vista do fugitivo, até então sem nome revelado, volteia para a lida do personagem
Norberto, que se encontra numa fazenda em um de seus primeiros dias de trabalho.
Norberto é um vaqueiro e cuida de seus afazeres, mostrando aptidão para
com o domínio de suas tarefas no campo. Observe como se dá a abertura do
primeiro parágrafo do terceiro capítulo da obra, primeira puxada do autor para
o outro plano da narrativa:
Ainda estava escuro quando terminou de tirar o leite das vacas, no curral; enxotou os bezerros para a manga, soltou as vacas para o mato e
levou as vasilhas do leite para casa. Chegado de pouco, vaqueiro novo na
Tiririca, adaptando-se às coisas e aos serviços, Norberto acordara muito
cedo, como era do seu costume. Ia campear pela primeira vez, conhecer
as terras da propriedade, dar uma olhadela no gado, lá no campo. Apanhou o cabresto, fechou a porta da casa, solteiro que era, morava sozinho, tendo como companheiros, em casa, o cachorro Pixote e no campo
o cavalo Ventania, ambos procedentes, como ele, de Flores, e com quem
dividia o êxito da sua profissão de vaqueiro. (PADILHA, 2007, p.31)
3750
Germano Viana Xavier
Ao final do terceiro capítulo, Norberto avista uma mulher na margem oposta do açude ao qual se dirigia a cavalo. É assim, quando menos se está a esperar,
que Padilha utiliza-se de mais uma de suas artimanhas para conquistar a fidelidade da leitura de seu romance.
Nunes (1988) aproxima o gênero épico do dramático com relação ao tempo,
pois estes colocariam o leitor a todo instante diante de eventos múltiplos e multifacetados, cujas experiências são vividas pelos personagens, sejam de forma
passiva ou de maneira mais ativa.
O fator temporal em Pedro e Lina vem de tal modo misturado às ações e
eventos do romance que termina por impulsionar a narrativa para um outro local – exercendo, por mecanismos próprios, um deslocamento contínuo e natural
- dentro da própria trama que de certo modo pode-se dizer que representa uma
ligação quase que congênita ao desenvolvimento de todo o restante da estrutura
da obra do escritor petrolinense.
Nessa partilha temporal, é evidente a marcação de movimentos dispersos
e irregulares – incongruentes. As personagens movimentam-se em espaços de
tempo diferentes – mesmo estando no mesmo território -, o que faz com que sejam gerados intervalos e sucessões inconstantes entre um e outro capítulo.
Por falar em quebra e ruptura, a presença da pluralidade de espaço e de tempo no romance Pedro e Lina pode ser conferida novamente no início do capítulo
de número IX, onde se reintroduz a ação que se passa com o fugitivo, em meio
ao rio e suas braçadas em remações, rompendo de chofre com as reminiscências
a que D. Idalina estava a se recordar, sentada em meditação, de quando ainda era
moça e foi tomada pela paixão através do Capitão Jacinto.
Observe como se dá a abertura do nono capítulo da obra:
As margens sombrias e as ilhas desertas, ora estreitando, ora alargando
o rio, comprimindo-os sobre o labirinto das pedras, afloradas ou submersas, por onde a canoa manobrava, deslizando, rio acima, de madrugadinha, continuavam sendo o caminho e a rota do fugitivo, que remava obstinadamente, sem esmorecer, sem fraquejar, na idéia fixa da fuga.
(PADILHA, 2007, p. 51)
Há, portanto, a visualização de uma cronologia partida, constituída em quebras. Todavia, é inteligente saber que a produção dessas quebras, a fomentação
3751
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
destes interlúdios temporais dentro do romance Pedro e Lina não se dá de modo
aleatório, mas sim proposital.
Sobre isso, provavelmente explicando o caso da inserção de um tempo peculiar ao autor do romance, NUNES (1988, p.17) elucida: “Direta ou indiretamente, a experiência individual, externa e interna, bem como a experiência social ou
cultural, interferem na concepção do tempo”. Antes de qualquer outro modo de
tempo de narrativa, é uma marcação temporal-lingüística que encaminha todo
o decorrer do romance.
Acerca destes paralelos, NUNES (1988, p. 22) vai dizer:
[...] o tempo linguístico, tempo do discurso, que não se reduz às divisões
do tempo cronológico, revela a condição intersubjetiva da comunicação
linguística. Suas divisões próprias, inteligíveis no ato de execução da
fala, dentro do intercâmbio linguístico (como o “hoje”, ou o “agora”, proferidos em qualquer momento), atualizam-se no texto escrito juntandose às coordenadas espaço-temporais que o tempo cronológico fornece.
O protagonista, apesar de tudo a ele parecer familiar, tem sua atenção requerida ao extremo em diversos acontecimentos. A agreste geografia da narrativa é um lugar já determinado e, por conseguinte, determinante. O protagonista
parece estar imiscuído dentro dela, senão ser dela parte fundante. Ele está devidamente armado, ora com machado ora com espingarda, realiza ataque a animais silvestres, espanta-se consigo mesmo, dialoga com o que lhe rodeia, produz
discursos mesmo silenciosos ou inaudíveis.
Todo personagem do romance Pedro e Lina, seja ele qual for e onde estiver
atuando, possui um papel imprescindível no que tange à marcação do tempo da
narração. São eles que conduzem o leitor pelo largo vergel das eventualidades
criadas por Padilha, são eles que demarcam as operações que irão ser justapostas no próximo capítulo, são os personagens que, de uma maneira ou de outra,
guiam em retrospectiva todas as singularidades da trama e de seu tempo ficcional ativo-passivo.
Dando continuidade à assertiva de Nunes (1988), vemos que ele também
ratifica a ideia de que é nos personagens que está a maior fonte de organização
temporal, principalmente se o texto for de caráter narrativo.
3752
Germano Viana Xavier
É a partir dos personagens, dos enunciados a respeito deles ou daqueles
que proferem, que fica demarcado o presente da enunciação: os dêiticos,
hoje, amanhã, depois, funcionam dentro de um intercâmbio linguístico
que se passa entre esses interlocutores, e sem o qual o enquadramento
cronológico seria um molde abstrato. O tempo linguístico dependerá
do ponto de vista da narrativa, seja da visão onisciente ou impessoal, de
proximidade ou de participação (narração em terceira pessoa) do narrador sobre os personagens, seja de sua visão identificada com um deles
(narração em primeira pessoa). (NUNES, 1988, p. 22-23)
O tempo físico é o imperativo na obra – ou melhor, o que mais destoa –,
enquanto que o tempo psicológico, de ordem mais subjetiva e qualitativa, encarcera-se no todo temporal, aparecendo e sublimando no interior subjetivo das
personagens inúmeras vezes durante a passagem dos eventos.
O tempo em Pedro e Lina é também histórico, sem marcação cronológica
dos acontecimentos, e representa “a duração das formas históricas da vida” (NUNES, 1988, p.21).
De um modo geral, durante todo o decorrer do enredo do romance Pedro e
Lina, de Antônio de Santana Padilha, as características basais não extrapolam as
diretrizes analisadas e expostas até aqui. Pouco há de variação no que governa os
principais elementos do livro, a citar a narrativa, o espaço e o tempo e, também,
os personagens. Portanto, com uma pausa neste ponto, o leitor terá, sem grandes
perdas para a compreensão da obra, o sumo interpretativo de toda a análise, ou
seja, o que é essencial.
Considerações finais
Narrativa, Espaço e Tempo em Pedro e Lina, de Antônio de Santana Padilha
é uma provocação àqueles que reduzem o que é de ordem local, aos que abafam
os triunfos culturais regionais, quase sempre desprezando a inestimável capacidade que alguns de nossos artistas têm de, bulindo ou não com a realidade,
construir um universo verdadeiro-verossímil onde a identidade histórica de um
lugar e/ou povo é preservada com eficiência.
Fica perceptível a aproximação existente entre o livro Pedro e Lina, de Antônio de Santana Padilha, e o universo da narrativa dita épica, simplesmente
3753
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
por se poder visualizar, dentro do enredo, a narração de um conjunto de fatos,
misturadamente extraordinários, reais e fabulosos, envolvendo feitos “heroicos”
cujos personagens e eventos ajudam a compor um panorama histórico coletivo,
mesmo que muito ainda embrenhado num imaginário essencialmente particular, a saber, o do autor.
Assim, evidencia-se também a questão acerca do que viria a ser o gênero
textual épico e/ou romanesco. O diálogo com os diferentes autores, entre teóricos e críticos da literatura, pode explicitar suas origens e, também, apontar
quais acontecimentos de cunho histórico tiveram participação fundamental na
gênese do gênero na esfera da literatura mundial. A pontuação analítica de três
elementos do épico – narrativa, espaço e tempo – fortificaram o pertencimento
do romance Pedro e Lina à categoria de romance épico.
A identificação e o posterior estudo dos três elementos inerentes ao gênero
textual épico/narrativo, assim como a verificação da presença de diferentes variantes conceituais ligadas aos termos épico/épica/epopéia/narrativa/romance,
fizeram com que aspectos sociais e históricos intrinsecamente relacionados à
cidade de Petrolina pudessem ser mais bem observados, num esforço de unir
os olhares da etnografia à literatura. Deste modo, mais fácil é compreender a
inserção da obra Pedro e Lina, de Antônio de Santana Padilha, no contexto da
literatura regionalizada.
Referências
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3754
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VERNANT, J.P. As origens do pensamento grego. Trad. I.B.B. Fonseca. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 7ª ed., 1992.
3755
RESUMO
O subprojeto O estudo do texto dramático e da peça O auto da Compadecida, de
Ariano Suassuna faz parte do projeto O estudo do texto dramático, do Prof. Dr. Eduardo Henrique Cirilo Valones, elaborado para o Programa de Iniciação Científica
da UEPB, cota 2014-2015, e visa promover a participação do discente no processo de
produção científica, bem como proporcionar o início de sua formação como pesquisador. As discussões teóricas sobre o teatro e seus diferentes aspectos vêm começando a ganhar um sentido mais aprofundado, através de algumas teses universitárias
e de alguns estudos críticos por parte de especialistas. Com base nesse fato, se faz
necessário estudar esta arte milenar no que concerne a análise literária do texto teatral enquanto escritura. Assim, o principal objetivo deste projeto é apresentar tanto
os resultados obtidos ao longo de nossa pesquisa, como as experiências adquiridas
e descobertas realizadas na área de Literatura, uma vez que abordaremos as perspectivas do estudo do texto teatral enquanto obra literária e em paralelo com fundamentos da dramaturgia. Esperamos a partir daí, estabelecer diálogos entre o texto
literário e as teorias da dramaturgia, a fim de expor nossa análise e os processos de
pesquisa acerca do texto teatral brasileiro O auto da compadecida, de Ariano Suassuna.
Palavras-chave: Ensino de literatura, Letramento literário, Poesia.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
O ESTUDO DO TEXTO DRAMÁTICO E DA PEÇA
O AUTO DA COMPADECIDA DE ARIANO SUASSUNA
Eduardo Henrique Cirilo Valones (UEPB)
Tereza Eliete de Oliveira Fernandes Ribeiro (UEPB)
Identificação da proposta
O projeto O estudo do texto dramático, elaborado para o Programa de Iniciação Científica da UEPB, visa promover a participação do discente no processo de produção científica, bem como proporcionar o início de sua formação
como pesquisador, incentivando-o a continuação com participações em eventos
científicos, seja apresentando trabalhos ou contribuindo nas discussões sobre
o tema com outros pesquisadores. Entretanto, o objetivo maior é dar ensejo,
através das técnicas e métodos de pesquisa, o estímulo necessário para o desenvolvimento do pensar cientificamente, decorrentes das condições criadas
pelo confronto direto com os problemas de pesquisa, e, assim, estimular o seu
ingresso nos cursos/programas de Pós-Graduação nos níveis de especialização,
mestrado e doutorado.
A atuação do referido projeto será na área de Literatura, uma vez que abordaremos o estudo do texto teatral enquanto obra literária. Para isso, verificaremos que o texto dramático escrito tem autonomia literária. Aristóteles, por
exemplo, considera que a tragédia, mesmo sem representação cênica e sem atores, pode manifestar seus efeitos. Para o filósofo grego, “a tragédia existe por si
independente da representação e dos atores” 1. Dessa forma, já justificamos nossos
1. ARISTÓTELES. Arte retórica e Arte poética. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.], p 248.
3757
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
objetivos e a pertinência de nossas análises literárias. Subentendemos dessa forma que é pertinente nosso projeto estudar o texto dramático enquanto escritura
e proceder a análises literárias ao mesmo, haja vista sua autonomia literária.
Dessa forma, esse projeto vai iniciar dois pesquisadores, os quais futuramente poderão juntar-se a outros para apresentarem estudos e ensaios a outros
pesquisadores nessa área em congressos e eventos, tornando-os cada vez mais
considerável.
Qualificação do principal problema a ser abordado
No Brasil, a reflexão crítica sobre a arte dramática cresceu consideravelmente nas últimas décadas. As discussões teóricas sobre o teatro e seus diferentes
aspectos vêm começando a ganhar um sentido mais aprofundado, através de
algumas teses universitárias e de alguns estudos críticos por parte de especialistas, conforme aponta Renata Pallottini. Com base nesse fato, se faz necessário
estudar esta arte milenar no que concerne a análise literária do texto teatral
enquanto escritura.
Na Universidade Estadual da Paraíba, Campus III, em Guarabira, encontra-se graduandos em Letras ansiosos para desenvolver estudos nessa área,
visto que se trata de uma nova perspectiva de encarar a análise literária. Por
isso é pertinente se estudar, de modo, autônomo, o texto teatral escrito. Esse
tipo de análise é baseado em reflexões de críticos literários que trataram do assunto. Nossa intenção é obter conhecimento para desenvolver estudos de textos de peças teatrais conhecidas para ampliarmos os temas de monografias ao
término de curso. Sem contar que, através desse projeto, se formará um grupo
de pesquisa que desenvolverá ensaios relativos ao tema para apresentá-los em
congressos e eventos.
Nossa proposta tem por objetivo examinar detidamente a construção da
ação e das personagens na Dramaturgia Moderna, reconstituindo a origem e a
estrutura da Tragédia, uma vez que é nesse gênero literário que se encontram
as raízes do Dramaturgia Moderna, a qual pertence O auto da compadecida, de
Ariano Suassuna, peça que iremos analisar. Pretendemos observar as diferenciações que ocorreram, ao longo do tempo, na sua composição, como também sua
transmutação. Não iremos tratar exaustivamente de todas as mudanças ocorri3758
Eduardo Henrique Cirilo Valones, Tereza Eliete de Oliveira Fernandes Ribeiro
das durante os últimos séculos. Deter-nos-emos naquelas mais importantes e
fundamentais para um bom entendimento dos elementos da ação e das personagens do auto escrito por Suassuna. É importante, nessa trajetória, destacarmos
alguns fatores sociais que contribuíram para essa mudança no gênero. Com esta
pesquisa, procuraremos ter dados suficientes para evidenciar, nos corpus do projeto, como se dá a construção da ação e do herói nessas modernas peças.
A importância da análise de Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, é
que se trata de uma peça clássica do teatro brasileiro, escrita em 1955 e publicada
em 1957. Virou minissérie de televisão e ganhou versões para o cinema. Abordando temas universais como a avareza humana e suas amargas consequências,
por meio de personagens populares, a obra é igualmente uma reflexão sobre as
relações entre Deus e os homens: um milagre de Nossa Senhora, como os medievais, apresentado sob a forma de uma pantomima de circo. Há ainda em Auto
da Compadecida, a realização de uma magnífica síntese de duas tradições: a dos
autos da era medieval e a da literatura picaresca espanhola. Na era medieval, a
cultura era indissociável da religião, mesmo porque a Igreja controlava tudo com
mão de ferro. A tradição da literatura picaresca espanhola vem da cultura popular e chega ao ápice no Dom Quixote, de Cervantes.
Então, tendo em vista a importância do estudo teatral e da obra corpus do
projeto, afirmar que o texto dramatúrgico deve ser entendido como uma obra em
processo, isto é, inacabado ou não absoluto, levanta importantes questões epistemológicas, que necessitam de uma maior sistematização por parte daqueles
que se interessam pela crítica literária. O olhar sobre um texto teatral propõe, do
ponto de vista metodológico, abandonar o paradigma do teatro enquanto apenas
ação, para em seguida criar um outro, isto é, do texto enquanto obra aberta.
Umberto Eco em seu livro Obra Aberta debate exaustivamente e calorosamente o tema da pluralidade de significados de uma obra de arte. Para o autor,
“A poética da obra ‘aberta’ tende [...] a promover no intérprete ‘atos de liberdade
consciente’, pô-lo como centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis”2. Segundo Eco, mesmo a obra “acabada”, “fechada”, é também aberta, na medida que
serve a inúmeras interpretações. Cada fruição é uma interpretação e uma execu-
2. ECO, Umberto. Obra Aberta. 8.ed. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 41.
3759
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
ção, pois em cada fruição uma obra revive dentro de uma perspectiva original.
É a partir desta constatação de Eco que iremos refletir sobre possíveis caminhos
metodológicos para se interpretar e analisar um texto dramático, enquanto obra
aberta a análise literária.
Objetivos e metas a serem alcançados
• Realizar leituras acerca do tema literatura e dramaturgia;
• Ministrar seminários sobre os resultados das leituras do tema literatura e dramaturgia;
• Proceder a processos de pesquisa e análises do texto teatral brasileiro O auto da compadecida, de Ariano Suassuna;
• Participar de eventos ou congressos específicos na área e do XXII
ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UEPB e, com resultados das pesquisas e análises obtidas, apresentar trabalhos, ministrar
minicursos e publicar nos Anais do evento.
Metodologia a ser empregada
Primeiramente, procurar-se-á adquirir referência bibliográfica necessária
para o estudo do texto teatral, como os títulos inseridos na bibliografia. Depois
criaremos um grupo de pesquisa para o estudo desses textos, entre os alunos
da graduação em Letras da UEPB, campus III, Guarabira. Nesse aspecto, farão
parte do grupo, além do orientador, os dois alunos candidatos ao programa
(bolsista e voluntário) interessados em fazer estudos para participar de eventos na área, monografias relativas ao final do curso e outros tipos de interesse
como uma pós-graduação. Iniciaremos estes pesquisadores no programa com
o intuito de aprofundá-los nas pesquisas exigidas pelos objetivos do projeto.
Depois, realizaremos leituras acerca do tema literatura e dramaturgia. Com os
resultados das leituras destes temas, procuraremos ministrar seminários em
eventos específicos para esse fim com as principais conclusões sobre literatura
e dramaturgia. Procederemos então com esse grupo processos de pesquisa e
análises de textos dramáticos brasileiros, nesse caso, O auto da compadecida,
de Ariano Suassuna. Dessa forma, poderemos participar de eventos, congressos
3760
Eduardo Henrique Cirilo Valones, Tereza Eliete de Oliveira Fernandes Ribeiro
e ministrar minicursos com resultados das pesquisas e análises obtidas. Além
disso, participaremos dos encontros de Iniciação Científica previstos pela Instituição, bem como apresentaremos seus resultados de pesquisa em eventos da
própria Universidade e outros eventos também de mesma natureza que, por
ventura, acontecerem no período.
Principais contribuições e impactos esperados da proposta
Os resultados e contribuições esperados irão se mostrar a partir do momento da implementação do projeto, pois irá fortalecer as discussões na construção
de sujeitos sociais conscientes de seu papel para a análise literária, garantindo
que, com os estudos sobre o tema, irão alcançar as metas e objetivos do projeto,
por meio da leitura de textos teóricos de diferentes tipos sobre Literatura e Dramaturgia, através dos quais irão obter informação, organizar o conhecimento e
aceder para o universo da análise literária. Assim os orientandos irão:
•
•
•
•
•
Compreender melhor o universo da Literatura e Dramaturgia;
Ter um conhecimento amplo sobre a Análise Literária;
Tornar mais abrangente seu vocabulário;
Ampliar sua técnica de análise de textos literários;
Produzir textos para apresentação de trabalhos e publicações.
Publicações previstas oriundas da pesquisa.
Estão previstas para o interstício deste projeto pelo menos duas publicações. Uma referente à participação dos alunos na VI SEMANA DE HUMANIDADES – A Formação de professores e o direito a Educação, a ser realizada no
Centro de Humanidades – Campus III – Guarabira, de 27 a 30 de outubro de 2014.
Neste evento procuraremos publicar tanto resumos como trabalhos completos
nos Anais programados para ocasião. A outra nos Anais do evento específico do
Programa de Iniciação Científica da UEPB, o XXII ENCONTRO DE INICIAÇÃO
CIENTÍFICA DA UEPB, a ser realizado em 2015, em data a ser definida oportunamente pela PRPGP.
3761
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Cronograma das atividades da pesquisa
As atividades serão realizadas nas Terças, Quintas e Sextas-Feiras, no período da tarde. Procuraremos obedecer a um calendário sistemático de execução
de atividades específicas de forma esquematizada para que se atinja os objetivos
da proposta.
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RESUMO
O subprojeto O estudo do texto dramático e da peça O berço do herói, de Dias Gomes faz parte do projeto O estudo do texto dramático, do Prof. Dr. Eduardo Henrique Cirilo Valones, elaborado para o Programa de Iniciação Científica da UEPB, cota
2014-2015, e visa promover a participação do discente no processo de produção científica, bem como proporcionar o início de sua formação como pesquisador. As discussões teóricas sobre o teatro e seus diferentes aspectos vêm começando a ganhar
um sentido mais aprofundado, através de algumas teses universitárias e de alguns
estudos críticos por parte de especialistas. Com base nesse fato, se faz necessário estudar esta arte milenar no que concerne a análise literária do texto teatral enquanto
escritura. Assim, o principal objetivo deste projeto é apresentar tanto os resultados
obtidos ao longo de nossa pesquisa, como as experiências adquiridas e descobertas realizadas na área de Literatura, uma vez que abordaremos as perspectivas do
estudo do texto teatral enquanto obra literária e em paralelo com fundamentos da
dramaturgia. Esperamos, a partir daí, estabelecer diálogos entre o texto literário e
as teorias da dramaturgia, a fim de expor nossa análise e os processos de pesquisa
acerca do texto teatral brasileiro O berço do herói, de Dias Gomes.
Palavras-chave: Literatura, Dramaturgia, O berço do herói.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
O ESTUDO DO TEXTO DRAMÁTICO E DA PEÇA
O BERÇO DO HERÓI DE DIAS GOMES
Eduardo Henrique Cirilo Valones (UEPB)
Genivaldo Soares Da Silva Neto (UEPB)
Identificação da proposta
O projeto O estudo do texto dramático, assim como o estudo do texto dramático e da peça O berço do herói, de Dias Gomes, elaborados para o Programa
de Iniciação Científica da UEPB, visam promover nossa participação no processo de produção científica, bem como proporcionar o início da formação como
pesquisador, incentivando a continuação com participações em eventos científicos, seja apresentando trabalhos ou contribuindo nas discussões sobre o tema
com outros pesquisadores. Entretanto, o objetivo maior é dar ensejo, através
das técnicas e métodos de pesquisa, o estímulo necessário para o desenvolvimento do pensarmos cientificamente, decorrentes das condições criadas pelo
confronto direto com os problemas de pesquisa, e, assim, estimular nosso ingresso nos cursos/programas de Pós-Graduação nos níveis de especialização,
mestrado e doutorado.
A atuação do referido projeto será na área de Literatura, uma vez que abordaremos o estudo do texto teatral enquanto obra literária. Para isso, verificaremos que o texto dramático escrito tem autonomia literária. Depois dar-se-á procedimentos de análise literária no texto da peça O berço do herói, de Dias Gomes.
3767
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Qualificação do principal problema a ser abordado
No Brasil, a reflexão crítica sobre a arte dramática cresceu consideravelmente nas últimas décadas. As discussões teóricas sobre o teatro e seus diferentes
aspectos vêm começando a ganhar um sentido mais aprofundado, através de
algumas teses universitárias e de alguns estudos críticos por parte de especialistas, conforme aponta Renata Pallottini. Com base nesse fato, se faz necessário
estudar esta arte milenar no que concerne a análise literária do texto teatral
enquanto escritura.
Na Universidade Estadual da Paraíba, Campus III, em Guarabira, encontrase graduandos em Letras ansiosos para desenvolver estudos nessa área, visto que
se trata de uma nova perspectiva de encarar a análise literária. Por isso é pertinente se estudar, de modo, autônomo, o texto teatral escrito. Esse tipo de análise
é baseado em reflexões de críticos literários que trataram do assunto. Nossa intenção é levar conhecimento para os alunos da graduação em Letras desenvolver
estudos de textos de peças teatrais conhecidas para ampliar os temas de monografias ao término de curso. Sem contar que através desse projeto se formará um
grupo de pesquisa que desenvolverá ensaios relativos ao tema para apresentá-los
em congressos e eventos.
Nossa proposta tem por objetivo examinar detidamente a construção da
ação e das personagens na Dramaturgia Moderna, reconstituindo a origem e a
estrutura da Tragédia, uma vez que é nesse gênero literário que se encontram
as raízes da Dramaturgia Moderna, a qual pertence O berço do herói, de Dias
Gomes, peça que iremos analisar. Pretendemos observar as diferenciações que
ocorreram, ao longo do tempo, na sua composição, como também sua transmutação. Não iremos tratar exaustivamente de todas as mudanças ocorridas durante
os últimos séculos. Deter-nos-emos naquelas mais importantes e fundamentais
para um bom entendimento dos elementos da ação e das personagens do drama
escrito por Gomes. É importante, nessa trajetória, destacarmos alguns fatores
sociais que contribuíram para essa mudança no gênero. Com esta pesquisa, procuraremos ter dados suficientes para evidenciar, nos corpus do projeto, como se
dá a construção da ação e do herói nessas modernas peças.
O berço do herói reside no grau de importância de seu autor, Dias Gomes, que
se destacou tanto em peças teatrais como em novelas e minisséries. O conjunto
3768
Eduardo Henrique Cirilo Valones, Genivaldo Soares Da Silva Neto
dele é vasto, diverso e multiforme. Por isso, tem sido bem estudado em teses
e dissertações universitárias. Ao lado de dramaturgos como Nelson Rodrigues,
Gianfrancesco Guarnieri, Paulo Pontes, Chico Buarque de Holanda, entre outros,
Dias Gomes colaborou com a arte teatral no Brasil, com produções premiadas
no cenário nacional e internacional. A peça O berço do herói foi escrita em 1965,
mas, como Brasil passava pela ditadura militar, duas horas antes da estreia, foi
proibida pela censura. Mais tarde, com o nome de Roque Santeiro, quase virou
novela, mas também foi censurada. Toda essa perseguição deve-se ao fato da
peça abordar o tema do mito [herói militar], desconstruindo esse mito. Esse era
um tema muito delicado para o momento que atravessava o país. Somente em
1985, já com o processo de democratização, a novela foi ao ar, alcançando grande sucesso e tornando personagens inesquecíveis, como o Sinhozinho Malta e
a viúva Porcina. A história acontece no período da Segunda Guerra Mundial e
Roque, o protagonista da peça, retorna à Asa Branca quinze anos depois do final
da guerra, quando o governo concedeu anistia aos desertores. Porém, é claro que
Dias Gomes utiliza esse tempo passado, como forma de se referir ao tempo em
que o livro foi escrito, na ditadura militar da década de 60. Por falar de um herói
militar, Dias Gomes tentou criticar o comportamento das Forças Armadas e só
pôde fazer isso através de uma história fictícia, deslocada do tempo real, ao qual
ele se referia. Tudo isso faz crer que a obra desse dramaturgo orienta-se por uma
espécie de unidade que a fundamenta. Essa unidade caracteriza-se, conforme
aponta Rosenfeld, pelo “empenho consequente e pertinaz por valores políticosociais – por valores humanos, portanto – mercê da visão crítica de um homem
que não está satisfeito com a realidade do Brasil e do mundo” 1. Pode-se, assim,
afirmar que Dias Gomes pertence a uma classe de dramaturgos que buscam na
representação teatral contribuir para o processo de mudança social.
Então, tendo em vista a importância do estudo teatral e da obra corpus do
projeto, afirmar que o texto dramatúrgico deve ser entendido como uma obra em
processo, isto é, inacabado ou não absoluto, levanta importantes questões epistemológicas, que necessitam de uma maior sistematização por parte daqueles
que se interessam pela crítica literária. O olhar sobre um texto teatral propõe, do
1. ROSENFELD, Anatol. A obra de Dias Gomes. In MERCADO, 1989, p.41
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
ponto de vista metodológico, abandonar o paradigma do teatro enquanto apenas
ação, para em seguida criar um outro, isto é, do texto enquanto obra aberta.
Umberto Eco em seu livro Obra Aberta debate exaustivamente e calorosamente o tema da pluralidade de significados de uma obra de arte. Para o autor,
“A poética da obra ‘aberta’ tende [...] a promover no intérprete ‘atos de liberdade
consciente’, pô-lo como centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis”2. Segundo Eco, mesmo a obra “acabada”, “fechada”, é também aberta, na medida que
serve a inúmeras interpretações. Cada fruição é uma interpretação e uma execução, pois em cada fruição uma obra revive dentro de uma perspectiva original.
É a partir desta constatação de Eco que iremos refletir sobre possíveis caminhos
metodológicos para se interpretar e analisar um texto dramático, enquanto obra
aberta a análise literária.
Objetivos e metas a serem alcançados
• Realizar leituras acerca do tema literatura e dramaturgia;
• Ministrar seminários sobre os resultados das leituras do tema literatura e dramaturgia;
• Proceder a processos de pesquisa e análises do texto teatral brasileiro O berço do herói, de Dias Gomes;
• Participar de eventos ou congressos específicos na área e do XXII
ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UEPB e, com resultados das pesquisas e análises obtidas, apresentar trabalhos, ministrar minicursos e publicar nos Anais do evento.
Metodologia a ser empregada
Primeiramente, procurar-se-á adquirir referência bibliográfica necessária
para o estudo do texto teatral, como os títulos inseridos na bibliografia. Depois
criaremos um grupo de pesquisa para o estudo desses textos, entre os alunos da
graduação em Letras da UEPB, campus III, Guarabira. Nesse aspecto, farão parte
2. ECO, Umberto. Obra Aberta. 8.ed. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 41.
3770
Eduardo Henrique Cirilo Valones, Genivaldo Soares Da Silva Neto
do grupo, além do orientador, os dois alunos candidatos ao programa (bolsista
e voluntário) interessados em fazer estudos para participar de eventos na área,
monografias relativas ao final do curso e outros tipos de interesse como uma
pós-graduação. Iniciaremos estes pesquisadores no programa com o intuito de
aprofundá-los nas pesquisas exigidas pelos objetivos do projeto. Depois, realizaremos leituras acerca do tema literatura e dramaturgia. Com os resultados das
leituras destes temas, procuraremos ministrar seminários em eventos específicos para esse fim com as principais conclusões sobre literatura e dramaturgia.
Procederemos então com esse grupo processos de pesquisa e análises de textos
dramáticos brasileiros, nesse caso, O berço do herói, de Dias Gomes. Dessa forma, poderemos participar de eventos, congressos e ministrar minicursos com
resultados das pesquisas e análises obtidas. Além disso, participaremos dos encontros de Iniciação Científica previstos pela Instituição, bem como apresentaremos seus resultados de pesquisa em eventos da própria Universidade e outros
eventos também de mesma natureza que, por ventura, acontecerem no período.
Principais contribuições e impactos esperados da proposta
Os resultados e contribuições esperados irão se mostrar a partir do momento da implementação do projeto, pois irá fortalecer as discussões na construção de sujeitos sociais conscientes de seu papel para a análise literária, garantindo que, com os estudos sobre o tema, irão alcançar as metas e objetivos do
projeto, por meio da leitura de textos teóricos de diferentes tipos sobre Literatura
e Dramaturgia, através dos quais irão obter informação, organizar o conhecimento e aceder para o universo da análise literária. Assim os orientandos irão:
•
•
•
•
•
Compreender melhor o universo da Literatura e Dramaturgia;
Ter um conhecimento amplo sobre a Análise Literária;
Tornar mais abrangente seu vocabulário;
Ampliar sua técnica de análise de textos literários;
Produzir textos para apresentação de trabalhos e publicações.
3771
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Publicações previstas oriundas da pesquisa
Estão previstas para o interstício deste projeto pelo menos duas publicações. Uma referente à participação dos alunos na VI SEMANA DE HUMANIDADES – A Formação de professores e o direito a Educação, a ser realizada no
Centro de Humanidades – Campus III – Guarabira, de 27 a 30 de outubro de 2014.
Neste evento procuraremos publicar tanto resumos como trabalhos completos
nos Anais programados para ocasião. A outra nos Anais do evento específico do
Programa de Iniciação Científica da UEPB, o XXII ENCONTRO DE INICIAÇÃO
CIENTÍFICA DA UEPB, a ser realizado em 2015, em data a ser definida oportunamente pela PRPGP.
Cronograma das atividades da pesquisa
As atividades serão realizadas nas Terças, Quintas e Sextas-Feiras, no período da tarde. Procuraremos obedecer a um calendário sistemático de execução
de atividades específicas de forma esquematizada para que se atinja os objetivos
da proposta.
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WILLIAMS, Raymond. A tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosak & Naify,
2002.
3775
RESUMO
O presente trabalho propõe-se a discutir os procedimentos didáticos e estratégias
de ensino do gênero poema relacionado ao movimento Modernista, apresentados
em dois livros de literatura do ensino médio. O corpus desta pesquisa apresenta
os seguintes livros: Literatura Brasileira das origens aos nossos dias de José de Nicola e Literatura Brasileira em diálogo com outras literaturas e outras linguagens
de William Cereja e Thereza Cochar. Dentre os aspectos a serem analisados, destacam-se a forma de apresentação dos poemas trabalhados, se como pretexto para
discutir aspectos linguístico-gramaticais ou como ferramenta de estudo do gênero
em questão. Trata-se de um trabalho organizado no universo da fundamentação
teórica apresentada por Marcuschi (2008) que defende a ideia de que embora todos
os gêneros tenham uma forma, função, estilo e conteúdos particulares, sua determinação se dá prioritariamente pela “função” e não pela forma, estilo e conteúdos.
Como ressalta Bakhtin (2011), os textos representam uma importante ferramenta
argumentativa de diálogo humano, corroborando com Bronckart (2012) e Miller
(2012), que destacam a apropriação dos gêneros como um mecanismo fundamental
de socialização e inserção prática nas atividades comunicativas. Entendendo a grande importância do texto poético para despertar da sensibilidade e da criatividade
do aluno, este estudo contribui para a reflexão do professor em sua práxis, fato que
atuará para o repensar acerca das práticas pedagógicas em torno da poesia.
Palavras-chave: Literatura, Poema, Gênero, Ensino.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
O GÊNERO POEMA NOS LIVROS DE LITERATURA:
REPENSANDO AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
NO ENSINO MÉDIO
Erika Maria Costa Asevedo1
Maria do Carmo Gomes Pereira Cavalcanti2
Claudemir dos Santos Silva3
Introdução
Em uma época de grandes progressos tecnológicos e modernização também nos deparamos com uma enorme “desumanização” das pessoas, o que se
reflete na falta de valores. Eis o grande desafio do nosso contexto: auxiliar os
jovens na sociedade atual a resgatar os seus valores. E a literatura é um precioso
instrumento de resgate, onde aprendemos a organizar as nossas emoções e ampliarmos a nossa visão de mundo, ajudando-nos a tomar uma posição diante das
questões sociais. Por isso, é preciso trazer a literatura para a sala de aula, para
“despertar” no aluno o sabor de ler, é preciso também propiciar condições para
o prazer como satisfação de necessidade e para a consciência social da literatura.
Nesse contexto vale a pena trazer ítalo Calvino: ”Minha confiança no futuro da
1. Doutoranda do Curso de Ciências da Linguagem da UNICAP (Universidade Católica de Pernambuco),
bolsista CAPES/PROSUP.
2. Mestranda do Curso de Ciências da Linguagem da UNICAP (Universidade Católica de Pernambuco),
bolsista da FACEPE e Professora da Rede Municipal do Recife.
3. Mestrando do Curso de Ciências da Linguagem da UNICAP (Universidade Católica de Pernambuco),
bolsista CAPES/PROSUP.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar” (CALVINO, 2000,p.43).
Verifica-se que o ensino tradicional da Literatura em algumas escolas de
Ensino Médio é feito com ênfase em aulas expositivas, fundamentadas em livros
didáticos que apresentam uma abordagem cronológica, baseada em panoramas
históricos e características de estilos de épocas, sem se deter, diretamente, na
“leitura” de textos literários. Observa-se ainda a tendência para um ensino da
Literatura abstrato, fragmentado e desvinculado da realidade do aluno sem uma
análise crítica dos textos e autores. A prática mais usual se detém em autores
canônicos, para exemplificação de determinada “escola” em que se inserem.
Quanto aos professores, percebe-se uma grande preocupação quanto ao
cumprimento do Programa do curso. E como a Literatura se acha inserida na
Língua Portuguesa, acabam por dar prioridade à última. Alegam que, além do
curto prazo para se cumprir todo o Programa, a matéria vem muito reduzida no
livro didático. Entretanto constata-se que muitos professores superam as limitações do livro didático pela produção do seu próprio material de trabalho em
sala de aula. Admitem que, se não conseguem despertar nos alunos o gosto pela
leitura, pelo menos conseguem despertar-lhes uma consciência de leitura crítica
(BORDINI, 1989).
A literatura desempenha, conforme destaca Candido (2006), o papel de
instituição social, pois utiliza a linguagem, fruto da criação social, como meio
específico da comunicação. Observa, também, que o conteúdo social das obras
e a influência que a literatura exerce no receptor fazem da literatura um instrumento poderoso de mobilização. Ao considerar que “a arte e a literatura são atividades permanentes, correspondendo às necessidades imperiosas do homem e da
sociedade”, (Candido, 1995, p.16) também confirma a função social da literatura.
Pode-se afirmar que a literatura faz parte da construção do saber, desde a
infância, pois é na infância que se forma o gosto pela leitura. Para Lajolo e Zilberman (1999), a literatura tem, para crianças, a função formadora, é a mola mestra
que transforma a leitura em prática social, quando constitui atividade privada
nos lares, tendo o livro como instrumento ideal para a formação da cidadania;
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Erika Maria Costa Asevedo, Maria do Carmo Gomes Pereira Cavalcanti, Claudemir dos Santos Silva
como as autoras ressaltam no livro “A formação da leitura no Brasil: histórias &
histórias”.
Para este trabalho não se adentra em um estudo sobre como a literatura é
trabalhada em sala de aula, mais sim objetiva discutir os procedimentos didáticos
e estratégias de ensino do gênero poema, relacionado ao movimento Modernista,
apresentados em dois livros de literatura do ensino médio: Literatura Brasileira
das origens aos nossos dias de José de Nicola e Literatura Brasileira em diálogo com
outras literaturas e outras linguagens de William Cereja e Thereza Cochar.
Construindo o artigo
A estruturação metodológica do presente artigo configura-se como uma
pesquisa qualitativa, se preocupa com o aprofundamento de como as questões
trabalhadas nos livros de literatura “Literatura Brasileira das origens aos nossos
dias” de José de Nicola e “Literatura Brasileira em diálogo com outras literaturas e
outras linguagens” de William Cereja e Thereza Cochar, podem contribuir para
compreensão do gênero poema enfocando as questões que envolviam o gênero
poema nos livros mencionados acima. Na análise dos dados, foram criadas categorias das perguntas que se referiam aos poemas mencionados nos livros em análise (BARDIN, 2007). Por categorização, entende-se a classificação de “elementos
constitutivos de um conjunto”, seja por analogia (diferenciação) e seguidamente
por reagrupamento dos gêneros, com os critérios previamente definidos (Bardin,
2007, p. 111). É um agrupamentos de ideias ou conjunto de palavras que possuem
significância em comum, “tendo como primeiro objetivo (da mesma maneira que
a análise documental) fornecer, por condensação, uma representação simplificada dos dados brutos” (Ibid, 2007, pp. 112-113). As categorias de classificação foram:
1. Questões que relacionam língua e literatura (textos literários para
reflexões linguísticas, gramaticais e funções da linguagem);
2. Questões de literatura stricto sensu (história da literatura, análise
formal do texto literário, interpretação do texto literário e figuras de
Linguagem);
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
3. Questões com perguntas de valor “impressionista” isto é, o autor
das questões registra suas expectativas sobre o texto, não deixando
está tarefa para o aluno;
4. Questões dando enfoque apenas ao estudo das escolas literárias.
Enfocando o estudo do gênero/gênero poema
Bronckart (1999, p.103), fala que “a apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas humanas”, ou seja, os gêneros textuais são instrumentos de que os sujeitos
dispõem para atuar nos diferentes domínios da atividade humana. Ao tecer considerações a respeito, Bakhtin (2003) define gênero como formas típicas e relativamente estáveis de enunciados, correspondentes a atividades humanas, já que
a língua atende a necessidade do homem de autoexpressão e objetivação. Assim,
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque
são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e
porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e
se complexifica um determinado campo (BAKHTIN, 2003, p. 262).
Ao tratar da linguagem literária, o autor enfatiza sua complexidade por estar
em mudança permanente e se alimentar de estilos da linguagem não literária.
Ainda porque, os diferentes gêneros literários são, por excelência, a expressão
da “individualidade da linguagem através de diferentes aspectos da individualidade” (BAKHTIN, 2003, p. 262). Os gêneros literários marcariam uma expressão mais individualizada por meio das escolhas composicionais que o autor faz,
sempre tendo em vista seu destinatário – ainda que a recepção compreendida
pelo texto literário, principalmente lírico, seja compreensiva silenciosa e retardada. Assim, não haveria uma resposta imediata, mas o efeito do texto se daria
no pensamento do ouvinte/ leitor, em comentários posteriores e outros textos.
Ao definir quais as esferas de atividades comunicativas que poderiam ser
incluídas no estudo sobre gêneros o autor menciona “também devemos incluir
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Erika Maria Costa Asevedo, Maria do Carmo Gomes Pereira Cavalcanti, Claudemir dos Santos Silva
as variadas formas de manifestações científicas e todos os gêneros literários (do
provérbio ao romance de muitos volumes)“ (BAKHTIN, 2003, p. 263). Isso implica
em considerar que no discurso fundador dos estudos com gêneros discursivos há
uma preocupação com a poesia, ou ainda, com o gênero literário.
Assim o que define as estruturas formais e linguísticas são relações sociais
e todas as coerções valorativas a elas ligadas, limitando-se não extinguindo – a
autonomia linguística. Diante desse quadro é preciso salientar que as mudanças
nas pesquisas linguísticas evoluíram consideravelmente no campo epistemológico, sem, no entanto, atingir de maneira significativa o espaço da escola. Especificamente nesse ponto é que fazemos menção as pesquisas realizadas pelo
grupo de Genebra, especialmente Dolz e Schneuwly (2004) fazem a reflexão de
como seria a materialização dos gêneros como eixo de progressão curricular desde o início da aprendizagem e de acordo com Brandão (2005) essa, progressão
seria justamente passagem dos gêneros primários – que nascem na troca verbal
espontânea – para os gêneros secundários: relacionados a uma situação de comunicação e que articula diversos gêneros do cotidiano.
Nessa obra, o autor russo Bakhtin (2003) também diferencia gêneros primários e secundários. Estes seriam formas mais complexas que exigem a construção
de um aparelho psíquico que vai além da realidade imediata; seriam resultado
de um processo de elaboração cultural mais vinculado à escrita. Aqui entrariam,
entre outros, os gêneros literários. Aqueles, gêneros aos quais o sujeito está exposto cotidianamente e aprende a mobilizá-lo de forma natural, sem uma intervenção sistemática, como ocorre na escola.
Para Schneuwly e Dolz (2004), o gênero textual é um instrumento “que fornece um suporte para atividade, nas situações de comunicação, e uma referência
para os aprendizes”, (Schneuwly e Dolz, 2004, p.75). Portanto, no espaço escolar,
o gênero passa a ser não somente instrumento de comunicação, mas também
objeto de ensino de aprendizagem.
Acredita-se que para referido ensino, se faz necessário uma intenção didática para que sejam planejadas estratégias para a interação dos alunos com os gêneros textuais, considerando os objetivos pedagógicos. Schneuwly e Dolz (2004)
assinalam que esses objetivos são de dois tipos:
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
(...) trata-se de aprender a dominar o gênero, primeiramente, para
melhor conhecê-lo ou apreciá-lo, para melhor saber compreendê-lo,
para melhor produzi-lo na escola ou fora dela; e, em segundo lugar, de
desenvolver capacidades que ultrapassem o gênero e que são transferíveis para outros gêneros próximos ou distantes (Schneuwly e Dolz,
2004, p. 80).
Os autores mencionados, também, chamam atenção para a relação dos gêneros textuais na escola e as práticas de linguagem. Por isso, indicam que, no
trabalho didático sejam oportunizadas ao aluno situações de comunicação o
mais próximo possível das situações reais vivenciadas fora da escola. Assim, essas atividades farão sentido para eles, promoverão uma apropriação real de suas
funções, além de possibilitar outras aprendizagens intencionadas pelo professor.
Para tanto, considera-se que a escola precisa assumir efetivamente o ensino
da língua na abordagem da diversidade textual em seu cotidiano escolar. Para
isso, é preciso garantir o reconhecimento de suas funções sociocomunicativas, o
uso e a compreensão das especificidades dos gêneros, bem como os que distingue um do outro.
Já se reconhece que existe grandes dificuldades de trabalhar o gênero poema em sala de aula, pois é um gênero que não está integrado as atividades
cotidianas e requer um formato de leitura que não é padrão, pois exige acesso a
obra e atitude de recolhimento, como também é pouco reconhecido como tal nas
formas mais integradas ao dia a dia. Por outro lado, esse argumento também justifica sua inserção efetiva na categoria de gênero escolar, já que o texto lírico, por
meio da metáfora, promove deslocamento e construção/reconstrução de formas
lúdicas – num jogo natural com a palavra.
Schneuwly & Dolz (2004), ainda elencam três dimensões para definição de
um gênero:
1) Os conteúdos e conhecimentos que se tornam dizíveis por meio dele;
2) Os elementos das estruturas comunicativas e semióticas partilhadas
pelos textos reconhecidos como pertencentes ao gênero; 3) As configurações específicas de unidades de linguagem, traços, principalmente,
da posição enunciativa do enunciador e dos conjuntos particulares de
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Erika Maria Costa Asevedo, Maria do Carmo Gomes Pereira Cavalcanti, Claudemir dos Santos Silva
sequências textuais e de tipos discursivos que formam sua estrutura.
O gênero, assim definido, atravessa a heterogeneidade das práticas de
linguagem e faz emergir toda uma série de regularidades no uso. São as
dimensões partilhadas pelos textos pertencentes ao gênero que lhe conferem uma estabilidade de fato, o que não exclui evoluções, por vezes,
importantes (SCHNEUWLY & DOLZ, 2004, p. 75).
A dificuldade em se definir o gênero poema já fora antecipada por Bakhtin
(2003) ao elencar a dinamicidade como uma característica do sistema literário.
Se tentarmos responder objetivamente às três dimensões citadas acima, pode-se
não alcançar respostas claras e que deem conta do objeto em questão. Portanto
recorrendo ao poema de Manoel de Barros o que a poesia diz de si mesmo:
MATÉRIA DA POESIA
(Manoel de Barros)
Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem
para a poesia
O homem que possui um pente e uma árvore serve para poesia
Terreno de 10x20, sujo de mato – os que nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia
Um chevrolé gosmento Coleção de besouros abstêmios O bule de Braque sem boca
são bons para poesia
As coisas que não levam a nada têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima
Cada coisa sem préstimo tem seu lugar na poesia ou na geral
O que se encontra em ninho de João-ferreira, caco de vidro, grampos, retratos de
formatura, servem demais para poesia
As coisas que não pretendem, como por exemplo: pedras que cheiram água, homens que atravessam períodos de árvore, se prestam para poesia
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde dos pássaros, serve para poesia
As coisas que os líquenes comem - sapatos, adjetivos - tem muita importância para
os pulmões da poesia
Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia
Os loucos de água e estandarte servem demais. O traste é ótimo. O pobre – diabo
é colosso
Tudo que explique o alicate cremoso e o lodo das estrelas serve demais da conta
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Pessoas desimportantes dão para poesia qualquer pessoa ou escada
Tudo que explique a lagartixa de esteira e a laminação de sabiás é muito importante para a poesia O que é bom para o lixo é bom para poesia
Importante sobremaneira é a palavra repositório; a palavra repositório eu conheço
bem: tem muitas repercussões como um algibe entupido de silêncio sabe a destroços
As coisas jogadas fora têm grande importância - como um homem jogado fora
Aliás é também objeto de poesia saber qual o período médio que um homem jogado fora pode permanecer na terra sem nascerem em sua boca as raízes da escória
As coisas sem importância são bens de poesia Pois é assim que um chevrolé gosmento chega ao poema E as andorinhas de junho (BARROS, 1990).
Já fica nítido que o assunto possível para o poema é delimitado não pelo que
o restringe, mas pela legitimidade de tratar de todo e qualquer tema. Assim, a
dispersão do conteúdo pode ser levantada como uma marca do gênero. Outro
ponto que também sofre variação significativa de um poema para outro, podendo então abranger com versos e rimas bem marcadas por exemplo.
Schneuwly & Dolz (2004), a partir das ideias de Bakhtin (2003), indicam
que, na produção de um enunciado, o autor/enunciador pode, conscientemente, gerar desvios à estrutura reconhecida por ele e o destinatário. Esses seriam
um dos propulsores da transformação dos gêneros. Contudo, trata-se de um
processo natural e gradativo. Já no poema, os desvios à estrutura e recursos
linguísticos são explorados como uma estratégia de estilo, o que lhe assegura
maior mobilidade.
Os autores mencionados não fazem referência ao poema nas sugestões de
gêneros para serem trabalhados na escola. Mas sintetizam uma ideia para o trabalho com os gêneros que, direcionada ao poema, pode ser o ponto chave para o
convencimento do professor que ainda se sente inseguro.
Quanto mais precisa a definição das dimensões ensináveis de um gênero, mais ela facilitará a apropriação deste como instrumento e possibilitará o desenvolvimento de capacidades de linguagem diversas que a
ele estão associadas. O objeto de trabalho sendo, pelo menos em parte,
descrito e explicitado, torna-se acessível a todos nas práticas de linguagem de aprendizagem (SCHNEUWLY & DOLZ, 2004, p. 89).
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Nesse ponto surge a questão: Quais seriam as dimensões ensináveis do
poema? Acredito que para responder deve-se partir primeiro dos parâmetros
curriculares nacionais: (PCN) apresentam o poema na categoria de gêneros literários escrito privilegiado para atividades de leitura e produção escrita. Ainda
indica a necessidade de trabalhar a percepção das diferenças de conteúdo e forma entre gêneros diferentes ou o mesmo gênero em épocas diferentes. Mas não
discrimina essas diferenças em relação ao poema (PCN, 1998).
Já o do Ensino médio, define poema como textos curtos e com densidade
poética que serviriam para desenvolver a sensibilidade no aluno; também apresentam um problema de recepção, já que os leitores pouco experientes resistiram
ao trabalho com esse gênero textual por ainda acreditarem que o poema é apenas expressão de sentimentos e, assim, estaria naturalmente destinado a leitores
do sexo feminino. Também é apontado um caminho metodológico para o trabalho com o poema em sala de aula, sempre na perspectiva de desencadeamento
de uma vontade no leitor de busca de outros textos:
A exploração dos efeitos de sentido produzidos pelos recursos fonológicos, sintáticos, semânticos, na leitura e na releitura de poemas poderá
abrir aos leitores caminhos para novas investidas poéticas, para muito
além desse universo limitado – temporal e espacialmente – de formação
(PCN, 2006, p. 74).
O que é proposto para o trabalho com a literatura e, especificamente, o poema, é um rompimento com a exigência de se enquadrar a prática da leitura em
atividades mecânicas, descontextualizadas e limitadas no tempo, conforme se
pode verificar abaixo:
Oferecer ao aluno a oportunidade de descobrir o sentido por meio da
apreensão de diferentes níveis e camadas do poema (lexical, sonoro,
sintático), em diversas e diferentes leituras do mesmo poema, requer
dedicação de tempo a essa atividade e percepção de uma outra lógica
analítico interpretativa que não aquela de um academicismo estereoti-
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
pado, que acredita que ensinar poesia é ensinar as técnicas de contar
sílabas e classificar versos e rimas (PCN, 2006, p. 78).
Percebe-se neste rápido percurso, os Parâmetros Curriculares para o Ensino
Fundamental apenas citam o poema entre os gêneros; os do Ensino Médio, em
sua última edição, apesentam de forma genérica uma proposta sem especificar
como de daria o uso dos recurso linguísticos, apontados em três categorias, na
constituição do poema.
O MEC, em material publicado para o programa de formação continuada de
professores de português das escolas públicas – GESTAR–, divulga as ideias da
tese de Maria Balestriero (1998), como a referência mais clara e pontual sobre o
tema. A autora propõe a instrumentalização da leitura do poema analisando-o
em três níveis: fônico, sintático- semântico e visual. Neste sentido, esse material
preenche uma lacuna na orientação dos PCN par ao trabalho o trabalho com o
poema na primeira fase do Ensino Fundamental e depois essa perspectiva aparece nos Parâmetros para o Ensino Médio.
Gênero poema nos livros de literatura
A literatura, enquanto produto cultural e social depende do modo como é
ensinada pelos professores e, por extensão, principalmente pelos livros didáticos
utilizados em sala de aula como afirma, Zilberman (1991, p.94), “de uma maneira
ou de outra, eles se encarregam de orientar a ação docente em sala de aula”, que
muitas vezes convertem a leitura, que deveria ser um prazer numa obrigação.
O poema é um gênero textual que traz uma linguagem fortemente entrelaçada com um imaginário em todas dimensões da palavra. Nele, estão presentes
o jogo sonoro, a beleza estética e o lúdico apresentado em versos livres ou não,
e em rimas. É um gênero especialmente adequado para promover a criatividade
infantil, a beleza estética, o lúdico, o prazer com a leitura e com a escrita, fato
importante a ser considerado na formação do leitor (JOLIBERT, 1994).
A poesia sempre esteve presente nos primórdios das sociedades testemunhando os seus fatos sociais dos mais comuns aos mais vultosos, desde as rezas
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de curas, os cantos sacros, as cantigas de ninar. Segundo Paz (1976), “Não há povos sem poesia, mas existem os que não têm prosa“. Essa observação só fortalece
o entendimento de que a poesia, notadamente a lírica, encontra-se presente em
todos os momentos da história de um homem, sendo o seu testemunho individual para, também, ser testemunha e expressão dos fatos sociais.
Com intuito de investigar como o gênero poema é apresentado nos livros de
literatura do ensino médio: “Literatura Brasileira das origens aos nossos dias”, de
José de Nicola e “Literatura Brasileira em diálogo com outras literaturas e outras
linguagens”, de William Cereja e Thereza Cochar, analisou-se as perguntas que
envolviam as questões com o gênero poema no movimento Modernista foram
classificadas em quatro categorias:
1. Questões que relacionam língua e literatura (textos literários para reflexões linguísticas, gramaticais e funções da linguagem); Nesta categoria observa-se que o livro de José de Nicola Literatura brasileira das origens aos nossos
dias, apresenta–se com maior índice de questões em que visava à aquisição da
linguagem escrita, gramática no poema, perdendo a oportunidade de desenvolver a leitura desse texto como uma atividade de construção de sentidos, vistos
que a questão estar apenas no que diz respeito à reflexão do sistema da escrita.
Como exemplo na questão em relação ao poema “Retrato” de Cecília Meireles,
como é trabalhada a adjetivação? Destaque dois adjetivos (NICOLA, 2011). Percebe-se que a questão a cima não promove discussão visando à compreensão do
texto e nem para as questões pertinentes ao gênero. Sabe-se da importância de
possibilitar ao aluno o domínio da gramática, porém acredito que não deve utilizar a aula de Literatura como uma aula de pura gramatiquice esquecendo-se de
despertar o gosto pelo prazer da leitura dos poemas construindo atividades de
sentidos. Portanto, observa-se que a questão em foco tratou do gênero poema,
apenas como um pretexto para o conteúdo gramatical.
2. Questões de literatura stricto sensu (história da literatura, análise formal
do texto literário, interpretação do texto literário e figuras de Linguagem; A categoria em foco é a mais retratada nos livros analisados). Nos materiais em análise
percebe-se que o trabalho com a poesia é uma proposta de instrumentalização do leitor para que ele interprete e alcance o prazer estético. Os poemas são
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abordados na perspectiva de que o sentido é construído na observância de sua
constituição sonora, sintática, vocabular e sua configuração na página em branco. Desta forma, o aspecto marcante e diferenciador do poema enquanto gênero
estaria em evidência aquilo que de tão natural nos passa despercebido: o jogo
entre os elementos linguísticos que constituem a palavra e o texto. Os conteúdos
trabalhados nas questões de análise dos poemas apresentam-se dissecando os
seus componentes estruturais. É comum nos livros de literatura o trabalho com
o poema se enquadrar apenas nas estruturas fixas e assim deixar de construir no
aluno um olhar poético sobre a realidade que o cerca e sobre si mesmo enquanto
indivíduo e ser humano em essência. Na verdade, o trabalho com o gênero poema nos livros infelizmente não desperta no aluno o leitor competente. Porém,
segundo Bakhtin (2003), os gêneros do discurso são definíveis pelo conteúdo,
estilo – gerado pelo autor em confluência com o gênero composicional. Em suma
esta questão agrega instrumentos de análise constitutivos em versos e rimas,
portanto poema e musicalidade – os poemas que tem na melopeia a sua qualidade mais significativa.
3. Questões com perguntas de valor “impressionista” isto é, o autor das
questões registra suas expectativas sobre o texto, não deixando está tarefa para
o aluno; Esta categoria contemplada nos dois livros analisados trabalha com a
visão de quem formula as questões que em sua maioria os poemas são, apresentados em fragmentos textuais que não correspondem ao conjunto temático da
obra, de modo que o aluno se concentra apenas no enunciado de determinada
passagem, aumentando suas dificuldades para tomar a obra como um todo. Chamando a interpretar o texto literário de forma limitada e imediata, o aluno se
vê diante de sérias dificuldades, pois necessita de uma leitura total de uma obra
para analisá-la enquanto composição literária, com assunto, contexto histórico
e cultural, expressos através de propriedades internas, e que são apreendidas a
partir da visão do autor que formulou a questão. Com isso, esquecendo a abrangência e as expectativas que um texto literário propõe.
4. Questões dando enfoque apenas ao estudo das escolas literárias. Categoria contemplada em todas as questões referentes a análise dos poemas nos livros
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analisados. Sabe-se que na maioria das vezes, as aulas escolares de literatura são
a única porta de entrada do aluno para todo o universo da cultura e da arte, em
sentido amplo, seu primeiro contato com leitura de autores clássicos como: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Murilo Mendes
e muitos outros que fazem parte da literatura brasileira.
Considerações finais
Nos livros analisados poucas questões apresentaram que o poema é o registro de uma forma poética de ver o mundo, é a arte da palavra. A história dos
movimentos literários serve para mostrar como essas manifestações estão inseridas em um contexto histórico e para provar que a boa literatura não há prazo
de validade, nem restrições de faixa etária do leitor.
Os mesmos trabalham com os textos literários, porém encontra–se uma
série de questões objetivas, com respostas únicas, em muitos casos, condicionando um comportamento com fins funcionais, ou seja, tornamos nossos educandos automatizados em relação ao texto poético, restringindo o horizonte de
construção de sentidos, limitando o tempo de contado com a poesia, tratando
o texto poético como simples pretexto para questões gramaticais e formais,
também limitando a construção utópica de cidadãos mais preparados para agir
com e pela linguagem.
Um dos grandes desafios é transformar o texto poético como leitura do cotidiano, de tratá-lo como parte do universo de leitura dos educandos, e depois,
construir categorias de análise que sustentem a manutenção desse trabalho,
uma vez que os livros didáticos tem essa importância em despertar a sistematização dos saberes onde o educando construirá seu modo de observar e ainda
o espaço oportuno para o contato com o gênero e suas situações de realização,
por esse mesmo motivo cabe à escola o papel de propiciar ao educando o contato com maior número possível de gêneros do discurso.
Na verdade a categorização das questões para analisar o gênero poema
nos livros de literatura: Literatura Brasileira das origens aos nossos dias de José
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de Nicola e Literatura Brasileira em diálogo com outras literaturas e outras linguagens de William Cereja e Thereza Cochar. foi retratar o trabalho com a
aplicabilidade do gênero poema em sala de aula e formando leitores competentes para todo e qualquer gênero e, ainda, componentes para construírem um
gosto literário próprio.
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RESUMO
Neste trabalho objetiva-se analisar o papel do olhar na construção da identidade
na obra Salomé de Oscar de Oscar Wilde.Escrita originalmente em Francês, essa
narrativa apresenta uma dramaturgia irônica, talvez pela intensidade das emoções
apresentada pelas personagens que intervém na trama, sendo pelo contrário, entusiasticamente aplaudida e aclamada na Cidade-Luz. Assim, se percebe que a construção do perfil psicológico das personagens nela contida parece refletir a controversa sexualidade do autor, ou seja, uma homossexualidade camuflada, a par de uma
evidente misoginia. O aspecto misógino deOscar Wilde decide acaba por atribuir a
Salomé a beleza de uma mulher fatal, e, sobretudo pura, a qual ele assemelha com
a Lua - símbolo que personifica a ambiguidade e, simultaneamente, o limite entre a
realidade e a loucura - fato identificado pelos pressentimentos, presentes em várias
passagens desse drama, quando as personagens são advertidas do perigo de fraquejar à perda da razão pela excessiva contemplação da Lua (Salomé).O olhar é nessa
obra um fator que contribui para se conhecer o poder dos sentidos, especificamente,
do ver na construção da identidade de Salomé. Para respaldar esta pesquisa toma-se
como referencial: Novais (1988) por dialogar sobre o olhar;Derridá(2012) por retratar sobre o pensar em não ver e os rastros do visível, Wilde (1992), dentre outros. Por
fim, Salomé é a própria personificação do desejo, das pulsões que são, normalmente,
“castradas” pela religião, representada e defendida com uma paixão de verdadeiro
fundamentalista, por João Baptista. A identidade de Salomé é percebida através do
olhar, pois ela consegue seduzir e, conseguir o desejado pela sua beleza e sedução.
Palavras-chave: Identidade; Olhar; Sedução;Salomé.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
O OLHAR NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
EM SALOMÉ DE OSCAR WILDE
Maria da Luz Duarte Leite Silva (UFRN)
Considerações Iniciais
O objetivo deste artigo é analisar a construção da identidade de Salomé de
Oscar Wilde a partir do olhar dos personagens. Pretende-se demonstrar que se
pode ver olho a olho e, ver com auxílio dos outros sentidos, que se ver sem precisar dos olhos. Na perspectiva estruturalista concebe a cegueira, dos sujeitos
como algo que deve desconfiar da visão vista pelos olhos, bem como do que as
imagens apresentam.
A narrativa Salomé de Wilde é apresenta a saga da personagem Salomé,
enteada de Herodes, filha de Herodias que para a angústia do padrasto e deleite da mãe exigiua cabeça de Jokanaan numa bandeja de prata (João Batista)
como recompensa por ter dançado a erótica “Dança dos sete véus” para Herodes. Como forma de apresentar este drama, Oscar Wilde escreveu sua versão
teatral, em frances (fato até hoje não muito bem explicado), em 1891.
Percebe-se em Salomé que todas as características do ideal de beleza física
de Wilde estão presentes na figura de João Baptista que, parece ser para Wilde
o seu verdadeiro objeto de desejo, enquanto que este (Wilde)se projeta na figura de Salomé como a personagem que seduz, possuidora da aparência física
que ele próprio idealiza como fazendo parte do eterno feminino que gostaria
de poder ostentar.
Desta feita, procura-se analisar a narrativa Salomé tomando como norte o
“olhar” das figuras dramáticas, visto que a personagem apresenta uma beleza
intensa que acaba por usá-la para conseguir realizar-se.
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O Drama Salomé tem sido traduzido em diversas versões ao longo da história das artes, bem como da literatura, compondo-se num poderoso tecido semiótico-cultural. Neste artigo dar-se-árealce à peça de Oscar Wilde, na qual Salomé
personagem principal recebe um olhar que se pode dizer especial, já que ela se
apresenta subordinada à sua lendária dança. Como aparato a essa análise, apresentar-se os conceitos de olhar e, pensar em não ver imbuídos no texto, como
forma de se entender a identidade da protagonista.
Sobre Wilde
Oscar Wilde é considerado um dos grandes escritores da literatura conhecidos mundialmente. Escreveu alguns clássicos na dramaturgia. Nascido em Dublin - Irlanda estudou na mesma cidade, mas também, morou em Londres.
Ganhador muitos prêmios e medalhasfoi considerado pela crítica como extravagante.Sua produção é variada, pois Wilde escreveu peças de teatro, contos,
poesias, romances. Algumas de suas Cartas foram publicadas, ministrou palestras, é considerado autor de inúmeras máximas – preceito expresso em forma de
sentença breve.
Dentre as peças de teatro que escreveu estão: “Salomé” (1891), “O leque de
Lady Windermere” (1892); “Uma mulher sem importância” (1893); “A importância de ser prudente” (1895). Algumas delas são apresentadas até os dias de hoje.
A personagem Salomé, que leva o mesmo nome da obra, era sensual, dona de
uma libido insaciável, cruel e agressivo. Em contrapartida, o dramaturgo também considerava sua criação pura e divina. Segundo o website SunriseMusics, o
autor achava que “Salomé tornou-se a combinação de um ser sensual, infantil e
divino somado à força destrutiva da natureza”.
No que se refere a obra “O leque de Lady Windermere” aborda situações
que envolvem intrigas e mentiras dentro de uma sociedade recheada de superficialidade. A protagonista, que também tem o mesmo nome presente na obra,
desconfia que seu marido tem um caso com uma outra mulher. Na verdade, esta
terceira pessoa é mãe da personagem principal, mas esta não sabe.
Em “Uma mulher sem importância”, as personagens não são bem aquilo
que se apresentam no começo da peca e, com o desenrolar desta, vão mostrando outras personalidades. Cheio de contradições e epigramas, desenvolve-se em
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situações dramáticas e tensas e em outros momentos, cômicas e humorísticas.
O nome original de “A importância de ser prudente” é “The ImportanceofBeingEarnest” e existe um jogo de palavras com o último vocábulo, ou seja,
earnest em inglês significa sério, correto e o codinome adotado pela personagem
principal é Ernest, o mocinho da história.
Escreveu apenas um romance, que possui muitas adaptações para o cinema
e teatro, “O retrato de Dorian Gray” (1890), considerado um dos seus maiores
sucessos do autor senão obra máxima. Vale dizer que foi visto pela crítica como
a obra-prima da literatura inglesa. Nessa obra, Wilderetrata sobre arte, vaidade e
manipulações humanas. A personagem principal, que leva o nome da narrativa,
almeja numa busca constante a eternidade para a sua beleza acabando por fazer
um pacto com o destino. Em seu prefácio consta um de seus tantos aforismos:
“Não existe livro moral ou amoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo”.
Por fim, Wilde em dois anos que passou na prisãofoi mantido também no
Cárcere de Reading, quandoproduziu, em 1896, o poema “A balada do Cárcere
de Reading” e publicando dois anos depois. Escreveu também, “De profundis” –
uma longa carta a Lorde Douglas que foi publicada. Esse autor ficou confinado
na prisão por ser homossexual, quando perdeu um julgamento para o pai de
Douglas.
Sobre o olhar
O olhar na história da civilização ocidental poderia ser instituída como afábula do olho, compreendida como um olhar panóptico, policial, manipulador,
também pode ser visto como o olhar da Instituição.Neste,configurar-se como
meio que dá lugar àbusca daperfeição do ver, por meio de tecnologiase das artes,quando percebe-se uma expressão maior na filosofia, tido como uma espécie
de metafísica do olho, dos “olhos” do logos, ou da razãoininterruptamenteacordada,cujo poder de visibilidade teria um análogo na concepção solar, da qual
decorreriamas informações de esclarecimento e iluminismomodernas, depositando o conhecimento como sendo uma aspiração mais elevada a altura dasnecessidades do sujeito comum. Desta feita, pode-seaferir um paralelo entre o
ver, o visível com o logosdisseminador da luz, de modo que se sobrepujeo limite
do vislumbre, do alumiar abertamente, entrevendo atradiçãoclássica. A partir
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disso, ocupou-se em traçar raias no espectro do olhar, do ver, e passoua arquitetarequivalências nosarcabouços cognitivos da mente, nos fatores de inteligibilidade e legibilidade. Instaurado o paradigma óticoplatônico, tomando como
norte a posição da acrópole grega, este seráposto em circulação e incorporado na
dimensão da polis,cujos aspectos legitimadores incluiriam a sacralização sígnica, no sentido de exercer um ritual regulador dos signos da visão no modelo de
cultura e de artes, atualizado na paideia.Istopromoveria a serenidade e estaticidade da contemplação, provocando embevecimento e compartilhamentoentre o
objeto contemplado e o contemplante.
Procurou-se compreender como a matriz desse modelo ótico cobre toda a
história do ocidente,efetuando-senela uma arqueologia da imagem que tem na
cena platônica do mito da caverna o princípio que aciona o próprio “cinema” da
humanidade, provocando afecções, paixões,traições/traduções das imagens que
enganariam, produzindo conhecimentos ilusórios,na aparência de seu desencadeamentoe existência autônoma, colocando em perigoapalpitação do olhar,
diante da vertigem dos estados dionisíacos do caos. O sujeito teórico, não é mais
controlado por sua natureza contemplativa, libertando com isso, os olhos do
olhar habitual, adequado ao objeto, concebido por uma visibilidade estremada,
como forma de produzir o seu próprio campo do visível, não se detendoa interrogar o olhar. Como colocariaMerleau-Ponty(1979), o olho não se mantém ocupado
em ver se vê e a visão nunca está imóvel.
Vê-se que o olhar pode ser metamorfoseado. Em Platão, verifica-se respectivamente o fascínio e o horrorregentes dopoder do simulacro possibilitado pelo
olhar. Quando se percebe que a finalidade coerente e a destinação moral do
olhar tornam-se comuns ao mundo de representações do cristianismo,até que o
niilismo intempestivo e a morte de Deus dessem lugar ao olhar diante davertigem das fases dionisíacas do caos. O sujeito teórico, não mais controlado por sua
natureza contemplativa, assim sendo,emanciparia os olhos do olhar tradicional,
adequado ao objeto, em meio a uma visibilidade delimitada, para criar o seu próprio campo do visível, não cessando de interrogar o olhar. Comocolocaria Merleau-Ponty(1979), o olho não se mantém ocupado em ver se vê e a visão nunca está
imóvel. Mas sim, a todoo momentometamorfoses do olhar.
Na modernidade por volta do séc. XX, a discursão sobre o olhar apresentase na obra romanescade George Bataille,História do olho(2003), quando se per-
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cebe a presença de um evento de linguagem, do qual aparece a circunvizinhança
com o pictórico,adentrando, como dialogaSchollhammer(1996, p.6), que “o ato
de tirar o olho da cabeça, cortando a relação privilegiada da visão com o sentido
da razão e do espírito” a desocularização da visão. Aqui se ver que o olhar é tido
como uma experiência que alcança o abismo do malfixando à forma do olho um
ver ciomo signo em transe e instrumento perfurante.
O Olhar na construção da identidade em Salomé de
Oscar Wilde
Salomé de Wilde é uma narrativa dramática, carregada de ironia, sendo esta
revelada pela intensidade das emoções vividas pelas figuras dramáticas que participam da trama, aplaudida, e aclamada como já dito na Cidade-Luz.
Salomé é um drama poético de densa intensidade lírica. É a representação
estética de uma história presente no Novo Testamento, condensada através da
genialidade de Wilde,: toda a sensualidade do paganismo toca e lamenta contra
o coração ascético da cristandade nos primórdios. A sensual e bela dançarina da
‘dança dos sete véus’ apaixona-se por João Batista, o profeta. Mas todos os seus
artifícios são impotentes contra um sujeito de fé. O drama foi escrito em Francês,
em 1892, para ser representado por Sarah Bernhardt, em Paris, como já dito. Um
ano depois, foi traduzido para o inglês, com as famosas ilustrações de AubreyBeardsley. O que se percebe é que Oscar Wilde atingiu em Salomé um dos trabalhos mais característicos de sua individualidade humana e, sobretudo, literária.
Vê-se que Salomé é uma peça teatral análoga à história bíblica de João Batista. Em Salomé,se presencia um comportamento de uma mulher que busca
realizar seu desejo a qualquer preço. Wilde apresenta uma mulher, que procura
desfrutar de seus dotes físicos, para conseguir o que tanto queria, qual seja,beijar os lábios de Iokanaan, um sujeito proibido e excitante paraa jovem princesa
Salomé. E como Iokanaan não atente Salomé ela usa de variadas estratégias, inclusive de quase que ordená-lo para cumprir o seu desejo:
[...] Por que não me olhas, Iocanaan? Teus olhos, que eram terríveis, tão
cheios de ódio e escárnio, estão fechados agora. Por que estão fechados?
Abre-os! Ergue as pálpebras, Iocanaan! Por que não me olhas? Estás
com medo de mim, Iocanaan, e por isso não me olhas? E a tua língua,
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que era como uma serpente vermelha expelindo veneno, não se move
mais, nada diz agora, Iocanaan, aquela víbora vermelha que cuspilhava
veneno contra mim? É estranho, não? Como é que a víbora vermelha já
não se move?... Consideraste-me ninguém, Iocanaan. Desprezaste-me.
Pronunciaste ignóbeis palavras contra mim. Trataste-me como uma
meretriz, uma dissoluta, a mim, Salomé, filha de Herodíade, princesa
da Judéia! Bem, Iocanaan, eu estou viva; mas tu estás morto e tua cabeça me pertence [...]. (WILDE, 1992, p. 45)
Vê-se que para satisfazer seu desejo que a arrebata qual seja, beijar os lábios
de Iokanaan, a jovem princesa utiliza-se da oferta de Herodes, mesmo advertido
por sua mulher que não o fizesse. Herodes não atendeu, estava quase como hipnotizado pela beleza da princesa Salomé.
O personagem Herodes, de tanto olhar para Salomé fica fascinado,desejando que ela dance para ele. A jovem Salomé valeu-se da oferta de Herodes,mesmo
sendo advertida por Herodias. Mas, mesmo assim, Salomé atende ao desejo de
Herodes,que é dançar para ele. Depois da dança, Herodes pergunta a Salomé o
que deseja. A personagem pede a cabeça de Iokanaan. Salomé procura uma nova
maneira de incorporar por meio da fantasia dentro de uma situação no drama
que se considera como real. Isso faz recorrer-se ao que postula Gullar:
[...] a ilusão, é a tentativa de buscar nesse espaço angustiante algo que
o transcende; então busca-se a ilusão como forma de, sem perder mais
negar a nova realidade, criar uma nova fantasia, a fantasia possível dentro de um espaço real que não pode negar nem, tranquilamente assimilar.” Gullar ( apud NOVAIS, 1988, p. 224).
Com base no exposto, sugestivamente Gullar parece apresentar que a ilusão
é uma forma que o sujeito utiliza para amenizar a realidade, já que esta não pode
ser apagada. Édipo talvez ao resistir aos fatos reais procurasse transformar como
apresenta Derrida (2012, p. 79), em rastro do víssivel: “O rastro é a própria experiência, em toda parte onde nada nela se resume ao presente vivo e onde cada
presente vivo é estruturado como presente por meio da reunião ao outro à outra
coisa, como rastro de alguma coisa outra, como remissão. [...] não há limite tudo
é rastro”. (DERRIDA, 2012, p. 79, 80,81).
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A dança aparece em Salomé de maneira exótica e, sobretudo, sensual. Nesta
obra, a ‘dança dos sete véus’ apresenta-se, talvez, como símbolo da sedução. Isso
posto, por se perceber que a protagonista apesar de não querer dançar para o
tetrarca, depois de muito diálogo resolve dançar, mas para isso Herodes precisa
atender ao ser pedido. A título de exemplo, cita-se: “Salomé, Salomé, dançai paramim. Imploro-vos que dançais para mim.” (WILDE, 1992, p, 80).
Norteando-se do ponto de vista psicanalítico, pode-se inferir que a construção do perfil psicológico das personagens em Salomé, de Wilde, pode refletir
a sexualidade do autor, isto é, uma homossexualidade camuflada, a par de uma
aversão às mulheres. Isso pode ser representado quando Salomé é rejeitada por
Ioknaan: “Quem é esta mulher que está a olhar para mim? Não quero que ela me
olhe.[...] Não sei quem é. Nem quero saber. Não é com ela que quero falar”(WILDE, 1992, 45).Ioknaan como se percebe tentou se afastar de Salomé, parecendo
que sentia o perigo que se tinha em se aproximar de Salomé.
Além disso, pode-seperceber queo ideal de beleza na narrativaanalisada estáatribuídoà figura de João Baptista,representado, paraWilde, como o seu verdadeiro objeto de desejo. Assim, vê-se que o autor parece se projetar na figura de
Salomé, visto que a personagem é uma figura dramática, sedutora. A partir desse
entendimento,Wilde parece idealizarSalomé como representação feminina, por
ser essa mulherpossuidora deuma aparência física idealda mulher. Salomé simboliza a beleza de uma mulher atraente, daí, o motivo de a personagem ter sido
comparada com a Lua. Esta como sendo símbolo ambíguo,idealizado, a partir
dos presságios presentes no drama.
Pode-se, também, fazer uma analogia em Salomé com a passagem bíblica
sobre Adão e Eva: “Para trás, filha Babilônia! Foi através da mulher que o mal
entrou no mundo. Não faleis comigo. Não te quero ouvir. Eu só ouço a palavra do
Senhor”.(WILDE,1992, p. 47).
Oenfoquedado à Salomé, por Wilde, é de uma mulher de beleza fatal, mas
cristalizada, a qual ele identifica com a Lua-símbolo que personifica a ambiguidade e, simultaneamente, a fronteira entre a realidade e a loucurafato representado pelas predições, manifestas em várias passagens deste drama, quando as
personagens são advertidas do perigo de ceder à perda da razão pela excessiva
contemplação da Lua, nesse caso-Salomé. Esse entendimento advém do discurso
de Herodes e Herodias, quando Herodes pergunta onde está Salomé: “Onde está
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Salomé? Onde está a princesa?”. Herodias responde que não deves olhar para ela:
“Não deveis olhar para ela! Estais sempre a olhar para ela!” (WILDE, 1992, p.5657).Vê-se a presença do olhar como decisivo para metaforizar Salomé com a Lua,
como forma de apreensão do vivido pelos personagens da narrativa em questão.
“[...] a construção do mundo humano deve ao fato de que, o que o homem vê a
realidade de que ele apreende a realidade inclusive e principalmente pelo olhar.”
(GULLAR, apud NOVAIS,1988, p.218). Ou seja, para o autor, o sentido do que se
vê como real depende do olhar, o que se vê fornece a realidade muito mais do que
outro sentido.
Ainda sobre a questão de Salomé ser comparada à Lua, se percebenitidamente na passagem em que o jovem Sírio dialoga com Herodias. Sírio fala: “Que
linda que está a Princesa Salomé esta noite! Herodias responde: Olhai para a
Lua! Que estranho aspecto ela tem! Dir-se-ia que anda à procura dos mortos.
Sírio fala: Parece uma princesinha com véu amarelo e pés de prata”. (WILDE,
1992, p.57).Essa analogia de Salomé à Lua leva-se a recorrer ao que dialoga Gullar
sobre a fantasia e o real: “[...] a ilusão como uma forma de, sem poder mais negar
a nova realidade, criar uma nova fantasia possível de um espaço real que não se
pode negar nem tranquilamente assimilar.” Gullar (apud NOVAES, 1988, p. 224).
Ou seja, a princesa Salomé é comparada ou melhor, vista por aqueles que se encantam por ela como o encantamento que a Lua proporciona.
A Lua, tal como a princesa real Salomé, possui uma face obscura. Esse fato
pode sugerir a sexualidade oculta de Wilde. Esta ambiguidade apresenta-se em
Salomé, na ausência total de limites quanto à satisfação dos seus desejos a que
se opõe uma aparência de mulher angelical e, sobretudo, pura, a principal característica sedutora, pois Salomé consegue atrair os sujeitos que pelo olhar se
deixavamseduzir-se: “Se não queremos ver, permanecemos narcisisticamente
indiferentes, iludidos, com soluções fáceis para problemas complexos; endurecidos, olhando para nós mesmos sem sermos capazes de olhar outra coisa que
não seja a própria imagem no espelho.” Gullar(apud NOVAES,1988,p.426).E
ainda continua dizendo: “Ficaremos vivendo engessados com o passado e, sem
saber como caminhar”. Por fim, a protagonista, “[...] é um individuo que conhece também um outro que não conhece e do qual pode saber.” (LENDA, apud
NOVAIS, 1988, p.427).
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O fato de o Jovem Sírio comparar a lua a uma princesa representa essa associação para a princesa Salomé que ele acabara de apreciar. Entretanto, algo mais
chama a atenção nessa lua personificada em mulher qual seja: seu movimento
a dança. E é a partir desse fato que o olhar mais ou menos pertinente faz diferenciar o ponto de vista de um e de outro personagem nessa narrativa.A lua, no
drama, representa um espelho por meio do qual uma imagem, pálida e invertida,
de Salomé é refletida. É assim que quando o JovemSírio lança mais um olhar sobre a personagem, sua imagem é tão parcial quanto o fora anteriormente através
dosseus movimentos. O olhar de Herodias para Salomé parece ser um olhar de
vidente. “[...] sabemos muito bem que os olhos que olhamos e que são visíveis
são também olhos videntes “[...] mas não os vemos simultaneamente como videntes e visíveis.” Gullar(apud NOVAIS, 1998, p. 72).
No decorrer do drama vai sendo progressivamente revelado o ambiente em
que ocorre a tragédia, marcada por profecias e pelo episódio da morte daqueles
que contemplam excessivamente a figura lunar da princesa Salomé. João Baptista é o único que salva a alma, porque renuncia a apreciação, agarrando-se
firmemente à adoração do Filho do Homem para escapar à periculosidade da
sedução feminina, representada na narrativa pela princesa real. O que se percebe, sugestivamente, é que João Batista vê além dos olhos, pois: “[...] apoderar-se
previamente. A antecipação já é algo que, na maioria das vezes, com a ajuda das
mãos, vai ao encontro do obstáculo para prevenir o perigo.” (GULLAR, apud NOVAES, 1998, p.64).
Na história bíblica, João Batista comete o erro de humilhar a mãe de Salomé, por contrariar o seu amor pela filha de Erodias,propondo-se a condená-la
sem piedade. Isso aconteceu, supostamente, por ser João Batista um ser humano
que pensa e, também, sente. Assim, não possuindo a perfeição espiritual de um
filho direto de Deus, cometeu injustiça. Já a Lua, que representa a sua sedução à
figura de Salomé,é orgulho vingativo, reagindo violentamente e passionalmente
à rejeição, tirando a vida ao ser amado para concretizar aquilo o que não consegue realizar com ele: o beijo que lhe foi negado. “Deixa-me beijar a tua boca,
Iokanaan.[...]. Hei-de-beijar a sua boca, Iokanaan. (WILDE,1992, p.53).“Quero
que me tragam agora numa bandeja de prata....exijo a cabeça de Iokanaan”. (
p.91). E quando Herodes ordena que se faça o pedido de Salomé, esta se regozija
e diz: “Ah! Beijei a boca, Iokanaan, beijei a tua boca. Havia um sabor amargo nos
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teus lábios. Seria o sabor do sangue?”. (WILDE,1992, p. 103). Para Gullar:“O sentido do real depende basicamente do olhar o que eu vejo me dá a realidade muito
mais que outro qualquer.” Salomé, ao vê a cabeça de Iokanaan, realizou o que
Gullar vem dizer sobre o olhar, ou seja, o olharrepresenta mais que a realidade.
(GULLAR,apud NOVAIS, 1998, p.220-221)
Vê-se importante apresentar o relato bíblico da história de João Batista,
mesmo que de forma sucinta, para facilitar a compreensão da história de Salomé. A narrativa bíblica apresenta a decapitação de João Batista por Herodes
Antipas,em Mateus 14:1-12, Marcos6:14-29 e Lucas 9:7-9. Com base no evangelho, Herodes ordenou prender João por ele o ter criticado por se divorciar de sua
esposa (Faselia- Phasaelis) e, ilegitimamente, tomar como amante Herodias, a
esposa de seu irmão Herodes. No aniversário de Herodes, a filha de Herodiaschamada de Salomé - dançou diantedo rei e de seus convidados. Sua dança agradou tanto Herodes que, bêbado, ele prometeu a ela qualquer coisa que desejasse,
limitando a promessa em metade de seu reino. Quando a filha perguntou à mãe
o que deveria pedir, Herodiasexigiu que ela pedisse a cabeça de João Batista
numa bandeja. Mesmo pasmado com o pedido, Herodes relutantemente concordou e mandou executar João na prisão.
Portanto, Salomé é a personificação do desejo, das pulsões que são, geralmente, “proibidas” pela religião, representada e defendida com uma paixão de
verdadeiro fundamentalista, por João Baptista.
O que se verifica na narrativa Salomé, é uma história de amor, loucura e
morte, que Oscar Wilde legou para a progênie e que faz o leitor\espectador refletir sobre os limites da paixão e da tolerância.
Vê-se que o olhar em Salomé é representativo na apreensão/conceito de sua
dança, hipoteticamente, por ter sido constituído como alvo da reflexão e tradução artística de pintores, músicos, escultores, escritores dentre outros, e que tal
empenho foi exercido por Wilde em sua pesquisa que antecipa a (re)criação do
mito no seu texto dramático. Teria Wilde, depois de ter-se fascinado pela dançarina e sua dança, principalmente nos textos de seus contemporâneos, deixado,
excepcionalmente, aos diretores de teatro a tarefa de dar forma a sua Salomé?
Ou sua marcamostrar-se como uma estratégia discursiva em sua peça?
Percebe-se em Saloméuma antecipação dos fatos por meio da profecia:“Antecipar quer dizer tomar previamente, [...] apoderar-se previamente. A antecipa-
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ção já é algo que, na maioria das vezes, com a ajuda das mãos, vai ao encontro do
obstáculo para prevenir o perigo.” (DERRIDA, 2012, p.69).
Assim sendo, a obrateatral Salomé,de Oscar Wilde,apresentaasatitudes da
mulher na sociedade vitoriana do fim do século XIX. Esta mulher é representada
por Salomé, mulher que procura consumar suaveleidade a qualquer preço. Usufruindo de seus dotesfísicos, a personagem consegue o que tanto queria, beijar os
lábios de Iokanaan, um sujeito proibido e excitante paraa jovem princesa Salomé.
Após ter consumado seu desejo, a protagonista é alvo do poder de Herodes que
ordena matá-la.Estecomportamento de Salomé e de Herodes pode representar a
proibição do homem heterossexual branco quanto aosdesejos da mulher.
Por fim, o que se percebe, é que em meio a um cenário único, Salomé aparece como uma narrativa teatral intrigante, visto que diverge dos textos teatrais
tradicionais,como os renascentistas em sua composição textual e cênica. Salomé
também diverge da questão do lugar que a mulher inglesa possuíanos tempos do
reinado da rainha Vitória. Estas mudanças na narrativa de Wilde sinalizam uma
‘ruptura’ nas questões sociais do século XIX.
Considerações Finais
Percebe-se que no decorrer do drama vai se percebendo observando arevelado do ambiente propício à tragédia, assinalada por presságios e pela ocorrência da morte das pessoas que contemplam através do olhar a figura lunar da
Princesa Real/Salomé. João Baptista é o único que salva a alma por renunciar a
contemplar Salomé, agarrando-se firmemente à adoração do Filho do Homem
para escapar à da fatalidadeda sedução feminina proporcionada pela protagonista do drama.
Salomé é uma princesa da Judéia que se apaixona por um profeta (Iokanaan).
Filha de Heródias, que é a rainha da Judéia e mulher de Herodes, o rei quemandou matar seu irmão, antes casado com Heródias, para assumir o posto de rei.
Herodes cobiça Salomé e chega a pedir para que ela dance, e em troca lhe daria
qualquer coisa até metade de seu reino. Salomé então com sua esperteza realiza
o desejo do rei, mas para isso, pede a cabeça de Iokanaan, que a desprezou. Herodes tenta desfazer o pedido de Salomé, oferecendo até metade do reino, mas a
personagem não aceitou, queria a cabeça de Iokanaan. Heordias fez cumprir sua
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
palavra, mas diante do horror de seu ato manda matar Salomé. Parece que em
Salomé presencia-se uma defesa ambígua da sensualidade e da luxúria.
Observa-se que as imagens visuais em Salomé fazem lembraro imaginário
poético desta personagem com maior força no texto de Wilde. Possivelmente, o
autor, em consonância com os evangelhos de Mateus e Marcos, pode ter excluído
alguma descrição expressa da dança de Salomé. Sua narrativa, entretanto, não
se deixa de apresentar mesmo a plasticidade fictícia de Salomé, fazendo-a dançar no acompanhamento lírico musical que se estende em todo o drama: “[...] a
dança[geralmente] depende da música para se realizar” (SAMUEL, 1998, p. 25).
Logo, música e dança são os modelizantes da narrativa Salomé que tornam esta
história de Wilde umexpressivo texto entre inúmeros outros na literatura e nas
artes que lidaram com o Festim de Herodes.
Em Ferreira Gullar percebe-se que em sua narrativa consegue transcender
não apenas os problemas teóricos, mas construí, por meio da vivacidade que faz
da palavra, produz uma poética do olhar e da eventualidade. O olhar na poesia
de Gullar é um artifício importante, pois o autor consegue direcionar o olhar
para o passado poético, mas é no encontro de olhares entre o leitor e o texto, que
o leitor se vê edificado por uma plasticidade da palavra, bem como domovimento
de descolamento que o leitor deve fazer para observar-se no poema.
Por fim, percebe-se nessa narrativa a presença visual de Salomé e o desenvolvimento de sua dança como forma de constituição do si mesma da personagem. Assim sendo, pode-se dizer que, para se ter uma boa compreensão desse
drama, as categorias (o olhar e dança), facilita o entendimento de quem é Salomé. Aliás, parece-nos que tudo que se possa investigar a propósito de Salomé
depende de um ponto de vista em que seu observador tenha uma ampla visão de
suas realizações textuais ou modos de comunicação, de sua semiose na literatura
e nas artes.
Logo, o olhar/não olhar perpassa toda a narrativa.O jogo do olhar na construção da identidade nesta narrativa se dá durante toda a história, por meio do
drama dos personagens.Logo, esta narrativa vai gradativamente desnudando as
atitudes de Salomé, e dos demais personagens. Quando se percebe que as vidas
aparentemente estáveis se desestabilizam, ou melhor, descentram-se.
3804
Maria da Luz Duarte Leite Silva
Referências
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Michaud, Joana Masó, Javier Bassos; trad. Marcelo Jacques de Moraes revisão técnica
João Camilo Penna. –Florianópoles: ed. Da U. F. S. C. 2012.
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SeminárioPermanentedeLiteraturaComparada. Rio de Janeiro: Departamento de
CiênciadaLiteratura/Faculdadede Letras/UFRJ, 1996, n.3.
3805
RESUMO
Este trabalho objetiva apresentar algumas considerações e resultados de pesquisa
a respeito do letramento literário, acerca da importância do ensino de leitura de
poesia em sala de aula, bem como a significância da sistematização desse gênero
no Ensino Fundamental. Nesse contexto, percebe-se que, na maioria das vezes, há
uma tendência de o poema ser apresentado na escola como mero pretexto para análise gramatical ou questionamentos sobre o aspecto formal. Para discorrer sobre o
tema, utilizou-se como base teórica, os trabalhos de Cosson (2006 e 2014) e Paulino (2007), quanto ao tratamento do letramento literário; as reflexões a respeito
do ensino de literatura de Pinheiro (2002) e Sorrenti (2007), especificamente sobre
ensino de poesia; e, de forma geral, sobre ensino de literatura, Lajolo (1982 e 2000),
Todorov (2009) e Zilberman (1988 e 2003). Dessa maneira, no interesse envolto na
pesquisa desenvolvida junto ao Projeto de Mestrado (Profletras/UFRPE), busca-se
percepções sobre questões do ensino do poema e práticas docentes em literatura,
mais precisamente com o trabalho com o texto literário. Sendo assim, este estudo
também busca refletir sobre a importância do uso dos poemas no Ensino Fundamental para despertar e instigar o aluno a continuar lendo textos literários. Nosso
interesse em investigar o referido assunto também se justifica pela tentativa de contribuir com os debates a respeito do uso de textos literários e dos livros didáticos de
Português no ensino de literatura, promovendo o letramento literário.
Palavras-chave: Ensino de literatura, Letramento literário, Poesia.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
POESIA E LETRAMENTO LITERÁRIO
NO ENSINO FUNDAMENTAL
Ginete Cavalcante Nunes (UFRPE)
Introdução
O objetivo deste artigo1 é apresentar algumas considerações e resultados
de pesquisa a respeito do letramento literário, acerca da importância do ensino
de leitura de poesia em sala de aula, bem como a significância da sistematização desse gênero no Ensino Fundamental. Acreditamos que a poesia é uma
ótima opção para professores que se propõem a trabalhar com textos significativos visando à formação de leitores críticos e reflexivos.
Sabe-se do imenso valor que a poesia possui, mas são desconhecidas algumas das contribuições que esse gênero reflete na formação dos alunos do
ensino fundamental. Atualmente, a poesia é tida como uma auxiliadora no
processo do letramento literário, sendo que os poemas abordem temas que digam respeito à sociedade e ao nosso tempo, contribuindo para a formação de
um leitor crítico e atuante que se identifica como um ser social transformador.
No entanto, infelizmente, o que se percebe é que a poesia é um gênero
bastante desvalorizado no contexto escolar. Na verdade muitos educadores sabem sobre a importância da poesia, porém, faltam-lhes estratégias para trabalhar com esse gênero de forma a promover o letramento literário. Os livros
1. Este artigo faz parte da dissertação de Mestrado em Letras (PROFLETRAS) que está em andamento com
o tema: Poesia e Letramento literário no Ensino Fundamental – Universidade Federal Rural de Pernambuco.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
didáticos em sua grande maioria, quando tratam desse gênero em seu conteúdo, servem apenas como um pretexto para a realização de estudos gramaticais,
piorando assim o tratamento dado ao uso do poema em sala de aula.
No contexto desse panorama, vale-nos ressaltar o que diz Regina Zilbermam no que concerne ao ensino de literatura:
A Literatura [...] é levada a realizar sua função formadora, que não se
confunde com uma missão pedagógica. [...] Aproveitada em sala de aula
na sua natureza ficcional que aponta a um conhecimento de mundo, e
não enquanto súdita do ensino de boas maneiras (de se comportar de
ser ou de falar e escrever), ela se apresenta como elemento propulsor
que levará escola à ruptura com a educação contraditória e tradicional.
(ZILBERMAM, 2003, p.25.)
A autora ainda reflete que:
Quando o professor possibilita a fruição dos seus alunos, ele está dando
reais condições para que estas crianças possam se desenvolver, baseados na liberdade de expressão, independentemente do livro que lhes foi
apresentado, pois a justificativa que legitima o uso do livro na escola
nasce, de um lado, da relação que estabelece com seu leitor, convertendo-o num ser crítico perante sua circunstância; e, de outro,
do papel transformador que pode exercer dentro do ensino, trazendo-o
para a realidade do estudante e não submetendo este último a um ambiente rarefeito do qual foi suprida toda a referência concreta. (ZILBERMAN, 2003, p.18)
Percebendo-se a dificuldade que muitos professores enfrentam em sua sala
de aula no que concerne ao ato da leitura, principalmente de poemas cabe ressaltar o que diz Souza (2012):
Infelizmente, poucos são os momentos em que os poemas estão presentes na prática docente. Quando são trazidos pelos educadores para as
atividades escolares, muitas vezes são tratados apenas como textos destinados à leitura silenciosa, impressos em papel. (SOUZA, 2012, p. 83)
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Ginete Cavalcante Nunes
Portanto, é de fundamental importância que os educadores selecionem e
busquem poemas que possam contribuir para a formação de leitores proficientes
e competentes, pois, o trabalho com a poesia realizado em sala de aula pode,
sem dúvida alguma fazer o aluno apropriar-se da linguagem literária e também
exprimir suas idéias e críticas. Sobre isso é importante notar o que diz Cosson
(2014) sobre esse trabalho com a linguagem literária.
A leitura literária conduz a indagações sobre o que somos e o que queremos viver, de tal forma que o diálogo com a literatura traz sempre a
possibilidade de avaliação dos valores postos em uma sociedade. Tal
fato acontece porque os textos literários guardam palavras e mundos
tanto mais verdadeiros quanto mais imaginados, desafiando os discursos prontos da realidade, sobretudo quando se apresentam como verdades únicas e imutáveis. Também porque na literatura encontramos
outros caminhos de vida a serem percorridos e possibilidades múltiplas
de construir nossas identidades. Não bastasse essa ampliação de horizontes, o exercício de imaginação que a leitura de todo o texto literário requer é uma das formas relevantes do leitor assumir a posição de
sujeito e só podemos exercer qualquer movimento crítico quando nos
reconhecemos como sujeitos. (COSSON, 2014, p. 50)
Cabe ressaltar a relevância que o tema tem para se pensar a construção de
uma ação pedagógica mais qualitativa, fazendo da instituição escolar um lugar
onde os estudantes passam a vivenciar e apreciar suas diversas formas de criação e expressão, pois educar e aprender não cessam, são momentos fascinantes,
infinitos e cheios de aprendizagens , quando se propõe uma prática de ensino
sistemático e significativo.
Sendo assim, para a perspectiva que escolhemos torna-se imprescindível
enfatizar a abordagem de Cosson (2006) para nortear o trabalho no que tange
ao letramento literário, por entendermos que esta abordagem está totalmente
de acordo com a proposta de promoção do letramento literário no Ensino Fundamental e elucidam o nosso ponto de vista, pois, para Cosson (2006) a fruição
do texto literário é um trabalho sistemático e contínuo de uso das obras em sala
de aula. A ligação com movimento ou dados históricos é secundário. Ele ainda
acentua que:
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A literatura não apenas tem a palavra em sua constituição material,
como também a escrita é seu veículo predominante. A prática da literatura, seja pela leitura, seja pela escritura, consiste exatamente em uma
exploração das potencialidades da linguagem, da palavra e da escrita,
que não tem paralelo em outra atividade humana. Por essa exploração,
o dizer o mundo (re) construído pela força da palavra, que é a literatura, revela-se como uma prática fundamental para a constituição de
um sujeito da escrita. Em outras palavras, é no exercício da leitura e da
escrita dos textos literários que se desvela a arbitrariedade das regras
impostas pelos discursos padronizados da sociedade letrada e se constrói um modo próprio de se fazer dono da linguagem que, sendo minha,
é também de todos. (COSSON, 2006, p. 16)
Percebe-se assim a importância do ensino da literatura e que está tem a palavra como sua propriedade e como a palavra é objeto de exploração artística na
arte literária, sendo-a de uso imensurável no corpo da linguagem, isso permite
ao homem a prática de vida, fazendo conhecer-se, com a expectativa de conviver em sociedade, quando interage com esse texto sabendo as diretrizes que o
sustenta como ser cultural. Nesse contexto, Tzvetan Todorov (2009) pontua que:
A literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que os outros
seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos
cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com
os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona
sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples entretenimento,
uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um
responda melhor à sua vocação de ser humano (TODOROV, 2009, p.
23-24).
Portanto, compete à escola promover e propiciar essa leitura literária com o
trabalho efetivo e sistemático do professor servindo de trampolim para facilitar
o gosto pela literatura e leitura de poemas, tornando a leitura poética significativa, estimulando a variedade de experiência, a formação de juízo crítico, a autonomia e responsabilidade leitora dos estudantes do Ensino Fundamental.
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Ginete Cavalcante Nunes
A Importância da poesia na sala de aula
Entendemos que o uso de poemas na sala de aula pode se tornar um recurso
eficiente para a promoção do letramento literário no ensino fundamental apaixonante, porém o que percebemos é que infelizmente são poucos os professores
que trabalham efetivamente com a poesia e poemas em suas salas e quando trabalham dão o tratamento ao poema semelhante ao que se dá a outros gêneros
onde infelizmente um poema é tratado da mesma forma que um anúncio, uma
bula, um cartaz, um bilhete, uma receita. Isso é a “desmoralização e desqualificação da literatura”.
Sorrenti (2007) trata sobre o trabalho do professor com a poesia na sala de
aula:
Mais do que nunca é tempo de valorizar o perfil do leitor do texto poético, lembrando o papel preponderante que tem a interação texto-leitor.
Tal interação, vista à luz da contigüidade, da correspondência que se
avizinha no jogo da troca de experiências, reforça ainda mais a importância do papel do professor na tarefa de iluminar o grande encontro
entre o texto poético e o aluno. (SORRENTI, 2007, p. 151, 152)
De acordo com José (2003, p. 11), “vivemos rodeados de poesia”, ou seja, poesia é tudo que nos cerca e que nos emociona quando tocamos, ouvimos ou provamos, poesia é a nossa inspiração para viver a vida.
Ainda conforme José (2003, p. 101), “ser poeta é um dom que exige talento
especial. Brincar de poesia é uma possibilidade aberta a todos.”. Então, se todos
podemos brincar de poesia, por que não trabalharmos a poesia de forma sistemática na sala de aula, mostrando aos alunos que eles também são capazes de
produzir?
Ratificando a importância da presença da poesia na sala de aula e a importância do seu trabalho. Vejamos o que diz o poeta:
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Convite
Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.
Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.
As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.
Como a água do rio
que é água sempre nova.
Como cada dia
que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia?
(PAES,2008)
É interessante notar ainda o que diz o escritor mexicano Octavio Paz (1982)
sobre a poesia:
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Ginete Cavalcante Nunes
A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz
de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia
revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola;
une. (PAZ, 1982, p.15)
O escritor traduz de forma concisa a função e importância da poesia na
vida, pois, em verdade, um texto é, ele também, uma dinâmica viva, mesmo que
aparentemente congelada numa forma gráfica. Não nos deixa mentir o poeta:
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
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Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
(DRUMMOND, 1977)
Conforme percebemos, a poesia é capaz de sensibilizar o ser humano, e
nesse sentido evidencia-se a importância de trabalhar o gênero em fase escolar,
para tanto deve ser levado em conta tanto a recepção quanto às contribuições da
poesia para a promoção da leitura literária no Ensino Fundamental.
A grande maioria dos professores optam por não ocupar suas aulas lecionando poesia, ou ao menos incluí-las em seu material, para que a aula fique mais
interessante. Ou seja, a escola passa a refletir a atitude da sociedade em geral
com o desinteresse pela literária poética.
Drummond afirma:
A escola enche o menino de matemática, de geografia, de linguagem,
sem, via de regra, fazê-lo através da poesia da matemática, da geografia, da linguagem. A escola não repara em seu ser poético, não o
atende em sua capacidade de viver poeticamente o conhecimento e
o mundo [...]. O que eu pediria à escola, se não me faltasse sem luzes
pedagógicas, era considerar a poesia como primeira visão direta das
coisas, e depois como veículo de informação prática e teórica, preservando em cada aluno o fundo mágico, lúdico, e criativo, que se identifica basicamente com a sensibilidade poética. (DRUMMOND apud
AVERBUCK, 1998, P 66 – 67).
Entendemos com essa afirmação que é nesse meio que se insere a escola,
proporcionando a aprendizagem, facilitando o processo que eleva a importância,
segundo Averbuck (1988) “de um ensino voltado para a criatividade como meio
formador da sensibilidade”. E a poesia é um caminho para tal, sendo trabalhada
de forma ordenada no Ensino Fundamental. Desse modo, notemos o que diz
Sorrenti (2007) sobre a importância do trabalho com a poesia na sala de aula:
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Ginete Cavalcante Nunes
Na sala de aula, o trabalho com a poesia geralmente ocupa um
tempo restrito, porque há muitos assuntos a serem estudados.
Mas é preciso aconselhar o aluno a não entregar a criação poética ao domínio da pressa, do sonho e da inconsciência. Faz-se necessário ressaltar sempre a importância do raciocínio e da atenção.
(SORRENTI, 2007, p. 52)
Para muitos, trabalhar com poesia é perca de tempo, achando estes que a
poesia é “algo do além”, “inacessível”, porém, ao deixar de se trabalhar com a
poesia, há, sem dúvida, um rombo enorme na passagem do Ensino Fundamental para o Ensino Médio. Portanto, poesia é assunto que deve estar em pauta no
Ensino Fundamental e segundo Sorrenti (2007):
O fazer poético pode estar ao alcance de todos, mas o professor deverá
tomar cuidado para não incorrer em posturas extremistas: não supervalorizar imerecidamente o texto do aluno nem descartar e\ou desvalorizar as suas tentativas de criação poética. A poesia é um espaço de
liberdade. Entre tantas formas de poesia, certamente haverá uma que
vai fascinar o nosso aluno. (SORRENTI, 2007, p. 52)
Ainda conforme Sorrenti (2007) “É importante que a escola faça de tudo
para preservar a sensibilidade estética do aluno”. Com isso, a autora afirma a
importância de se fazer um trabalho bem sistematizado com a poesia na sala de
aula, visto ser esse um gênero de grande importância para o processo de ensino
e aprendizagem, também por ser um gênero que trabalha com a função poética
da linguagem, fazendo com que os estudantes reflitam sobre o texto literário,
sendo este de um grau maior de complexidade, pela própria especificidade da
linguagem literária.
Pinheiro (2002, p.23) afirma que “[...] a leitura do texto poético tem peculiaridades e carece, portanto, de mais cuidados do que o texto me prosa.” Portanto,
torna-se necessário um trabalho mais elaborado com o texto literário, somente
assim poderemos formar alunos críticos e reflexivos.
No estudo feito por Pinheiro (2003) sobre a Abordagem de poema: roteiro de
um desencontro, foi constatado que os livros didáticos destinados ao terceiro e
ao quarto ciclo do ensino fundamental apresentam poemas, mas a forma como
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
são abordados é o grande problema. A simples presença de poemas nos livros
didáticos não é a única condição para desenvolver o gosto em lê-los, portanto,
o trabalho do professor é indispensável para que a idealização do Letramento
literário seja efetivamente concretizado.
Em concordância com Pinheiro (2003), a pesquisadora Maria da Glória Bordini, destaca entre as formas literárias, a poesia, seja qual for a faixa etária do
destinatário, é a que mais exige a introspecção, e:
O poema, porque condensa vários sentidos num espaço gráfico mínimo
exige de seu leitor um olhar mais atento à página, uma ativa mobilização do conteúdo intelectual e afetivo preexistente a esse contato, um
ajustamento contínuo de emoções e desejos, juízos e avaliações, à medida que a leitura progride. Isso ocorre com a mesma força de demanda
quanto à poesia infantil esteticamente válida. (BORDINI, 1986, p. 31)
Segundo Gebara (2007), a leitura do poema acaba sendo feita de forma equivocada em que na maioria das vezes ele é lido com a utilização de estratégia da
recitação ou leitura dramatizada, servindo apenas como método decorativo nas
aulas. Com isto, o texto poético é visto de maneira superficial, sendo utilizado
apenas como um objeto decorativo das aulas no ensino fundamental especificamente. Como afirma Pinheiro (2003), ao escolher textos poéticos deve-se levar
em conta os critérios estéticos que o constitui, como o ludismo sonoro, as imagens simbólicas e a riqueza da linguagem figura que ele contém.
Sorrenti (2007) tratando ainda sobre o trabalho do professor com a poesia
na sala de aula faz a seguinte reflexão:
Acredito que melhor seria pensar em se criar na escola uma aproximação com a poesia visando criar e\ou continuar criando o gosto pelo texto poético [...] a teorização não funciona, porque torna o trabalho árido,
cansativo e pode esconder o melhor da festa – que é a descoberta (ou a
redescoberta) da poesia. O estudo sistematizado das regras de versificação não é capaz de favorecer esse estado de empatia do leitor em relação
ao poema. (SORRENTI, 2007, p. 58)
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Sorrenti (2007) ainda ressalta a importância dos poemas serem trabalhados
em sala de aula de forma que estes se tornem reais para os alunos, como uma
experiência que pode ser realizada com prazer através do exercício do dizer, do
ouvir e do vivenciá-los.
Vejamos:
A maneira de receber a poesia na sala de aula não deixa de ser um momento especial, mas não deve revestir-se de exageros e pompas muito
menos ficar a serviço de atividades redutoras da sua proposta estética.
Obrigatoriedade para a memorização e cópia, estudo de gramática e
fixação de termos técnicos da versificação devem ficar longe do alcance
do aluno [...]. A poesia é para ser lida, ouvida, cantada, sentida, vivenciada. (SORRENTI, 2007, p. 103,104)
Em se tratando do trabalho com a poesia na sala de aula, como bem reflete
a autora, esse é um momento muito especial e que deve ser dinâmico, cabendo
ao professor o papel de provocador de um estado de sensibilização, de iluminador de caminhos para a leitura poética, principalmente na passagem do Ensino
Fundamental para o Ensino Médio; para assim, formar jovens leitores literários.
Letramento literário: além da simples leitura.
Como sabemos, o texto literário tem uma linguagem específica, a conotativa. Em relação à linguagem literária, percebe-se que devido ao pequeno trabalho
com ela, os adolescentes e jovens perdem o prazer pela leitura literária, pois já
não sabem ler e nem compreender o que leem, já que uma das características do
texto literário é a complexidade.
Salientaremos o que dizem os PCNs de Língua Portuguesa sobre o trabalho
com o Texto Literário:
A questão do ensino de Literatura ou da leitura literária envolve, portanto, esse exercício de reconhecimento das singularidades e das propriedades compositivas que matizam um tipo particular de escrita. Com
isso , é possível afastar uma série de equívocos que costumam estar pre-
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sentes na escola em relação aos textos literários , ou seja , tratá-los como
expedientes para servir ao ensino das boas maneiras , doa hábitos de
higiene , dos deveres do cidadão , dos tópicos gramaticais , das receitas
desgastadas do “ prazer do texto ”,etc. Postos de forma descontextualizada, tais procedimentos pouco ou nada contribuem para a formação
de leitores capazes de reconhecer as sutilezas , as particularidades , os
sentidos ,a extensão e a profundidade das construções literárias . (BRASIL , 1997,p.37,38)
O texto literário é um enigma a ser decifrado, pois ele é cheio de especificidades. Como afirma Cosson (2006, p. 23), “Devemos compreender que o letramento literário é uma prática social, e como tal, responsabilidade da escola”.
Então cabe ao professor desvendar esse mundo com seu aluno.
Faz-se urgente, aulas com leituras de qualidade em todos os sentidos da
palavra, aulas que priorizem o desenvolvimento do pensamento humano, isso é
possível através do texto literário.
Concernente a isso é importante notar o que diz Domício Proença Filho em
seu livro A Linguagem Literária, falando sobre o texto literário:
O Texto de literatura pode ainda ser considerado como pretexto para a
compreensão da língua, seu ponto de partida, procedimento bastante
comum na realidade pedagógica brasileira costuma também ser associado ao estudo de outras manifestações culturais. (PROENÇA FILHO,
2007, p. 17)
Entendemos que o texto literário não deve ser tratado como um mero texto
didático desarraigado de suas especificidades que o tornam literário e trabalhado como mero pano de fundo para se tratar as questões linguísticas, retirando
assim o seu contexto e privando os alunos do seu prazer estético de arte, “arte da
palavra”.
Cosson (2006) comenta sobre a importância de ensinar a ler o texto literário:
Se quisermos formar leitores capazes de experienciar toda a força humanizadora da literatura, não basta apenas ler.Até porque, ao contrário
do que acreditam os defensores da leitura simples, não existe tal coisa.
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Lemos da maneira como nos foi ensinado e a nossa capacidade de leitura depende, em grande parte, desse modo de ensinar, daquilo que nossa
sociedade acredita ser objeto de leitura e assim por diante. A leitura
simples é apenas a forma mais determinada de leitura, porque esconde
sob a aparência de simplicidade todas as implicações contidas no ato de
ler e de ser letrado. (COSSON, 2006, p. 29)
A excelência do texto literário mostra a capacidade humana de usufruir de
todos os recursos da linguagem para exteriorizar o que está em oculto, o que
é subjetivo e que necessita de reflexão, pois está internalizado no seu ser mais
consciente ou inconsciente.
Sobre isso é importante notar o que diz Cosson (2006) sobre a importância
do letramento literário:
É justamente para ir além da simples leitura que o letramento literário é
fundamental no processo educativo. Na escola, a leitura literária tem a
função de nos ajudar a ler melhor, não apenas porque possibilita a criação do hábito de leitura ou porque seja prazerosa, mas sim, e sobretudo,
porque nos fornece, como nenhum outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo
feito linguagem.(COSSON, 2006, p. 30)
Para a promoção do letramento literário, faz-se necessário ir além da simples leitura do texto literário, tentando superar as dificuldades que engendram
esse trabalho que por natureza é complexa.
Vejamos Paulino (2007):
A arte não mente, ao tornar concreto o imaginário por meio da linguagem. No caso da literatura, essa linguagem é língua oral ou escrita
que ultrapassa padrões, tanto na materialidade significante quanto na
instauração de sentidos. Assim, no plural, o termo “sentidos” revela-nos
outro aspecto da existência do texto literário enquanto texto artístico:
não há como nele negar o caráter poli-fônico do discurso, e não foi por
acaso que Bakhtin escolheu a literatura para fundamentar sua teoria
dialógica da enunciação. O outro está presente, portanto, de forma as-
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sumida no discurso literário, e mais presente nele que em outros discursos. [...] A leitura literária eticamente desejável tem um campo de
liberdade e de subjetividade digno de atenção, especialmente por parte
de professores desejosos ou obrigados a seguir parâmetros, supervisões,
coordenadores, programas, manuais didáticos e pais. (PAULINO, 2007,
p. 13-19)
Percebemos nesta passagem que o texto literário, então, como discutido
por diversos autores de renome, é subjetivo e faz um trabalho de destaque com
a linguagem.
Cosson (2006) chama a atenção para o trabalho com a literatura, que esta é
uma prática e um discurso, cujo funcionamento deve ser compreendido criticamente pelo aluno. Cabe ao professor fortalecer essa disposição crítica, levando
seus alunos a ultrapassar o simples consumo de textos literários. Os textos literários devem ser discutidos, analisados, lidos, questionados, refletidos, relidos
criticamente. Somente com esse trabalho sistemático é que se pode ir além da
simples leitura.
Desse modo, tendo em vista este trabalho com a literatura, ainda cabe-nos
ressaltar o que diz Cosson (2006) sobre a importância de ensinar a ler literatura:
A análise literária, ao contrário, toma a literatura como um processo
de comunicação, uma leitura que demanda respostas do leitor, que o
convida a penetrar na obra de diferentes maneiras a explorá-la sob os
mais variados aspectos. É só quando esse intenso processo de interação
se efetiva que se pode verdadeiramente falar em leitura literária . A segunda é que, como já o afirmamos acima, aprendemos a ler literatura
do mesmo modo como aprendemos tudo mais, isto é, ninguém nasce
sabendo literatura. (COSSON, 2006, p. 29)
Percebe-se então a importância do trabalho do professor com o texto literário, pois, a leitura literária, numa proposta de letramento, tem a função segundo
Cosson (2006) de inserir o aluno numa proposta maior de uso da escrita e está
concepção vai além das práticas escolares usuais.
3820
Ginete Cavalcante Nunes
Cosson (2006) ainda ressalta que:
É justamente para ir além da simples leitura que o letramento literário é
fundamental no processo educativo. Na escola, a leitura literária tem a
função de nos ajudar a ler melhor, não apenas porque possibilita a criação do hábito de leitura ou porque seja prazerosa, mas sim, é sobretudo,
porque nos fornece, como nenhum outro tipo de leitura faz , os instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo
feito linguagem.(COSSON, 2006, p. 30)
Nesta perspectiva , ainda segundo Cosson (2006):
O letramento literário, conforme o concebemos, possui uma configuração especial. Pela própria condição de existência da escrita literária
[...] o processo de letramento que se faz via textos literários compreende
não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas
também, e sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio. Daí
sua importância na escola, ou melhor, sua importância em qualquer
processo de letramento, seja aquele oferecido pela escola, seja aquele
que encontra difuso na sociedade. (COSSON, 2006, p. 12)
Cosson ratifica a importância de se fazer um trabalho sistemático com o
texto literário, o qual por natureza difere dos outros textos, sendo assim, necessita desse olhar diferenciado pelo professor de literatura e de procedimentos
que efetivem a proposta de letramento literário, oferecendo ao professor um
método para se trabalhar a literatura a literatura na escola, compreendendo
que todo processo educativo precisa ser organizado para atingir seus objetivos
Cosson (2006).
Considerações finais
A poesia deve permear a sala de aula e os poemas devem ser trazidos pelos
professores e trabalhados de forma significativa na sala de aula e não serem tratados apenas como textos simplesmente destinados à leitura silenciosa. Sendo
assim, sem dúvida alguma os alunos se apropriariam de suas características e o
letramento literário seria promovido.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
As ideias aqui contidas são reflexões, não acabadas, mas com possibilidades,
dentre muitas existentes de se pensar com mais carinho no uso da poesia em
sala de aula de forma sistemática e a contribuição que o uso dos poemas traz
para a promoção da leitura literária no Ensino Fundamental.
Torna-se imprescindível para os professores, portanto, para o profissional
da educação, a oportunidade de refletir sobre o uso dos poemas em suas aulas.
Este trabalho de pesquisa, porém, não se caracteriza e nem tem a pretensão de
ser um ponto final sobre o tema investigado, pois nenhuma pesquisa se esgota
em si mesma, mas constitui–se em uma contribuição, abrindo espaço para que
novas pesquisas sejam elaboradas tendo como principal função: a transformação
social da escola através da leitura literária.
A importância da poesia na escola está também na sua ação formadora,
pois ela representa uma forma que ajudará a ampliar o domínio da linguagem e
capacita o leitor na construção do conhecimento. Assim, o texto poético possibilita ao indivíduo conhecer a si mesmo e ao outro e ainda o mundo que está à sua
volta. Leva à recriação e à busca de novos sentidos que um texto pode oferecer.
Diante dessas reflexões, é importante reafirmar que a poesia é um dos recursos mais encantadores do processo educacional, visando o crescimento estético, crítico e literário dos estudantes, portanto é imprescindível que se trabalhe
de forma eficaz e utilitária esse tão precioso gênero em sala de aula, promovendo
assim o Letramento Literário no Ensino Fundamental.
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3823
RESUMO
A poesia tem sido tema de discussões entre poetas, pesquisadores, críticos e teóricos
literários, no âmbito do ensino e da pesquisa, como atividade que conduz o leitor ao
desenvolvimento social, cultural e humano. No entanto, não tem ocupado espaço
privilegiado no cotidiano da sala de aula e tal situação tem sido desafiante quando
estão envolvidas questões temáticas e/ou estilísticas, resultando no afastamento do
leitor. Assim sendo, pretendemos analisar a poesia erótica de duas poetas Gilka Machado e Olga Savary, principais representantes dessa temática no cenário literário
brasileiro, focalizando as discussões sobre corpo, desejo feminino, amor, alma, sexualidade. E ainda promover reflexões que atuem na formação e na transformação
do leitor literário. Nosso corpus literário se constitui de poemas de temática erótica
e nossa metodologia se refere à análise interpretativa que desperte a imaginação
criadora do leitor nos vários segmentos da vida. Tal poesia está em diálogo com a
mitologia, psicologia, antropologia, filosofia, propiciando a inter-relação entre o leitor e o texto. Para tanto, buscamos nos estudos de Hélder Pinheiro (2007), Barthes
(2004) e Eliana Kefalás (2012), reflexões e práticas sobre os mecanismos adequados
para a leitura de poemas que potencializem o conhecimento como meio eficaz na
construção de diferentes modalidades. Espera-se que a poesia erótica seja um espaço interdisciplinar e instrumento de elevação, promoção e socialização humana.
Palavras-chave: Poesia erótica, Leitor, Leitura, Ensino.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
POESIA ERÓTICA EM SALA DE AULA:
LEITURA E ENSINO
Maria do Socorro Pinheiro
Introdução
A poesia é mais fina e mais filosófica do que a
história; porque a poesia expressa o universo,
e a história somente o detalhe.
(Aristóteles)
A poesia nos causa prazer e nos provoca diferentes reflexões. Ter acesso à poesia é adentrar um novo mundo e nele aspirar aos melhores perfumes, que emanam
não de algum lugar, mas da palavra, reveladora de sentidos para a vida. Quem dela
se embriaga, liberta-se dos limites, rompe as fronteiras, transpõe o infinito. Por
meio da palavra poética, chegamos aos mais surpreendentes lugares. Saciamos
nossa fome de palavra e garantimos nossa sobrevivência na poesia, que serve de
alimento e de aventura para o espírito desejoso de sonhos e de fantasias. Com a
poesia, saímos da cegueira sepulcral e os nossos olhos se abrem para a expansão
da vida.
Por considerar a poesia um gênero literário, que alia as subjetividades e o
mundo em vários planos, a partir de enfrentamentos, confrontos e apelos oriundos do próprio interior, nós decidimos, neste trabalho, aprofundar nossos estudos,
e trazer para a sala de aula uma temática quase não estudada. A ausência está na
associação equivocada que se faz do erotismo à imoralidade e/ou situações de obscenidade, causando temor e desconforto em alguns professores, sobretudo naqueles que não receberam uma formação especializada sobre o assunto.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
A poesia atua na transformação do mundo e alivia nossas almas tão apegadas às mesmíssimas coisas. Sua dimensão revolucionária nos faz viver diferentes
sensações num espaço tempo que se aproxima cada vez mais, porque existe como
linguagem humana. A poesia nos convoca para uma existência mais livre e mais
profunda, residindo no homem a força transformadora capaz de interpretar e assimilar os diferentes diálogos.
Assim sendo, pretendemos analisar a poesia erótica de Gilka Machado (1991)
e Olga Savary (1982), como um campo de conhecimento que abre espaço para
algumas discussões sobre corpo, desejo feminino, amor, alma, sexualidade, promovendo novas perspectivas na formação e na transformação do leitor literário.
Nosso trabalho está fundamentado nos estudos de Hélder Pinheiro (2007), Barthes (2004) e Eliana Kefalás (2012), que trazem reflexões e práticas sobre os mecanismos adequados para a leitura de poemas que potencializem o conhecimento
como meio eficaz na construção de diferentes modalidades. A poesia erótica é um
espaço interdisciplinar e instrumento de elevação, promoção e socialização humana, integrando um conhecimento para distintas formações e áreas.
Gilka Machado e Olga Savary são representantes da poesia erótica no Brasil.
Gilka foi inovadora no gênero erótico por mostrar Eros sob a ótica do eu poético
feminino de acentuado lirismo. A inovação, verificada desde seu primeiro livro
Cristais Partidos, de 1915, consiste não no fato de ter escrito esta ou aquela temática, mas como fez para engrandecê-la na poesia. E o que observamos, vem da
construção do eu poético, que se olha, que pensa sua existência na dimensão da
liberdade, não cultivando aprisionamentos. Saiu do “ergástulo do lar”, partiu o
cristal e com outras formas encontrou o cristal do sonho, diz: “antes pedra ser,
inseto, verme, ou planta, / do que existir trazendo a forma de mulher” (p. 26). Não
cultivou a imagem de mulher passiva, sem anseios, sem cor, sem manhãs azuis,
mas uma que pudesse viver de sonhos e de imaginação.
Olga Savary escreveu seu primeiro livro de poesia erótica Magma, publicado
em 1982, contendo versos de extremada carnalidade. Seu erotismo traz imagens
do mundo selvagem, unindo o humano e o animal por meio de acalorada sensações de gozo. A poeta transforma a palavra num instrumento de força erótica, que
torna a sua verve mais audaciosa e sedutora. As duas poetas refletem a condição
humana a partir das relações de desejo, da busca constante de complementação e
do sentimento de totalidade, que tem como cerne a interiorização da vida.
3826
Maria do Socorro Pinheiro
Eros, leitura e ensino
Eros é visto como o deus do amor, chamado pelos romanos de Cupido, jovem belo e apaixonado, representado na mitologia mais antiga, como uma das
forças da natureza. Segundo Joaquim Brasil Fontes (2003, p. 254), “uma energia
atravessa o mundo e, nele, o gesto de tecer, o canto do poeta. Entre os gregos,
recebe o nome de Eros, força primordial que reúne e fecunda os elementos da
matéria, enquanto causa e fim do mundo”. Eros é um dos mais antigos deuses,
surgiu depois do Caos, da Terra e do Tártaro, “Eros, o mais belo entre os deuses
imortais, que põe quebrantos nos corpos e, no peito de deuses e homens, domina o espírito e a vontade ponderada”, assim mostra Hesíodo (1928, p. 116-22) em
Teogonia.
O sentido de erotismo com o qual dialogamos está em Bataille (2013, p. 35)
como experiência interior, processo de procura incessante pela continuidade do
ser, “do erotismo é possível dizer que ele é aprovação da vida até na morte”. A
vida se manifesta na atividade sexual de reprodução, que o erotismo interrompe,
porque seu percurso aponta para a busca da complementaridade, “uma procura
psicológica”, que ao nascer adquirimos o aspecto da descontinuidade, encontrada mais tarde a continuidade, com a morte:
A reprodução leva à descontinuidade dos seres, mas ela põe em jogo sua
continuidade, isto é, ela está intimamente relacionada à morte. É falando da reprodução dos seres e da morte que me esforçarei para mostrar
a identidade da continuidade dos seres e da morte que são uma e outra
igualmente fascinantes e essa fascinação domina o erotismo. (BATAILLE, 2013, p. 37).
Eros age como um impulso que se prolonga por todas as fases da vida em
busca da união, da totalidade, da plenitude perfeita. Essa força está representada
na literatura por meio de diferentes autores e gêneros literários. Platão foi o primeiro a teorizar em O Banquete (380 a.c) a existência de Eros. Mas foi antes de
Platão, que Safo, nos poemas líricos, lhe deu mais expressão, ressaltando-o como
força indomável, criatura invencível, incapaz de cair nas armadilhas do homem.
De acordo ainda com Joaquim Brasil Fontes (2003, p. 215), Safo de Lesbos considerava Eros como um tecelão de mitos, “de novo, Eros me arrebata, ele, que põe
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
quebrantos nos corpos, dociamaro, invencível serpente”. É um deus poderoso,
uma força monstruosa, imbatível, que traz doçura no amargo.
A temática erótica expressa o desejo, que impera o coração e a mente de
todas as pessoas, impulsionando-as para a vida. Eros como força arrebatadora
movimenta nossa criatividade e imaginação. Esse impulso tem sede de prolongamento e se realiza na relação com tudo aquilo que nos faz bem. É um evento
obrigatoriamente no plural, “porque incluindo os chamados prazeres solitários,
o desejo sexual inventa sempre um parceiro imaginário... ou muitos. Em todo
encontro erótico há um personagem invisível e sempre ativo: a imaginação, o
desejo”, como foi visto por Octavio Paz (1994, p. 16). Com esses personagens, o
erotismo se mantém em atividade plena e constante, um acorde perfeito a movimentar os sentidos e a provocar intenso envolvimento amoroso. Segundo Rocha
(2011, p. 87), “Eros não é só desejo, ele é também doação, dom de si mesmo. Mesmo enquanto desejo, ele é desejo de promoção do outro”.
A atividade erótica não diz respeito apenas à atividade sexual. Segundo Octavio Paz (1994, p. 14), “o ato erótico se desprende do ato sexual: é sexo e é outra
coisa”. Esta outra coisa de que fala Paz é o desejo que habita em nós, que desperta
fantasias e manifesta anseios. É uma experiência interior do homem, no dizer
de Bataille (2013), que põe nossa interioridade em constante busca pela continuidade, que perdemos ao nascer. O impulso erótico é sede de prolongamento, de
expansão do ser, que altera nossa forma de vida. Mesmo estando ligado à sexualidade, vai além dela, pois não tem como finalidade a procriação. Na verdade,
o erotismo interrompe a reprodução. A energia erótica se separa do instinto sexual, seu fim é autônomo, livre para incorporar outras linguagens. Para Bataille
(2013, p. 35) “do erotismo, é possível dizer que é aprovação da vida até na morte”.
A poesia erótica que propomos estudar em sala de aula está associada ao
erotismo literário, entremeado de símbolos e imagens. Octavio Paz (1994, p. 12)
analisou a relação entre erotismo e poesia, “o primeiro é uma poética corporal
e a segunda uma erótica verbal”. Ambos estão guiados pela imaginação e pela
linguagem, “a imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético” (PAZ,
1994, p. 12). Erotismo e poesia habitam a mesma casa, passeiam pelo mesmo jardim, desfrutam da mesma beleza. Afirma ainda Octavio Paz (1994, p. 12), “que
a poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela própria, em seu modo de
operação, já é erotismo”.
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Maria do Socorro Pinheiro
Percebemos, ao longo de nossos estudos, que a leitura de poesia erótica não
é um exercício praticado em sala de aula. Se alguém realiza leituras de poemas
eróticos, as faz isoladamente, segredando sua intimidade com tal temática. O
ponto de vista sobre o qual abordamos o erótico está ligado à natureza humana,
como algo inerente ao ser. Somos seres eróticos, pois trazemos em nossa natureza a falta e o desejo é a busca daquilo que nos falta. Ao ler poemas eróticos,
o leitor entra num terreno surpreendente, isso se deve ao mistério que envolve
Eros. Sua natureza suscita enigmas, linguagem, representação. De acordo com
Filoteo Faros (1998, p. 38), “Eros não é algo que experimentamos exclusivamente
diante de uma pessoa: é, ao contrário, uma atitude perante a vida”.
Para experimentarmos tal atitude surge a leitura como um exercício de nudez. Ler é despir as palavras de suas significações. Antes mesmo disso, o envolvimento acontece inicialmente com o livro. Afirma Eliana Kefalás (2012, p. 38)
que “o contato com o livro se dá no seu manuseio, no tato, com o sangue pulsando. Há um corpo a corpo com a concretude do objeto e com a materialidade do
verbo. Texto e textura”. O corpo do texto ao do leitor, em seguida a sensação de
gozo do texto lido e interpretado, um processo que se transforma num evento
extraordinário de encontro com o sentido. E o que podemos dizer quando esse
livro manuseado é um livro de poesia erótica?
Segundo Barthes (2004, p. 9) “um espaço de fruição fica então criado. Não
é a “pessoa” do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma
dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam
lançados, que haja um jogo”. O texto é então esse espaço de fruição, de desfrute,
de jogo e sedução. O leitor quer esse espaço para si. O texto provoca-lhe prazer, contato, múltiplas sensações, que despertam a capacidade criativa do leitor.
Quando o livro é de poesia erótica há algo a mais, que surpreende e encanta. É
desafio constante que deve ser enfrentado. A poesia erótica dinamiza a consciência literária do leitor, por tratar de questões que estão, essencialmente, ligadas
à natureza do desejo humano. Como deve ser a leitura e o ensino de poesia erótica em sala de aula?
Devemos admitir que não é uma tarefa fácil. Vejamos por que: O universo
poético se constrói por meio de palavras que acendem nosso imaginário. Palavras que nos levam para o campo da sexualidade, como o erótico que traz à
baila, sexo, desejo, libido. A escola não tem demonstrado interesse em discutir
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tais assuntos, sobretudo por meio da poesia. Todavia, nada mais interessante e
empolgante do que tratar o assunto da sexualidade por meio do texto literário.
A leitura e o ensino de poesia podem acontecer, inicialmente, por meio de uma
leitura silenciosa, para conhecer o texto. Em seguida, a leitura em voz alta, realizada pelos alunos, desperta a sensibilidade do leitor e a necessidade de tratar
sobre questões, que estão no texto, referentes à natureza humana. A prática de
leitura em sala de aula promove quase que instantaneamente a vontade de expressar a voz. A fala do aluno é importante. O que pensa e como pensa acelera
sua aquisição de conhecimento. É a oportunidade de sair dos abismos e construir caminhos que solidifiquem suas ideias, como experiências de leitura.
A prática pedagógica de leitura em sala de aula dinamiza o ensino aprendizagem e constrói situações de busca e interesse pelo conhecimento. Segundo
Helder Pinheiro (2007, p. 43), “à medida em que o trabalho com o texto poético
vai se tornando constante, vão surgindo necessidades de procedimentos pedagógicos novos”. A leitura é o ponto de partida para o exercício com o texto literário,
mas outras atividades surgem para o aluno desenvolver, como: a produção de
textos orais a partir de exercícios interpretativos; textos escritos, que trabalhem
sua capacidade de escrita; rodas de leitura, que desencadeiem o gosto e o incentivo pela leitura de textos literários.
O professor pode adotar métodos pedagógicos que facilitem o ensino e a
leitura de poemas eróticos. O primeiro deles é trabalhar o conceito de Eros, ampliando seu constructo teórico para a definição do estado de efusão erótica. O
segundo está na escolha da poesia, “mas não qualquer poesia, nem de qualquer
modo. Carecemos de critérios estéticos na escolha das obras ou na confecção de
antologias” (PINHEIRO, 2007, p. 20). O terceiro é identificar as relações que a
poesia apresenta com outras áreas do conhecimento e aprofundar uma discussão que traga à tona questões concernentes à vida, como amor, sexo, desejo, corpo. O erotismo é fenômeno essencialmente humano, que coloca o ser em questão, afirma Bataille (2013). Com a poesia erótica em sala de aula, introduzimos
um novo fazer pedagógico, que ressignifica a prática docente e desenvolve uma
postura mais crítica diante do mundo e da vida. Lembra Helder Pinheiro (2007,
p. 21), que “bons poemas, oferecidos constantemente (imaginamos pelo menos
uma vez por semana), mesmo que para alunos refratários (por não estarem acostumamos a esse tipo de prática), tem eficácia educativa insubstituível”.
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Maria do Socorro Pinheiro
Eros na poesia de Gilka e Olga
O erotismo faz parte da poética de Gilka Machado e de Olga Savary. Ambas
apresentam Eros de forma diferente, mas tem um mesmo ponto de chegada: a
vida interior, constituída de desejo, sonhos, ânsias. Não devemos nos esquivar
de discutir em sala de aula questões que dizem respeito ao estado do nosso ser.
A escola pode desenvolver discussões importantes que formam e transformam a
mentalidade de alunos e alunas carentes de questionamentos críticos. Rebaixar
o erotismo a situações vis é ignorar a força erótica que está em todos nós. E tal
força não está revestida de imoralidade. Se o erotismo nos assombra é porque
não o conhecemos e o consideramos como qualquer ação vergonhosa do intocado sexo, “erotismo é mística; ou seja, aura de emoção e imaginação que cerca o
sexo” (PAGLIA, 1992, p. 24).
O erotismo em Olga Savary é de natureza selvagem, caminha entre abismos
como a vida e a morte. Vejamos no poema Acomodaçao do desejo III (1982), como
o processo de erotização aparece em seus versos:
Deito-me com quem é livre à beira dos abismos
e estou perto do meu desejo.
Depois do silêncio úmido dos lugares de pedra,
dos lugares de água, dos regatos perdidos,
lá onde morremos de um vago êxtase,
de uma requintada barbárie estávamos morrendo,
lá onde meus pés estavam na água
e meu coração sob meus pés,
se seguisses minhas pegadas e ao êxtase me seguisses
até morrermos, uma tal morte seria digna de ser morrida.
Então morramos dessa breve morte lenta,
cadenciada, rude, dessa morte lúdica. (p. 47)
É na morte que está a continuidade tão buscada por Eros. A morte nesse
poema é o leitmotiv que coloca Eros e Tânatos frete a frente. Vida e morte tecida
com o mesmo fio que levará ao êxtase. A força de Eros se encontra nas experiências de morte, no gozo frenético e louco, pulsante e úmido, que, por alguns
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
segundos, leva os seres ao paraíso, mas não termina aí. Eros não se satisfaz, prolonga sua relação, transcende o ser, na relação de unidade que a morte propõe,
caracterizando-a como lenta, cadenciada, rude e lúdica. A morte aqui é vida, pois
Eros a transforma num componente lúdico, leve e necessário.
Outro componente interessante na poética de Olga Savary é o elemento
água, que nesse poema simboliza a fecundação. Os lugares de água, os regatos
perdidos acomodam o desejo para viver a barbárie, que leva “essencialmente o
domínio do erotismo ao domínio da violência”, diz Bataille (2013, p. 40). Que
também é outro nome para a luta que se trava entre os amantes quando se encontram para morrer “de um vago êxtase”. A água intensifica o desejo a ser verbalizado e vivido “com quem é livre à beira dos abismos”. Água como fonte e
origem da acomodação do desejo.
No poema Sensorial, Olga Savary confessa a natureza do eu poético, “Íntima
da água eu sou por força, / mar, igarapé, rio ou açude, / pela água amor incestuoso”. A água é um componente fundante de sua poesia. O eu se confessa água
e amor incestuoso. A camada de erotismo que envolve sua poesia se reveste de
forte sensualidade, cravada nas palavras que acolhem o desejo. O mar, o rio, o
açude, o igarapé assumem um sentido simbólico: é a rota, o corpo, a liberdade,
a fecundação. Na água está a metáfora erótica que remete à origem da vida. Em
outro poema O segredo, Olga faz insinuações e apelos eróticos, “entre pernas
guardas: / casa de água / e uma rajada de pássaros”. A água pode representar a
umidade no momento de prazer e de desejo. “Casa de água” sugere a excitação e
“uma rajada de pássaro” ação do amor, violenta união.
Já na poesia de Gilka Machado, poeta carioca, o erotismo está nos sentidos,
revelado pelo corpo e pela alma, “Inda conservo a carne deliciada / Pela tua carícia que mordia, / que me enflorava a pele, pois, / em cada beijo dos teus uma
saudade abria” (1991, p. 287). É um erotismo carnal, voluptuoso, vivido no corpo
todo. As palavras carne, carícia, pele, beijo, nos levam para um campo semântico
de sedução, como propõe Barthes (2004, p. 11) “o texto que o senhor escreve tem
de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura. A escritura
é isto: a ciência das funções da linguagem, seu kama-sutra (desta ciência, só há
um tratado: a própria escritura)”. A palavra seduz e incorpora um poder de realização do desejo, acendendo os sentidos.
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Maria do Socorro Pinheiro
O erotismo se revela como um componente necessário para a experiência
interior do eu poético, capaz de sentir pelos no vento, “e não podes saber do meu
gozo violento, / quando me fico, assim, neste ermo, toda nua, / completamente
exposta à Volúpia do Vento”! (1991, p. 164). O vento assume a personificação do
amado, que não precisa está presente, pois o eu poético pode senti-lo nos elementos exteriores. Sua imaginação dá formas ao seu pensamento, que se realiza
de maneira surpreendente nos sonhos, nas lembranças, nos perfumes. O poema
Cabelos Negros exemplifica o desejo sendo realizado pelos cabelos do amado.
Quando, pela fadiga molentada,
sobre o leito me estiro, em completo descuido
(talvez loucura minha, uma obsessão talvez),
passo a sentir, Querido, o teu cabelo em tudo:
na paina da almofada,
nas mãos, nos lábios, no próprio ar que é fluido,
sobre a minha nudez,
cobrindo-a, qual um manto de veludo,
da tua ausência na viuvez.
Então o meu corpo ganha
uma volúpia estranha,
e teu cabelo, como por encanto,
avulta, cresce tanto,
que largo, longo, perfumado e quente,
da forma em curvas me acompanha,
ondulando, lentamente...
E, sem senti-los, sem ao menos vê-los,
subjetivamente,
durmo enrolada em teus cabelos.” (p. 117)
Nesses versos, o símbolo erótico está nos cabelos que o eu poético vivencia
como expressão do desejo carnal. Essa experiência do desejo é mantida nos sentidos, que se encarregam de provocar as sensações criadas pelo aroma dos cabelos, que se volatiza para em seguida ser manto. A volúpia cresce e a imaginação
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cria uma circunstância de encontro que chega à realização sexual. O cabelo é
espaço de desejo e sugere excitação erótica, como nos versos “meu corpo ganha
uma volúpia estranha”. O eu poético entrega-se ao amor não numa realidade física, mas imaginada e sentida como vivida, como um acontecimento que delicia
sua intimidade não com o corpo, mas com a alma do amado, pela essência dos
negros cabelos.
Gilka Machado faz do seu erotismo marca de sua poética. Cada palavra ganha uma significação que se traduz em sentimentos. Cada frase que se liga a
outra frase constitui um material semântico que alimenta o imaginário do leitor,
provocando novas experiências diante de vocábulos e expressões que singularizam a temática erótica. Nos sentidos (mãos, boca, cheiro, nudez) o corpo experiencia o prazer que o cabelo evoca. Ele é manto de veludo que cobre a nudez e
é aconchego na viuvez. O eu poético vive dois estados de realidade: o primeiro
a nudez, na ausência de vestes, de máscaras, de formalidades. A nudez sendo
a imagem da liberdade. O segundo estado é a condição de viúva. Ausência do
outro, da companhia amada. Essas situações podem nos levar a pensar num desnudamento existencial.
A leitura de poesia erótica permite ao leitor possibilidades de interpretação.
O trabalho com a poesia pode ser iniciado com indagações ao leitor sobre o texto
em estudo. Perguntar, por exemplo, sobre o tipo de leitura que já leu; quais as
temáticas; explorar as imagens; descobrir os sentidos; mostrar o erotismo como
algo inerente ao ser humano; trabalhar as várias possibilidades de interpretação
que o poema suscita. O leitor precisa adentrar o reino das palavras, despertar
seu interesse por questões presentes no texto e com as quais certamente se identifica (enfrentamentos, angústias, silenciamentos). Lembra Kefalás (2012, p. 99)
que “a relação entre leitor e obra não é puramente informativa, mas formadora,
faz da leitura cartase. O leitor sofre uma transformação. Nessa perspectiva, na
recepção o leitor é convocado a uma mudança. A leitura é um processo que abala, que põe o sujeito em movimento”. A poesia erótica promove um despertar,
uma transformação, uma consciência mais livre e humana.
A poesia erótica evoca questões existenciais que são externas e internas
em relação ao texto: externas são aquelas expressas pela postura que as poetas
assumem a partir de uma ótica feminina. Elas quebram preceitos, rompem com
a tradição de uma escrita centrada na ordem patriarcal; elas instituem outra
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Maria do Socorro Pinheiro
ordem ao falar sobre desejo, direcionando suas ideias para um constructo ideológico, destacando a provocação, a revolução e a construção de consciência. As
questões internas estão no texto literário, podendo ser vistas pelas imagens que
o poema nos oferece. A linguagem é rica em imagens, que traduzem os mais diferentes sentidos. Nesse universo das imagens, cada palavra é um campo onde
atua vários tipos de representação. Ela admite infinitas interpretações porque a
linguagem é infinitamente criadora.
Considerações finais
A poesia abriga muitos conhecimentos e está em relação com diferentes
áreas. Diante das possíveis formas de elaborar essa relação com o mundo e com o
outro, a poesia se credencia como gênero que alia diferentes discursos, por meio
de uma linguagem sedutora, leve, poética. Vimos por meio de alguns poemas
com que profundidade Eros mergulha no ser, arrastando-o para frente e movendo-o em várias direções. Eros é o desejo com seu poder de completude, com seu
arrebatamento em excesso. Vontade de estar ao lado do outro, dele receber carícias e poder se deliciar pelo contato do toque, pela sensação de gozo, não sexual,
mas de satisfação e de unidade do ser.
A poesia erótica é importante na formação do leitor, por manifestar segredos, por expressar os ímpetos e por ser força de atração, impulsionando as pessoas para a descoberta. Ela trata de acontecimentos da nossa própria condição
humana, nos colocando diante do fundamento da vida, porque é criação, é experiência transformadora. A natureza dessa poesia está na transformação da nossa
psique, na capacidade de dinamizar nossas atitudes, fortalecendo as relações e
promovendo a união, a integração, a constante busca.
Poesia e erotismo estão entrelaçados, um é a imagem do outro, movidos
pela imaginação, pela criatividade, por energias que se aliam. A leitura do texto
poético nos impulsiona a experimentar diferentes discursos, por meio de uma
linguagem que nomeia realidades idênticas, ou não, manifestadas em palavra.
Ao entrar em contato com a poesia erótica criamos mecanismos de abertura
para viver o tempo em seus diferentes estágios. Essa abertura é afirmação de
nossa humanidade que deseja a continuidade e nisso consiste sua existência. O
erotismo como estado do ser está no ápice do espírito humano e a poesia é o espaço privilegiado para entender a experiência erótica.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
A sala de aula é ambiente de discussões e de enfrentamentos propícios para
o desenvolvimento de acalorados debates. Levar a poesia erótica para sala de
aula é dialogar com possíveis sentidos que o texto literário nos oferece. E ainda
mais, é construir um olhar diferente sobre determinadas questões cercadas de
tabus e que julgamos desmerecedora de reflexões e análises.
A poesia erótica abraça os aspectos da vida humana e é nesse plano que o
erotismo se instala, como uma energia capaz de levar a pessoa a buscar a plenitude, a integração, a totalidade. Tais experiências vivem em consonância com
a liberdade e a imaginação: dois componentes que integram a poesia erótica e
levam o leitor para um palco cujas cenas manifestam a profundeza dos sentimentos humanos e sua capacidade de transcendência.
Esperamos que nosso estudo estimule os leitores a ler poesia erótica e, sobretudo, estudá-la em sala de aula, como estratégia pedagógica, para desmistificar certos enganos que culturalmente aprendemos no decorrer de nossa vida
sobre sexo, amor, corpo, alma, morte. A poesia erótica revela um tipo de conhecimento que se constitui como experiência interior de toda pessoa. Ela alimenta
a imaginação criativa e leva o leitor para uma realidade de encontro e desencontro, de vida e morte, de prazer e dor. Sentimentos dicotômicos que fazem a nossa
existência cada vez mais humana.
Referências
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BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L & PM,
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FONTES, Joaquim Brasil. Eros, tecelão de mitos. São Paulo: Iluminuras, 2003.
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Ltda., 1995.
JOACHIM, Sébastien. Novos aspectos da leitura. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012.
KEFALÁS, Eliana. Corpo a corpo com o texto na formação do leitor literário.
Campinas, SP: Autores Associados, 2012. (Coleção formação de professores).
MACHADO, Gilka. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Leo Christiano Editorial: FUNARJ,
1991.
PAGLIA, Camille. Personas Sexuais. Arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson.
Trad. Marcos Santarrita. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
3836
Maria do Socorro Pinheiro
PAZ, Octávio. A dupla chama: amor e erotismo. Trad. Wladir Dupont. São Paulo:
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PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. Campina Grande: Bagagem, 2007.
PLATÃO. Diálogos. Mênon – Banquete – Fedro. Tradução de Jorge Paleikat. Rio de
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RAGUSA, Giuliana. Fragmentos de uma deusa: A Representação de Afrodite na Lírica
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ROCHA, Zererino. O desejo na Grécia Antiga. Recife: Ed. Universitária da UEPE, 2011.
SAVARY, Olga. Magma. São Paulo: Massao Ohno – Roswitha Kempf, 1982.
3837
RESUMO
O presente artigo busca levantar questões que parecem ser esquecidas pelos professores no processo de ensino-aprendizagem da literatura, em especial, o tratamento
que é dado à literatura indígena no âmbito escolar. Tratar analiticamente de uma
obra composta por fábulas indígenas nos parece um campo nada sereno, mas necessário para a discussão do ensino de literatura indígena, ou melhor, uma literatura
naturalmente brasileira, uma vez que percebemos que há uma carência em sala de
aula de uma literatura feita por/sobre índios. Essa discussão que propomos nesse
artigo serve, também, para difundirmos mais teorias acerca da literatura indígena e
como esta vem sendo desenvolvida (se podemos dizer assim) no processo de ensino
e aprendizagem de literatura. Objetivamos, portanto, trazer à cena elementos não
apenas da narrativa de uma fábula indígena, mas também o espaço cedido a obras
dessa instância no mercado das editoras de livros paradidáticos e de literatura infanto-juvenil. Além de observarmos o comportamento do mercado editorial no que
diz respeito ao tratamento e à apropriação que é feita das obras indígenas. Ressaltamos que não analisaremos textos de temática indígena consagradas pela história da
literatura, mas nos guiaremos pelo vazio deixado pelos estudiosos da literatura no
que concerne a autoria indígena. Pretendemos, por fim, propor novos olhares acerca
do ensino de literatura a partir da divulgação de obras “esquecidas” pelo cânone e
propor um alargamento no rol da literatura nacional.
Palavras-chave: Literatura, Ensino, Literatura indígena, Mercado editorial.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
POR QUE LER A LITERATURA INDÍGENA
NA ESCOLA? ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
SOBRE O ENSINO DE LITERATURA
Natanael Duarte de Azevedo1
Considerações iniciais
O artigo em tela versa sobre a necessidade de resgatarmos a literatura
indígena das “celas” do cânone da literatura nacional. Tratar desse tema é um
tanto polêmico, pois percebemos que a sociedade não vê com “bons olhos” uma
literatura que traga como tema o índio, que não faça parte do compêndio machadiano ou alencariano, por exemplo.
Inicialmente, traremos à cena uma breve biografia do escritor indígena
Kaká Werá Jecupé, uma vez que percebemos a relevância de seu trabalho no
que concerne à presentificação e à disseminação da cultura do índio.
Procuramos observar no decorrer de nossa pesquisa2 elementos que compõem a estrutura do gênero textual fábula e como se dá a relação entre tais elementos tanto de uma fábula europeia (A cigarra e a Formiga, de La Fontaine)
1. Professor Assistente da Universidade Federal Rural de Pernambuco – Unidade Acadêmica do Cabo de
santo Agostinho (UACSA/UFRPE). Doutorando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras
(PPGL) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
2. Vale salientar que por limitações impostas pela natureza do artigo e do tempo não desenvolveremos algo
mais completo, ou diria melhor, mais aprofundado. Mas, deixamos a sugestão para novos pesquisadores ou
novas pesquisas nossas.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
como de duas fábulas indígenas (O buraco da onça e Iauaretê-mirim encontra
Jacy-Tatá, a mulher-estrela, de Kaká Werá Jecupé).
Buscaremos observar em nossa análise se a literatura indígena é de fato
tão rica quanto a literatura “branca”3 e se um mito (preferimos chamar assim)
foi construído em cima de um preconceito enraizado, ou seja, a literatura feita
por um índio deveria ser desconsiderada no que tange à qualidade da escrita.
Ora, nos é sabido que quem faz a literatura de fato chegar às escolas é o
mercado editorial e este se mostra um tanto alheio, ou melhor, omisso na inserção de uma literatura construída na e pela cultura indígena.
Para tanto, escolhemos como objeto de análise, no que diz respeito ao
lugar ocupado no mercado editorial pela literatura indígena, dois catálogos de
literatura infanto-juvenil de grandes editoras do mercado do livro no Brasil, a
saber: Editora Saraiva (vigência 2010) e Editora Scipione (vigência 2009-2010).
Em seguida, analisaremos quantitativamente o espaço ocupado pela cultura indígena no âmbito da literatura infanto-juvenil. Para assim chegarmos
ao cerne da produção de sentido de nosso artigo: Por que ler a literatura indígena na escola?
Entendemos que o ensino da literatura serve não apenas para o deleite artístico, ou mesmo histórico, mas como objeto que serve para nortear reflexões
sobre a vida e o social. Dessa forma, o processo de ensino-aprendizagem é um
instrumento em que o professor se coloca como um sujeito social representativo do conhecimento a ser apreendido pelos alunos. Assim, enveredaremos
por este campo muito elucidativo: o lugar da literatura indígena como pivô no
processo de reflexão de nossa atuação na docência.
Temos por objetivo em nosso artigo, traçar um panorama da obra de Kaká
Werá Jecupé, não apenas pelo estudo dos elementos que compõem a narrativa,
mas também por um olhar do social (o espelho da sociedade) e do humano (um
olhar voltado para a alma humana e para questões psicológicas na constituição
desses sujeitos da narrativa).
3. Optamos por chamar aqui de “literatura branca” sem ser com o tom pejorativo ou de engrandecimento,
mas apenas para diferenciar a literatura comumente apresentada nas escolas (que não deixa de ser de
autores brancos) da literatura indígena.
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Natanael Duarte de Azevedo
Tomamos, portanto, como fio condutor de nossa pesquisa as aventuras de
Iauaretê, personagem central das fábulas do livro analisado. Dedicar-nos-emos,
então, aos elementos necessários para a criação de uma fábula, a saber: geralmente apresenta uma cena vivida por animais, plantas ou objetos que falam e
agem como se fossem pessoas; são escritas para dar um conselho, fazer uma crítica, alertar sobre algo, ou seja, transmitir um ensinamento; tem por finalidade
refletir sobre atitudes humanas.
Jecupé: um grande contador de histórias
Kaká Werá Jecupé é um índio de origem tapuia, escritor, ambientalista, conferencista; fundador do Instituto Arapoty que é uma organização voltada para
difusão dos valores sagrados e éticos da cultura indígena.
É empreendedor social da rede Ashoka de Empreendimentos Sociais e conselheiro da Bovespa Social & Ambiental. Desde 1998, leciona na Fundação Peirópolis e na UNIPAZ (Universidade da Paz). Tem como missão ajudar na construção e no desenvolvimento de uma cultura de paz pela promoção de respeito à
diversidade cultural e ecológica.
Viajou e palestrou em diversos países, entre eles: Inglaterra, estados Unidos, Israel, Índia, Escócia, México e França, sempre procurando levar mensagens
de sabedoria dos povos ancestrais do Brasil.
Para o autor, é preciso remodelar a visão que temos do povo brasileiro, agregando a ela a noção de que também nós somos uma etnia milenar. Uma das mais
nobres e eficientes formas de conseguir isso é reintegrar ao universo da educação
a perspectiva de valores universais contida na tradição indígena.
As estórias de animais, as fábulas clássicas, eram milenares. Se os europeus representavam os temperamentos humanos sob a forma de animais, para os africanos e ameríndios os animais viviam, literalmente,
essa própria ação anímica, dotados de todos os poderes de raciocínio e
da inteligência, possuindo o segredo do fogo, do sono, da rede de dormir, de certos vegetais, de muitos motivos de conforto e de defesa vital.
(CASCUDO, 1984, p. 87)
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Elementos da narrativa de uma fábula: será que só é possível
na fábula europeia?
O indígena conta, horas e horas. Conta, dias e dias, ou melhor, noites e
noites [...]. Todas as cousas, vegetais, animais, estrelas, fenômenos meteorológicos [...] preparar a armadilha para onça [...]. A massa desses
conhecimentos tradicionais é maior do que calcula o otimismo perguntadeiro do “branco”. (CASCUDO, 1984, p. 87)
Iniciamos nossa análise com um pensamento: “Canto, dança, mito, fábula,
tradição, conto, independem de uma localização no espaço. Vivem numa região,
emigram, viajam, presentes e ondulantes na imaginação coletiva.” (CASCUDO,
1984, p. 52)
É a partir dessa afirmação de Cascudo (1984) que nos respaldamos teoricamente para investigarmos, por meio de comparação, fábulas de povos e épocas
diferentes.
Muito raramente ouvimos falar na sala de aula de uma fábula que não seja
de Esopo ou de La Fontaine. Muito menos ainda, nos é contado fábulas indígenas. Por tanto, gostaríamos de traçar nesse artigo questões acerca do gênero
fábula e a existência desta numa sociedade indígena.
Curiosamente, Esopo é uma expressão inicial da cultura grega, da atividade intelectual grega em sua madrugada radiosa. A primeira forma
seria, como foi, uma reunião de contos, de estórias, de apólogos, de fábulas, vividas pelos animais com almas humanas, matéria de exemplo,
espelho de regra, espécie movimentada e plástica de um monitório social. [...] Na Índia, na Grécia, na jângal do norte do Brasil, onde os indígenas tupis viveram para confidenciar suas porandubas4 aos naturalistas,
os animais governam, pecam e são superiores. (CASCUDO, 1984, p. 89)
4. Encontramos em Cascudo (1984) a seguinte definição de “poranbuba”: “A narrativa indígena, poranduba,
repete-se, numa herança fixada pelo hábito, em todo o Brasil do interior. [...] Barbosa Rodrigues: ‘Poranduba,
não é mais do que a contração da preposição Poro, fazendo as funções do superlativo, Andu, notícia, Aub,
fantástico, ilusório, significando Histórias Fantásticas, Fábulas, Abusões, etc.’” (CASCUDO, 1984, p. 79)
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Natanael Duarte de Azevedo
E mais: “Fábulas ou mitos constituem matéria de infalível sugestão para o
ouvido indígena. Não compreendemos como alguém possa alertar-se ouvindo
estórias de bichos ou seres misteriosos, com poderes extensos, bons e maus simultaneamente.” (CASCUDO, 1984, p. 89).
Percebemos nas fábulas estudadas que todas elas cumprem a função sócio-comunicativa primordial do gênero fábula que é a de instruir, por meio da
literatura (oral e/ou escrita) no que diz respeito às questões sociais de cada comunidade. Segundo Cascudo (1984, p. 91): “Os problemas morais, sociais e vitais
eram esclarecidos na ação dos bichos. Havia uma intenção soberana de ensino
e de direção ética, acima da consagração dos modelos animais, vencedores ou
cínicos. Assim foram Esopo, Fedro, Aviano.”.
No que diz respeito à fábula “A Cigarra e a Formiga”, de La Fontaine, encontramos como personagens centrais dois animais, como de costume entre as
fábulas. A construção da personagem “Formiga” é o representativo do trabalho,
da ordem e organização social. Já a personagem “Cigarra” representa a diversão
e irresponsabilidade, deixando de trabalhar para viver a vida. Ora, a construção
das personagens é baseada no cotidiano da vida humana, em que encontramos
pessoas que valorizam o trabalho enquanto outras só pensam em si.
Tendo a cigarra cantado durante o verão,
Apavorou-se com o frio da próxima estação.
Sem mosca ou verme para se alimentar,
Com fome, foi ver a formiga, sua vizinha,
pedindo-lhe alguns grãos para aguentar
Até vir uma época mais quentinha!5
(LA FONTAINE, 2012, s/p – grifos nossos)
Esta fábula de La Fontaine segue o modelo clássico presente nas outras que
foram escritas com a finalidade de aconselhamento (geralmente voltada para as
crianças). As fábulas têm a intenção de alertar e aconselhar, a partir de um ensinamento vindo de antepassados, por meio de animais. Como podemos perceber
na história da cigarra que só canta e da formiga que só trabalha, há um alerta
5. Disponível em: https://fabulassonhadas.wordpress.com/2012/03/07/a-cigarra-e-a-formiga-tris/. Acessado
em 03/08/2015.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
acerca da noção de responsabilidade e comprometimento. Verificamos que, na
recusa da formiga em ajudar a cigarra, está como pano de fundo da narrativa a
punição que serve de meio de instrução, ou seja, a fábula ensina que não deve
ser contrário às regras da sociedade, podendo vir a ser punido se não cumprirmos o que se é esperado.
“O que você fazia no calor de outrora?”
Perguntou-lhe ela com certa esperteza.
- “Noite e dia, eu cantava no meu posto,
Sem querer dar-lhe desgosto.”
- “Você cantava? Que beleza!
Pois, então, dance agora!”
(LA FONTAINE, 2012, s/p – grifos nossos)
Ora, percebemos que o impacto causado pela punição faz com que reflitamos sobre nossas atitudes com os outros, fugindo do que se é esperado, ou seja,
por se tratar de uma narrativa que tem “pequenos animais”, como personagens
principais, nunca pensamos que haveria um final dessa natureza. Porém, essa é
uma das principais funções da fábula: causar o estranhamento, culminando na
reflexão.
Sobre os personagens principais da fábula estudada de Kaká Werá, “O buraco da onça”, encontramos Iauaretê (que é onça e homem) e Tupã (divindade
indígena). Percebemos que, no que diz respeito à característica de ter como personagens animais e/ou seres míticos, a fábula de Kaká Werá atende com maestria a composição do gênero fábula, como podemos ver: “Iauaretê não era uma
onça qualquer! Era uma onça-rei. Mas não somente onça-rei; era uma onça que,
por magia de Tupã, de noite virava gente e de dia virava bicho – onça pintada.”
(JECUPÉ, 2007, p. 8).
No que diz respeito ao ensinamento, à instrução, essa fábula indígena ensina sobre a paciência, ou melhor, a calma que devemos ter quando nos deparamos
com o perigo ou com o desespero. Dessa forma, os índios buscavam aconselhar
seus filhos, mas além disso, traziam algo de sua cultura, algo dos antepassados:
“A fábula serviria justamente de assunto mais vasto e plástico para sugestão e
divertimento aos meninos mais crescidos, em idade de pergunta e abstração,
reconstruindo o Passado.” (CASCUDO, 1984, p. 91)
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Natanael Duarte de Azevedo
Vejamos a moral ensinada num trecho da fábula “O buraco da onça”:
[...] – Respira e ouve, rei da floresta. Respira e acalma-te. Pare de andar
em círculos. Andar em círculos só te afunda mais no buraco!
- Tupã?! Tupã! Vai me ajudar?
- Sim.
- Como?
- Vou manter o caçador longe daqui.
- E como eu vou sair desse buraco?
- Isto é com você. A minha parte é manter o caçador longe. A sua é ficar
em paz. É pela paz que você vai encontrar a solução.
(JECUPÉ, 2007, p. 10)
Sobre a fábula “Iauaretê-mirim encontra Jacy-Tatá, a mulher-estrela”, também de Kaká Werá Jecupé, encontramos como personagens centrais Iauaretê-mirim (filho de uma índia com a onça-rei) e Jacy-Tatá, a mulher-estrela. Novamente,
percebemos que seres não humanos atuam na narrativa de forma humanizada,
sempre com a intenção de representar uma comunidade e, por conseguinte, sua
cultura.
No que concerne ao ensinamento, à instrução, essa fábula indígena ensina
sobre a vingança, ou melhor, sobre a justiça que deve imperar numa sociedade e
não a lei dos homens, por meio da vingança. Dessa forma, os índios aconselham
seus filhos trazendo o ensinamento de sua cultura, dos antepassados.
Problemas morais e sociais são apresentados nessa fábula de Kaká Werá,
como forma de aconselhar sobre o bem que deve ser praticado em uma sociedade.
Os problemas morais, sociais e vitais eram esclarecidos na ação dos bichos. Havia uma intenção soberana de ensino e de direção ética, acima
da consagração dos modelos animais, vencedores ou cínicos. Assim foram Esopo, Fedro, Aviano. (CASCUDO, 1984, p. 91)
Sobre as questões morais, encontramos uma passagem em que Iauaretê-mirim se explica para Jacy-Tatá:
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
[...] minha Mãe foi morta e eu pretendo fazer justiça punindo o assassino.
- Como você o puniria?
- Eu o transformaria em peixe.
- Mas você tem certeza de que ela foi assassinada?
- Sim. Pelo menos é o que dizem.
- Justiça não se faz com o que dizem. Justiça se faz com fatos. E fatos que
demonstrem todos os lados de uma situação ocorrida. Os lados claros
e os escuros. Justiça não é fácil! Além disso, como tudo tem uma raiz,
a verdadeira justiça busca a raiz de onde nasceu a injustiça. (JECUPÉ,
2007, p. 77)
As questões sociais geralmente trazem algo da vida em comum, do bem a
natureza e a conservação desta:
Ele viu sua mão, Kamakuã, receber a visita de um ancião com longos cabelos brilhantes, que lhe dizia:
- Eu sou Anhangá, o guardião da floresta. A Mãe Terra corre perigo
por causa das más ações de um filho seu, que podem influenciar
muitas pessoas e muitas gerações, pois cada coisa que fazemos em
nossa vida tem o poder de se espalhar pelos quatro cantos e multiplicar por diversas gerações. Seu filho faz coisas perigosas e por
isso preciso de uma ajuda sua.
Iauaretê-mirim viu sua mãe, Kamakuã, ficar muito preocupada e
dizer:
- Eu estou disposta a ajudar.
O ancião de longos cabelos brilhantes então falou:
- Mesmo que custe a sua vida?!
- Eu sou mãe de dois filhos; a Mãe Terra é mãe de todas as aldeias e
todos os povos, a vida dela é mais importante que a minha. Quero
ajudar! (JECUPÉ, 2007, p. 78)
Percebemos nos elementos das fábulas analisadas que em relação à construção da narrativa e aos elementos necessários para esta construção não há
diferença existente entre a fábula de La Fontaine e a de Kaká Werá. O que existe
de distinto, na verdade, é a cultura de cada povo e os seus princípios sendo representados nas fábulas.
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Natanael Duarte de Azevedo
Mercado editorial: há espaço para literatura indígena?
Sobre o mercado editorial, vemos que a proposta dos catálogos de livros
paradidáticos e de literatura infanto-juvenil é a interdisciplinaridade presente
nas obras apresentadas aos consultores (em especial, os professores de literatura
e/ou língua portuguesa), ampliando as possibilidades de leitura extraclasse, levando os alunos a desenvolverem trabalhos em grupo e que melhorem suas posturas em relação ao mundo em que vivem. Mas, na prática, nos foi perceptível
outra coisa: o descaso com a literatura indígena como indicação de leitura.
No que diz respeito à análise realizada com os catálogos de livros de literatura infanto-juvenil e paradidáticos (um da editora saraiva e outro da editora
Scipione), percebemos que muito se deve em relação a publicações genuinamente indígenas. Observamos que o pouco que se tem sobre o índio (veremos isso
exposto nas tabelas abaixo) não é escrito pelas mãos de um índio. Sempre é um
autor que não é de origem indígena que escreve sobre o índio e isso, como bem
alerta Hohlfeldt (1987), é um tanto quanto tendencioso:
Enquanto distante no tempo e no espaço, o índio pode ser mitificado:
ele é leal e corajoso, a criança indígena vive sempre feliz, e, de modo geral, todos os índios vivem em harmoniosa igualdade, numa vida idílica e
paradisíaca. Porém, basta o índio aproximar-se do branco, pretendendo
igualdade ou semelhança, ou o branco necessitar de seu território, na
expansão das frentes agrárias, e eis o índio transformado num caboclo
ridículo, risível e ignorante, sempre pronto para ser enganado pelo colono ladino. (HOHLFELDET, 1987, p. 97-98)
Ora, fica-nos uma grande questão: por que as editoras não colocam em seus
catálogos uma obra escrita por um índio? Afinal, como já vimos no próprio Kaká
Werá, pode ser encontrado na literatura indígena um baluarte da arte e da cultura e isso é o que se espera para que um livro chegue às escolas e, consequentemente, às casas dos alunos.
Vejamos, finalmente, o tratamento dado à literatura indígena pelas editoras:
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais
Figura 1 – Obras da Editora Saraiva
Figura 2 – Obras da Editora Scipione
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Natanael Duarte de Azevedo
Figura 3 – Autores da Editora Saraiva
Figura 4 – Autores da Editora Scipione
Considerações finais: por que ler a literatura
indígena na escola?
Sentimos na construção desse artigo que muito falta para de fato existir
uma ruptura de barreiras e preconceitos em torno da arte. Uma literatura (e cultura) tão rica como a indígena fica a mercê de ONG’s e/ou estudiosos que resgatam os kitos, as cantigas e lendas desse povo na intenção de publicar6 e divulgar
o conhecimento nativo.
6. Vale salientar que há uma editora, a Peirópolis, que trabalha com a literatura indígena, como também a
africana, na tentativa de disseminar a cultura brasileira e educar os estudantes sem o preconceito étnico.
Porém, é restrito o conhecimento de editoras dessa natureza, pois apesar da qualidade editorial e tipográfica
do acervo literário, essas editoras não fazem parte dos grandes nomes do mercado editorial.
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Percebemos na fábula que mais do que um gênero literário que busca instruir e educar, a fábula indígena é rica em elementos culturais, pois traz não
apenas os elementos da narrativa comuns às fábulas (um enredo curto, personagens personificados etc.), mas também questões sociais e religiosas, presentes nos mitos indígenas, como bem observou Cascudo (1984, p. 79): “A ciência
médico-religiosa do pajé não monopoliza a sabedoria dos velhos, sabedores do
passado, as memórias vivas do grupo. Lendas, mitos, fábulas, voltam a viver
nas lembranças dos meninos e nos registros dos naturalista.
Ao compararmos a fábula de La Fontaine com as de Kaká Werá, encontramos que na daquele o ensinamento é geral (no sentido de atender a várias sociedades), servindo como instrução apenas com um único foco: a responsabilidade do trabalho e a preocupação com o futuro. Já nas fábulas de Kaká Werá,
percebemos que há uma preocupação em unir o passado e o presente para
construção de um futuro decente, em que se tem conhecimento sobre nossas
origens e, só assim, podermos refletir e instruir: “A Fábula tem essa importância porque é o único onde o indígena critica e ensina. As lendas religiosas e as
tradições guerreiras pertencem a outro quadro de sugestionabilidade espontânea.” (CASCUDO, 1984, p. 90).
Ora, os conhecimentos passados (e vividos) tanto por Iauaretê como por
Iauaretê-mirim nos mostram a necessidade de transmitirmos a sabedoria dos
antepassados e a preocupação com nossas raízes, para assim se pensar numa
sociedade mais justa e humanitária.
Dessa forma, entendemos que a literatura indígena se faz necessária no
processo de ensino e aprendizagem, uma vez que desejamos, enquanto educadores, uma sala de aula heterogênea e consciente das diferenças existentes na
sociedade.
Uma literatura que apregoa o respeito e a necessidade de entendermos
nossa origem deveria ser levada em consideração tanto pelo mercado editorial
quanto pelos professores que são os principais atores no processo de ensino e
aprendizagem, formando, assim, uma sociedade mais justa.
3850
Natanael Duarte de Azevedo
Referências
BETTO, Frei. “Tanta mentira que parece verdade”. In: SILVA, Aracy Lopes da (org.). A
questão indígena na sala de aula: subsídios para professores de 1º e 2º graus. São
Paulo: Brasiliense, 1987, p. 7-10.
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. ed. 3. Belo Horizonte: Editora
Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1984.
HOHLFELDT, Antonio. “A Vertente Indianista da Literatura Brasileira”. In: SILVA, Aracy
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e 2º graus. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 91-99.
JECUPÉ, Kaká Werá. As fabulosas fábulas de Iauaretê. São Paulo: Peirópolis, 2007.
3851
RESUMO
Os alunos das escolas públicas municipais da nossa região, principalmente no interior do Estado, têm apresentado um preocupante déficit de compreensão leitora,
o que vem sendo evidenciado pelos testes oficiais ao longo dos últimos anos. Esta
pesquisa situa-se na área dos estudos do processamento da leitura numa abordagem
cognitiva e tem como objetivo proporcionar uma experiência de intervenção didática por meio de um projeto de leitura e compreensão de texto utilizando atividades
de leitura como o teste cloze, também conhecido como texto lacunado, conjugado
às atividades com o teste de compreensão de múltipla escolha. Trata-se de uma pesquisa-ação que se caracteriza também como qualitativa, interpretativa, interventiva
e remediadora que vem sendo realizada numa escola municipal de uma cidade do
interior de Alagoas, em duas turmas do sétimo ano do Ensino Fundamental, durante
o segundo semestre de 2015. Os dados vêm sendo coletados por meio de instrumentos, tais como, questionários e testes de compreensão de textos escritos, que vêm
sendo aplicados aos alunos das duas turmas e cujos resultados serão computados
e apresentados em forma de gráficos estatísticos, quadros e tabelas. Na análise, haverá a avaliação qualitativa dos dados e o cotejamento do desempenho dos alunos
ao longo da aplicação dos testes, seguida de discussões e comentários no sentido de
se verificar algum melhoramento no nível de compreensão leitora dos alunos colaboradores da pesquisa. Cogita-se também de utilizarem-se protocolos de leitura
com alguns alunos que apresentarem deficiência acentuada de compreensão leitora,
mesmo depois de ter passado pelas experiências remediadoras de leitura.
Palavras-chave: Leitura na escola, Compreensão leitora, Testes de compreensão,
Teste Cloze.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
A COMPREENSÃO LEITORA EM ALUNOS DO
7º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL DE UMA
ESCOLA PÚBLICA DO INTERIOR DE ALAGOAS
Kayllene Leite da Rocha Santos1
Introdução
Sabe-se que a sociedade contemporânea é letrada e inserida numa cultura
grafocêntrica que não só valoriza o ato de ler como também o ato de escrever em diferentes práticas sociais, logo esses dois instrumentos são de valiosa
importância para os indivíduos que compõem essa sociedade, uma vez que a
maioria das informações é transmitida através da linguagem escrita. Assim
sendo, a comunicação não pode ficar estreitada por falta de compreensão do
texto escrito, proporcionando a exclusão social por conta da ausência de domínio dessa habilidade.
Nesse sentido, faz-se necessário pensar no processo de compreensão de texto e sua importância na prática da leitura, uma vez que ela é essencial para se
atribuir sentidos ao que se lê, proporcionando o uso da leitura como um instrumento que viabiliza o acesso ao mundo letrado. Com efeito, é por meio da leitura
que o homem vai atribuindo significado, ativando o conhecimento prévio e assim compreendendo um texto escrito, embasado também num repertório lexical
e de informações sobre o sistema linguístico.
1. Aluna do Mestrado Profissional em Letras/ PROFLETRAS- Universidade Federal de Alagoas. Professora de
Língua Portuguesa, da Educação Básica Municipal. E-mail: [email protected]
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Coordenadas
Dessa forma, destaca-se a importância de não apenas decodificar letras e
palavras2 no processo da leitura, mas essa ação demanda a exploração mais complexa do ato de ler, para poder viabilizar a construção do sentido do texto. Além
disso, a dinâmica da leitura envolve aspectos que vão desde a experiência de
mundo vivida pelo leitor, até a compreensão dos aspectos sociais envolvidos no
complexo ato de ler. O desenvolvimento da leitura, ao longo de todo o processo
de escolarização, contribui não só para a construção de uma bagagem cultural,
como também desenvolve os conhecimentos linguísticos, lexicais e de informações em cada indivíduo, para assim, em contato com os textos, o leitor possa
ativar seus conhecimentos prévios e atribuir sentido ao texto.
Nessa perspectiva, o processo de leitura busca atribuir sentido ao texto, por
meio da visão da realidade de cada leitor, que representa a bagagem dos conhecimentos prévios adquiridos ao longo da vida.
Dessa forma, não é importante que tipo de texto seja lido, mas sim a experiência do leitor em processar o texto, principalmente pelos processos mentais
envolvidos durante esse ato. Cabe salientar que a compreensão leitora não ocorre
apenas pelos elementos explícitos no texto, e sim pelos elementos que estão implícitos. Daí a importância que se dá ao processo inferencial na leitura.
Dentro desse marco, sabe-se que o Ministério da Educação verifica o desempenho do nível de leitura dos estudantes brasileiros através de exames nacionais como a Prova Brasil3 e também dos internacionais, como o PISA 4. Os
resultados referentes ao ano de 2013 já foram divulgados, tendo havido uma
melhoria ínfima no país. No entanto, no Nordeste e, principalmente, em Alagoas, não se verificaram melhoras nos índices de desempenho de leitura dos
alunos das escolas públicas. Convém chamar a atenção para o fato de, em 2011,
2. Convém lembrar que o processo de decodificação de letras, palavras e frases é fundamental no processo
da leitura. No entanto, para compreender um texto é preciso ir-se além da decodificação e incorporar
outras habilidades, tais como: inferência, percepção das subjacências e dos implícitos do texto.
3. A prova Brasil, como outras provas oficiais que fazem parte do SAEB (Sistema de Avaliação da Educação
Básica) são aplicadas periodicamente e utilizam testes de múltipla escolha como instrumentos de avaliação
do rendimento escolar.
4. PISA - Programme for International Student Assessment – OCDE (Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico). No Brasil, este programa é coordenado pelo INEP-MEC.
3854
Kayllene Leite da Rocha Santos
os concluintes do Ensino Fundamental do Estado de Alagoas terem tido o pior
desempenho do Brasil.
Efetivamente, no contexto escolar, nota-se uma evidente dificuldade dos
alunos em relação à compreensão leitora. Dificuldade essa que interfere significativamente no desempenho escolar, visto que os discentes parecem não conseguir realizar de forma automatizada a etapa da decodificação; assim sendo,
não conseguem avançar para o nível da compreensão, ou seja, atribuir sentido
ao texto. Esse problema aparece em todas as etapas de escolarização; entretanto,
destaca-se mais nas séries da segunda etapa do Ensino Fundamental (6º ao 9º
ano), em que os alunos deveriam atingir melhores níveis de maturidade cognitiva e de compreensão leitora.
A partir do exposto é preciso repensar a prática escolar da leitura, pois os índices apresentados pelos exames nacionais de avaliação de compreensão leitora
dos nossos alunos estão abaixo do desejável. A partir desse preâmbulo, pode-se
inferir que conhecer o processo da compreensão leitora a partir dos pressupostos cognitivos é necessário em prol de ações pedagógicas mais significativas em
sala de aula no campo da leitura. Sendo assim, esta pesquisa situa-se na área dos
estudos do processamento da leitura numa abordagem cognitiva com o desejo
de verificar o desempenho em compreensão leitora entre alunos do 7º ano do
Ensino Fundamental de uma escola pública municipal, do interior de Alagoas.
Convém frisar que o 7º ano representa uma fase intermediária de consolidação
do ciclo de escolarização, aliado ao desenvolvimento físico-psicológico-mental
dos alunos, em que a leitura significativa tem muito a contribuir para a sua formação intelectual.
A recorrente constatação de deficiência em compreensão leitora entre os
alunos proporcionou-nos a inquietação e a motivação para o desenvolvimento
desta pesquisa, no sentido de verificar em que medida o público alvo já tem o
processo de decodificação automatizado, a ponto de poder se dedicar ao processo de compreensão dos textos que lê. Diante disso, espera-se, consequentemente, que a leitura seja consolidada como um processo que busca atribuir sentido
ao texto, com a ativação dos conhecimentos prévios e o domínio dos elementos
de textualidade e das estratégias envolvidas nesse ato. Em razão dessa problemática, surgiu a pergunta que motivou o presente estudo: em que medida os alunos
de 7º ano de uma escola municipal do interior de Alagoas podem melhorar seu
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Coordenadas
desempenho em leitura após a aplicação e discussão dos resultados de testes e
consequente familiarização com vários instrumentos de avaliação, tais como o
teste cloze e o teste de compreensão de múltipla escolha?
Uma vez delineada a situação-problema, destacamos o objetivo principal
deste trabalho, que é apresentar os resultados parciais da aplicação de uma experiência de didática realizada por meio de um projeto de leitura e compreensão de
textos em que se utilizam atividades com testes cloze (texto lacunado) e teste de
compreensão de múltipla escolha, não só para diagnosticar o nível de compreensão leitora de gêneros textuais diversificados e de tipologia variada (expositiva,
narrativa, argumentativa, etc.), mas também para desenvolver uma familiarização dos alunos com esses instrumentos, em vista de consequente melhoria dos
níveis de compreensão leitora desses alunos do 7º ano do ensino fundamental.
Nessa perspectiva, a pesquisa que estamos realizando segue uma metodologia qualitativa de cunho interpretativo e interventivo, já que pretendemos não
só detectar problemas de compreensão leitora, mas também tentar remediá-los
por meio da familiarização de experiências didáticas de leitura utilizando o teste
de múltipla escolha e o teste cloze. O tratamento dos dados obtidos será quantitativo, inclusive estatístico, bem como também qualitativo, por meio de análises,
discussões e cotejamentos. A análise desses dados será feita à luz da fundamentação teórica em que se baseia o estudo, qual seja, a abordagem cognitiva da
leitura, especialmente os aspectos cognitivos do processamento da compreensão
e seus instrumentos de avaliação, defendida por autores como Kleiman (2004);
Silveira (2005); Rodríguez (2004); Santos (2009), Tomitch (2007); dentre outros.
A compreensão leitora e suas bases cognitivas
A leitura proporciona ao indivíduo o acesso à cultura letrada, uma vez que,
por meio dela, ele entra em contato com o mundo que o cerca, reconhecendo-o
não só através da língua escrita como também de outros sinais provenientes da
linguagem não verbal como a imagem, a mímica, os gestos, os símbolos, dentre
outras formas de linguagem.
Sendo uma habilidade complexa, a leitura engloba vários aspectos que caracterizam o ato de ler nas mais diversas práticas sociais em que o indivíduo esteja inserido. São eles: aspectos políticos, sociais, afetivos, ideológicos e estéticos;
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Kayllene Leite da Rocha Santos
mas, neste trabalho, evidenciaremos a leitura do texto escrito do ponto de vista
dos aspectos cognitivos e sociocognitivos do seu processamento em busca do
desenvolvimento da compreensão leitora.
Nessa perspectiva, segundo Silveira (2005, p.7) além dos aspectos externos
envolvidos no ato de ler, temos que considerar os aspectos internos relacionados
à base cognitiva, que ocorrem de forma inconsciente, como o papel da visão, o
processamento da informação com o uso das estratégias cognitivas e metacognitivas, sem esquecer o papel da memória que ativa o conhecimento prévio. A
despeito disso, Leffa (1996, p. 15) esclarece que
A compreensão não é um produto final, acabado, mas um processo que
se desenvolve no momento em que a leitura é realizada. A ênfase não está
na dimensão espacial e permanente do texto, mas no aspecto temporal
e mutável do ato da leitura. O interesse do pesquisador ou do professor
não está no produto final da leitura, na compreensão extraída do texto,
mas principalmente em como se dá essa compreensão, que estratégias,
que recursos, que voltas o leitor dá para atribuir um significado ao texto.
Além da necessidade de compreendermos o que ocorre na mente durante o
ato de ler, é importante defendermos a concepção de leitura que, segundo Koch
(2014), está focada na interação autor-texto-leitor, numa abordagem interacional
da língua, enfatizando o indivíduo como sujeito ativo na construção do sentido
do texto. Koch (2014, p. 11) argumentam que
Nessa perspectiva, o sentido de um texto é construído na interação textosujeitos e não algo que preexista a essa interação. A leitura é, pois, uma
atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se
realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na
superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo.
Considerando o acima apresentado, a leitura proficiente é uma habilidade
que requer uma posição ativa do leitor, para que ele busque a compreensão ativando o conhecimento prévio, para não só eficientemente decodificar, pois esse
processo é fundamental, mas que deve ser automatizado, mas indo além, fazendo um uso eficaz das estratégias de leitura.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Coordenadas
Como se pode ver, a leitura não pode mais ser vista como uma ação mecânica, enfatizando apenas a decodificação, mas precisa construir sentido, explorando os implícitos e explícitos do texto escrito, enfatizando a interação do
leitor com o autor através do texto escrito. Assim entra em cena a importância
do conhecimento prévio nesse processo.
O papel do conhecimento prévio e da memória
Durante o ato de ler, ocorre a ativação do conhecimento prévio, que é o conhecimento acumulado a experiência que cada leitor tem com os mais variados
assuntos, mediante sua interação nas vivências cotidianas. Nesse sentido, com
base em Kleiman (2004), Oliveira (2013, p.34) afirma que
O conhecimento prévio (CnPr) abrange basicamente o conhecimento de
mundo, o conhecimento linguístico e o conhecimento textual - todos
esses se encontram armazenados na memória do leitor e são adquiridos
a partir de vivências e experiências acumuladas ao longo de sua vida. Durante o processamento da leitura, esses conhecimentos são ativados mediante os estímulos fornecidos pelo texto, possibilitando uma interação
entre os conhecimentos veiculados pelo texto e os conhecimentos ativados pelo leitor no momento da leitura. A partir dessa ótica, o processo
de compreensão consiste, então, numa visão de leitura que se concretiza
pela interação leitor-texto.
Efetivamente, o conhecimento prévio é um fator determinante na busca
da compreensão de um texto, uma vez que o leitor, durante o ato de ler, ativa a
sua experiência de vida sobre a temática explorada no texto escrito e, nessa interação, passa a construir sentidos nas sequências que lê, através das inferências
para, dessa forma, chegar à compreensão do texto.
A respeito disso, segundo Kleiman (2004), para que o leitor atinja o nível da
compreensão textual de texto escrito ele necessita que o conhecimento prévio
seja ativado e mediante a interação de diversos níveis do conhecimento, como o
linguístico, o textual e o conhecimento de mundo a construção do sentido seja
materializada na mente do indivíduo.
As especificações do conhecimento prévio podem ser demonstradas através
do seguinte mapa textual:
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Kayllene Leite da Rocha Santos
Figura 1 - Mapa Conceitual do Conhecimento Prévio
Fonte: COSTA, Jane Pereira. (2011, p.39)
Partindo das observações expostas na Figura 1, observa-se que o conhecimento prévio apresenta alguns níveis de conhecimento que interagem cada qual
com as suas especificidades, mas que contribuem significativamente com o processo da leitura, conforme a história de leitura de cada leitor ele desenvolve melhor a habilidade de fazer inferências e dessa forma construir sentidos do texto.
Convém lembrar que o conhecimento prévio está estruturado na mente por
meio de esquemas mentais que vão sendo modificados através das experiências
de vida e ao longo do tempo. Como diz Costa (2011, p.39)
Em suma, pode-se dizer que o processo de compreensão ocorre, durante
o próprio momento do ato de ler, quando a área do conhecimento de
mundo necessária para a efetivação da leitura é ativada. Isso é possível
graças ao conhecimento prévio, que funciona como o repositor ou o repositório de conhecimentos acumulados durante toda a nossa vida.
Além dos aspectos elencados acima, vale ressaltar o papel das memórias – a
de trabalho, a de curto e a de longo prazo, em regime de colaboração com o conhecimento prévio no processo da leitura, na visão cognitiva. Com efeito, Oliveira (2013, p. 36) acrescenta que
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Coordenadas
a memória representa o acervo de informações que conseguimos registrar, captar, construir e registrar ao longo da vida. Como sua aquisição
se dá, em grande parte, pelos nossos sentidos, a memória é comumente
conhecida e classificada como memórias sensoriais. Além dessa característica, a memória é essencial e indispensável para qualquer informação
que utilizamos em nosso dia a dia; o que implica afirmar que sem ela
todo aprendizado tende ao fracasso.
Nesse ínterim, percebemos a relação da memória com o conhecimento prévio, pois ambos estão imbuídos no mesmo processo, conforme a história de leitura de cada leitor. Reiterando, Izquierdo (2006, p.6) defende que “a melhor e mais
completa maneira de exercitar a memória é a leitura, pois durante a realização
dessa atividade, exercitam-se as memórias verbal, visual, de imagens e motora”.
Durante o ato de ler, na mente do leitor, a memória busca a integração não
só do conhecimento prévio como também do conhecimento linguístico e textual
para assim contribuir para a construção do sentido do texto oral e escrito. Além
disso, há a importância do aspecto motivacional e da intencionalidade da leitura.
Ainda em relação à memória, a informação precisa ser armazenada na mente por um certo período de acordo com a sua função. Assim, pode ocorrer a
atuação da memória de trabalho, vista como imediata, pois conserva intacta,
por um período breve a informação que está sendo processada. Por outro lado,
as memórias de curta e longa duração estão associadas à aquisição de uma nova
informação.
Como se pode ver, a memória não tem sua importância apenas na leitura do
texto escrito, mas na leitura do mundo que cerca o leitor, da leitura da sua realidade na esfera social. Decerto, em relação à leitura do texto escrito, a memória
fornece informações ao leitor através da ativação do conhecimento prévio sobre
o tema da leitura.
Modelos de processamento de leitura
Durante a leitura, a compreensão ocorre por meio do processamento descendente (top-down) ou do ascendente (bottom-up). Segundo Costa (2011, p.23)
3860
Kayllene Leite da Rocha Santos
No processo ascendente, o leitor parte das informações visuais e grafofônicas em busca do sentido da leitura, no processo descendente, o leitor
parte dos conhecimentos prévios diretamente para o sentido da leitura.
O processamento bottom-up está relacionado à etapa de decodificação, próprio do leitor iniciante que ainda não automatizou o processo. Por outro lado,
o top-down está relacionado à ativação de outros conhecimentos. Dessa forma,
Silveira aduz que “[...] o leitor maduro é aquele que utiliza, de forma adequada
e no momento necessário, os dois processos, complementarmente” (2008, p.73).
Nessa mesma direção Kato (1985, p. 40) reitera que
O processamento descendente (top-down) é uma abordagem não linear, que faz uso intensivo e dedutivo de informações não-visuais e cuja
direção é da macro para a microestrutura e da função para a forma. O
processamento ascendente (bottom-up) faz uso linear e indutivo das informações visuais, linguísticas, e sua abordagem é composicional, isto
é, constrói o significado através da análise e síntese do significado das
partes.
Esses dois tipos de processamento, presente na busca pela compreensão leitora são embasados no enfoque do estilo pessoal do leitor, dessa forma, dependendo da necessidade durante a busca pelo conhecimento, opta-se por um deles.
Nesse sentido, Kleiman (2004, p.16) afirma que
Quando há problemas no processamento em um nível, outros tipos de
conhecimento podem ajudar a desfazer a ambiguidade ou obscuridade,
num processo de engajamento da memória e do conhecimento do leitor
que é, essencialmente, interativo e compensatório; isto é, quando o leitor
é incapaz de chegar à compreensão através de um nível de informação,
ele ativa outros tipos de conhecimento para compensar as falhas momentâneas.
Tanto o processamento ascendente quando o descendente da leitura são
ativados, conforme a intencionalidade da leitura e podem ser direcionados por
meio das técnicas de leitura.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Coordenadas
Técnicas de leitura
São várias técnicas de leitura que enfocam vários níveis de compreensão.
Elas podem ser exercitadas através da didática escolar, com a mediação do professor.
A primeira técnica é conhecida como skimming que focaliza uma leitura superficial, rápida, uma varredura, conforme Silveira (2005, p. 68) apresenta que é
uma “Leitura rápida em busca da idéia geral de um texto, para descobrir o assunto de que ele trata (...) É muito utilizada como pré-leitura, para ver se o material
interessa ou não”. A segunda técnica é a scanning que está voltada na busca de
informações específicas, como um rastreamento. A despeito disso Silveira (2005,
p. 69) afirma que ela é uma “Leitura rápida, em busca de uma informação específica, geralmente em listas e tabelas”. A próxima técnica conhecida como main
points prioriza a busca pelas ideias centrais do texto, dessa forma Silveira (2005,
p. 69) reitera apresentando que “Essa técnica facilita a retenção das macroestruturas do texto e pode ser utilizada para resumos e para discussões posteriores
sobre as principais proposições do texto”. Por fim, a técnica da leitura crítica que
promove a reflexão sobre o texto, assim Silveira (2005, p. 69) reitera que é uma
técnica que promove o “Questionamento do texto sob vários pontos de vista (público leitor a que se destina, intenções, validade das conclusões e da mensagem,
em relação ao posicionamento do leitor, etc. )”.
Dentre esses fatores, podemos concluir que conforme a intencionalidade da
leitura e a maneira como o texto é lido a percepção leitora pode ser alterada, bem
como as técnicas de leitura utilizadas.
A compreensão de textos e os instrumentos de verificação
e avaliação da compreensão leitora
Como a leitura e a compreensão leitora são atividades que se processam na
mente das pessoas, verificar e avaliar a compreensão é algo que só pode ser efetivado por meio da evidência do comportamento do leitor após a leitura. Isso se
dá geralmente através de testes, sendo a prática de perguntas e respostas a forma
mais tradicional de se verificar e avaliar a compreensão de textos. Entretanto, a
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Kayllene Leite da Rocha Santos
pedagogia moderna e a linguística aplicada engendraram outros tipos de teste,
tais como o teste Cloze e o teste de múltipla escolha.
O teste Cloze
O teste cloze, conhecido como texto lacunado, é uma das técnicas que viabilizam o diagnóstico e intervenção em leitura, através da avaliação psicoeducacional. É um instrumento muito utilizado por linguistas e psicólogos para avaliar a compreensão leitora.
Como a leitura é uma atividade dinâmica, o cloze é um instrumento viável
que fornece subsídio para a avaliação da compreensão leitora, em termos cognitivos. A despeito disso, Leffa (1996, p.70) aduz que
A técnica foi criada por um jornalista norte-americano (Taylor, 1953),
com a finalidade de medir a inteligibilidade (readability) do texto. Logo
se descobriu que o cloze não media apenas a inteligibilidade do texto,
mas era também um instrumento válido e confiável para medir a proficiência em leitura; a variação de acertos no teste discriminam fidedignamente o leitor fluente do leitor fraco. No fim da década de 60, viu-se também que o cloze era capaz de medir não apenas a competência linguística
geral do indivíduo. Finalmente, o cloze tem sido apresentado como um
instrumento de ensino de leitura, capaz de desenvolver no leitor a percepção de aspectos importantes do texto.
A elaboração do teste cloze está no apagamento de palavras ou expressões
dentro de um determinado intervalo. Esse apagamento é sinalizado por um traço que pode ter o tamanho equivalente ao da palavra suprimida ou um tamanho
padrão para todo o texto. As lacunas no texto deverão ser preenchidas pelo leitor
a fim de reconstruir o sentido completo do texto, para que o preenchimento das
lacunas seja eficiente o leitor fará uso da inferência. Ao preparar um texto baseado na técnica do Cloze, Santos (2009, p. 51) defende que “é necessário que cada
uma de suas seções apresente um sentido completo, de forma que a compreensão dependa do sentido total da leitura e não somente da frase que antecede ou
sucede a oração”.
Efetivamente o uso do teste cloze evidencia uma relação entre a mente do
leitor e o texto escrito, pois a técnica vai além do vocabulário, ela requer que o
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Coordenadas
leitor ative os seus conhecimentos prévios sobre o gênero, a temática e a sintaxe,
relacionando o assunto do texto com o conhecimento sobre a língua, visando
estabelecer a coerência e a coesão textual. Na procura pelo vocábulo adequado
para o preenchimento da lacuna o leitor utiliza as estratégias cognitivas e pode
realizar uma experiência metacognitiva em prol da compreensão do texto escrito. Em decorrência disso, Santos (2009, p. 50) revela que
Para os teóricos da cognição, o Cloze é um processo interativo entre o leitor
e o texto que permite ao primeiro tomar conhecimento de suas habilidades
de compreensão (Condemarín & Milicic, 1988). Esse processo possibilita
ao leitor fazer uma discriminação entre a compreensão escrita e a fonológica das palavras impressas do texto. Quando essas duas compreensões
interagem e encontram um ponto de equilíbrio, o leitor obtém uma compreensão exata do texto, pois se conscientiza da estrutura interna dele, o
que aumenta sua sensibilidade, resultando na compreensão da leitura.
Teste de compreensão com questões de múltipla escolha
Os testes de compreensão com questões de múltipla escolha foram disseminados na década de 70 por meio do modelo tecnicista de educação, que enfatizava a verificação formal do conhecimento.
Salientamos que a organização dos testes de compreensão com questões de
múltipla escolha está baseado na Teoria de Resposta ao Item.
Atualmente esse tipo de teste tem sido utilizado em exames de larga escala,
como concursos públicos e os exames oficiais do Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Básica- SAEB, especificamente a Prova Brasil e o ENEM. Nos dias
atuais, na prática diária do ensino escolar, principalmente nos livros didáticos
para o ensino de Português, os testes de múltipla escolha estão cada dia mais
rarefeitos. Alguns autores, a exemplo de Gatti (1987), criticam o descaso e a falta
de estudos no Brasil sobre os testes de múltipla escolha.
A metodologia utilizada e o contexto da pesquisa
Sobre a metodologia utilizada na pesquisa em desenvolvimento, esclarecemos a escolha do referencial metodológico, uma vez que ela se caracteriza como
qualitativa, interpretativa e com aporte quantitativo. A pesquisa também se de3864
Kayllene Leite da Rocha Santos
fine como pesquisa-ação, de cunho interventivo, uma vez que todo estudo será
realizado paralelamente às nossas aulas de língua portuguesa, fator que viabiliza
um trabalho sistemático prático, já que haverá um paralelo entre as teorias discutidas e a aplicabilidade da pesquisa, possibilitando aos alunos colaboradores
uma aprendizagem significativa. Isso nos mostra a importância de uma pesquisa
ação para o professor de língua portuguesa, que observa na prática pedagógica
as dificuldades dos seus alunos. Com efeito, devido ao caráter interventivo, essa
metodologia de pesquisa funciona como aliada na intervenção de problemas frequentemente diagnosticados em sala de aula em relação à compreensão leitora,
pois uma aprendizagem significativa considera o progresso construtivo do aluno, de forma diária.
Faz-se necessário esclarecermos que o projeto da presente pesquisa recebeu
parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal
de Alagoas.
A coleta dos dados será feita por meio da aplicação de questionários e testes
utilizando o texto lacunado (teste cloze) e o teste de múltipla escolha. Os dados
obtidos serão dispostos em tabelas e submetidos a um tratamento estatístico. A
apresentação dos resultados quantitativos serão dispostos em quadros, gráficos
e ou tabelas. Finalmente, os dados obtidos serão analisados qualitativamente e
confrontados com as hipóteses anteriormente levantadas.
O contexto da pesquisa
A pesquisa está sendo realizada numa escola municipal do interior de Alagoas, especificamente no município de Rio Largo- AL, durante este segundo
semestre do ano letivo de 2015. O estudo tem como finalidade de verificar o
processo de compreensão do texto escrito, abrangendo duas turmas de sétimo
ano do Ensino Fundamental do turno matutino, totalizando, em média, 90 alunos-colaboradores, de ambos os sexos, na faixa etária de 12 a 14 anos, residentes
no mesmo bairro e nas suas redondezas. Para acesso ao ambiente escolar, os
discentes, em sua maioria, não precisam de transporte, pois o trajeto é feito a pé.
Entretanto, há um grupo de alunos, residente na zona rural do município, que
necessita do transporte escolar oferecido pelo governo municipal.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Coordenadas
A instituição de ensino foi inaugurada em 15 de março de 1980, ofertando
no turno diurno o curso de Educação primária da 1ª a 4ª série e 1º Grau de 5ª a 8ª
série, com uma clientela de 265 alunos. O estabelecimento educacional recebeu
esse nome em homenagem a mãe de um filho ilustre da cidade, Dr. Valter Figueiredo, um advogado renomado e político influente no município. Em decorrência
disso, a escola tem como patrona.
A escola tem 35 anos de funcionamento. Sua estrutura física sofreu reformas e atualmente possui 9 salas de aulas, cozinha, almoxarifado, secretaria, sala
do professor, sala de leitura (desativada), laboratório de informática (desativado),
sala de direção, 4 banheiros, quadra de esportes descoberta e cantina. Há uma
banda fanfarra com quarenta alunos componentes.
Atualmente, a clientela é de 563 alunos, no turno diurno, com seis turmas
de 6º ano, quatro turmas de 7º ano, quatro turmas de 8º ano, e duas turmas de 9º
ano, sendo 315 alunos no turno matutino e 248 no turno vespertino, distribuídos
em oito turmas pela manhã e 8 turmas à tarde.
Os discentes são provenientes de bairros circunvizinhos como também de
um povoado na zona rural. Dessa forma, atende ao público do 6º ao 9º ano, ou
seja, o Ensino Fundamental II. O perfil dos informantes é constituído de uma
clientela diversificada. A maioria das famílias participa do programa social, federal, Bolsa Família, por não possuírem condições econômicas e sociais favoráveis.
Observamos que a necessidade de aplicação da pesquisa na referida instituição escolar é em face aos dados apresentados pelo resultado do IDEB, que
teve sua vigência em 2005. Na ocasião não havia nota projetada, já que era uma
avaliação pioneira. A partir de 2007 a instituição de ensino teve sua meta apresentada e até 2013 o resultado alcançado não foi atingiu a meta projetada, que era
3.4 e o alcançado foi 2.4.
Em relação ao perfil socioeconômico e cultural dos alunos colaboradores
da pesquisa, foi aplicado um questionário para levantamento dos dados a fim de
traçar o perfil da clientela por meio de itens como: sexo, faixa etária, localização
da residência, aspecto familiar apontando com quem o alunado mora, além de
apontar dados econômicos como a necessidade de trabalhar conciliando essa atividade com o estudo e o nível de escolarização dos pais . Esses resultados foram
coletados e apresentados no quadro abaixo:
3866
Kayllene Leite da Rocha Santos
Tabela 1- Perfil socioeconômico dos alunos colaboradores da pesquisa
(universo de 78 estudantes do 7º ano a e 7º ano b)
Sexo
Faixa etária
Onde mora
Com quem mora
Trabalha
Mãe
Escolarização
Pai
Masculino
41
Feminino
37
11 anos
5
12 anos
34
13 anos
26
14 anos
10
15 anos
2
16 anos
1
Rio Largo - Mata do Rolo
61
Fazenda Canoas
8
Não respondeu
9
Com os pais
51
Só com a mãe
20
Só com o pai
2
Com os avós
5
Sim
1
Não (só estuda)
77
Ensino Fundamental incompleto
27
Ensino Fundamental completo
8
Ensino Médio Incompleto
9
Ensino Médio completo
16
Ensino Superior Incompleto
1
Ensino Superior completo
-
Não sabe responder
17
ENS. FUND.INCOMPLETO
33
ENS. FUND. COMPLETO
6
ENS. MÉDIO INCOMPLETO
6
ENS. MÉDIO COMPLETO
8
ENS. SUP. INCOMPLETO
-
ENS. SUP. COMPLETO
2
NÃO SABE RESPONDER
23
Fonte: a autora
3867
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Coordenadas
A partir do exposto no Quadro 2, é possível fazermos uma leitura dos dados
coletados entre os 78 alunos colaboradores, assim sendo, percebemos que o sexo
masculino predomina com um universo de 41 alunos enquanto há 37 alunas. A
faixa etária se enquadra entre 11 e 16 anos, tendo a maioria com 12 anos de idade,
dentro da faixa etária esperada para o nível de escolarização analisado. Em relação à moradia, predomina sua localização na área circunvizinha a escola, dentro
da região urbana do município, tendo uma minoria que reside na zona rural.
Além disso, os dados apontam que a maior parcela dos alunos colaboradores reside com os pais, seguida do segundo lugar que aponta a moradia com a genitora.
No que tange ao aspecto econômico a grande maioria revelou que não exerce nenhuma atividade laboral, apenas dedicam seu tempo ao estudo.
Por outro lado, o nível de escolaridade tanto do pai quanto da mãe ficou
centrado no fundamental incompleto, mas há a prevalência de uma parcela de
alunos que não souberam responder a este item.
Apresentação e análise parcial dos dados
Participaram da aplicação do teste de múltipla escolha 74 alunos colaboradores, sendo 39 do 7º ano A e 35 do sétimo ano B. A tabela abaixo apresenta os
dados dos resultados das turmas do 7º ano A e do 7º ano B, por conceitos. Os
testes foram corrigidos e pontuados atribuindo a pontuação de 1, 25 para cada
uma das oito questões, caso acertassem a resposta.
Tabela 2- Frequência de Notas e Conceitos- Teste de Múltipla Escolha
“Por que alguns animais que comem pedra”
TURMAS
NOTAS/ CONCEITOS
7º ANO A
7º ANO B
FREQUÊNCIA
FREQUÊNCIA
10,0
6
3
Muito bom
8.1 - 9.9
6
5
Bom
7.1- 8.0
12
5
Regular
5.1 - 7.0
8
6
Excelente
3868
Kayllene Leite da Rocha Santos
Fraco
Insuficiente
3.1 - 5.0
5
11
Abaixo de 3.0
2
5
39
35
Total de estudantes/ colaboradores
Fonte: a autora
Fica evidenciado que a maioria dos alunos, das duas turmas do 7º ano, está
enquadrada entre o conceito regular e excelente diante de questões do tipo teste
de múltipla escolha.
Considerações finais
Neste trabalho fizemos a apresentação de uma pesquisa em andamento
com vistas ao enfrentamento da questão da compreensão leitora entre alunos do
7º ano do Ensino Fundamental. Foi levantado o perfil dos alunos informantes e
foram aplicados testes (múltipla escolha e texto lacunado – cloze) e a análise dos
dados obtidos (notas) no teste de múltipla escolha revelam uma certa heterogeneidade no desempenho dos alunos, mas a maioria saiu-se razoavelmente bem.
Entretanto, vale salientar que o teste aplicado pode ser considerado fácil, pois
a maioria das questões exigia apenas localização da informação e inferências
simples. Com a continuação da pesquisa, serão aplicados testes com um maior
grau de dificuldade, porém dentro da adequabilidade em relação à série e à faixa
etária dos alunos.
Não foram apresentados os dados obtidos no teste cloze, mas já ficou evidenciada uma dificuldade maior dos alunos nesse tipo de teste, embora o teste
aplicado também tenha apresentado um texto muito fácil. Entretanto, o teste
cloze exige do aluno informante uma competência textual mais acurada no micronível.
A pesquisa continuará com a aplicação de outros testes cujos resultados serão comentados com as turmas no sentido não só de familiarizar os alunos com a
atividade, mas também na expectativa de ajudá-los a melhorar o desempenho na
compreensão leitora por meio da conscientização da importância do vocabulário
e das estratégias de leitura, destacando-se a inferência.
3869
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Coordenadas
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APÊNDICE A - Teste de compreensão de múltipla escolha
Por que Alguns Animais Comem Pedra?
Alguns animais têm hábitos que podemos considerar curiosos. Os gatos, por exemplo,
se lambem para limpar o pêlo. Já os cachorros instintivamente procuram comer certas
ervas quando estão sentindo algum mal-estar. Mas tem bicho com hábitos ainda mais
intrigantes, como comer pedras! É isso aí! E olha que, em vez de fazê-los passar mal, as
pedras exercem funções úteis dentro do organismo.
As pedras engolidas por certos animais são chamadas gastrólitos, que quer dizer “pedra
do estômago”. É dentro deste órgão que elas ficam armazenadas e ajudam a triturar os
alimentos e a limpar as paredes estomacais dos parasitos que a infestam. Além disso, as
3871
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Coordenadas
pedras aliviam a sensação de fome durante longos períodos em que os bichos precisam
ficar sem comer, já que ocupam um bom lugar em seu organismo.
Crocodilos, pinguins, focas e leões-marinhos, entre outros animais aquáticos estão na
lista dos engolidores de pedra. Eles têm em comum o fato de serem excelentes mergulhadores. E as pedras ingeridas funcionam como lastro, isto é: os ajudam a afundar, da
mesma forma que, os cintos de chumbo servem aos mergulhadores profissionais.
É preciso dizer que as pedras não ficam no organismo desses animais para sempre. Eles
é que determinam quanto tempo devem ficar controlando a quantidade delas em seu
estômago. Claro que isso não é algo pensado pelo bicho. O corpo dele é que dá sinais
de desconforto. Então, o animal provoca vômito, botando algumas pedras para fora até
se sentir bem.
Mas não pensem que os bichos engolem qualquer pedra que vêem pela frente. Eles
escolhem com muito cuidado as que vão para sua barriga. Valem as mais lisinhas e
bem arredondadas. Desta forma, ao serem engolidas, elas não machucam o animal por
dentro. Mais do que uma mania, engolir pedras é uma maneira natural que os animais
encontraram para garantir o seu bem-estar!
Salvatore Siliciano
Fonte: Revista Ciência Hoje das Crianças - CHC, nº 141,
Nov. 2003, p.28.
Assinale uma única alternativa de acordo com o texto, ou seja, só existe uma alternativa correta.
I - Os animais que costumam engolir pedras
A( ) vivem nas árvores; B( ) vivem nos campos; C( ) vivem nas águas. D( ) vivem nos
ares
II - Para alguns animais, as pedras dão alívio para a sensação de
A( ) frio e fome;
B( ) fome;
C( ) dor de barriga;
D( ) dor de barriga e fome
III - As pedras armazenadas no estômago dos animais aquáticos ajudam a
A( ) Passar a sede
B( ) Apenas a triturar os alimentos
C( ) A triturar os alimentos e a sujar as paredes do estômago
D( ) A triturar o que comem e a limpar as paredes do estômago
3872
Kayllene Leite da Rocha Santos
IV - São exemplos de animais aquáticos que comem pedra:
A( ) pingüins, leões-marinhos, focas e crocodilos
B( ) Cachorros, gatos, cavalos, panteras e crocodilos
C( ) Passarinhos, galinhas, araras, papagaios e pingüins
D( ) Crocodilos, cachorro, pingüins, focas e leões-marinhos
V - As pedras engolidas pelos animais citados no texto também
A( ) ajudam o corpo do animal a sair da água;
B( ) ajudam o corpo do animal a descer para o fundo da água;
C( ) ajudam o corpo do animal a boiar;
D( ) ajudam o corpo do animal a se livrar dos parasitas da pele.
VI - As pedras não permanecem no corpo dos animais aquáticos para sempre. Quando
elas causam desconforto os animais
A( ) vomitam todas as pedras;
B( ) vomitam tudo e logo comem mais pedras;
C( ) vomitam algumas pedras;
D( ) vomitam os alimentos com as pedras.
VII - Ao serem engolidas, as pedras não machucam o corpo do animal pois eles
A( ) Escolhem quaisquer pedras bem menores
B( ) Escolhem as redondas e grosseiras
C( ) Escolhem apenas as redondas
D( ) Escolhem as redondas e lisinhas
VIII - O que significa gastrólito?
A( ) pedras do estômago
B( ) animais que comem pedra
C( ) o hábito de comer pedra
D( ) um tipo de erva.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Coordenadas
APÊNDICE B - Teste cloze
A BARATA
Magricela como a Olívia Palito, mulher de Popeye, parecia um galho seco dentro
do vestido escuro. Era antipática e ranzinza. Dona Risoleta usava óculos de lentes grossas: não enxergava direito, vivia confundindo um aluno com outro.
A aula ________ religião não contava ponto nem influía ______ nossa média,
mas a diretora nos ___________ a frequentar.
Um dia apareceu uma ____________ na sala de aula. Descobrimos então _____
dona Risoleta tinha verdadeiro horror ________ baratas: soltou um grito, apontou a
__________ com o dedo trêmulo e subiu _________ cadeira, pedindo que matássemos. Era uma ___________ grande, daquelas cascudas.
A classe inteira _________ mobilizou para matá-la. Foi aquele alvoroço:
___________, cotoveladas, pontapés, risos e gritaria, todos ____________ atingí-la primeiro. E a coitada _________ barata tonta, escapando por entre nossas ___________
patadas no chão. Até que, de ____________, tive a sorte dedar com __________ passando a correr entre meus pés. Aí ______________-a numa pisada só.
Fui aclamado como _____________, vejam só: herói por ter matado ________
barata. Até dona Risoleta me agradeceu, ____________, descendo da cadeira e me
dando _____________ beijo na testa. Esse beijo a ____________não me perdoou; durante muito tempo ___________ vítima da maior gozação: diziam que ___________
Risoleta estava querendo me namorar.
Deste _______________ nasceu uma brincadeira que passamos a ____________
em toda aula de religião, duas ____________ por semana. Alguém trazia uma barata __________ dentro de uma caixa de fósforo vazia, para soltar na sala de aula
__________ as carteiras, até que um aluno ____________ a sua presença. Quando
não era a __________ Risoleta que soltava um gritinho:
- Minha Nossa! Uma barata!
Às vezes, mais de um ___________ trazia de casa pra soltar na ____________
a sua barata dentro de uma ___________ de fósforo ou numa latinha. Tínhamos de
______________ antes, pois se aparecessem muitas ______________ de uma vez,
dona Risoleta acabava _______________.
Um dia, ela foi reclamar providencias da ________________, dizendo que o prédio era velho, que ___________precisando de uma limpeza em regra, _____________
cheio de baratas. Naquele tempo, como se sabe, não ___________ dedetização, de
modo que a diretora __________ tomou providência nenhuma, nunca tinha visto
_____________ na escola, aquilo eram fricotes de ___________ Risoleta.
3874
Kayllene Leite da Rocha Santos
E aí a coisa ficou por __________ mesmo, de vez em quando aparecendo ______
baratinha, para alegrar a aula de ________________. Houve uma que subiu pela perna _______ professora e foi se esconder debaixo _________ sua saia. A mulher deu
um __________ de três metros de altura, se ______________ toda, aos berros, como
se estivesse _________________ do demônio, por pouco não se __________ pela
janela.
(Fernando Sabino. O menino no Espelho.
Rio de Janeiro, Record, 1982) (Adaptação)
3875
RESUMO
Neste trabalho, objetivo discutir sobre práticas de inserção do texto literário em sala
de aula, a partir de atividades do PIBID/Letras/Português da Universidade Federal
de Alagoas (UFAL), realizadas com alunos do ensino fundamental em uma escola
da Rede Estadual de Ensino de Maceió. Mais especificadamente, serão discutidos os
resultados obtidos com base no trabalho desenvolvido em duas oficinas de poesia
do Ciclo de leitura. O Ciclo de leitura é uma atividade desenvolvida por integrantes
do PIBID/Letras/Português que busca propiciar aos alunos um contato mais efetivo
com o texto literário, através da realização de empréstimos de livros, discussões e
oficinas. A partir de estudos no campo do letramento literário, como Zilberman
(2008) e Pinheiro (2007), e de práticas em sala de aula, observei que o trabalho com
o texto literário ainda é bastante escasso ou restrito ao uso do livro didático, havendo uma necessidade de se pesquisar mais sobre o assunto para fornecer possíveis
contribuições para a área do ensino de literatura. Pensando no aluno-leitor como
produtor de sentidos, e não mero decodificador de textos, ministrei as oficinas “Poesia Visual” e “Manoel de Barros, o apanhador de desperdícios”, nas quais ocorreram
a exibição de um curta-metragem, discussões e a leitura e produção de poemas pelos
alunos. Os resultados obtidos nessas duas oficinas foram bem satisfatórios. A maioria dos alunos compreendeu bem a proposta e desenvolveu poemas com bastante
criatividade, utilizando-se de estratégias poéticas diversas para provocar literariedade no texto. Com base nas análises até então realizadas, observei que o Ciclo de
leitura tem gerado uma boa recepção e motivado a constituição dos alunos como
sujeitos-leitores, sendo, portanto, importante que se continue a pesquisar e desenvolver atividades voltadas para o âmbito do letramento literário, principalmente no
ensino fundamental.
Palavras-chave: PIBID, Ensino Fundamental, Literatura e ensino, Gênero poesia.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
CONSTRUINDO SENTIDOS COM A LEITURA
DE POEMAS EM SALA DE AULA
Bruna Wanderley Pereira
Introdução
A partir de estudos situados na área dos estudos literários, como Candido
(1995), Eliot (1991) e Zilberman (2008), além de estudos linguísticos, como Bakhtin (1992) e Geraldi (2010), percebi, nas experiências pedagógicas vivenciadas no
PIBID/Letras/UFAL, que o trabalho com o texto literário no ensino fundamental possui bastante importância para o desenvolvimento linguístico-discursivo
e cognitivo dos alunos, desde que seja valorizado um de seus propósitos mais
fundamentais, que é o de aguçar os sentidos do leitor (PINHEIRO, 2007). Além
disso, a literatura propõe uma humanização (CANDIDO, 1995) e oferece ao leitor
a experiência do prazer estético, permitindo-o transpor barreiras da própria realidade e alcançar uma perspectiva de totalidade e ampla visão de mundo a partir
do contato com as experiências de outrem (AMARILHA, 1997). Diante disso, é
importante que o trabalho com o texto literário busque proporcionar a reflexão
e o senso crítico, indo além do que normalmente é proposto pelo livro didático
e não utilizando o texto apenas como pretexto para a análise de elementos gramaticais isolados.
De acordo com minha experiência em uma escola pública, durante o trabalho desenvolvido pelo PIBID/Letras/UFAL, pude notar um constante interesse
por parte dos alunos em obter acesso à biblioteca da escola, além de se mostrarem envolvidos, em geral, quando trabalhávamos com diferentes textos literários, sobretudo com poemas. Por essa razão, eu e os demais bolsistas elaboramos, sob a orientação da coordenadora do PIBID/Português, um planejamento
3877
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
para realizar, quinzenalmente, o Ciclo de leitura nas turmas de 7º, 8º e 9º ano
de uma escola da rede pública de ensino de Maceió, durante as aulas de Língua
Portuguesa. O Ciclo de leitura tem como objetivo principal contribuir para que
os alunos despertem interesse pela leitura de diversos gêneros literários.
Para que possamos promover experiências de leitura mais prazerosas aos
alunos e oferecê-los o contato efetivo com o gênero poesia, além de contribuir
para novas discussões nos estudos da área e possíveis redirecionamentos na
condução do ensino de literatura nas fases fundamentais de aprendizagem,
comecei a desenvolver uma pesquisa acerca do trabalho com a leitura de poemas no ensino fundamental. Esse gênero proporciona aos alunos a vivência de
novas experiências, além de apresentar-se, muitas vezes, como um enigma, o
que faz com que o aluno acelere a sua atividade de compreensão em busca de
alternativas e construção de efeitos de sentido, apreciando o texto como espaço de fruição e desafio.
O gênero poesia: um breve percurso
A poesia pode ter um deliberado e consciente propósito social. Em suas
mais primitivas formas, esse propósito é amiúde absolutamente claro.
Há, por exemplo, antigas runas e cantos, alguns dos quais revelam propósitos mágicos verdadeiramente práticos, destinados a esconjurar o
mau-olhado, a curar certas doenças ou a obter as boas graças de algum
demônio (ELIOT, 1991, p.1).
De acordo com essa citação de Eliot (1991), nota-se que o propósito do poema nem sempre foi o mesmo ao longo do tempo: ele foi se transformando de
acordo com as mudanças histórico-sociais. Houve um tempo, como foi citado
pelo autor, em que a poesia era vista com propósitos mágicos e até milagrosos,
sendo apreciada por seu caráter prático de cura. Nesse sentido, a poesia tinha
um caráter particularmente religioso, sendo, em grande parte, utilizada durante rituais sagrados. Além desses aspectos representativos das sociedades mais
primitivas, também se pode encontrar outras funcionalidades do poema em sociedades mais evoluídas, como a da Grécia antiga. Nessas, além da finalidade
religiosa, alguns poemas também traziam o aspecto informativo em seus versos
– como nas Geórgicas de Vigílio, que possuíam “considerável dose de informação
3878
Bruna Wanderley Pereira
sobre a boa agricultura” (ELIOT, 1991, p.2) – e ainda a preservação da memória,
tendo sido alguns poemas de extrema importância para o estudo histórico de
determinadas sociedades, como os gêneros de poesia épica e a saga. Posteriormente, esse tipo de poema informativo e de conteúdo histórico foi suplantado
pela prosa.
Outro aspecto importante sobre os costumes literários de épocas passadas
era o fato de os escritos, em sua maioria, serem feitos para ser lidos em voz alta,
sendo a oralização das palavras, muitas vezes, necessária para que a compreensão do texto se desse por inteiro. Sobre isso, Abreu (2000) afirma que:
[...] Ler em voz alta era a norma do século IV d.C., situação que se prolongou até o século XIV (...). Mesmo depois dessa época, quando se generalizou a leitura silenciosa, ler em voz alta era uma forma de sociabilidade
comum. Lia-se em voz alta nos salões, nas sociedades literárias, em casa,
nos serões, nos cafés. Esse tipo de leitura, além de permitir o contato com
ideias codificadas em um texto, era forma de entretenimento e de encontro social. (ABREU, 2000, p.1)
Nesse ponto, observa-se que a leitura era encarada não somente como fonte
de informações e preservação da memória, mas possuía a função de divertir e
proporcionar prazer, mesmo que essa atividade fosse sempre realizada em grupos e com o propósito do entretenimento coletivo. No texto, Abreu (2000) ainda
cita uma passagem de Santo Agostinho que relata a sua surpresa ao observar um
amigo, Santo Ambrósio, realizando uma leitura silenciosa, como se fosse essa
uma atitude extremamente incomum e prodigiosa.
Em relação à poesia ser uma fonte de prazer, Elliot (1991) deixa bem claro
em seu texto que essa é uma das suas principais funções – mesmo em relação
àquelas de caráter informativo ou histórico – ele afirma que “a verdadeira poesia
sobrevive não apenas à mudança da opinião pública, como também à completa
extinção pelas questões com as quais o poeta esteve apaixonadamente envolvido”
(ELLIOT, 1991, p.2), trazendo, como consequência dessa afirmação, a ideia de que
mesmo aqueles poemas que não tenham sido pensados em proporcionar prazer,
mas sim em informar ou preservar a memória de uma época, podem manter sua
importância e cativar leitores durante muito tempo – ainda que as questões que
estejam informando tenham caído em descrédito. Sobre isso, o autor ainda afirma: “Pouco importa que um poeta haja alcançado uma ampla repercussão em
3879
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
sua própria época. O que importa é que possa ter sempre existido, pelo menos,
um pequeno interesse por ele em cada geração.” (ELLIOT, p.5, 1991).
A teoria da recepção
Com o propósito de ampliar a reflexão sobre o texto literário, vinculei essas
reflexões de Elliot (1991) sobre o caráter atemporal das obras de arte à Teoria da
Recepção Histórica proposta por Hans Robert Jauss, o fundador da Estética da
Recepção. No artigo “Estética da Recepção e Teoria do Efeito”, Costa (2011) nos
traz importantes considerações de Jauss, em que este lança críticas sobre uma
série de teorias herméticas da literatura que eram conduzidas por um pensamento restrito e que não abarcavam o aspecto de totalidade dos textos literários.
Dentre essas, tanto a teoria literária marxista quanto o formalismo russo se tornam alvo de crítica do autor. Costa (2011), em seu texto, afirma que:
A crítica de Jauss à história da literatura baseia-se no fato de que, em sua
forma habitual, a teoria da literatura ordena as obras de acordo com tendências gerais; ora abordando as obras individualmente em sequência
cronológica, ora “seguindo a cronologia dos grandes autores e apreciando-os conforme o esquema de ‘vida e obra’” (JAUSS, 1994, p.6 apud COSTA, 2011, p.2). A segunda tendência corresponde ao estudo dos autores
canônicos da Antiguidade Clássica e não deixa espaço de reconhecimento para os menores (COSTA, p.2, 2011).
Para Jauss, a teoria literária marxista é incompleta no momento em que só
considera como literárias as obras que refletem os conflitos sociais proporcionados pelas relações de poder. Essa teoria está sempre em busca da ligação entre a
literatura e a realidade social, fundamentando suas críticas a partir disso. “O leitor, sob essa perspectiva, torna-se o sujeito que iguala suas experiências pessoais
ao interesse científico do materialismo histórico” (COSTA, 2011, p.2).
O formalismo russo vai justamente de encontro à teoria marxista no momento em que privilegia a estrutura do texto e desconsidera a reflexão sobre
a realidade social, que poderia ter sido desencadeada durante a leitura. Existe,
nessa corrente, uma valoração da essência do texto, estudando-o a partir das
estratégias verbais que lhe fornecem literariedade e qualificando-o a partir dos
“estranhamentos” e da capacidade de desautomatização da linguagem que este
3880
Bruna Wanderley Pereira
proporciona. Para Jauss (1994), essa teoria ainda não abarca o texto literário em
todas as suas especificidades. Ambas as visões, tanto a marxista quanto a formalista, colocam o leitor em um lugar passivo, não analisando a recepção e o efeito
da obra sobre ele.
Indo de encontro a essas teorias, mas sem deixar de lado as contribuições
que ofereceram, Jauss (1994) concebe, então, a relação entre leitor e literatura baseando-se no caráter estético e histórico. Ao comparar leituras literárias, podese ter a comprovação do valor estético, observando-se a recepção de uma obra ao
longo do tempo, a partir de sua publicação.
O valor histórico, nesse sentido, não consiste apenas em analisar a importância da obra no momento em que foi criada, organizando-a junto a outras
obras pertencentes a uma mesma corrente literária de certa época e identificando características em comum entre elas. Esse método, para a teoria da recepção,
não é o mais eficaz, pois não busca compreender a recepção da obra ao longo do
tempo, por leitores localizados em diferentes momentos da história. Baseandose na primeira tese de Jauss, que diz respeito à historicidade da literatura, Costa
(2011) afirma que “a historicidade coincide, portanto, com a atualização da obra
literária” (COSTA, 2011, p.3). Ou seja, o caráter histórico de uma obra compreende, primordialmente, a relação estabelecida entre a obra e o leitor, sujeito pertencente a qualquer período histórico.
Nesse sentido, pode-se trazer também o conceito de horizonte de expectativas, formulado por Jauss, que, segundo Costa (2011) “é responsável pela primeira reação do leitor à obra, pois encontra-se na consciência individual como um
saber construído socialmente e de acordo com o código de normas estéticas e
ideológicas de uma época.” (COSTA, 2011, p.3). Assim, é notável que uma mesma
obra pode ser recebida de maneiras diversas dependendo das experiências que
o leitor possuir, sendo essas influenciadas tanto pelo meio social quanto pelo
contexto histórico em que o leitor estiver situado – podendo, diante disso, haver
uma leitura mais semelhante entre leitores pertencentes a uma mesma época.
Para apresentar uma teoria em que o leitor seja visto como sujeito ativo, capaz de se mobilizar e de mobilizar o texto literário a partir de sua leitura, Jauss
(1994) realiza uma categorização entre as atividades abarcadas pela experiência
estética, afirmando que:
3881
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
a experiência estética não se esgota em um ver cognoscitivo (aisthesis) e
em um reconhecimento perceptivo (anamnesis): o expectador pode ser
afetado pelo que se representa, identificar-se com as pessoas em ação,
dar assim livre curso às próprias paixões despertadas e sentir-se aliviado
por sua descarga prazeirosa, como se participasse de uma cura (katharsis)” (JAUSS, 1994, p.65)
Além das três atividades denominadas de Aisthesis, Anamnesis e Katharsis,
o autor ainda nos apresenta a Poiesis que, para ele “corresponde à caracterização
de Hegel sobre a arte, segundo a qual o indivíduo, pela criação artística, pode
satisfazer a sua necessidade geral de “sentir-se em casa, no mundo”, ao “retirar
do mundo exterior a sua dura estranheza” e convertê-la em sua própria obra.”
(JAUSS, 1994, p.80).
Diante dessa definição, observa-se que a Poiesis corresponde ao prazer do
leitor no momento em que este se sente co-autor do texto literário, como se o
texto possuísse uma série de lacunas que só podem ser completas a partir de
cada leitura, sendo cada leitor um novo co-autor que irá buscar novas e diferentes possibilidades de leitura para a obra literária.
Jauss (1994) afirma que, ao contato com o texto literário, o sujeito leitor ganha a possibilidade de se afastar da realidade concreta e adentrar em um mundo
imaginário, adquirindo também a característica de sujeito imaginário e vivenciando novas experiências ao se deparar com as experiências alheias, contidas
na obra literária. Nesse processo, o leitor se habilita a gozar a si próprio como
fruidor. Sobre isso, o autor afirma que:
O sujeito, enquanto utiliza sua liberdade de tomada de posição perante
o objeto estético irreal, é capaz de gozar tanto o objeto, cada vez mais
explorado por seu próprio prazer, quanto seu próprio eu, que, nessa atividade, se sente liberado de sua existência cotidiana. (JAUSS, 1994, p. 76)
Assim, pode-se compreender a Teoria da Recepção, proposta por Hans Robert Jauss, como uma teoria disposta a analisar o diálogo entre autor e leitor
através da obra, nunca tomando este como um sujeito passivo, mas sim como um
indivíduo capaz de redescobrir novos aspectos no texto literário, abrindo espaço
para o caráter polissêmico que o texto apresenta, ao tempo em que ele próprio
se redescobre a partir da comunicação de experiências alheias que se correla3882
Bruna Wanderley Pereira
cionam com as suas experiências particulares, fruindo da bagagem estética das
leituras que realiza.
A poesia no ensino fundamental
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1996) – documentos que foram elaborados para auxiliar o trabalho dos docentes das diversas áreas – propõem que,
nas escolas, sejam criadas condições que “permitam aos nossos jovens ter acesso ao conjunto de conhecimentos socialmente elaborados e reconhecidos como
necessários ao exercício da cidadania” (p.6). De acordo com esse documento,
espera-se que o aluno do ensino fundamental utilize diferentes linguagens como
meio de expressar suas ideias, interpretá-las e usufrua das produções culturais,
em contextos tanto públicos quanto privados, atendendo a diferentes intenções
e situações de comunicação.
Sob essa perspectiva, as discussões relacionadas ao processo de domínio de
leitura e escrita apontam para algumas dificuldades na realidade educacional do
Brasil que desencadeiam no fracasso escolar. “Os estudantes são capazes de ler
e escrever, mas não conseguem obter nenhuma informação dessa leitura” (RAMOS, PANOZZO E STUMPF, 2007, p. 134). Considerando as reflexões de Bakhtin
(2003), afirmo que os estudantes não conseguem expressar compreensão responsiva e ativa. Sob essa perspectiva, Soares (2002) afirma que “As pessoas se
alfabetizam, aprendem a ler e a escrever, mas não necessariamente adquirem
competência para usar a leitura e a escrita, para envolver-se com as práticas sociais de escrita.” (SOARES apud ROJO, 2010). Com base nessa realidade, acredito
que o trabalho com o texto literário é de suma importância para contribuir no
desenvolvimento das experiências de leitura e escrita dos alunos, contanto que,
durante esse trabalho, considere-se a leitura como produção de sentidos, processo dialógico (BAKHTIN, 2003; GERALDI, 1997), despertando diversas compreensões sobre o texto e não o permitindo ser utilizado com a finalidade única de
análise dos elementos linguísticos textuais. Segundo Ramos, Panozzo e Stumpf
(2007, p. 134),
não basta oferecer os livros (...) são necessárias discussões sobre o assunto de que trata o livro e reflexões para que os alunos tenham condições
3883
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
de fazer inferências, antecipações, e estabelecer, assim, conexões entre
seu conhecimento prévio e as informações novas. Devemos propiciar
aos alunos muito mais do que apenas ler. É necessário ir além da leitura
simples. A leitura literária tem a função de ajudar–nos a ler melhor, pois
fornece os instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito linguagem.
Para Bakhtin (1992), é necessário sair do plano exclusivamente textual e
observar os aspectos extratextuais presentes. Fazendo um contraponto com a
citação do artigo de Ramos, Panozzo e Stumpf (2007), pode-se dizer que é preciso fazer reflexões acerca do enunciado do texto literário que irá ser trabalhado,
considerando tanto o contexto de produção do texto quanto o contexto em que
esse está sendo lido e recebido pelos alunos. Para o autor:
Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo linguístico
leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo,
enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida. A língua penetra na
vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua. (BAKHTIN,
1997, p.282).
Diante disso, enfatizo a importância de se trabalhar com o texto literário
considerando sempre os contextos que o circulam, tanto o contexto da obra
quanto o do aluno e do ambiente em que essa obra está sendo lida e discutida.
Isso remete às discussões já apresentadas na Teoria da Recepção, que levam a
refletir sobre a necessidade de se observar o sujeito leitor, nesse caso específico
o aluno, como sujeito ativo que dialoga com o texto.
Para além da contribuição nas habilidades de leitura e escrita, é válido ressaltar a importância do texto literário como elemento proporcionador de fruição e prazer ao aluno. Essa possível fruição do texto pode oferecer uma sensação de bem estar ao leitor e deixá-lo mais à vontade para dialogar com a leitura,
permitindo-o penetrar na linguagem do autor e brincar com os jogos que ela
proporciona.
Em relação, especificadamente, ao gênero poesia, pode-se dizer que, em
geral, é um gênero bastante propício à polissemia e à produção de diversas compreensões, o que acarreta na produção de sentidos diversos para diferentes lei3884
Bruna Wanderley Pereira
tores. Diante disso, parece imprescindível pensar em seu trabalho em sala de
aula, tendo em vista que esse é um dos gêneros que mais tende à instabilidade
(BAKHTIN, 1992) e, assim, permite maior autoria nas interpretações e na própria
criação de poemas. Devido ao seu caráter dinâmico, esse gênero promove uma
desautomatização da linguagem, podendo sugerir reflexões bastante prazerosas
e produtivas no contexto de sala de aula.
Sobre isso, Eliot (1991, p.3) comenta:
Suponho que se deva concordar com o fato de que qualquer poeta, haja
sido ele grande ou não, tem algo a nos proporcionar além do prazer, pois
se for apenas isso, o próprio prazer pode não ser da mais alta espécie. Para
além de qualquer intenção específica que a poesia possa ter, tal como foi
por mim exemplificado nas várias espécies de poesia, há sempre comunicação de alguma nova experiência, ou uma nova compreensão do familiar, ou a expressão de algo que experimentamos e para o que não temos
palavras - o que amplia nossa consciência ou apura nossa sensibilidade.
Assim, a poesia, além de proporcionar prazer – o que é algo que deve ser
bastante considerado no momento de pensar no trabalho com esse gênero – proporciona também uma relação do leitor com novas experiências que devem contribuir para uma ampliação de seus horizontes e supõem novas e diversificadas
visões de mundo, contribuindo para engrandecer o olhar observador de cada um
que possua contato efetivo e prazeroso com esta. Além disso, as propostas de
desafio que muitos poemas oferecem incitam o leitor a fazer inferências e antecipações, acelerando sua atividade de compreensão em busca de construção de
efeitos de sentido.
Para Amarilha (2003, p.34):
A poesia traz para seu leitor inúmeras possibilidades de exercitar capacidades cognitivas de forma lúdica, de maneira que seu exílio da escola não
se justifica. (...) Observar um objeto, fato ou fenômeno sob diferentes
ângulos é habilidade fundamental para o desenvolvimento no indivíduo
da capacidade de observação e habilidade necessária para enfrentar de
forma imaginativa diferentes situações. Essas são qualidades formativas
do indivíduo.
Desse modo, ressalto a importância do trabalho com a poesia na escola. O
desafio que os jogos de linguagem, normalmente presentes nesse gênero, pro3885
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
porcionam, atrai com mais força a atenção dos alunos que estão nas fases fundamentais de aprendizagem e os incita a buscar novos significados e compreensões
para as dúvidas que esses desafios irão suscitar. É importante também que o
professor busque identificar, junto com os estudantes, as dúvidas suscitadas pelos poemas, para que possa haver um fio condutor no momento da interpretação.
Um mediador atento aos estranhamentos do texto é fundamental para guiar os
alunos durante uma leitura poética.
Pinheiro (2007) afirma que o texto poético carece de mais cuidado que o
texto em prosa, principalmente ao se lidar com crianças e adolescentes. Dentre
as condições indispensáveis para a mediação desse texto, a primeira é que o
professor seja realmente um leitor de poesia. Esse autor também comenta que a
maneira como foi lido o texto poético pelo professor que irá mediar uma aula de
literatura é mais importante do que a quantidade de textos lidos por ele. Ainda,
segundo Pinheiro (2007, p. 31):
Além de tudo que apontamos como condições indispensáveis, vale lembrar que não se criam condições da noite para o dia. O trabalho precisa
ser sistemático e constantemente avaliado. Pode-se, por exemplo, organizar uma excelente Sala de Leitura, mas com o tempo o acervo precisará
ser renovado, os professores carecem da atualização, de espaço para troca
de experiências, os livros necessitam de conservação, de encadernação...
Diante dessas considerações, percebi que o trabalho tanto do gênero poético como dos demais gêneros literários, em sala de aula, não depende apenas da
boa vontade do professor e do aluno. São necessárias uma série de condições favoráveis para que o trabalho seja realmente bem feito, como uma biblioteca conservada e com espaço adequado. Muitas vezes as escolas carecem desses espaços,
o que dificulta, de certa forma, a efetivação do trabalho com esses gêneros.
Apesar das condições, às vezes, serem bastante desfavoráveis para o trabalho com o texto poético em sala de aula, o professor pode se utilizar de recursos
que já possui, não descartando completamente o livro didático do português,
que, às vezes, é o único material que lhe é oferecido para a realização de atividades em sala de aula. Sobre isso Pinheiro (2007, p.31) afirma que:
Os problemas detectados no LDP não invalidam de forma alguma sua
utilização em sala de aula. Sabemos que as condições sociais e a forma3886
Bruna Wanderley Pereira
ção da absoluta maioria dos profissionais de ensino não permite que abdiquem desses livros. E há valores inegáveis em muitos deles. O ideal era
que os autores, conscientes da especificidade do texto literário, repensassem o modo de abordá-lo.
Como não se pode estar sempre na espera de que o material se adeque
para que se possa fazer um bom uso dele, o interessante, diante dessa situação,
seria que os professores buscassem fazer uso de poemas já presente no livro
didático – material que é disponibilizado para todos os alunos – propondo atividades, a partir do texto, alternativas àquelas oferecidas pelo livro.
Propostas de abordagem do poema: o ciclo de leitura
O Ciclo de leitura é uma atividade desenvolvida pelo PIBID/Letras/Português da UFAL e tem como objetivo promover uma aproximação dos discentes
das escolas envolvidas com o projeto com o texto literário, oferecendo gêneros
diversos para a leitura, apreciação e discussão crítica em sala de aula. O projeto
vem sendo desenvolvido desde 2013 em duas escolas da rede pública de Alagoas,
em turmas de 7º, 8º e 9º ano, com alunos de faixa etária que varia de 12 a 15 anos.
O Ciclo, geralmente, é aplicado a cada quinzena por uma dupla de bolsistas em
cada turma em que o grupo do PIBID/Letras/Português atua, e envolve atividades que vão desde o empréstimo de livros à exibição de curtas-metragens, leitura
de contos, oficinas de poesia, discussões e produções de textos literários. Neste
trabalho, discutirei, especificadamente, sobre duas oficinas de poesia realizadas
em uma turma de 7º ano, intituladas “Poesia visual” e “Manoel de Barros, o apanhador de desperdício”. O material a ser analisado serão os poemas utilizados
nas oficinas, além dos que foram produzidos pelos alunos durante as experiências vivenciadas.
A primeira oficina, “Manoel de Barros, o apanhador de desperdício”, foi desenvolvida em quatro aulas, e teve como tema principal os poemas do poeta
mato-grossense Manoel de Barros. O título da oficina foi pensado a partir de
uma reflexão sobre o conteúdo dos poemas do autor, que geralmente buscam valorizar as “pequenas coisas inúteis do dia-a-dia”, onde o poeta se autodenomina
um “apanhador de desperdícios”, por considerar importante o que a sociedade
considera como lixo ou inútil. Para introduzir essa oficina, eu e os demais bol3887
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
sistas, durante a atuação nas escolas, questionamos, inicialmente, se os alunos já
conheciam o autor e apresentamos uma autobiografia em forma de poesia feita
por ele. Em seguida, exibimos o curta metragem animado “Histórias da unha do
dedão do pé do fim do mundo”1, que apresenta um jogo visual com os poemas do
autor, além de uma narração bastante performática destes. Ao término do curta-metragem, discutimos com os alunos sobre a apreciação que realizaram dos
poemas e do curta-metragem e, em seguida, distribuímos, por escrito, outros
poemas do autor, que, primeiramente, foram discutidos entre grupos de 5-6 alunos e depois junto a nós, bolsistas, que estávamos atuando (em dupla) na oficina.
Dando continuidade à oficina, pedimos que os alunos levassem de casa materiais que eram considerados como “inúteis” e “desimportantes” para a maioria
das pessoas. Demos alguns exemplos: objetos quebrados, folhas caídas, fósforos
queimados, coisas rasgadas, etc. Para ajudá-los no trabalho, também levamos
alguns objetos de casa. No dia em que os objetos foram levados, retomamos a
discussão sobre os poemas, questionando o que eles recordavam do primeiro
momento, se haviam pesquisado mais poemas do autor etc. Para o momento de
produção de poemas, distribuímos os materiais entre os mesmos grupos da aula
anterior e pedimos que os alunos escrevessem poemas a partir daqueles objetos
e do significado que eles transmitiam a eles. A oficina encerrou com a produção
de 13 poemas por 6 grupos diferentes.
Na segunda oficina, intitulada “Poesia visual”, retomamos alguns poemas
de Manoel de Barros, tentando estabelecer uma ponte entre as duas oficinas
e inseri-las dentro de um contexto comum aos alunos. Apresentamos em slides poemas visuais que já estavam presentes no curta-metragem “histórias da
unha do dedão do pé do fim do mundo”, e os alunos foram relembrando alguns aspectos da oficina anterior. Em seguida, apresentamos poemas visuais
diversos através do projetor multimídia e fomos discutindo, um por um, com os
alunos, sobre o que aquelas imagens poéticas despertavam neles. Para finalizar
o primeiro momento da oficina, escrevemos no quadro alguns poemas visuais
de Paulo Leminski que estavam presentes no livro “Toda Poesia”, que apresentamos e sugerimos a eles. No segundo momento, houve a produção de poemas
1. Link do curta-metragem: https://www.youtube.com/watch?v=a-HDwM3jebY
3888
Bruna Wanderley Pereira
visuais por parte dos alunos. Buscamos retomar o que já havíamos discutido no
primeiro momento e deixamos o tempo restante da aula para que eles fizessem
uso da criatividade na produção. A proposta inicial foi de que formassem grupos
para que cada grupo produzisse um poema visual, mas os alunos se empolgaram
bastante e terminaram produzindo mais de um poema por grupo, tendo alguns,
inclusive, preferido produzir individualmente.
Os poemas que irei analisar inicialmente fizeram parte da oficina “Manoel
de Barros, o apanhador de desperdícios”, sendo dois deles pertencentes ao escritor e o último escrito por um grupo de alunos durante o momento de produção.
A segunda análise é composta por poemas que foram utilizados na oficina “Poesia Visual”, sendo o primeiro pertencente ao autor Paulo Leminski e o segundo
produzido por um grupo de alunos durante a oficina.
Oficinas poéticas do ciclo de leitura
Manoel de Barros, o apanhador de desperdícios.
Texto 1:
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.2
Texto 2:
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá, Onde a criança diz:
eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
Funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz
De fazer nascimentos O verbo tem que pegar delírio.3
Texto 3:
Uma pérola brilhante no fundo do mar.
Ela queria namorar o giz branco
2. Poema retirado de “Memórias inventadas – As Infâncias de Manoel de Barros”, livro que reúne poemas de
Manoel de Barros.
3. Poema retirado de “O Livro das Ignorãças”, de Manoel de Barros.
3890
Bruna Wanderley Pereira
Pensava em casar.
Uma pedra fechada só queria ficar
Dentro de uma caixinha preta
Cheia de fitinha. 4
Os textos 1 e 2 são poemas pertencentes ao autor Manoel de Barros. Ao
lê-los, consegue-se perceber seu estilo e o desejo do poeta de transpor os limites das palavras. O autor busca preencher seus escritos de imagens poéticas
que despertam no leitor estranhamentos e sentidos complexos, que vão além
da linguagem costumeira que utilizamos para nos comunicar no dia-a-dia. Essa
quebra no sentindo usual das palavras e a ressignificação da linguagem é o que
confere ao texto seu caráter poético e inovador, conquistando o leitor pela criatividade. Pode-se notar no primeiro poema certa abominação à modernidade, que
torna os objetos e as relações cada vez mais descartáveis, havendo, no texto, uma
valoração maior das coisas simples da natureza, assim como um afeto por esses
objetos descartados e considerados inúteis pelo restante da sociedade. É nesse
poema que o autor se declara como “um apanhador de desperdícios”, que ama
os restos e preza mais pelas coisas “desimportantes” do que pelas maquinarias
avançadas do mundo moderno.
No segundo poema (texto 2), o autor se utiliza do recurso da metapoesia
para comentar sobre a importância dos estranhamentos na linguagem, apreciando a linguagem das crianças, que considera como a mais rica em recursos
poéticos e que possui uma grande beleza estética, talvez por essas estarem ainda
em busca da descoberta dos sentidos do mundo, expressando em uma linguagem peculiar as suas curiosidades acerca da vida.
O texto 3 foi produzido por um grupo de alunos durante a oficina e nele é
notada a presença dos estranhamentos tão prezados pelo poeta Manoel de Barros. A partir dos materiais que foram distribuídos para esse grupo (uma pérola,
um giz, uma pedra, uma caixinha velha e algumas fitas de cetim), os alunos
atribuíram novos significados às palavras que designavam os objetos, realizando
encontros inesperados e possíveis apenas no universo literário, como a pérola
4. Poema produzido por grupo de alunos durante a oficina.
3891
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
que queria namorar o giz branco e a pedra que possuía sentimentos/desejos, pois
só queria ficar fechada dentro da caixinha. Percebemos, então, que eles responderam muito bem à proposta e se esforçaram para fazer bastante uso da criatividade, saindo do plano do real para adentrar na fantasia e fazer o verbo “pegar
delírio”, como o próprio Manoel de Barros sugere em seu poema.
Poesia visual
Texto 15:
Fonte: www.elsonfroes.com.br
5. Poema retirado de “Toda Poesia”, coletânea que reúne diversos poemas de Paulo Leminski.
3892
Bruna Wanderley Pereira
Texto 2:
Poema visual produzido por um grupo de alunos durante a oficina
“Poesia Visual”.6
Os dois poemas visuais apresentados fizeram parte das oficinas poéticas do
Ciclo de leitura, realizadas em uma turma do 7º ano, sendo o primeiro texto pertencente ao escritor Paulo Leminski, e o segundo foi produzido durante a oficina
por um grupo de quatro alunos. No poema visual de Leminski, nota-se que o poeta vai além do jogo de palavras no poema, que não se apresenta em uma estrutura de texto usual, mas busca brincar com o jogo entre as palavras e a imagem,
despertando no leitor sentidos complexos, a partir do momento em que ele – leitor – se utiliza de experiências próprias que já vivenciou (observar uma lua sendo
refletida na água) para produzir compreensões acerca do poema visual. O jogo
no poema não se restringe ao efeito de espelho, em que o autor poderia duplicar
inversamente todas as letras do texto para produzir essa ideia de “coisa refletida”,
mas busca demonstrar, também, a possibilidade de se produzirem novas palavras
a partir das letras de outras palavras, presentes no próprio poema. Cria-se, assim,
um complexo efeito de sentido, em que palavras se transformam em imagens, que,
por sua vez, não se desconectam dos significados dessas palavras, mas contribuem
para produzir um efeito polissêmico, importante ao texto poético.
6. Leitura: “Água cai no copo como as águas caem na cachoeira”.
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Para a abordagem desse tipo de poema em sala de aula, é importante que o
professor não desvende imediatamente os sentidos do texto, mas permita que os
alunos, a partir de suas próprias experiências e compreensões, construam novas
significações sobre o poema.
No Texto 2, escrito pelos alunos após a explanação e discussão sobre poemas
visuais de diversos autores (inclusive o que foi apresentado anteriormente), percebi
que a proposta da poesia visual foi aceita e muito bem compreendida pelos alunos,
como exemplifica o texto apresentado. Imagem e palavras se encaixaram em um
mesmo contexto7, estando conectadas entre si. Além de estabelecer essa conexão
(percebida na ligação entre garrafa – copo – água), os alunos também formaram
uma imagem através das próprias palavras, produzindo a ideia de água caindo
verticalmente e se misturando no copo, assim como acontece nas cachoeiras.
Conclusão
Diante dos resultados obtidos a partir da análise das duas oficinas, pude
notar que os alunos têm atendido bem a proposta do Ciclo de leitura, principalmente em relação ao gênero poesia, interagindo bastante durante as oficinas e
produzindo poemas com criatividade. Percebi que os alunos melhoraram a disposição para interagir e se apresentaram mais participativos e envolvidos na atividade, requerendo, inclusive, livros de poemas durante o momento de empréstimo. Também reconheci a importância desse gênero nas fases fundamentais de
aprendizagem, devido ao seu caráter visual e que permite ao leitor brincar com
os sentidos do texto, principalmente quando se tem conhecimento de que grande parte dos alunos não possui contato prévio com o texto literário, conforme
afirmaram no questionário de caracterização que aplicamos para obtermos um
maior conhecimento sobre eles. Notei, então, a importância de oficinas como as
do Ciclo de leitura, que abram possibilidades para os alunos se desenvolverem
como sujeitos-leitores críticos e responsivos, além de apresentá-los a um universo literário que, em muitos casos, ainda era desconhecido.
7. Houve uma variação nas compreensões acerca da oficina. Uma pequena parte da turma produziu
poemas com imagens e palavras que não se interligavam, mas a maioria estabeleceu uma conexão entre o
sentido das palavras e as imagens formadas através delas.
3894
Bruna Wanderley Pereira
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3895
RESUMO
O objeto de estudo desse trabalho é demonstrar como pode ser significativo o encontro dos alunos com o texto literário em sala de aula. Desenvolvemos uma sequência didática em uma turma do 3º ano do Ensino Médio, na Escola Estadual Irmã
Elizabeth, da cidade de Serra Talhada. Trabalhamos o gênero conto maravilhoso,
a partir da leitura do conto da Cinderela, com o objetivo de discutir as questões de
gênero e diversidade. Assim, debatemos sobre os papeis do homem e da mulher
no texto e na sociedade da época e na contemporaneidade. Em outro momento,
exibimos o filme da Disney, de 1950, em seguida fizemos o paralelo entre as duas
artes, obra e filme, respectivamente. Apesar de inusitado, levar um texto considerado infantil para adolescentes, o gênero foi bem recepcionado, obtivemos opiniões
interessantes sobre as questões de gênero e diversidade e percebemos que essa sequência pode ser uma porta de entrada para se trabalhar outras obras literárias com
essa turma. Como também, tratar uma temática social, pouco vista na escola, com
um conto de fadas também foi aceito pelos discentes, suas opiniões sobre o tema
foram diversificadas e até polêmicas. Para tanto nos baseamos em Cosson (2006),
Bettelheim (2002), Coelho (2000).
Palavras-chave: Gênero, Conto maravilhoso, Ensino, Literatura.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
GÊNEROS: O CONTO NA SALA DE AULA
DISCUTINDO GÊNERO
E DIVERSIDADE
José Alberto da Silva Júnior (PIBID/CAPES - UFRPE/UAST)
Introdução
Quando éramos crianças nós adorávamos os contos de fadas. Aquelas histórias fantásticas onde não parávamos de ler ou de ouvir. Mas, e quando o conto de fadas entra na leitura para adolescentes? Quando a Literatura, enquanto
matéria escolar, os prepara para leituras mais densas. Algumas justificativas
vindas dos próprios alunos para essa pergunta: “isso é coisa de criança! ”; “por
que a gente vai ler isso? ”. O que os discentes querem dizer com essas afirmações são de que estão “velhos” para lerem novamente os contos de fadas, sendo
que os mesmos vêm com o pensamento de que não se pode trabalhar esse tipo
de gênero textual em sala de aula.
Essa visão generalizada os impede de perceber que os contos de fadas foram escritos de forma mais sombria do que eles podem imaginar, e de que estes textos podem construir debates sobre inúmeros temas. Um deles, um dos
mais comentados nos últimos anos, a questão de gênero e diversidade é um
prato cheio para se debater através desses contos. As figuras do homem e da
mulher retratadas nesses contos maravilhosos podem ser a chave para debater
um assunto que pouco se tem comentado com os discentes nas escolas.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
A pesquisa cujos resultados finais aqui apresentamos vincula-se, aos estudos de letramento literário (Cosson, 2006), literatura infantil (Coelho, 2000) e
também à psicanálise dos contos de fadas (Bettelheim, 2002). Justificando-se
na necessidade de mostrar que o uso do gênero conto de fadas é uma ferramenta aceitável para se usar na sala de aula e que também é um instrumento de
fácil acesso para discussões sobre gênero e diversidade.
Metodologia
A pesquisa se deu de início a partir de um plano de trabalho desenvolvido
para se aplicar em uma turma de 3º ano do ensino médio numa escola estadual
no município de Serra Talhada, no sertão de Pernambuco. Se valeu com uma
pesquisa inicial, em um certo momento da aula de português, para poder saber como os discentes estavam por dentro dos conhecimentos sobre gênero e
diversidade. As perguntas elaboradas foram: “Por que as mulheres não recebem
um salário igual ao dos homens?; por que os homens não podem lavar a louça
após o almoço?; você acha que azul é cor de menino e rosa cor de menina?; você
acha que tem que continuar essa ideia de existir trabalho só para mulher e trabalho só para o homem? ”.
Como era de se esperar, a maioria dos alunos tiveram respostas objetivas,
mas duas se destacaram. Uma aluna respondeu com uma boa base de conhecimento, com um teor mais feminista. A outra aluna representou um discurso
machista, onde se contradisse em alguns momentos.
Após esse questionário, em outro dia de aula, levei cópias do conto da
“Cinderela” para que os alunos lessem em sala de aula. O conto escrito pelo
francês Charles Perrault estava resumido e sem diálogos. Isso foi feito para que
estimulasse os alunos a pensarem como era abordado as figuras da mulher e
do homem no texto literário, também pelo horário da aula (após o intervalo) e
para que a discussão à cerca do texto obtivesse mais tempo.
Em outro momento de aula, foi feita a exibição do filme “Cinderela”, de
1950, produzido por Walt Disney. Agora com diálogos, o objetivo era saber se
as opiniões acerca da mesma estória seriam as mesmas ou se mudariam. Poste-
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José Alberto da Silva Júnior
riormente ao filme, foi realizado mais um debate, só que dessa vez confrontando o texto literário e o filme visando discutir as mesmas questões de gênero.
Em formato do programa da Tv Cultura, Roda Viva, o debate foi mais abrangente do que o primeiro.
Figura 1: debate sobre gênero e diversidade através do conto
e do filme da Cinderela
Resultados
O conto na sala de aula
A ideia de usar o conto na sala de aula foi desenvolvida depois de algumas
observações em sala. Visto que os alunos não gostam muito de ler obras mais
complexas da nossa literatura e que a própria instituição de ensino não incentiva
os alunos a lerem mais. Uma das coisas mais absurdas que se tem nessa escola,
em Serra Talhada, é a condição de que os estudantes são impedidos de entrarem
na biblioteca da escola e muito menos pegarem livros para lerem. Sendo assim,
depois de uma proposta da escola, visando discutir questões de gênero e diversidade, o conto maravilhoso foi uma escolha arriscada que poderia ser fracasso.
Assim, foi utilizado a sequência desenvolvida por Cosson (2006) para que
os alunos entrassem na leitura. Na primeira parte da sequência, a Antecipação,
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
foi explicado a origem dos contos de fadas, dos autores e de como esses contos
foram escritos. De como os Irmãos Grimm e Charles Perrault adaptaram para
literatura essas histórias nos séculos XVIII e XIX.
Na segunda parte do seguimento, a Decifração, os alunos começaram a
ler o conto da Cinderela. A escolha desse conto se deu pelo fato de ser uma das
histórias mais conhecidas de que se tem notícia e também uma das mais apreciadas, segundo Bettelheim (2002). Uma reação foi compartilhada pelos alunos ao término da leitura: “e o final feliz?”. Com a visão de que eles tinham do
filme da Disney e de contos mais direcionados para um público mais infantil,
o espanto deles ao final do conto foi de surpresa, chegando a perguntar se era
mesmo o conto da “Cinderela”, justificando o uso do resumo do conto escrito
por Perrault.
Na última parte da sequência proposta por Cosson (2006), a Interpretação,
foi proposto um debate para realizar um diálogo sobre as questões de gênero
no conto relacionando com os dias atuais. Muitos alunos e alunas denominaram a personagem principal de “lerda” por querer que seu sonho fosse casar
com um homem.
Outros e outras chamaram o príncipe de “machista”, por ver a Cinderela
apenas como um objeto para satisfazer seus desejos e obrigações. Boa parte
da turma não acha certo de que a mulher tem como única obrigação ser uma
submissão ao homem, chegando a relatarem que a personagem principal sairia
de uma prisão e indo para outra.
Do gênero ao gênero
Em Literatura Infantil, Coelho (2000), fala das fadas e imagem arcana da
mulher. No livro, a autora cita O. Spengler que em seu estudo relata as diferenças entre homem e mulher. Coelho também fala de como a figura da mulher tem representado no universo “(...)uma força primordial e, ao mesmo tempo, temida e por isso mesmo continuamente dominada pelo homem.”. Coelho
(2000).
Nos contos de fadas tradicionais a mulher é representada como um ser
delicado, incapaz de se defender sozinha à espera do grande amor de sua vida
3900
José Alberto da Silva Júnior
que irá salvá-la. No conto da Cinderela, a personagem é inábil de se proteger
sozinha das irmãs más e da madrasta. Sendo assim, o que podemos analisar é
uma figura apática que vive a esperar pelo homem que poderá socorrer desse
martírio.
Os estereótipos formados de homem e mulher são de representações distintas. Enquanto a mulher é descrita como passiva, o homem é audacioso, autônomo, impetuoso, consagrado, ou seja, é um ser ativo. Com isso, os homens
nos contos têm as mulheres em suas mãos, sendo eles o destino dessas jovens
indefesas. Em Cinderela também podemos ver que o príncipe é quem demonstra
seu amor e se encanta pela jovem Borralheira, enquanto ela apenas se esconde à
espera de que ela a procure.
Segundo Passinato (2009), quando esses contos são repassados para as
crianças essas características que são tão assinaladas e concentradas nas estórias são vistas como normas. Isso se provou no debate realizado na turma do 3º
ano do ensino médio, com jovens de 16 a 18 anos, onde boa parte tinha um pensamento de que o homem tinha que ser o único que tinha que tomar a iniciativa
para tudo. Quando alguém se fez o oposto a esse tipo de opinião, a maioria das
meninas da turma divergiram. Ou seja, esses estereótipos são apontados e educados como regras a serem seguidas e que não há quebra desse formato.
O filme na sala de aula
O filme produzido pela Disney, em 1950, foi o escolhido para fazer a relação
do conto com o filme e debater as mesmas questões trazendo para os dias atuais.
Diferentemente do conto, onde foi resumido e tirado os diálogos, o filme fez com
que muitos mudarem de opinião. A obra fílmica mostrou, segundo os discentes,
que o pai do príncipe era o “verdadeiro machista”.
Isso aconteceu devido à algumas falas do personagem: “Convidem todas as
jovens solteiras para o baile, ela deve ter acima de tudo, bons modos”; “Deve haver
pelo menos uma que possa ser boa mãe”. Ou seja, para o Rei, a moça devia ser
jovem, ter bons modos, e ter a obrigação de ser mãe, mais do que isso, uma boa
mãe. Algumas alunas se opuseram à essa imagem retratada e trazendo para os
dias atuais, relataram que ainda existe tais reproduções iguais às do Rei no filme.
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Figura 2: cena do filme Cinderela, de 1950
A discussão, trazida para os dias recentes, mostrou que alguns dos estudantes eram a favor de que houvesse a igualdade de gênero entre homem e mulher
e outros que não viam solução para isso e de que devia continuar a seguir com
essas regras. Chamando a atenção que a maioria dessa reprodução de discurso
foi feminina.
Em certo momento do debate, os alunos já discutiam se era certo ou errado
uma mulher beber bebidas alcoólicas. Novamente, parte das alunas reproduziam
um discurso machista de que as mulheres não deviam beber para não ficarem
embriagadas pois, segundo elas: “se já é feio um homem beber e ficar bêbado,
imagina uma mulher.”. Foi quando um aluno disse: “Acho que nós não aceitamos
que as mulheres bebam, porque temos a imagem delas como princesas.”.
Figura 3: debate na sala de aula
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José Alberto da Silva Júnior
Considerações finais
O uso do conto na sala de aula.
O uso de um gênero textual pouco usado e falado no dia-a-dia das aulas de
português na escola onde a pesquisa foi realizada foi satisfatório levando em
consideração a aprovação dos alunos em abraçar a ideia do plano de trabalho
proposto. A leitura do conto da Cinderela impulsionou os discentes a procurar
outros contos na internet e biblioteca municipal de Serra Talhada.
Com isso, foi percebido que esse gênero textual pode ser sim uma boa ferramenta para incentivar os estudantes a lerem mais em um momento onde a
internet mal-usada e a vontade dos jovens em ler textos literários está cada vez
mais baixo na instituição de ensino, ainda mais pelo fato da biblioteca estar
fechada para os alunos.
Se pôde ser observado também de como o conto serviu para debater questões da sociedade atual, estimulando os discentes à exporem suas opiniões e
debaterem em sala de aula. Então fica claro que é notório que o letramento literário realizado na escola e a leitura literária feita de forma mais independente
se diferem.
Com base em Cosson (2006), em sua teoria desenvolvida, é interessante
observar que, para que o estudante tenha o hábito e o prazer da leitura ele precisa passar por um letramento literário. A instituição de ensino tem esse papel
fundamental de impulsionar o aluno ao deleite e costume de ler.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
Discutindo gênero em Cinderela
Em relação as discussões à cerca de gênero e diversidade em Cinderela,
foi observado que por mais que seja um tema pouco discutido na escola, onde
pouco se tem abertura para discutir tais assuntos, os alunos estão bem informados a respeito do tema, ainda que não aprofundados, mas com argumentos
consideráveis.
Mas ainda é pouco para um assunto tão sério e atual. A escola tem responsabilidade social de informar aos alunos sobre essas questões com temáticas
voltadas para sociedade. Há muito preconceito trazido de casa para escola que
os alunos reproduzem na escola, a discriminação de gênero é uma das mais
reproduzida nessa escola.
Ainda tem muito a se fazer para conscientizar os discentes sobre igualdade de gênero. O uso de um gênero textual provou que pode ser um passo
à frente para informar sobre a temática dentro da sala de aula e ainda assim
estimular o aluno à leitura, fazendo assim uma aula diferente, dinâmica e que
chamou atenção dos alunos. Não só por causa de se usar um conto de fadas
com adolescentes, mas também porque os mesmos puderam expor suas opiniões em um ambiente onde poucos expõem seus pensamentos.
Referências
Contos de Grimm, A Gata Borralheira. Disponível em: http://www.grimmstories.
com/pt/grimm_contos/a_gata_borralheira_cinderela Acesso em 01 de abril de 2015.
SILVA, Karina Beringuy da. OS ARQUÉTIPOS FEMININOS NOS CONTOS DE FADAS –
uma leitura de Cinderela, A Bela Adormecida, Branca de neve e A moça tecelã.
2002. 52 f. Monografia apresentada na Universidade Cândido Mendes para conclusão
de pós-graduação “Lato Sensu” do projeto Vez do Mestre.
PASSINATO, Viviane. Análise Comportamental de Contos de Fada: Uma Questão
de Gênero. 2009. 64 p. Monografia apresentada ao Centro Universitário de Brasília
como requisito básico para a obtenção do grau de Psicólogo da Faculdade de Ciências
da Educação e Saúde (FACES).
MACHADO, Ana Maria. História Meio ao Contrário. 7 ed. São Paulo: Ática, 1986. 19 p.
Cinderela. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cinderela Acesso em 04 de
maio de 2015.
3904
José Alberto da Silva Júnior
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. RJ: Paz e Terra, 2002.
PROPP, Vladímir. Morfologia do conto maravilhoso. CopyMarket.com, 2001.
CORSO, Diana Lichtenstein & CORSO, Mário. Fadas no divã - Psicanálise nas histórias
infantis. Porto Alegre: Artmed, 2007.
FRANCO, Isaquia dos Santos Barros. LETRAMENTO LITERÁRIO: UMA PRÁTICA
POSSÍVEL NO ENSINO MÉDIO in Cadernos do CNLF, Vol. XVII, Nº 04. Rio de Janeiro:
CiFEFiL, 2013.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil. 1 ed. São Paulo: Moderna, 2000.
3905
RESUMO
Atualmente, a disciplina de português tem trabalhado a literatura inadequadamente, provocando o desprezo do aluno pela leitura dos textos literários. Sendo assim,
o objetivo deste artigo é refletir sobre a formação inicial do professor de língua portuguesa que busca fazer da pesquisa sua companheira para a elaboração do trabalho com textos literários em letramento escolar, a partir da construção de efeitos
de sentido que se efetivam na prática de leitura orientada pelo professor de língua.
O estudo surgiu da necessidade de se refletir acerca do modo como é trabalhado o
texto fictício na Educação Básica, com foco no aperfeiçoamento da prática de ensino
do professor de língua portuguesa. Para tanto, dialoga teoricamente com Martins
(2006), Cosson (2009), a partir das noções do ensino da literatura e a leitura da literatura, visando equilibrar o estudo da estética literária mediante uma abordagem
semântica do estudo do texto de ficção, atentando para a construção de sentidos de
um texto desafiador para o alunado, mediante as contribuições da semântica cognitiva que se debruça sobre o modo como o homem compreende a realidade e dela
retira significados (GOMES, 2003). A reflexão acerca do estudo/ensino do texto literário em aula de língua portuguesa foi aplicada em prática de ensino na disciplina
de estágio supervisionado IV do curso de licenciatura em letras da Universidade
Estadual da Paraíba, através da sistematização do conteúdo em sequência didática
para uma turma de 1º ano do Ensino Médio de uma escola da rede pública estadual
da cidade Campina Grande – PB. A experiência permitiu compreender que conciliar
pesquisa e prática em busca do aperfeiçoamento da ação docente através do trabalho de leitura e reflexão/análise do texto literário é algo vantajoso para a formação do
professor de língua materna, pois enriquece o conhecimento do formando em prol
do exercício de sua profissão.
Palavras-chave: Leitura, Literatura, Semântica cognitiva, Prática de ensino.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
LEITURA E LITERATURA NA PRÁTICA
PEDAGÓGICA: ABORDAGENS PRÁTICAS
Renato de Araujo (DLA - UEPB )
[email protected]
Linduarte Pereira Rodrigues (DLA/PPGFP - UEPB)
[email protected]
Kalina Naro Guimarães (DLA/PPGFP - UEPB)
[email protected]
Introdução
A leitura de textos literários tem sido alvo de discussão para estudiosos de
língua portuguesa em cursos de formação de professores, pois muitas escolas
têm trabalhado esses textos inadequadamente, provocando o desprezo do aluno
pela leitura literária. Com o avanço tecnológico, surgiram diversos textos (como
bate-papo, piadas, SMS, etc.) que causam no usuário da língua(gem) a satisfação
em se comunicar/interagir na contemporaneidade. Com isso, a leitura de textos
literários indicadas no Ensino Básico pode não ser a primeira opção da lista de
melhores atividades de leitura dos alunos que frequentam o Ensino Médio. Desse modo, o professor de língua portuguesa se põe diante de uma situação desafiadora que é ministrar aulas de literatura para alunos que não cultivam a prática
da leitura literária conforme uma tradição clássica de manusear livros impressos
no cotidiano das famílias e da escola.
Diante disso, é importante que o professor, em processo de formação inicial,
compreenda que sua prática pedagógica precisa ser modelada pensando nesse
novo público, elaborando estratégias e metodologias que possam contribuir para
3907
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
o estudo do texto literário de forma prazerosa, tendo em vista uma das finalidades da leitura literária: causar no leitor “sensações” de envolvimento pelo lido.
Diante disso, assinala-se que o presente estudo surgiu da necessidade de se refletir acerca do modo como é trabalhado o texto de ficção na Educação Básica, com
foco no aperfeiçoamento da prática de ensino do professor de língua portuguesa.
A literatura, muitas vezes, é vista pelos alunos como sendo algo de difícil
compreensão, e por isso evitam o contato com o texto de ficção que compõe a
tradição do texto literário. Sendo assim, este trabalho se justifica pela contribuição na reflexão do ensino e leitura da literatura em sala de aula. É necessário que
o professor compreenda o aluno atual e o meio em que ele vive para despertar
o gosto pela leitura, construindo sentidos através do texto literário, adquirindo
conhecimentos mediante o contato com o texto lido, em diferentes épocas, estéticas, autores etc.
O objetivo deste artigo é refletir sobre a formação inicial do professor de língua portuguesa que busca fazer da pesquisa sua companheira para a elaboração
do trabalho com textos literários em letramento escolar, a partir da construção
de efeitos de sentido que se efetivam na prática de leitura orientada pelo professor na aula de literatura. A leitura de textos literários em sala de aula, com o
apoio de músicas que circulam no meio social dos próprios alunos, permite-nos
o desenvolvimento da linguagem pela construção de sentidos possíveis, ação
de entrada no texto pela prática de leitura de outros textos que fazem parte da
experiência leitora do aluno, o que permite um continuum de leitura para níveis
de leitura mais complexos: da música, por exemplo, para os textos produzidos no
período trovadoresco, as cantigas etc.
Para isso, fizemos uma pesquisa ação de cunho qualitativo em que nos colocamos na posição de professores e pesquisadores sistematizando, analisando
e refletindo sobre nossa prática em sala de aula para construção de um desempenho futuro que possa atender as exigências das abordagens da literatura, de
forma adequada no meio escolar. Sendo assim, assumimos uma sala de aula de 1º
ano numa escola de Campina Grande – PB e aplicamos uma sequência didática
com os conteúdos trovadorismo, humanismo e classicismo. Entretanto, deteremo-nos aqui, apenas, na analisar das práticas realizadas na abordagem do trovadorismo, por meio da reflexão sobre a forma como foi trabalhada a cantiga satírica de escárnio com o apoio da música “Beijinho no ombro” de Valesca Popozuda.
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Renato de Araujo, Linduarte Pereira Rodrigues, Kalina Naro Guimarães
O processo de formação do jovem leitor
Durante muito tempo, a leitura literária foi vista de maneira equivocada, por
não haver interesse significativo na busca pela compreensão do texto e seu respectivo contexto. Ler era considerado como um mero processo de decodificação
de signos, passando a ser visto como um ato totalmente desprovido de significado
para o aluno, e dessa maneira, não se formava um leitor proficiente, crítico, que pudesse ser capaz de questionar e transformar a sociedade em que estivesse inserido.
Para muitos alunos, a literatura tradicional pode ser agradável e prazerosa;
já outros não conseguem enxergar sentido na leitura dos textos literários clássicos, preferindo assistir televisão, ouvir música, fazer outras atividades que exijam menos esforço na compreensão, mesmo compreendendo que tais leituras
literárias se efetivam socialmente, considerando que muitos dos textos lidos nos
suportes midiáricos citados são de ficção. Entretanto, a experiência da leitura
é uma tarefa árdua quando a praticamos para preencher fichas de leitura, responder exercícios ou como pretexto para trabalhar a gramática, atividades sem
sentido para o aluno, e que é corriqueira no espaço escolar.
Por isso, na qualidade de professores de língua materna, precisamos repensar nossas práticas tentando valorizar e explorar o vasto campo de leitura que
um texto possui, buscando estabelecer pontes capazes de fazer com que os alunos percebam os diferentes sentidos, frutos da união do contexto de escrita com
o contexto do leitor, preparando-o para ser um leitor perspicaz que sabe buscar
no texto sua essência, tendo em mente que ler significa interpretar o objeto lido
utilizando o conhecimento trazido de outras leituras já realizadas. Sendo assim,
[...] o conhecimento e a leitura não são um patrimônio de eleitos, não são
a magia de adivinhos ou bruxos, não são uma experiência particular de
poucos; mas algo socialmente construído, pela informação e pela observação coletiva partilhada (AMORIM, 2003, p. 54).
Na rua, em casa, na escola e na sala de aula, é possível ouvirmos pessoas
dizendo que não gostam de ler por não terem paciência para isso, ou que não
nasceram para ler porque não possui esse dom. Com certeza essas pessoas não
compartilham do conhecimento de que a leitura não é uma atividade apenas de
pessoas que foram escolhidas para terem o dom de entender um texto, ou até
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
mesmo não é uma magia de bruxos ou adivinhos, mas é um processo de compreensão e interpretação de significados que consiste em utilizar elementos construídos socialmente como base para a construção do sentido de um texto fruto
da experiência vivida em outros momentos de contato com textos orais e escritos
produzidos no meio em que se vive. Trata-se de fazer ligação de conhecimentos
linguísticos e extralinguísticos na construção de uma ou várias leituras cabíveis
ao texto. Como afirma Gomes (2003, p. 86),
Lacoff, como lingüista cognitivista, preocupa-se com o modo como são
apreendidas as experiências humanas e com o seu sistema conceitual.
Em sua semântica, o teórico pretende explicar o modo como a razão atua
sobre a realidade para dela extrair significados.
A experiência de vida dos alunos é fundamental para que ele consiga compreender as diversas possibilidades de leitura do texto literário, afinal, o texto
ganhará o sentido baseado no que o aluno/leitor vive no seu meio social. Sendo
assim, as aulas de literatura precisam ser pensadas a partir da promoção da leitura de textos literários que se relacionam com a realidade dos alunos. Compartilhamos do pensamento de Martins (2006) de que, na escola, as aulas de português devem equilibrar o ensino de literatura e a leitura da literatura. Então, por
que não trazer textos atuais (como músicas, por exemplo) para se refletir sobre
elementos característicos de textos pertencentes à estética literária de determinada época? Muitos textos atuais dialogam com os escritos no período trovadoresco. Então, por que não trazê-los para as aulas de literatura?
Durante muito tempo, a literatura foi trabalhada com ênfase no percurso
histórico, que enfatizava a relação entre escola literária, autor e obra, o que se
constata ainda em muitas escolas em nossos dias. Ensinar literatura dessa maneira não é, necessariamente, condenável, até faz parte da tradição escolar o
tratamento histórico como destaque para o conhecimento dos acontecimentos
sociais e culturais. O lado negativo dessa tradição acontece quando o professor
não leva seus alunos a perceberem a essência dos textos, que é o seu conteúdo.
É importante que os alunos tenham contato direto com o texto, e dele possam
extrair seus múltiplos significados.
Os textos literários, quando usados adequadamente, sejam na escola ou em
casa, além de provocar prazer aos leitores, amplia seu nível de conhecimento por-
3910
Renato de Araujo, Linduarte Pereira Rodrigues, Kalina Naro Guimarães
que o monumento literário carrega em si informações de diversas naturezas. Por
isso, é possível encontrarmos conhecimentos variados pertencentes a outras áreas
do conhecimento num romance, novela, conto, crônica etc. Portanto, podemos
“fazer uma viagem no tempo”, ir a lugares não muito convencionais, conhecer estilos de épocas como costumes, crenças, culturas, modo de falar ou, até mesmo,
adquirir conhecimentos que podem nos tornar capazes de expressar nossa opinião
sobre a realidade. Tudo isso é alcançado no ato de leitura de um livro de ficção.
É indispensável que o aluno compreenda e enxergue esse diálogo que a literatura estabelece com outras áreas de conhecimentos, uma vez que as aulas
podem ser mais interessantes se o professor, na construção dos sentidos, estabelece pontes entre outros fenômenos da língua portuguesa. A contextualização
da época em que foi produzida a obra em estudo também pode enriquecer a
leitura do texto que pode ser feita em sala de aula, com o auxílio do professor
coadjuvando na compreensão e construção do sentido do texto, não dando uma
interpretação já pronta, como diz Martins (2006), mas formulando-a em conjunto com os alunos. Dessa forma, essa disciplina caracteriza-se pela pluralidade de
sentidos, em que o texto literário configura-se diferentemente a todo o momento, assumindo um caráter interdisciplinar, e ao mesmo tempo, independente.
Apesar de possuir um grande valor, no que diz respeito ao desenvolvimento
intelectual, profissional e pessoal dos alunos, a literatura é posta para o ensino apenas no Ensino Médio e mesmo assim, inadequadamente. Martins (2006)
aponta duas formas de abordagem da literatura no ensino médio: o ensino da
literatura que se preocupa com a organização estética da obra e a leitura da literatura relacionada à compreensão do texto literário. As duas abordagens estão
(e devem estar) presentes no Ensino Médio, mas, infelizmente, a preocupação
com a organização estética do texto literário predomina. Entretanto, “É preciso
que a escola amplie mais suas atividades, visando à leitura da literatura como
atividade lúdica de construção e reconstrução de sentidos” (MARTINS, 2006, p.
85). Neste caso, o professor deve assumir uma posição não de transmissor de conhecimento, mas como mediador, orientando, construindo os sentidos do texto
na posição de “co-leitor” do aluno.
Pensar numa aula de literatura que chame a atenção dos alunos é pensar também num professor bem informado que tenha o interesse em despertar nos alunos
o gosto pela leitura, provocando o contato com obras clássicas e contemporâneas,
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
visando desenvolver no discente uma visão de que, assim como sentimos prazer ao
assistir um filme ou ouvir uma música, a leitura de textos literários, além de aprimorar nossa capacidade de pensar e resolver problemas, também pode nos causar
essa mesma sensação. Isso acontece se o aluno é levado a perceber que o texto é
como um “quebra-cabeça” que consiste na organização das partes para a formação
de um todo que possui um sentido em nossas vidas. Desse modo:
O aluno deveria ser persuadido, motivado a gostar de ler, atraído pelo
texto literário, encarando a leitura literária como um jogo, nos termos
de Iser (1999), em que o autor dita as regras de funcionamento do jogo
por meio da tessitura textual e o leitor descobre como jogar, negociando
sentidos, decifrando pistas, fazendo inferências, enfim, reconstruindo o
jogo, antes dirigido pelo autor (MARTINS, 2006, p. 97 -98).
É papel do professor despertar no aluno o desejo em embrear nos textos
literários, consciente da negociação de sentidos que está sujeito a manipular no
ato da leitura. Só haverá leitores capacitados em nossas escolas quando o aluno
perceber que a compreensão do texto não depende apenas do texto ou de seu
autor, mas da interação entre leitor, textos e autor. É o próprio leitor quem vai
atribuir sentido ao texto, por meio dos conhecimentos de outras leituras, bem
como da consciência de que ler é como um jogo (MARTINS, 2006): dita regras
e pistas para conseguirmos entendê-lo. E assim como um jogo pode ser desafiador, a leitura literária também possui esse caráter que pode ser instigante para o
jovem leitor quando percebe isso.
Muitos jovens se interessam atualmente por jogos digitais, computadores,
internet etc., porque eles os desafiam a pensar, lançando problemas que exige do
indivíduo certo conhecimento que o ajude a resolvê-lo. Geralmente, esses mesmos jovens não gostam de se envolver com literatura, por pensarem que é chato
e desestimulante, preferindo fazer outras atividades que os instiga a pensar ao
mesmo tempo em que se divertem. Com certeza, esse é um aluno que não conhece o sentido real da literatura, não compreende uma obra literária como um
“quebra-cabeça” que consiste em juntar as partes, mentalmente, para se formar
um todo com sentido completo. Ao se estudar na escola a literatura de modo
tradicional, perde-se o gosto pela leitura, atentando apenas para a classificação
de textos e autores.
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Renato de Araujo, Linduarte Pereira Rodrigues, Kalina Naro Guimarães
Cosson (2009, p.29) afirma que o professor deve explorar ao máximo, com
seus alunos, as potencialidades do texto literário posto em estudo em sala de
aula, criando as condições para que o encontro do aluno com a literatura seja
uma busca de sentido para o texto literário, para o próprio aluno e para todos
que estão inseridos. Paulino & Cosson (2009, p.66) falam que o letramento literário se inscreve numa base comum de sentido entre o mundo e a leitura crítica
da sociedade, em que o aluno é dessa forma capacitado, através do processo de
construção de sentidos, a se relacionar com o mundo em que vive. Dessa forma,
eles definem letramento literário como “o processo de apropriação da literatura
enquanto construção literária de sentidos”, num processo permanente de transformação em que os conhecimentos produzidos nos acompanharão por toda a
vida, se renovando a cada leitura que fizermos: “Não há leituras iguais para o
mesmo texto” (PAULINO & COSSON, 2009, p.67). Para os autores, o letramento
literário envolve tanto a leitura quanto a escrita, pois ambas fazem parte do mesmo processo de construção de sentidos na/da literatura.
Leitura literária no Ensino Médio: abordagens e reflexões
Com o objetivo de aperfeiçoar nossa prática, construímos e aplicamos uma
sequência didática (conteúdo Trovadorismo) em uma turma de 1° ano do Ensino
Médio de uma escola pública da cidade de Campina Grande - PB. Tendo em vista
que se trata de entrar em contato com textos pertencentes aos séculos XII a XIV,
possuindo traços que sobreviveram durante o tempo, aparecendo em produções
do século XXI, partimos da compreensão e interpretação de textos como músicas para os escritos trovadorescos, buscando iniciar nossos estudos sempre partindo de textos atuais para os pertencentes ao período literário, refletindo sobre
o momento histórico, características do texto estudado.
O modo como a literatura está sendo trabalhada em sala de aula é motivo
de preocupação e reflexão, pois não atendendo aos interesses dos alunos causa
desprezo pela disciplina e, consequentemente, pelos textos que deveriam ser vistos como fonte de prazer para o ser humano. Há duas maneiras de abordagem
da literatura em sala de aula, uma visando o ensino da literatura e outra preocupada com a leitura da literatura. Infelizmente, predomina nas escolas o ensino
histórico e estético, além de classificações literárias de textos e seus respectivos
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
autores, lendo-se apenas trechos de obras literárias trazidas pelos livros didáticos.
É importante que a escola aborde o ensino da literatura em sala de aula, mas não
esquecendo que o trabalho com textos canonizados da literatura produzida em
determinado lugar e época permite acessar informações sociais e culturais de determinado grupo de pessoas. O aluno deve entrar em contato direto com a leitura
de diversos textos para, com o auxílio do professor, compreendê-los e interpretá
-los, construindo conhecimentos por meio de leituras possíveis em sala de aula.
Desta feita, acatamos a sugestão da turma envolvida com o processo de letramento literário em questão e adotamos a leitura da música “Beijinho no ombro”
(com a letra impressa) com o objetivo de se refletir em torno de dois elementos:
a) há uma crítica a alguém (inimigas invejosas); b) essa crítica é feita de forma
indireta, ou seja, a pessoa criticada não é identificada, é utilizada a expressão “inimigas” para designar seres que estão sofrendo com o fenômeno literário sátira. A
turma interagiu bem com a discussão e não tiveram dificuldades para compreender as características do fenômeno em estudo, pois conheciam/apreciavam a
música lida, o que facilitou na compreensão do que se pretendia estudar.
Em seguida, lemos uma cantiga de escárnio de João Garcia de Guilhade, “Ai,
dona fea, foste-vos queixar” que trata de um trovador que era incomodado por
uma mulher por nunca ter feito referências a ela em suas trovas. Na ocasião foi
compreendido pelos alunos que de forma similar ao texto da música “Beijinho
no ombro”, o autor trovadoresco faz uma cantiga de escárnio satirizando e criticando a “dona fea” para expressar sua revolta. Os alunos se envolveram com
o estudo pela compreensão de que, apesar da distância temporal dos textos, “a
cantiga lida possui as mesmas características destacadas na música de Valesca
Popozuda: uma crítica de forma indireta a alguém”, conforme enuncia um dos
alunos envolvidos em nossa prática pedagógica. O fato de essas características
serem apontadas na música facilitou a compreensão do conteúdo expresso na
cantiga de escárnio lida em sala de aula.
O trovadorismo é a primeira escola literária que ocorreu nos séculos XII,
XIII e XIV, e por isso suas produções literárias são de difícil compreensão por
causa da linguagem que se diferencia da atual. Com isso, os alunos sentem dificuldade ao ter, nesse primeiro contato com a literatura, que compreender os textos produzidos em galego português. Sendo assim, deliberamos que deveríamos
preparar nossos alunos com textos atuais, tais como músicas, charges, tirinhas,
3914
Renato de Araujo, Linduarte Pereira Rodrigues, Kalina Naro Guimarães
dentre outros, com grau de apreensão da realidade similar a que pretendemos
trabalhar em nossas aulas de leitura literária, pois “as estruturas conceituais são
significativas porque são corporalizadas, nascem das experiências de cada ser
humano” (GOMES, 2003, p. 91) com o ambiente em que vive.
Por isso, a leitura da literatura com o apoio de textos atuais retirados do
cotidiano dos alunos se torna algo proveitoso para o incentivo à leitura escolar/
familiar/social, uma vez se parte de produções mais próximas da realidade do
aluno para textos mais complexos, pois temporalmente afastados de sua realidade, ação docente que permite preparar o aluno para a tarefa de entrada em campos de pensamento cada dia mais desafiadores, conforme acontece na sociedade.
Sendo assim, a proposta se efetiva pela razão de se provocar a exposição, inicialmente, de pensamentos de fácil compreensão dos aprendizes para, em seguida,
acrescentar alguns de conhecimento mais elevados. Afinal de contas
[...] crescemos como leitores quando somos desafiados por leituras progressivamente mais complexas. Portanto, é papel do professor partir daquilo que o aluno já conhece para aquilo que ele desconhece, a fim de
se proporcionar o crescimento do leitor por meio da ampliação de seus
horizontes de leitura (COSSON, 2009, p. 35).
Essas bases de compreensão teórico-aplicadas de reavaliação, por reflexão de
nossa prática docente, permite-nos compreender que o professor é capaz sim de
revisar sua metodologia em prol de um ensino inovador, que permita tornar as
aulas de língua portuguesa mais agradável e produtiva para o aprendizado dos
nossos alunos, uma vez que, a exemplo da música, distrai e relaxa a mente humana, torna-se auxiliar ao ensino-aprendizagem da linguagem. É próprio do ser humano fazer coisas que tragam certo grau de dificuldade que se pode resolver com
o conhecimento já armazenado na mente. Tendo isso em mente, o professor deve
partir de leituras que, na maioria das vezes, o aluno já possui, cabendo ao professor
reconstruir seu repertório sobre a seleta de textos diariamente lidos pelos agentes
do plano escolar, com destaque para os alunos que frequentam o Ensino Médio.
Considerações finais
A pesquisa desenvolvida consistiu na aplicação de uma sequência didática
que visava promover o equilíbrio da leitura da literatura e o ensino da literatura,
3915
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
partindo de textos atuais, a exemplo da música, para textos da tradição literária,
tratando-os como fonte de conhecimento de sociedades diferenciadas pelas épocas. Com isso, objetivamos levar uma leitura desafiadora que causasse prazer no
aluno e o instigasse a descobrir os sentidos das entrelinhas do texto, enxergando
a literatura como forma artística que pode causar prazer pela leitura.
O trabalho com a literatura em sala de aula precisa ser articulado de modo
que incentive o aluno ao gosto pela leitura, e a construir sentidos através de suas
leituras. Precisamos, enquanto professores, conciliar o ensino da literatura e a
leitura da literatura, pois ela não pode se resumir apenas a uma lista de características de estilo, obras e autores consagrados. É preciso que haja um vínculo
entre autores e diversos gêneros, entre textos de diferentes épocas, para que se
possam estabelecer múltiplas relações na construção de significados variados.
Isto é, nos estudos de literatura, o texto literário deve apresenta-se como espaço
de construção de significados construídos com a ajuda de conhecimentos adquiridos com suas experiências com o mundo.
O ensino/estudo da literatura na escola precisa ser pautado no equilíbrio
entre o ensino de literatura e a leitura da literatura, em que se aborda a leitura
da obra literária trazendo questões de estéticas, características e contexto histórico para justificar determinados elementos encontrados na produção literária. A
construção de sentido precisa ser o foco das aulas de língua portuguesa, o texto
deve ser visto como unidade de sentido que o aluno compreende e o interpreta,
utilizando os conhecimentos adquiridos no meio social em que vive. Enfatizamos
que o significado que os sujeitos/alunos dão ao texto é fruto de sua experiência e
interação com o meio em que vive.
O trovadorismo foi uma escola literária que surgiu num período em que
a língua portuguesa ainda estava em processo de formação, e isso pode causar
certas dificuldades na construção de sentido dos textos pelo corpo discente. No
entanto, alguns elementos como sofrimento amoroso, saudades, e sátiras, encontrados nas cantigas líricas e satíricas, sobreviveram ao longo do tempo aparecendo em muitas músicas atuais. Assim sendo, a sequência didática aplicada
na turma de 1º ano para se trabalhar o conteúdo “Trovadorismo” permitiu que o
alunado se envolvesse, ação pedagógica apoiada pela sugestão de leitura/análise
da música “Beijinho no ombro” de Valesca Popozuda, forma encontrada naquele
contexto de ensino para preparar os alunos para uma leitura que exigiria mais
concentração dos envolvidos na prática de letramento literário em questão.
3916
Renato de Araujo, Linduarte Pereira Rodrigues, Kalina Naro Guimarães
O presente estudo possibilitou entender que a literatura na sala de aula pode
ser vista com bons olhos pelos alunos, quando estes são convidados para o ato de
leitura que se confunde com a leitura que fazem de textos de ficção em seus cotidianos. Quando envolvidos no ato de letramento literário escolar, e dependendo
do modo como a aula vai se constituindo espaço de leituras, os alunos se entregam a leitura de forma prazerosa, da mesma forma que executam suas leituras
sociais: assistir um filme, executar um jogo, ouvir uma música. Dessa forma,
o professor de língua portuguesa tem o desafio de escolher textos que possam
chamar a atenção dos alunos e, ao mesmo tempo, permitir que a sua apropriação
desenvolva competências para leitura e interpretação dos textos produzidos em
diferentes escolas literárias.
É preciso superar os modelos de aula reprodutivistas e predominantemente
“bancários” presentes nas salas de aula, optando por uma metodologia em que
o educando seja um sujeito interativo que pensa, constrói e reconstrói hipóteses
enquanto ler/estuda. Por isso, a escola tem que funcionar como um elemento
propiciador das condições para este processo, buscando acabar com a artificialidade neste ambiente, contando com professores que se colocam na posição de
“co-leitores” dos alunos, parceiros na construção de sentidos das diversas possibilidades de leitura de ficção.
Referências
AMORIM, José Edilson de. Leitura, análise e interpretação. In: PINHEIRO, Hélder (Org).
Pesquisa em literatura. Campina Grande: Bagagem, 2003, p. 47-82.
COSSON, Rildo. Aula de leitura: o prazer sob controle? In: COSSON, Rildo. Letramento
Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009, p.25-30.
GOMES, Claudete Pereira. Tendências da semântica linguística. Ijuí: ed. Unijuí, 2003.
MARTINS, Ivânda. A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor?. In:
KLEIMAN, Ângela B. (Org.) Português no ensino médio e formação do professor.
São Paulo: Parábola editora, 2006.
PAULINO, Graça, COSSON, Rildo. Letramento literário: para viver a literatura dentro
e fora da escola. In: ZILBERMAN, Regina; ROSING, Tânia M. K. (Orgs.). Escola e leitura:
velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009, p. 61-79.
3917
RESUMO
Este trabalho apresenta uma proposta de incentivo à leitura literária na sala de aula
através de folhetos de cordel. A pesquisa teve por objetivo verificar a importância da
literatura de cordel na construção do leitor literário no espaço de sala de aula, bem
como incentivar a leitura, através de um trabalho significativo, prazeroso, motivador e capaz de fazer o leitor querer se aproximar do texto literário. Este estudo está
fundamentado em uma pesquisa-ação, desenvolvida por meio de oficinas de leitura
literária realizadas numa turma de 6º Ano do Ensino Fundamental, de uma escola
da rede pública. Como referenciais teóricos da pesquisa, recorremos às premissas
de Cosson (2012, 2014), Soares (2012), Street (2014), Kleiman (2007, 2008) e Rojo
(2009), para tratar do letramento literário e da escolarização da leitura, Pinheiro
(2013) e Marinho e Pinheiro (2012), na discussão sobre o folheto de cordel e seu uso
na escola. Os resultados da pesquisa demonstraram que, através da aplicação das
oficinas de leitura literária, conseguimos aproximar o aluno do texto literário. Foi
constatado, por meio da pesquisa, que com o contato efetivo com o folheto de cordel, o aluno pode ser estimulado à leitura, à humanização, à interação, vivenciando,
dessa forma, o letramento literário.
Palavras-chave: Leitor, Folheto de cordel, Leitura literária, Letramento literário.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
LETRAMENTO LITERÁRIO E O FOLHETO
DE CORDEL – UMA DISCUSSÃO POSSÍVEL
Maria Aparecida da Silva Izídio (PROFLETRAS)
Mabel Cristina Azevedo dos Santos (PROFLETRAS)
Introdução
O letramento tem sido um tema recorrente nas discussões acadêmicas. Perpassando pelas práticas sociais – letramentos sociais, firmando parceria no ensino da língua vernácula – alfabetização e letramento, adentrando as ciências exatas – letramento matemático, engajando-se na formação do leitor – letramento
literário, dentre tantas outras facetas possíveis ao termo que designa a interação
social entre os indivíduos envolvendo práticas de uso da leitura e/ou escrita.
Várias são as estratégias utilizadas pelos docentes para promover a formação leitora, traçando caminhos que busquem favorecer o letramento literário e
despertar o gosto pela leitura. O folheto de cordel faz parte desse viés estratégico
e vem acrescentar pontos positivos no trabalho com o texto literário na sala de
aula, dadas suas características específicas, como: abordagem de fácil acesso,
ritmo, melodia, temáticas variadas, contextos de produção e recepção.
Neste trabalho que ora se apresenta, voltamo-nos ao letramento literário,
objetivando contribuir para a formação de leitores numa turma do 6º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública municipal. Assim, buscamos, por intermédio de oficinas de leitura literária, relacionar o letramento literário ao folheto
de cordel, numa perspectiva de formar leitores capazes de interagir no meio em
que vivem, fazendo uso dos mais vários gêneros textuais para representar seus
pontos de vista e inserir-se numa comunidade de leitores.
3919
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
Nossa escolha pelo folheto de cordel justifica-se por tratar-se de um texto
que cumpre dois requisitos elementares ao letramento literário: a interação social e a literalidade que o folheto de cordel encerra, pois, constitui-se de um texto
com tradição histórica, cultural e estética.
Letramentos e práticas escolarizadas
Quando se ouve falar em letramento imediatamente relaciona-se o termo às
questões escolares, todavia, o letramento não se encontra restrito aos muros da
escola antes se constitui uma prática que se efetiva essencialmente em eventos
sociais de interação entre indivíduos em que a escrita e a leitura estão envolvidos, sendo que a escola é uma, dentre as muitas agências do letramento.
Essa relação do letramento com o pedagógico não decorre sem razão de
ser, pois, os estudos acadêmicos por décadas centraram-se apenas nas questões
cognitivas, porém, nos últimos anos tem ocorrido um alargamento do interesse no letramento atentando para aspectos sociais e sua dimensão cultural
(STREET, 2014).
Nessa visão ampliada de letramento não se pode excluir Brian Street (2014,
p. 174) cuja pesquisa vem dilatar os estudos sobre letramento abordando sua
natureza social e a multiplicidade das práticas letradas descritas por ele como
“comportamento e conceitualizações relacionados ao uso da leitura e/ou da escrita”. Outro enfoque abordado pelo teórico é o de que embora o letramento escolarizado tenha obtido exacerbada evidência, o letramento propriamente dito
está para além das práticas pedagógicas efetivando-se de maneira plural em diversos contextos sociais, razão pela qual já não se concebe letramento, mas letramentos.
Para Marcuschi (2010, p. 19) o letramento não corresponde a “aquisição da
escrita”, apenas, mas, há uma abrangência a práticas históricas e socialmente
construídas “à margem da escola”, fato que não as deprecia. Têm-se assim: 1) o
letramento objetivado pela educação formal, o que envolve práticas de escritas
em várias formas, ou seja, os gêneros; 2) o letramento social que se materializa,
por exemplo, na eficiência ao tomar um ônibus que o levará ao local desejado,
3920
Maria Aparecida da Silva Izídio, Mabel Cristina Azevedo dos Santos
realizar transações financeiras que evocarão habilidade de cálculos, identificar a
mercadoria desejada, ações que poderão ser praticadas, conforme assevera Marcuschi (2010, p. 25) tanto por indivíduos versados nas letras, como por pessoas
analfabetas ou com pouca apropriação da escrita. Sendo assim, o autor define
que “letrado é o indivíduo que participa de forma significativa de eventos de letramento e não apenas aquele que faz um uso formal da escrita.”
Kleiman (2012, p. 18 e 20), afirma que se pode “definir hoje o letramento como
um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e
como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. A pesquisadora aponta também que a escola é a principal “agência do letramento”, mas
não somente, com ênfase em uma postura onde as práticas de letramento se concentram na questão da aquisição da escrita e leitura enquanto que as “famílias e
igrejas”, por exemplo, constituindo-se como outras “agências de letramento”, manifestam também práticas de letramento, porém, com enfoque no social a partir
de vivências cotidianas e reais, as quais os alunos têm a oportunidade de aprender
a partir da observação e, posteriormente, da execução do que foi absorvido.
Voltando-se para as práticas escolarizadas evidencia-se o empenho em integrar a alfabetização ao letramento, referendando-os como temas complementares.
Assim, nas escolas a alfabetização e o letramento devem estar integrados ao processo de desenvolvimento do educando, sobretudo na aquisição das habilidades
cognitivas que dizem respeito à leitura e à escrita, ou seja, o estudante deve ser
alfabetizado e, simultaneamente, letrado.
É possível depreender-se então que, no atual cenário educativo brasileiro,
amplia-se o conceito de alfabetização para além da consolidação das habilidades
de leitura e escrita, práticas bastante valorizadas em toda sociedade grafocêntrica,
passando-se, portanto, a valorizar o uso que o indivíduo faz da leitura e da escrita
em práticas sociais, isto é, o letramento.
O Programa do MEC, voltado para a formação de professores das séries/ciclos
iniciais do Ensino Fundamental - Pró Letramento, prega a concepção de que o
3921
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler
e escrever, bem como o resultado da ação de usar essas habilidades em
práticas sociais, é o estado ou condição que adquire um grupo social ou
um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da língua escrita
e de ter-se inserido num mundo organizado diferentemente: a cultura
escrita. (BRASIL, 2008, p. 11)
Soares (2012, p.72), abordando a dimensão social do letramento define:
Letramento é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e de
escrita, em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais. Em outras palavras,
letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em
que os indivíduos se envolvem em seu contexto social.
Sendo assim, o letramento abrange tanto a esfera pessoal como a social.
Segundo Soares (2012, p. 18), na esfera pessoal é possível constatar mudanças em
“aspectos sociais, psíquicos, culturais, políticos, cognitivos, linguísticos e econômicos”. Na esfera social, também é possível observar mudanças quando da
apropriação da escrita por uma comunidade antes ágrafa abrangendo “efeitos de
natureza social, cultural, política, econômica, linguística”.
Ainda no que se refere às condições individuais, já se conjectura que o indivíduo que se apropriou da leitura e de escrita torna-se uma pessoa intelectualmente diferente, pois alarga as possibilidades de crescimento no âmbito intelectual e social, visto sua participação em práticas sociais com maior propriedade.
Dessa forma, são diferenciados dos analfabetos, aqueles que não têm domínio da
leitura e da escrita; e dos analfabetos funcionais, indivíduos que apesar de ler e
escrever não estão habilitados às exigências sociais que envolvem leitura e escrita. Saber ler e escrever, contudo, não utilizar esses conhecimentos em práticas
sociais cotidianas torna os indivíduos alfabetizados, porém, não letrados.
Além de saber ler e escrever, o indivíduo letrado participa ativamente de
práticas sociais de letramento com eficiência, pois é capaz de escrever uma carta,
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Maria Aparecida da Silva Izídio, Mabel Cristina Azevedo dos Santos
preencher uma ficha de inscrição, ler uma bula de remédio ou manual de instrução demonstrando capacidade e inferindo sobre os procedimentos recomendados, registrar acontecimentos decorridos em seu ambiente de trabalho, etc.
O processo de letramento abrange duas dimensões. A primeira dimensão é
a individual, diz respeito à aquisição e domínio das tecnologias mentais da leitura e escrita. A segunda dimensão diz respeito ao social, caracterizado pelo uso
funcional que o indivíduo faz da leitura e escrita na sociedade na qual ele está
inserido e com a qual ele interage.
É certo que o grau de participação social do indivíduo poderá ser sempre
alargado, indo de eventos mais simples como pegar um ônibus, aos mais complexos como o entendimento de um contrato na aquisição de um imóvel. Esse alargamento ocorre a partir da associação ativa em eventos da cultura escrita sendo
necessário, para tanto, o conhecimento ampliado da língua escrita e a escola é a
principal agência de apropriação desse conhecimento, embora não a única.
Segundo Kleiman (2012, p. 24, 25), “a escola em quase todas as sociedades”, sobretudo brasileira, é a “principal agência de letramento”. A autora conclui, a partir
das diversas pesquisas realizadas, que o desenvolvimento cognitivo relativo à escrita é fruto da escolarização, pois, somente “sujeitos escolarizados” foram capazes
de se sobressair em tarefas propostas que requeriam habilidades específicas como
“raciocino lógico dedutivo”, por exemplo.
Constata-se que há um longo caminho a ser percorrido no que respeita à
concepção, estruturação e efetivação do papel das escolas no que se refere ao letramento em seu caráter essencialmente interativo com as práticas sociais. Contudo,
a prática pedagógica carece, ainda hoje, de maior apropriação quanto à complexidade que o termo letramento encerra e de como vivenciá-lo em suas intervenções
pedagógicas. Esse fato demonstra a necessidade de formação do docente para atuar de forma a favorecer as expectativas postas no ensino da língua materna.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
Letramento literário
O letramento literário objetiva a formação de leitores para os quais a leitura
seja fonte de “saber e prazer” (COSSON, 2014, p. 52). Assim, busca desenvolver
um trabalho diferenciado apresentando algumas especificidades em suas concepções e práticas. Atualmente, relacionado ao tema letramento literário, é possível apontar o nome de Rildo Cosson como ícone nos aspectos teóricos e metodológicos, sendo a obra do referido autor principal aporte teórico, deste trabalho.
O letramento, como já referido anteriormente, com base em Soares (2012), é
a apropriação da leitura e escrita que possibilita ao indivíduo a participação com
competência em práticas sociais que demandam usos em situações distintas de
leituras e escritas variadas. O letramento literário tem origem no letramento
escolarizado, com uma proposta ampliada no uso escolar da leitura e da escrita
concebendo o texto literário como essencial ao processo de letramento, daí a denominação letramento literário.
O letramento literário concebido por Coenga (2010, p. 55), partindo de estudos em Cosson (2006) e Kleiman (1995) diz respeito a um “conjunto de práticas
sociais que usam a escrita literária, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. O texto literário é,
na verdade, o aspecto mais relevante no processo de letramento aqui defendido.
Cosson (2014, p. 12) afirma que o letramento literário “possui uma configuração especial” devido ao uso do texto literário, mencionando ainda que:
[...] o processo de letramento que se faz via textos literários compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas
também, e sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio. Daí
sua importância na escola, ou melhor, sua importância em qualquer processo de letramento, seja aquele oferecido pela escola, seja aquele que se
encontra difuso na sociedade. (COSSON, 2014, p. 12)
Dessa forma, Cosson (2014) toma o texto literário como foco do trabalho
docente buscando desmistificar, dentre outras crenças, a que aponta a complexidade do texto literário devendo, por esta razão, restringir-se a um grupo seleto
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Maria Aparecida da Silva Izídio, Mabel Cristina Azevedo dos Santos
de leitores por gozarem de habilidades especiais necessárias a sua compreensão.
Esta crença se constitui numa das causas do distanciamento dos cânones, privando o indivíduo de uma experiência leitora singular (ZILBERMAN, 2007).
Abordando o letramento, Cosson (2014, p. 23) menciona que “é uma prática social e, como tal, responsabilidade da escola”. A grande questão é como
a escola irá cumprir seu papel de principal agente do letramento, de divulgação e manutenção dos cânones. Nessa perspectiva o autor mencionado propõe
encaminhamentos que deverão ser realizados através de oficinas em que o estudante saia da abstração e aprenda na prática. Esse é um processo no qual o
professor estará presente como um mediador, um auxiliar no desenvolvimento
das experiências leitoras, registrando o crescimento coletivo e individual do
estudante aluno leitor.
Assim, o autor nomeia o trabalho por ele proposto de Sequência, podendo
ocorrer de maneira mais simples - Senquência básica; ou mais complexa - Sequência expandida; porém, priorizando em ambas, atividades que envolvem leitura
do texto literário e produção escrita.
Quanto ao texto literário, justifica-se o seu uso em práticas escolares que
objetivam o letramento pela singularidade que este encerra. Cosson (2014, p. 30)
assevera:
É justamente para ir além da simples leitura que o letramento literário é
fundamental no processo educativo. Na escola, a leitura literária tem a
função de nos ajudar a ler melhor não apenas porque possibilita a criação do hábito de leitura ou porque seja prazerosa, mas sim, e sobretudo,
porque nos fornece, como nenhum outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo
feito linguagem.
O texto literário lida com as emoções, a sensibilidade. Constitui-se como
arte da palavra, retrata o homem, seus sentimentos, conflitos e complexidades;
as sociedades e suas culturas; o mundo. Abrange o que está perto e também distante; o conhecido e o desconhecido; o preciso e o dúbio; o forte e o fraco; o que é
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
considerado bem e o que é considerado mal; apresenta o visível e o invisível. Não
há limites para o entrelaço de palavras e construção de sentidos.
Acerca do texto literário Zilberman (2008, p. 47) esclarece que o mesmo
“favorece a formação do indivíduo [...]” sendo indispensável ao aprimoramento
intelectual e ético do sujeito, porque ao mesmo tempo em que evoca emoções, a
literatura possibilita a reflexão, convida a ampliação dos conhecimentos através
da aquisição de novos saberes. Provoca também o confronto entre o que se é e o
que ela revela.
Diante de tantos valores, como pode o texto literário não se fazer presente
em nas salas de aula? Como pode ser preterido por outros textos que, embora tenham sua utilidade, não poderão contribuir com a mesma intensidade na formação leitora e humana do indivíduo? Cabe aos professores a retomada da literatura
como material a ser utilizado como fonte de prazer e de formação do leitor.
O folheto de cordel e sua literalidade
A análise que ora se realiza segue a proposta de Rildo Cosson (2014a) no que
tange ao letramento literário buscando identificar alguns dos elementos que,
segundo o teórico, são essenciais no processo de formação do leitor literário, a
saber: textos integrais, abordagem literária, aspectos relativos ao escritor e contexto de produção. Assim, a análise volta-se para o texto literário. Mas, dentre os
muitos textos dispostos ao trabalho docente, quais seriam literários e quais não
seriam? O que atesta, afinal, a literariedade de um texto?
Jouve (2012, p. 31) apresenta um possível caminho à resolução da questão
suscitada considerando perspectivas objetivas e subjetivas. Refletindo sobre estudos de Genette (2004), menciona que: “são consideradas (de acordo com os
fatos) literárias duas categorias de textos: aqueles que pertencem à literatura por
obediência a convenções; aqueles que são tidos como belos”.
Tem-se, portanto, atestando a literariedade de um texto aspectos referentes
à forma, o que o enquadra em determinado gênero (literariedade constitutiva) e
aspectos que dizem respeito à “apreciação estética subjetiva” (literariedade con-
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Maria Aparecida da Silva Izídio, Mabel Cristina Azevedo dos Santos
dicional), sendo que a esta última faz-se necessário um reconhecimento coletivo (JOUVE, 2012, p.32). É conveniente salientar, entretanto, que esses não são
aspectos cuja aplicação resulta irremediavelmente no atesto ao texto literário,
sendo esta uma discussão densa no momento pouco pertinente aos objetivos
pretendidos nessa pesquisa.
No tocante às obras populares que podem ser trabalhadas na sala de aula
destacaremos o folheto de cordel, tido como literatura popular, enquanto mecanismo textual facilitador para o desenvolvimento do hábito de leitura. Partindo
da necessidade de interação entre o leitor e o texto e da observação de Pinheiro
(2013) ao afirmar que “é possível entender o folheto de cordel como incentivador de leitores, a interação que ocorre com o texto parece ser uma das maiores
conseguidas com textos literários para leitores iniciantes”Pinheiro (2013, p.46).
Assim, torna-se cada vez mais cabível o trabalho com a literatura de cordel como
meio de formar leitores literários, através de metodologias que venha a unir a
tecnologia e a literatura como estratégia para atrair leitores.
Entra em foco, nesse momento, o papel da literatura de cordel tendo em
vista a formação de leitores, pois como afirma Pinheiro (2013, p. 41) “[...] há um
espaço para vivenciar os folhetos no espaço escolar e eles podem contribuir decididamente para a formação de leitores”.
Sendo assim, não podemos deixar de lado essa literatura rica em fantasia,
produtora de prazer a partir do texto lido/cantado, fazendo-se uso do mesmo
para garantir o acesso e a divulgação do folheto como meio de retomar e valorizar a literatura popular, não negando, porém o papel do erudito, pelo contrário,
realizando com essas obras um paralelo que comprove a relevância e atualidade
de ambas, buscando uni-las e estudá-las em conjunto, não em um processo exclusivo, mas num processo de inclusão do novo, antigo, canônico, não-canônico,
clássico e popular.
Se tomarmos por base a função da leitura literária na escola e reconhecendo que a literatura de cordel tem uma importante contribuição na formação de
leitores podemos uni-las e afirmar que é possível formar leitores a partir do trabalho com a literatura de cordel.
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Pinheiro (2013) alerta para a forma de entrada da literatura de cordel na
escola, primando para que esta não seja alvo de preconceito, tendo em vista sua
origem em grupos menos favorecidos socialmente e que acaba entrando na escola para ensinar conteúdos gramaticais, em forma de cartilhas, e reitera que
“precisa ser trabalhada numa perspectiva metodológica que valorize o leitor, que
parta de sua interação com o texto, que lhe possibilite aproximar o texto de suas
vivências” (PINHEIRO, 2013, p. 46).
Precisa entrar na escola como literatura de cordel, tendo claro o objetivo de
que formar leitores requer metodologias que busquem fantasias, sonhos, curiosidades, elementos facilmente encontrados nos cordéis que trazem em sua origem
narrativas ricas em divertimento, dramas que, através da oralidade, ganham
mais vida dentro da sala de aula.
A experiência em sala de aula
Evidenciado a importância da leitura literária e o papel do professor enquanto mediador dessa ação na sala de aula, desenvolvemos uma intervenção
didático-pedagógica, através de uma sequência didática, a partir do agrupamento de gêneros, visando comprovar, na prática as contribuições que o folheto de
cordel proporciona ao educando enquanto leitor em formação.
Para tanto, consideramos as reflexões feitas, até então, sobre o processo de
escolarização da literatura na perspectiva do letramento literário e sobre a quantidade e qualidade de material de que dispomos quando nos determinamos a
abordar a literatura de cordel na sala de aula.
A experiência literária tomada aqui como intervenção didático-pedagógica
desenvolvida para obtenção de dados para a pesquisa que ora se apresenta, realizou-se nos meses de fevereiro a abril de 2015, endo como público participante
37 (trinta e sete) discentes do 6º Ano do Ensino Fundamental, participando efetivamente das atividades da intervenção didático-pedagógica.
As atividades propostas tiveram como foco a proposta de letramento literário a partir da leitura do folheto de cordel A galinha dos ovos d’água, de Arlindo
Lopes (2009) e da canção A triste partida, de Patativa do Assaré.
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Maria Aparecida da Silva Izídio, Mabel Cristina Azevedo dos Santos
Para o desenvolvimento da pesquisa, foi elaborado um plano de ação, de
forma a contemplar os objetivos pretendidos na intervenção através de uma sequência didática de oficinas de leitura literária, realizadas em quatro oficinas,
totalizando 12 (doze) horas-aula, originando, a partir dessas oficinas apresentações teatrais e recitais, produção de xilogravuras e coro falado a partir das interpretações dos folhetos de cordel.
Resultados
A partir do comportamento dos participantes da pesquisa, inferimos a relevância do trabalho com o texto literário para o incentivo à leitura. É perceptível
que ao dispormo-nos ao trabalho com práticas de leitura literária contamos com
vasto material, mas que pouco utilizamos, devido ao fato de prendermo-nos às
questões de ordem linguístico-estrutural, deixando de lado a prazerosa experiência promovida pela leitura do texto literário.
Vale ressaltar que o êxito na experiência realizada não acontece da mesma
forma nem com o mesmo desenvolvimento em todas as turmas do ensino fundamental, mesmo sendo estas do mesmo nível e localizadas na mesma escola.
Cabe-nos, portanto, a reflexão sobre as mudanças que precisam ser efetivadas
para que ocorram práticas motivadoras de leitura literária, levando-se em consideração o público atendido, o contexto de recepção dos textos e, sobretudo,
garantir a mediação e a participação de todos durante o processo de ensino.
A título de esclarecimento, vale salientar que o modelo de sequência didática desenvolvida para esta pesquisa, baseada em Dolz, Noverraz, Schneuwly
(2004) e Rildo Cosson (2014) não é um manual de procedimentos para trabalhar
o letramento literário, mas constitui-se como incentivo à prática da leitura, necessitando da criatividade do professor na elaboração de estratégias que sejam
vivenciadas em outras turmas, com outros textos literários.
A partir dos resultados obtidos, acreditamos que o trabalho com o folheto
de cordel é uma experiência de leitura literária significativa para o desenvolvimento em uma sala de aula de 6º Ano do Ensino Fundamental,, sendo capaz de
despertar o gosto por esse gênero textual literário, bem como incentivar outras
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
leituras, dando espaço a novos e diferentes textos, tendo como objetivo principal
a formação e o incentivo à leitura de obras literárias.
Em síntese, a leitura de folhetos de cordel traz valiosas contribuições para a
formação leitora, na perspectiva do letramento literário, sendo um meio de promoção da interação social, ao permitir que o leitor busque respostas, interaja e
seja atuante durante o processo de interpretação das leituras realizadas.
Entendemos, portanto, que este trabalho é relevante aos profissionais que
pretendem incentivar e formar leitores, tendo como premissas a teoria do letramento literário com luz às novas estratégias de intervenção didático-pedagógica.
Esperamos ter contribuído para a exemplificação de como executar uma
sequência didática básica para o trabalho com o letramento literário através da
literatura de cordel e justificar que os folhetos de cordel são capazes de promover a ruptura com os limites do espaço e do tempo pela experiência estética e
de informação para o leitor crítico e autônomo, em face da multiplicidade de
linguagem literária.
Referências
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séries iniciais do ensino fundamental. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Básica. Brasília, 2008.
COENGA, Rosemar. Leitura e letramento literário: diálogos. Cuiabá, MT: Carlini &
Caniato, 2010.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2 ed. São Paulo:
Contexto, 2014.
DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para
o oral e a escrita. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos
na escola. Tradução e organização de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro Campinas,
SP: Mercado de Letras, 2004. (Coleção As Faces da Linguística Aplicada)
JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? São Paulo. Parábola, 2012.
KLEIMAN, Angela B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola.
In.: KLEIMAN, Angela B. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva
sobre a prática social da escrita. 2 ed. Campinas: Mercado de Letras, 2012. Cap. 1.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 10
ed. São Paulo. Cortez, 2010.
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Maria Aparecida da Silva Izídio, Mabel Cristina Azevedo dos Santos
PINHEIRO, José Hélder. O que ler? Por quê? A literatura e seu ensino. In: DALVI, Maria
Amélia; REZENDE, Neide Luzia de; JOUVER-FALEIROS, Rita [orgs]. Leitura de literatura
na escola. São Paulo – SP: Parábola, 2013, Cap. 2, p.35-49.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 3 ed. Belo Horizonte.
Autêntica Editora, 2012.
STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no
desenvolvimento, na etnografia e na educação. São Paulo: Parábola Editorias, 2014.
ZILBERMAN, Regina. Letramento literário: não ao texto, sim ao livro. In: PAIVA, Aparecida.
MARTINS, Aracy. PAULINO, Graça. VERSIANI, Zélia. (org.) Leitura e letramento espaços,
suportes e interfaces. Belo Horizonte. Autêntica/CEALE/FaE/UFMG, 2007. Cap. 18.
______. Literatura, escola e leitura. In: SANTOS, Josalba Fabiana dos. OLIVEIRA, Luiz
Eduardo. (org.) Literatura & ensino. Maceió: EDUFAL, 2008.
3931
RESUMO
O presente trabalho é vinculado ao PROLICEN (Programa de Licenciatura), da Universidade Federal da Paraíba, e tem como principal objetivo a formação de leitores
no Ensino Básico, este projeto em específico trabalha esse fator através dos clássicos
da literatura Greco-romana. Para que isto ocorra são selecionadas algumas obras,
ao qual foram optadas As Metamorfoses, de Ovídio, e Antígona, de Sófocles. Outro
objetivo é o de proporcionar uma visão enriquecedora dos mesmos, de que os Clássicos vão além de livros antigos e obrigatórios, mas que por meio deles sempre serão
descobertos fatos novos e surpreendentes, auxiliando ainda na imaginação literária
do alunado. Os pressupostos teóricos que nortearam este trabalho discorrem sobre
a importância de começar a ler a partir dos clássicos literários, como Por que ler os
Clássicos?, de Ítalo Calvino; Como e por que ler os Clássicos Universais desde cedo,
de Ana Maria Machado, A Literatura nas séries iniciais, de Maria Helena Zancan
Frantz, , e através do livro de Rildo Cosson, em Letramento literário: teoria e prática. Por base disso, o trabalho foi desenvolvido em alguns encontros com alunos do
Ensino Básico da rede pública de ensino. A metodologia utilizada com os discentes
está em torno de letrá-los literariamente, no que cerne as interpretações em torno
das obras clássicas, tendo como apoio para destrinchar tais leituras jogos interativos, poemas, vídeos que elucidem os mitos. Por fim, para a obtenção de resultados
propomos aos alunos produções textuais e discussões críticas em torno das leituras
apreendidas.
Palavras-chave: Literatura clássica, Mitologia greco-romana, Formação de leitores.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
LETRAMENTO LITERÁRIO: CLÁSSICOS
GRECO-ROMANOS EM SALA DE AULA
Milena Veríssimo Barbosa (UFPB)1
Maria Amanda Ramos Barreto (UFPB)2
Introdução
A leitura, assim como a escrita, ainda nos dias atuais é tida como um dos
grandes desafios para a educação brasileira. É nesse sentido que constatado de
acordo com os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que os
estudantes brasileiros concluem essa etapa de formação escolar com deficiência
na leitura e na escrita advindos das séries iniciais. (FORMIGA, 2011).
Nessa perspectiva fica claro o quanto a leitura é fundamental para qualquer
área, como norteadores de conhecimento e interpretações de questões envolvendo disciplinas como a matemática, história ou geografia. Por isso, para Frantz
(1997), a leitura tem um papel decisivo no processo de construção do conhecimento, e nesse sentido, como enuncia Piaget, devem ser respeitadas as etapas
desse processo de construção do conhecimento “que vai de um estado de menor
conhecimento para um estado de maior conhecimento” (COLL, 2004).
1. Graduanda no curso de licenciatura em Letras – Português, pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
Voluntária do Programa de Licenciatura – PROLICEN.
2. Graduanda no curso de licenciatura em Letras – Português, pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
Bolsista do Programa de Licenciatura – PROLICEN.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
A partir disto, formamos a consciência da contribuição que os cânones da literatura podem nos trazer, que para Cosson (2014), “os cânones guardam grande
parte da nossa identidade cultural e reafirmando-se que os clássicos são imprescindíveis para que a maturidade de leitor possa ser atingida”, por tanto, não há
como pensar em letramento literário sem a presença dos clássicos neste processo de formação de leitores.
Portanto, a par das deficiências que são visíveis frente a leitura, era preciso
adotar estratégias de ensino nas quais os alunos fossem levados por meio dela, e
por outros mecanismos auxiliadores como vídeos, jogos e brincadeiras, visando
uma maior contribuição de elementos informativos acerca dos clássicos ricos em
mitologias. E para isso funcionar de maneira eficaz, é interessante salientar o
papel do professor que torna-se decisivo nesse processo, é preciso que ele consiga passar para o aluno a vontade, a paixão e o desejo de leitura pessoal, para que
assim os discentes possam ver primeiro um “testemunho” da leitura, e como ela
pode ser sim, uma coisa prazerosa (FRANTZ, 1997).
Desse modo, observa-se que é através da leitura que o jovem aprendiz se
emancipa para que se torne sujeito crítico e autônomo, e por meio disso sinta-se
como parte do processo educativo, para que sejam construtores de seu contexto
social.
A importância de levar os clássicos para alunos
do Ensino Básico
Como é sabido, os clássicos literários eram de grande influência na sociedade grega e posteriormente na sociedade Latina. Autores como Homero, Hesíodo, Ovídio, Virgílio, entre outros, produziram obras de grande prestígio para a
literatura clássica, uma vez que eles reproduziam em suas obras acontecimentos
presentes na época em que estavam inseridos, demonstrando a respectiva sociedade em suas produções, como é próprio da literatura.
Ao perceber isso interpretamos essas obras clássicas como alusões ao cotidiano de nossas vidas, haja vista estarem presentes na nossa memória coletiva
muitos desses ensinamentos, inclusive, em ditados populares como “Minha vida
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Milena Veríssimo Barbosa, Maria Amanda Ramos Barreto
é uma grande Odisséia”, em que faz referência ao tempo de duração da obra de
Homero; como também um outro ditado que diz “fulano feriu meu calcanhar de
Aquiles”, em que a semântica alude a força concentrada no calcanhar de Aquiles,
guerreiro mitológico de grande prestígio presente na Ilíada, de Homero.
Diante disso, qualquer pessoa seja ela da classe social e cultural deve ter o
direito de conhecer essas obras que inspiram a nossa sociedade, seja nos costumes e crenças, seja como fonte de outras produções literárias. Esse direito, então,
deve ser resguardado para a humanidade, já que esses cânones da literatura são
seu próprio patrimônio, visto pela sua riqueza de conhecimento. A reivindicação
a ler literatura se sustenta pelo fato de ser nosso direito, se soma ao fato de que
ler é uma forma de resistência. É um patrimônio que está acumulado há milênios, está à disposição de todos nós. (MACHADO, 2002).
Devido a tudo isso, por que não levar um conhecimento das obras clássicas,
tão essencial para nossa formação humana e intelectual desde cedo? Não vemos
argumentos que impeçam de esse conhecimento sobre os clássicos ser levado
para nossos alunos, uma vez que com esse “primeiro” contato eles começam a
observar e identificar ainda mais elementos mitológicos presentes em nosso cotidiano e sociedade.
De acordo com Machado (2002), as leituras que as pessoas fazem desde seus
anos iniciais de vida são de suma importância para uma vida “adulta” de leitura
mais prazerosa, pois quando feita ainda na infância ou na adolescência passam a
ser parte inerente a sua experiência de vida e de leitor, então ela diz:
Engraçado como todas essas lembranças infantis ficam mais tão nítidas
e duráveis. Talvez porque nas crianças a memoria ainda está tão virgem
e disponível que as impressões deixadas nela ficam marcadas de forma
muito funda. Talvez porque sejam muito carregadas de emoção. (MACHADO, 2002).
Quando fala-se em formar leitores a partir de obras clássicas, como Antígona, Os doze trabalhos de Hércules, Ilíada ou Odisséia, entre tantos outros, surge
uma grande dificuldade quanto ao ensino por meio de obras com linguagens
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
diferentes e difíceis para leitores iniciantes e por isso ainda há uma grande resistência por parte dos professores em levar esses clássicos para a sala de aula.
Diante disso, para Machado (2002), “o primeiro contato com um clássico, na
infância e na adolescência, não precisa ser com o original. O ideal mesmo é uma
adaptação bem feita e atraente”.
A adaptação é uma forma muito eficaz de levar os clássicos para a sala
de aula, seja no que diz respeito à linguagem, ou a outros formatos de adaptação, como os jogos e filmes. Isso tudo chama a atenção dos leitores inicias, pois
muitas vezes se torna mais atraente. De forma bastante clara e objetiva Formiga
(2011), conclui dizendo que os clássicos adaptados nos levam a um repertório hierarquizados de livros canônicos clássicos venerados, diferindo somente a forma
como esse material chega ao leitor.
Pressupostos teóricos
Este trabalho como fruto do projeto “Literatura greco-romana em sala de
aula” utilizou-se de vários autores que enfatizam a ideia dos clássicos greco-romanos como uma das leituras fundamentais (desde cedo) para a formação de
leitores. Eles foram Ítalo Calvino, em Por que ler os Clássicos?, Rildo Cosson, em
Letramento Literário: teoria e prática, Ana Maria Machado, em Como e por que ler
os clássicos universais desde cedo?, Maria Helena Zancan Frantz, em A literatura
nas series iniciais, entre outros.
Os clássicos carregam consigo um conhecimento de uma magnitude infinita, uma vez que como o próprio Ítalo Calvino relata “os clássicos são fonte de
conhecimento inesgotável, mostra quem somos, de onde viemos e para onde
vamos.” (CALVINO, 2007). Com o conhecimento sobre isso, vemos como é importante que estes clássicos sejam lidos desde cedo por toda humanidade. Como
a própria Ana Maria Machado observa:
Temos de herança o imenso patrimônio da leitura de obras valiosíssimas que vêm se acumulando pelos séculos afora. [...] à minha reivindicação de ler literatura (o que, evidentemente, inclui os clássicos), porque
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Milena Veríssimo Barbosa, Maria Amanda Ramos Barreto
é nosso direito, vem se somar uma determinação de ler porque é uma
forma de resistência. (MACHADO, 2002)
Diante de tal afirmação da autora Ana Maria Machado, sobre o direito que
a nós é resguardado, sobre o acesso aos universais literários, mais uma vez se
faz necessário enfatizar que não há por que não serem levados esses cânones
da literatura para dentro da sala de aula. Com base em autores como Ana Maria
Machado que tivemos a fundamentação precisa para que pudéssemos levar com
toda legitimidade os clássicos para os alunos.
Processos metodológicos
Para o desenvolvimento deste trabalho dispomos de alguns encontros com
duas turmas do ensino fundamental da rede pública de ensino, em duas cidades
localizadas geograficamente no Vale no Mamanguape, mais especificamente na
cidade de Marcação e Mamanguape. Foi adotado o método de ensino baseado na
teoria de Jean Piaget, na qual o conhecimento é um processo gradativo (COLL,
2004). Nesse sentido, para Piaget o desenvolvimento da inteligência tem um ritmo temporal, que envolve uma ordem e uma sucessão de estágios, uma vez que
o processo em que se dá o conhecimento ocorrerá no plano menor para o maior.
(CARVALHO, 2002).
Nessa conjuntura, utilizamos no primeiro encontro a aplicação de um questionário tendo como objetivo elaborar de uma maneira dinâmica o adequamento
do nosso trabalho ao nível de conhecimento que eles até então possuem. Em
meio a isto expusemos dentro do questionário elementos que envolvam os Clássicos de uma maneira ampla, e quanto ao nível de familiarização que eles possuem com a leitura, que é neste ponto onde temos a possibilidade de visualizar
as suas necessidades no que diz respeito ao processo de letramento literário. Isto
por meio de questões que exijam uma dissertação objetiva, no qual os alunos
através de suas reflexões do que já fora apreendido tanto em suas series anteriores das principalmente nas disciplinas de história e literatura, como por meio de
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
filmes, já que é uma grande prática a utilização de questões mitológicas pela mídia, onde podemos nos apropriar disto para tornar cada vez mais próxima a literatura dos jovens leitores. Levando em consideração as suas respostas e reflexões
partilhadas conosco, foi assegurado o planejamento para as aulas posteriores.
No segundo encontro, foi promovida a leitura dividindo os capítulos de Antígona em grupos, e o mito de Ovídio lido para toda a sala de uma maneira lúdica e clara (por se tratar do texto original). Foi requerido a eles que marcassem
ou apontassem qualquer palavra ou pronuncia por ele desconhecida, pois com
base em Cosson (2014), o aluno passa pelo momento de decifração das palavras
no decorrer da leitura, para que assim consiga atribuir sentido ao texto. Dessa
forma este processo torna-se fundamental, pois tem o objetivo de facilitar nas
interpretações do texto, tornando ainda mais fácil nas próximas leituras. Concretizando assim o foco principal do projeto, que é a formação de leitores por
meio da leitura de obras Clássicas da literatura.
No terceiro encontro foram exibidos vídeos que elencam alguns mitos em
geral, deuses e heróis, que eles puderam a partir destes ilustrar a leitura realizada, fomentando tanto o significado quanto o significante de tais textos. Ainda
neste momento faz-se necessário mais reflexão, agora com mais conteúdos em
mãos, levando em conta que não basta apenas ler e assistir algo sem ocorrer a
apropriação disso por meio de diálogos e múltiplas interpretações. Em face a isso
podemos nos apropriar da interpretação de Cosson (2014), quando ele diz que,
apenas ler é a face mais visível da resistência ao processo de letramento literário
na escola.
No quarto encontro, a título de produção textual, no que diz respeito a obra
de Sófocles, sabendo que Antígona é uma de suas mais conhecidas, tanto no
âmbito literário como também no âmbito do Direito a qual traz reflexões acerca
do direito natural e o direito positivo. Isto foi então muito importante para que
através da leitura os alunos pudessem expor suas opiniões para com o posicionamento de Antígona diante das leis do Estado e as leis dos deuses, divina. Então,
para que fosse trabalhada a escrita com alunos, foi sugerida que eles reescrevessem a tragédia grega e fizessem um novo final para Antígona, de acordo com o
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Milena Veríssimo Barbosa, Maria Amanda Ramos Barreto
que eles acreditavam ser justo. No que diz respeito ao mito de Ovídio, o escolhido foi Júpiter e Io, ao qual foi requerido que os alunos reescreveram o mito,
destacando (exagerando) o que valores que foram de encontro com os seus, de
acordo com ações dos deuses, tratando das traições divinas e punições por elas
aplicadas. Assim consolidando de tal modo o conhecimento que eles adquiriram
sobre o texto literário clássico.
No quinto encontro expomos a eles as suas produções textuais realizamos
atividades finais. No caco de Antígona, a apresentação de um júri simulado encenado pelos alunos, de forma simples, mas com grande importância, pois eles
iriam expor argumentos e pontos de vista acerca da obra.
Resultados
Os saldos deste projeto no que diz respeito ao ensino de literatura, foram os
mais positivos possíveis, uma vez que os alunos reafirmaram o que aprenderam
através da última atividade e questionário, onde registraram as nossas contribuições no que diz respeito aos seus ganhos de conhecimentos acerca dos clássicos.
Por meio de tais processos foi notório que cerca de 70% dos alunos não levaram
tais atividades como algo enfadonho, que diziam afirmar em sua aulas convencionais de disciplina da língua portuguesa.
À medida que a leitura ia sendo realizada, os alunos conseguiam fazer ligações da obra clássica com a realidade em que vivem, demonstrando assim que
a literatura clássica mesmo que remetida a algo antigo eles conseguiam fazer
associações a seus cotidianos, fazendo assim que as obras se atualizassem (COSSON, 2014). Foi percebido que o projeto cumpriu seu objetivo de proporcionar
a formação de leitores, já que os alunos manifestaram interesse em ler outras
obras que fazem parte desse universo mitológico. E a (re)escrita se tornou essencial para que os alunos pudessem concretizar de maneira ainda mais eficiente a
leitura realizada.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
Considerações finais
Mediante o desenvolvimento e os resultados do projeto, vimos que o trabalho cumpriu o objetivo principal que prima pela formação de leitores a partir
de obras clássicas, uma vez que os alunos através da leitura do mito mostraram
interesse e assim perceberem o quanto esses clássicos estão presentes na cultura
da nossa sociedade.
Ao longo de todo o artigo falou-se muito em introduzir desde a tenra idade
do indivíduo, sendo assim desde as séries iniciais os alunos no mundo da leitura e da escrita, visto a precariedade desses dois elementos na Educação Básica,
assim também em como é importante que haja trabalhos/projetos como esse
na educação básica. É a partir de olhar que a importância desse trabalho não se
refere apenas a disciplina de Português como pode parecer obvio, mas ao contrário, a boa leitura e a boa escrita são fundamentais para qualquer atividade
escolar como num todo, e visto isso, é fundamental que trabalhos como estes
se perpetuem e busquem de forma eficaz estratégias didáticas melhoradas, para
que, cada vez mais, tenha a inserção de alunos no mundo da leitura e da escrita.
Referências
BLANK, Cintia Kath; GONÇALVES, Renata Braz. A leitura na adolescência: um estudo
em escolas públicas e particulares do ensino médio. V. 13, n. 2. Rio Grande: Didática
Sistêmica, 2011.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
CARVALHO, Diana Carvalho de. A Psicologia frente a Educação e o Trabalho Docente.
Maringá: Psicologia em Estudo, 2002.
CLARET, Martin. Coleção a obra prima de cada autor: Édipo Rei e Antígona, Sófocles.
São Paulo: Editora Martin Claret Ltda, 2010.
COLL, Cesar e outros. Desenvolvimento psicológico e Educação: Psicologia da Educação
Escolar. In: Desenvolvimento Psicológico e Educação: Psicologia da Educação
Escolar. V. 2. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004.
3940
Milena Veríssimo Barbosa, Maria Amanda Ramos Barreto
COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e Prática.2 ed. São Paulo: Editora
Contexto. 2014.
FORMIGA, Girlene Marques. As várias formas de ler clássicos literários: uma proposta
com as adaptações. In: Esinar literatura através de projetos didáticos e de temas
caracterizadores. Org. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa. João Pessoa: UFPB, 2011.
FRANTZ, Maria Helena Zancan. A literatura nas séries iniciais. 2.ed. Ijuí: Unijuí: Editora
Vozes, 1997.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se complementam.
São Paulo: Autores associados: editora Cortez, 1989.
MACHADO, Ana Maria. Como e porque ler os clássicos universais desde cedo? Rio
de Janeiro: Objetiva, 2002.
RODRIGUES, Sônia. Três filhas: Antígona, Sófocles; Rei Lear, William Shakespeare;
A filha que deu certo, Sônia Rodrigues. São Paulo: Atual, 2014.
3941
RESUMO
O presente artigo tem como finalidade uma análise comparativa entre o romance
O primo Basílio, de Eça de Queirós, e sua adaptação brasileira para o cinema, com
direção de Daniel Filho, a fim de se fazer um diálogo entre as similaridades e discussões existentes entre a linguagem narrativa literária e fílmica, considerando as diferenças históricas e sociais que influenciaram a construção de tais produções dando
um enfoque maior à instituição do casamento. A análise revela que a adaptação cinematográfica traz para a trama espaço e épocas bem diferentes, sendo necessário
haver mudanças de conflitos e temas, porém, essencialmente, mantém-se fiel à obra
literária. Dessa forma mostra que os gêneros não se afastam, mas se aproximam e
ampliam as várias possibilidades de leitura.
Palavras-chave: Cinema, Literatura, Adaptação, Adultério, Casamento.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
O PRIMO BASÍLIO: DIÁLOGO ENTRE EÇA DE
QUEIRÓS E DANIEL FILHO SOBRE A
INSTITUIÇÃO DO CASAMENTO
Carla Jeikcelle Marques Freitas (UFRPE/UAG)
Introdução
Muitos são os tipos de emoção que sentimos ao ver histórias retratadas nas
telas do cinema, tais como: alegria, tristeza, decepção, inquietação, nos levam à
reflexão e também, muitas vezes, à indignação e revolta, entre tantas outras. Algumas dessas emoções e sentimentos são extravasados por Eça de Queirós, em
O primo Basílio, 1978, adaptada para o cinema pelo diretor Daniel Filho em 2007.
A ideia desse estudo é parte integrante da avaliação da disciplina de Literatura
Portuguesa II cujo objetivo é analisar como se dá o diálogo entre a linguagem
narrativa literária e fílmica.
O ato de relatar histórias passou, desde o surgimento da arte do cinema, a
relacionar cinema e literatura através do processo de adaptação de obras literárias para a gênese cinematográfica. Com isso podemos constatar a forte valorização dos recursos visuais na sociedade moderna para demonstrar em imagens
quase tudo o que nos cerca.
O romance O primo Basílio (1878) é um clássico da literatura portuguesa, que
apesar de ter sido publicado há mais de cento e trinta anos ainda desperta interesse de público e de estudos que não limita nem impede as diversas possibilidades
de leitura desta obra e uma dessas possibilidades é a transposição de sua narrativa
para a linguagem audiovisual. Com base nisso, é certo dizer, que apenas no Brasil,
já se produziu duas adaptações que possuem O primo Basílio como base.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
A adaptação da linguagem literária para a fílmica, inevitavelmente, resulta
em algumas transformações diante das mudanças midiáticas e também de produções e contextos diferentes e com isso se tem uma nova obra que, obviamente,
estará sujeita à críticas e comparações.
Tal análise se compromete em demonstrar o diálogo entre os gêneros já
citados anteriormente, considerando as diferenças históricas e sociais que influenciaram a construção de tais produções, buscando evidenciar pontos de
aproximação e distanciamento entre eles. Terá um destaque maior a “instituição
do casamento”, questionada por Eça de Queirós em sua obra Para fundamentar
esses estudos, será utilizada, entre outros, principalmente a obra de Antônio
Cândido, Literatura e Sociedade.
Objetivo
Em um texto literário tem-se a possibilidade de imaginar coisas que não
estão escritas e com isso nossa imaginação recria cenários, ambientes, climas,
entre outros, já no cinema não há a possibilidade de indeterminação, mas com
a determinação de imagens que torna possível se fazer uma reflexão através da
identificação e reflexão do cotidiano do espectador. Com base nisso, o objetivo
desse estudo é fazer a comparação entre literatura e cinema ressaltando que os
dois gêneros caminham lado a lado e que os objetivos do gênero mais recente
(cinema) são os mesmos do mais antigo (literatura).
Para tal comparação será dado um enfoque maior ao primeiro questionamento público de Eça de Queirós “a instituição do casamento” e com isso será
bem explicito o triangulo amoroso que se forma pelos personagens Luiza, Jorge
e Basílio, sabendo-se que essa obra e sua adaptação é de ordem social e política
mostrando que tanto no romance como no filme há uma visão extremamente
machista (já que o autor pune a personagem com a morte, como se não houvesse
perdão para os erros que Luiza cometeu) e que segundo Lins (1945), a culpa é da
sociedade.
3944
Carla Jeikcelle Marques Freitas
Romance e filme
Adaptação
Essa relação à adaptação olhares estão sendo voltados e atraídos num interesse particular por parte de estudiosos e críticos da arte. Antes, a preocupação
destes era tão somente quanto a relação de semelhança e diversidade entre o
cinema e a literatura, porém, com o passar dos tempos, o foco mudou e a preocupação de hoje é a transcodificação de uma linguagem à outra. Com base nesses
dados, lemos:
A relação entre literatura e cinema se realiza no instar da linguagem,
bem ali onde se forma o pensamento. Existe porque cinema, como a
literatura, é linguagem. Porque no interior (para flagrar o movimento, o
acaso, o passar do tempo) inseriu-se a imagem cinematográfica; porque
desenvolvemos um outro material para a criação de formas que constrói a linguagem, que constrói novos pensamentos: a imagem cinematográfica. (AVELLAR, 2007, P. 113).
O cinema foi reconhecido com arte e não apenas mais um recurso tecnológico midiático e com isso a os filmes adaptados passaram a ser apreciados com
uma obra de arte independente, tornando assim secundária a questão de ser fiel
ao livro, à obra.
Há uma diferença em “contar” e “mostrar”: o contar apela para a imaginação
que é controlado pelas palavras do texto e têm a função de indicar e direcionar
os significados, porém, também se libera pela ambiguidade e ausência de limites
visuais; já no mostrar (característica do cinema) o espectador (receptor) passa
da imaginação para uma percepção direta com uma representação que demostra
que a linguagem não é a única maneira de expressar significados e relatar uma
história.
Como exemplo desse “mostrar” temos as cenas em que os primos se reencontram no Teatro Municipal de São Paulo, que acontece logo no início do filme.
Suas expressão sugerem um sentimento ou um desejo retraído que se percebe
pelo olhar e também pelo diálogo que complementa a cena:
3945
anais eletrônicos Vi eClae / Pôsteres
-Basílio?!
- Prima?! Como estás Mudada!
-Velha?!
-Linda...
-Eu casei.
-Não acredito que você tenha feito isso comigo.
-Me conta, fazendo o que na terra da garoa?
-Vim conferir se São Paulo não pode mesmo parar. E morrer de
desgosto por ter perdido você. A verdade é que meu coração nunca saiu daqui.
Figura 1
Figura 2
Apenas em uma cena, já no início da trama, o espectador já percebe que houvera um romance entre o casal, que Basílio era um sedutor, que a história vai acontecer na cidade de São Paulo e que um novo caso estaria por vir entre os primos.
Romance
O primo Basílio, publicado em 1878 representa um dos primeiros momentos
de reflexão crítica demolidora e sarcástica sobre a organização social da burguesia portuguesa no século XIX. O romance está filiado a uma questão estética
naturalista e que as questões não são unicamente sobre psicologia ou comportamento dos personagens, mas os mecanismos sociais determinantes de suas
ações, assim como a instituição do casamento, por exemplo. Assim, o matrimônio, que é o ideal de felicidade da literatura romântica, passa a ser um dos principais alvos de críticas do autor que, através da traição, descreve a falta de moral
das “famílias de bem” da sociedade da época.
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Carla Jeikcelle Marques Freitas
As descrições da sociedade é uma das características mais marcantes de
Eça de Queirós e com isso consegue traçar o retrato da sociedade. O romance
em estudo faz parte da segunda fase do autor, que é a fase realista. Nesta fase
seus romances esboçam uma crítica social e a cultura da vida social portuguesa, particularmente a burguesia. Eça de Queirós, nesse romance, tem seu foco
na sociedade lisboeta, na “família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmo que se contradizem e, mais tarde ou mais cedo, centro de
bombachata” (LINS, 1945, p. 70).
O que se destaca no romance O primo Basílio, em face das circunstâncias
sociais e morais da burguesia de Lisboa, é o adultério que se torna a essência da
realidade (do romance) e que o autor argumenta moralmente contra essa prática, vivida por Luiza quando envolvida por Basílio. Nesse sentido Lins comenta:
O velho tema de todas as literaturas, e do qual o romantismo tinha
tirado imenso partido, está agora nas mãos do realista Eça de Queirós. E o realista fica fiel aos princípios de sua escola. Analisa, dissocia
e decompõe o problema que o romantismo tinha tornado poético e
rosa. (...) Sem dúvida é uma empresa que deve agradar ao moralista
sarcástico, esta de fazer do adultério um tema. E agrada também a
esse moralista a conclusão que salta do romance: a culpa não é nem
de Basílio, nem de Luísa, nem de Juliana; a culpa é da educação que os
formou e da sociedade que os tolera. (LINS, 1945, p. 71).
O final feliz romântico que todos esperam que aconteça sempre (até hoje
vive-se a esperar esse desfecho tanto na literatura, quanto no cinema e televisão) não acontece. Esse momento que seria, para os leitores, o final perfeito, é
substituído por pelo triunfo da falta de caráter, da canalhice de Basílio, vilão
que nessa obra é imune a qualquer tipo de punição. Por fim, a relação entre patroa (Luísa) e empregada (Juliana) evita que se tenha uma glamourização evidenciando a desconsideração da patroa e a falta de escrúpulos da empregada.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
Estudo dos personagens principais
Romance
Luísa: Moça loira, tem olhos castanhos. Sua vida é muito vazia e ela
torna-se uma mulher fútil. Até a chegada de Basílio, não carrega arrependimentos nem culpas. Está sempre em sua casa, apegada as suas
leituras românticas.
Basílio: É primo de Luísa e foi seu namorado, em tempos anteriores.
Pedante, convencido, é cínico demais, aventureiro, conquistador. Os
cabelos são pretos e anelados, mas já aparecem alguns fios brancos. Seu
bigode é pequeno e lhe dá um ar de coragem, orgulho e atrevimento.
Sabe cantar muito bem e seduz com perseverança e experiência.
Jorge: O marido. Engenheiro que trabalha no Ministério de Obras
Públicas. Bonito, tem a barba fina e frisada. Veste-se com bom gosto,
aprecia a ordem. Não é muito sentimental, não vai à botequins, não faz
noitadas com os amigos, mantendo-se sério desde que era solteiro , em
seus tempos de estudante.
Juliana: Personagem de peso, a mais complexa e elaborada de toda
a obra, ela impressiona por sua vida interior. Magra, feia, solteirona,
virgem, empregada há muitos anos, sente-se desesperada ao perceber
que não terá meios para deixar essa condição de vida. Quer progredir,
mudar sua posição social e fica arrasada cada vez que vê seus sonhos
frustrados. Cada vez mais azeda-se e odeia constantemente. Recebeu
apelidos sugestivos como “ a tripa velha”, “a isca seca”, “a fava torrada”,
“o saca rolhas”. O determinismo marca-a demonstrando assim que não
teria possibilidades de um novo destino, o que faz dela um exemplo de
personagem negativa e pessimista (retrato do Naturalismo). Seu desfecho é a morte por infarte.
Análise retirada da análise do site Slideshare.
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Carla Jeikcelle Marques Freitas
Filme
Luísa: Mulher de pele branca e cabelo castanhos. É lírica e romântica, ociosa e nervosa pela falta de exercício e disciplina moral”. Luísa é esposa de Jorge, engenheiro de minas que ela conheceu após o abandono e rompimento (por carta) do noivado com
o primo Basílio. Sua vida tranquila de leitora de folhetins é alterada pela viagem do marido e o retorno do primo a Portugal. O motivo que a leva a se entregar a Basílio, de acordo com as reflexões
de Eça, nem ela sabia. Uma mescla da falta do que fazer com a “curiosidade mórbida em ter um amante, mil “vaidadezinhas” inflamadas, um
certo desejo físico...”.
Basílio: Loiro, de olhos claros e pele sem barba, no auge de sua juventude. O primo e ex-noivo que retorna a Portugal na ausência do
marido de Luísa é para Eça de Queirós “um maroto, sem paixão nem
a justificação de sua tirania, que o que pretende é a “vaidadezinha”
de uma aventura e o amor grátis”. Malicioso e cheio de truques para
atrair a amante explorando a sua vaidade fútil, Basílio compara a fidelidade conjugal a uma demonstração de atraso das mulheres de Lisboa frente aos hábitos supostamente liberais e modernos das senhoras de Paris - todas com seus amantes, conforme assegurava o primo. Em momentos de maior dramaticidade, quando começam a enfrentar
as consequências do adultério, o cinismo de Basílio fica mais evidente: ele pensa apenas que teria sido mais vantajoso trazer consigo uma
amante de Paris.
Jorge: Todo o drama iniciado com o roubo das cartas se deve à tentativa de Luísa de impedir que Jorge saiba do adultério. Com aparições, no
romance, sua presença se faz sentir pelo papel social que representa: é
o marido.
Juliana: A criada Juliana faz desmoronar o mundo de Luísa ao chantageá-la com cartas roubadas. É a figura que aparece com alguma intensidade interior, destoando um pouco das razões fúteis que movimentam os demais personagens. Ela se conduz pela revolta (não suporta
sua condição de serviçal), pela frustração (fracassou na tentativa de
3949
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
mudar de vida), pelo ódio rancoroso contra a patroa (ódio, na verdade,
contra todas as patroas que a escravizaram por 20 anos). Assim como
Basílio, Juliana tentará tirar proveito circunstâncias, reunindo provas
do adultério para fazer chantagem. Mas ela pretende mais do que dinheiro - que exige sem sucesso de Luísa; ela quer a desforra. E os recursos que utiliza levarão o definhamento físico e emocional da patroa,
até o desfecho da história. Seu desfecho é a morte por atropelamento.
Análise retirada do resumo do site Literatura Brasileira.
Espaço
Na produção do filme O primo Basílio o escritor Daniel Filho optou por uma
trama que se passa na cidade de São Paulo, para que o mesmo se desenrole em
um universo mais próximo ao contemporâneo. Trata-se de um triângulo amoroso
situado por Eça de Queirós no século XIX que evidencia que tal situação continua
a acontecer nos tempos atuais, seja vivido por personagens na televisão ou no cinema, seja na realidade atual.
A história é adaptada e transferida de Lisboa, 1878, para cidade de São Paulo,
de 1958, século XX (a sociedade local era mais convencional, fechada). O diretor Daniel Filho explica que sua escolha pelos anos 50 foi feita pela proximidade
com a obra de Nelson Rodrigues, já que o realismo era também a escola desse
dramaturgo brasileiro, admirador de Eça de Queirós. Essa afirmação foi feita em
entrevista ao site “Cinema e Vídeo” (www.cinemaevideo.com.br). Além disso o
3950
Carla Jeikcelle Marques Freitas
Brasil da década de 50 tinha certa ingenuidade e um rigor moral que o diretor
considerou que combinava com a história. Trata-se do contexto, da ordem externa interferindo na ordem interna, segundo Antônio Cândido:
Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa,
nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na
construção da estrutura, tornando-se portanto, interno. (CÂNDIDO, 2006, p. 14).
Autor x diretor
Eça de Queirós
Eça de Queirós foi um dos grandes nomes da literatura portuguesa. O escritor participou de um período de mudança, em que o romantismo dava lugar
ao realismo. Na primeira fase da sua carreira, produziu obras com influência
romântica. O realismo aparece nas narrativas da segunda fase. Na terceira e
última, Eça apresenta textos mais imaginativos, testando os limites do estilo
literário. “O Crime do Padre Amaro” e “O Primo Basílio” são duas de suas obras mais
importantes. Com temática crítica, o autor causou polêmica na sociedade portuguesa da época e foi condenado pela Igreja Católica. Eça de Queirós trabalhou como jornalista, como muitos autores do período, advogado e cônsul. Mas ficou mais conhecido pela atuação na literatura. Os
textos do autor apresentam o nascimento do realismo português e são objeto
de análise até hoje.
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
Daniel Filho
João Carlos Daniel Filho nasceu no Rio de Janeiro, em 30 de setembro de
1937. Filho de atores espanhóis, Juan Daniel e Maria Irma, que trabalhavam em
circo e em teatro de revista, Daniel foi criado no Méier, zona norte da cidade.
Sua bisavó materna, Ana Casalis, que também era circense, pertenceu a companhias de circo bastante conhecidas. Ainda criança, Daniel Filho começou a
frequentar o circo e as coxias dos palcos em que sua família atuava. No final da
década, dirigiu a minissérie O Primo Basílio (1988), escrita por Gilberto Braga e
Leonor Bassères com base no original de Eça de Queiroz, ganhadora do Grande
Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos e Arte.
Considerações finais
Para se realizar a análise acerca da adaptação fílmica da obra literária
narrativa O primo Basílio, 1878, de Eça de Queirós, a maior intenção foi a promoção do diálogo entre as duas linguagem: fílmica e literária, acerca da instituição do casamento.
Embora a história tenha sido adaptada de Lisboa para São Paulo, Daniel
Filho manteve o tom irônico de Eça de Queirós e conservou a critica social que
caracteriza a obra.
Julga-se que cada obra realiza-se de forma original, tanto a literária,
quanto a fílmica e que sua adaptação estabelece um diálogo que se sustenta
pelo estilo próprio e valor criativo de cada obra. Também é perceptível que o
tema do adultério continua sempre vivo, seja na televisão, no cinema, na lite-
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Carla Jeikcelle Marques Freitas
ratura ou na vida real, e que tal prática continua a assombrar a vida dos casais,
seja pelo homem ou pela mulher.
Como arremate dessa análise, cabe salientar que a obra de Eça de Queirós
continua se renovando e dá a entender que sua linguagem sempre atual continuará sendo adaptada, o que só confirma a atualidade do autor português.
Referências
AVELLAR, José Carlos. O Chão das Palavras (Cinema e Literatura no Brasil). Rio de
Janeiro: Rocco, 2007.
CÂNDIDO, A. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.
LINS, Álvaro. História Literária de Eça de Queirós. Rio de Janeiro: Livraria do Globo,
1939.
FRANCISCO, E.C. O primo Basílio: da narrativa literária à fílmica. Marília, 2008, 129
p. Dissertação (Mestrado em Comunicação, Área de Concentração em Mídia e Cultura:
Ficção na Mídia). Universidade de Marília, 2010.
QUEIRÓS, Eça de. O Primo Basílio. Porto-Braga, Livraria Internacional de Ernesto
Chardron, 1878.
Filmografia
O primo Basílio. Direção: Daniel Filho. São Paulo: Lereby produções. Distribuído pela
Buena Filmes, 2007. 1 DVD (104 min).
Sites consultados
www.literaturabrasileira.net. Acesso em 07/07/2015
www.cpv.com.br. Acesso em 07/07/2015
www.valiteratura.blogspot.com.br. Acesso em 07/07/2015
www.lifeamigasdaleitura.blogspot.com.br. Acesso em 07/07/2015
www.slideshare.net. Acesso em 08/07/2015
www.educacao.globo.com. Acesso em 08/07/2015
www.recantodasletras.com.br. Acesso em 09/07/2015
www.memoriaglobo.globo.com. Acesso em 09/07/2015
3953
RESUMO
Segundo Kothe, (1986) alegoria significa dizer o outro. Comumente, as obras literárias de Monteiro Lobato “dizem o outro” por meio de uma linguagem inventiva, rica
em elementos que vão além do real, mas que ainda assim, aproximam-se do mundo
do leitor. Para tanto, a narrativa lobatiana isenta-se do discurso autoritário e pedagógico postulado pelos cânones da produção literária infantil conforme Gouvêa
pontua (1999), e dá voz ao ser infante, frequentemente retratado em suas obras como
um indivíduo dotado de um espírito crítico e questionador. Guiado pelo caráter inovador presente nas obras de Lobato, o objetivo geral dessa pesquisa qualitativa de
cunho interpretativista, desenvolvida na disciplina “Literatura Infanto-Juvenil I”, do
curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é analisar trechos
em que estão explícitos os recursos alegóricos em “A Chave do Tamanho”, dos quais
o autor se utiliza para expressar de maneira concreta significados abstratos, como
a temática do Tamanho nas civilizações e as consequências do “apequenamento”.
Tendo como contexto histórico a Segunda Guerra Mundial, Lobato cria um universo
no qual os adultos aderem à lógica das crianças como forma de sobrevivência, de
modo a suscitar reflexões acerca dos valores que vigoravam antes da humanidade
diminuir. O conceito de alegoria, que permeia toda a obra, será abordado através
das reflexões de Flávio Kothe em “A Alegoria” (1986), em que se nota o poder desse
recurso na literatura e a necessidade de um leitor ativo para identificá-lo e tornar sua
leitura da obra mais plural. Pode-se dizer que a aspiração de Monteiro Lobato em
criar um livro onde as crianças pudessem morar concretizou-se com a obra “A Chave
do Tamanho”, que se destaca por seu teor imaginativo, que envolve público infantil
nessa tentativa de descrevê-lo.
Palavras-chave: Alegoria, Literatura infanto-juvenil, Leitura.
ÁREA TEMÁTICA - Literatura e ensino
UM OLHAR ALEGÓRICO SOBRE
“A CHAVE DO TAMANHO”
Bruna Louize Miranda Bezerra Cassiano (UFRN)
Rebecca Cruz Pinheiro (UFRN)
Introdução
José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), ou apenas Monteiro Lobato, foi um
exímio escritor brasileiro, conhecido principalmente por suas obras “destinadas”
ao público infanto-juvenil, as quais representam metade de sua produção total.
Por meio delas, foi capaz de promover um rompimento com a caracterização
infantil realizada pelos cânones que vigorava em meados da década de 1930, de
modo a propiciar uma inovação principalmente de cunho linguístico na produção literária brasileira, se utilizando, por exemplo, de recursos alegóricos.
Para este trabalho, optamos por evidenciar A Chave do Tamanho, publicada
em 1942, que tem como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial, que será o
mote para a narrativa, pelo qual se darão os fatos contados. A obra em questão
se destaca não só pelo modo como a guerra é retratada, mas também pela representação da criança e seu poder de transformar o curso da história, que é envolta
por fantasia e sentidos alegóricos, capazes de aproximar o abstrato do concreto.
Essa pesquisa, desenvolvida na disciplina “Literatura Infanto-Juvenil I”, do
curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, se caracteriza por ser qualitativa de cunho interpretativista, visando, portanto, analisar e
interpretar a alegoria em trechos escolhidos por se mostrarem mais explícitos
quanto a esse recurso.
Dessa forma, desenvolveremos a priori uma análise geral da obra, com os
elementos próprios da narrativa, apoiada no trabalho de Gancho (2006), seguida
3955
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
das reflexões sobre a alegoria propriamente dita e como ela se constrói ao longo
da obra, por meio de Kothe (1986), e a posteriori concluiremos com a discussão
acerca da função desse recurso alegórico e a inovação na maneira como Lobato
constrói a imagem da criança em A Chave do Tamanho.
Os elementos da narrativa
De acordo com Gancho (2006), antes de ater-se à análise de uma narrativa,
é necessária a abstração de um conhecimento mais amplo acerca dos elementos
que compõem a obra: o enredo, as personagens, o tempo, o narrador, o espaço,
o ambiente, e, para esta análise, o discurso. Para isso, selecionamos trechos da
narrativa de A Chave do Tamanho em que a presença desses elementos será observada de forma mais evidente.
Enredo
Mediante ao contexto da Segunda Guerra Mundial, a boneca de pano, Emília, decide por um fim à Guerra, tendo como principal motivação a tristeza de
Dona Benta com o caos que imperava sobre a humanidade. Dessa forma, a boneca, símbolo de astúcia, utiliza-se do “super-pó”, um aprimoramento do pó de pirlimpimpim realizado pelo Visconde, para conseguir chegar à Casa das Chaves,
lugar onde localizaria a chave da guerra e modificaria a posição dessa chave, acabando, assim, com o conflito. Mas, em vez de Emília alterar a posição da chave da
guerra, a boneca finda por mudar a posição da chave do tamanho, fazendo com
que toda a humanidade reduzisse de estatura. Diante desse “apequenamento”,
termo utilizado por Emília, a boneca falante enfrenta uma série de perigos na
tentativa de retornar ao Sítio do Pica-Pau Amarelo e reencontrar seus amigos.
Eis que em um momento de sua trajetória, Emília encontra Visconde, que não
sofrera os efeitos do “apequenamento” por não ser considerado humano, e com
a ajuda dele consegue voltar ao Sítio e estudar uma maneira de acabar (ou não)
com a redução do tamanho. Após chegarem ao Sítio, os dois decidem utilizar o
“super-pó” para viajar o mundo e observar a maneira como a humanidade estava
lidando com a redução do tamanho. Retornando ao lar, a boneca e o sabugo de
milho se veem diante de um impasse: ela e as crianças do Sítio pensavam que o
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Bruna Louize Miranda Bezerra Cassiano, Rebecca Cruz Pinheiro
melhor para a humanidade seria permanecer do tamanho em que se encontravam, medindo centímetros de altura, por terem observado mudanças benéficas
na configuração social após o “apequenamento”, como o fim da guerra. Visconde,
por sua vez, ansiava para que os humanos voltassem ao seu tamanho original,
visto que o sabugo findara recebendo obrigações e responsabilidades impostas
por Emília. Desse modo, há a criação de um plebiscito, por meio do qual seria
acordado o destino da humanidade, ou seja, se os seres humanos permaneceriam, ou não, reduzidos. Os adultos, dentre eles, Dona Benta, Tia Anastácia e o
Coronel Teodorico, preferiam que as coisas voltassem a ser como eram, ao passo
que os menores, Emília, Narizinho e Pedrinho, gostariam que o “apequenamento” vigorasse. O resultado do plebiscito contemplou a volta do tamanho, para o
descontentamento de Emília. Como se vê, o enredo de A Chave do Tamanho descontrói a imagem das crianças como sendo seres ingênuos e alheios às tomadas
de decisão, propondo um novo olhar acerca da influência e do pensamento dos
pequenos mediante aos conflitos que podem imperar sobre a humanidade.
Personagens
Dentre as principais personagens que fazem parte da história da obra em
análise estão Emília, a protagonista, Visconde, Dona Benta, Tia Anastácia, Pedrinho e Narizinho. No geral, quase toda a turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo
aparece na narrativa, mas o enfoque maior está sobre Emília, por ser ela a responsável pela diminuição do tamanho.
Dentre as características da boneca que são comumente abordadas pelo
narrador, o trecho abaixo desconstrói o aspecto aparentemente frio com que
Emília lida com as situações:
Emília sempre teve fama de não possuir coração. Mentira. Tinha sim.
Está claro que não era nenhum coração de banana como o de tanta
gente. Era um coraçãozinho sério, que “pensava que nem uma cabeça”.
(LOBATO, 1997, p. 26).
Tempo
Na obra em questão, o tempo constitui-se por uma sequência linear de acontecimentos, remontando, assim, ao tempo cronológico, no qual os fatos desenca3957
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
deiam-se no sentido horário. Segundo Gancho (2006) o tempo cronológico está
ligado ao enredo cronológico, cuja ordem em que os fatos sucedem-se não é alterada. Assim ocorre A Chave do Tamanho, pois a narrativa inicia-se tendo como contexto a Segunda Guerra Mundial, que vigorava até então, e é finalizada após uma
série de ações realizadas por Emília e a turma do Sítio que dão fim a esse conflito.
Narrador
O narrador da obra em análise diz respeito ao narrador em terceira pessoa,
sendo aquele que “está fora dos fatos narrados, portanto, seu ponto de vista tende a ser mais imparcial.” (GANCHO, 2006, p. 31). Dentre as características desse
tipo de narrador, há a onisciência, por ele ter conhecimento de tudo a respeito
da história, e a onipresença, que remete ao fato de ele estar presente em todos os
lugares onde a narrativa se desenvolve.
O fragmento abaixo ilustra tal comportamento característico do narrador:
Pensando assim, Emília foi pé ante pé ao laboratorinho do Visconde e
remexeu tudo até encontrar numa pequena caixa de fósforos uma substância parecida com cinza. Cheirou-a. Lembrava o cheiro do pó de pirlimpimpim. “Deve ser isto mesmo” disse ela – e corajosamente tomou
uma pitada. (LOBATO, 1997, p. 9).
Como se vê, o narrador se mostra conhecedor dos fatos que permeiam a história, uma vez que a maneira como ele narra os acontecimentos se dá de forma
bastante detalhada, demonstrando conhecimento dos pensamentos da personagem. Mas, embora ele aproxime-se dos fatos narrados por apresentar exímia noção do enredo, podemos evidenciar uma espécie de distanciamento de sua parte,
visto que em A Chave do Tamanho tal narrador posicione-se de forma externa
aos fatos narrados, não expressando, geralmente, sua opinião sobre o que narra.
Espaço
Conforme Gancho (2006) pontua, o espaço apresenta como principais funções situar as ações das personagens e estabelecer com elas uma interação, seja
na maneira como influencia suas atitudes e pensamentos, seja sofrendo certas
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Bruna Louize Miranda Bezerra Cassiano, Rebecca Cruz Pinheiro
transformações provocadas pelas personagens. Na obra em questão, Emília, protagonista da história, percorre vários espaços antes e depois do “apequenamento”.
Dentre eles, estão o Sítio do Pica-pau Amarelo, a Casa das Chaves, o jardim do
Major Apolinário e até mesmo outros países como Alemanha e Estados Unidos.
As atitudes da boneca e suas emoções são fortemente afetadas pelos espaços por onde manteve sua trajetória, como por exemplo, os estratagemas a que
ela teve de recorrer para conseguir sobreviver aos perigos do jardim do Major
Apolinário e o sentimento de descoberta que lhe invadiu diante de um mundo
aparentemente mais vasto após o “apequenamento”, onde se viu tão pequena e
vulnerável a uma série de novos perigos.
Ambiente
O ambiente diz respeito “ao espaço carregado de características socioeconômicas, morais e psicológicas em que vivem as personagens.” (GANCHO, 2006,
p. 27). Tendo como funções principais o resgate da época em que a história é
retratada, a retomada dos aspectos físicos e morais do espaço, o ambiente em A
Chave do Tamanho remete a essas questões muitas vezes utilizando-se de recursos alegóricos, conferindo, dessa maneira, um significado abstrato aos aspectos
morais e sociais que eram presentes durante a época da Segunda Guerra Mundial, dentre os quais priorizamos a imagem do ser infante.
Discurso
As inúmeras possibilidades de que o narrador mune-se para registrar as falas
das personagens são denominadas “discursos” segundo Gancho (2006). Na obra
em análise, há o predomínio do discurso direto e indireto, embora em alguns
momentos da narrativa haja o uso do discurso indireto livre.
O modo como a fala de Emília é registrada no trecho abaixo, sem a interferência do narrador, ilustra a presença do discurso direto em A Chave do Tamanho:
– Que coisa curiosa! – exclamou enquanto se esfregava. – Estou nua e não
sinto a menor vergonha. Será que isso de vergonha depende do tamanho
das criaturas? Deve ser, porque entre os homens a vergonha era só para os
adultos. As criancinhas novas não mostravam vergonha nenhuma nem
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Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
ninguém se ofendia de vê-las nuas. Aprendi mais essa: vergonha é coisa
que depende do tamanho. (LOBATO, 1997, p. 23).
O discurso indireto livre, que une a fala da personagem à fala do narrador,
aparece poucas vezes na obra em questão. Segundo Gancho (2006), uma das características desse tipo de discurso diz respeito à manutenção das expressões
próprias da personagem, como se vê no seguinte fragmento: “Ergueu-se, ainda
tonta, e aproximou-se do casarão. Certinho!” (LOBATO, 1997, p. 9). É notável,
nesse excerto, que o narrador descreve a ação executada pela boneca Emília, contudo, a expressão utilizada, “Certinho!”, permite-nos concluir que tanto pode ter
sido a boneca quanto o narrador quem de fato recorreu ao uso dessa expressão.
Alegoria
Após observarmos diversos aspectos nesta obra de Lobato, devemos partir
à análise de outra característica muito presente em A Chave do Tamanho: a alegoria. “A alegoria costuma ser entendida como uma representação concreta de
uma ideia abstrata” (KOTHE, 1986, p. 6), assemelha-se à metáfora, no entanto, a
alegoria é mais desenvolvida, pois expressa de forma mais detalhada essa ideia
abstrata.
De qualquer modo, o que nessa figura se mostra é que cada um dos elementos alegóricos quer dizer alguma coisa além dele próprio e não aquilo que à primeira vista aparece. Mas, ao mesmo tempo, há uma relação
entre o que aí aparece e seu significado subjacente. Alegoria significa,
literalmente, “dizer o outro”. (KOTHE, 1986, p. 7).
Dessa forma, temos na alegoria uma maneira de dizer de alguma forma o
que não pode/deve ser dito formalmente, oscilando, assim, entre a expressão clara e o hermetismo. Ela costuma se apresentar de forma convencional, em que os
mesmos significantes correspondem ao mesmo significado, o que pode levar a um
desgaste dessa alegoria. A exemplo disso, há o uso contínuo da imagem da mulher
vendada com a balança na mão correspondendo a uma concretização do conceito
de justiça. Em relação à obra literária, é necessário que ela não se firme sempre
nas mesmas imagens, para que não haja um estancamento do pensamento.
3960
Bruna Louize Miranda Bezerra Cassiano, Rebecca Cruz Pinheiro
A alegoria contém a contradição de tender ao ocultamento das contradições de que resultou. Ao mesmo tempo, costuma ser conceituada como
contradição entre um elemento espiritual (ideia) e um elemento corpóreo (aquilo que serve para representá-la), entre um pensamento causado
e um pensamento causador; em suma, nela se reproduz ampliadamente
o conceito de signo, constituído por um significado e um significante.
(KOTHE, 1986, p. 41).
A citação acima nos permite observar que a concretização do abstrato, o
significante, nos leva a esse abstrato, o significado, trazendo essa contradição
entre espiritual e corpóreo. Quando a alegoria se mostra na criação de uma maneira “nova”, distanciando-se das imagens já consagradas, como a da justiça citada anteriormente, a obra torna-se mais aberta para a interpretação do leitor,
de forma que “A alegoria é a própria ontologia da obra literária. À medida que o
leitor lê a si mesmo através do texto, ele não lê propriamente o texto do autor ou
o autor no texto, mas apenas o autor que ele mesmo se torna por meio do texto
do autor” (KOTHE, 1986, p. 66). É com esse objetivo, de tomar a obra como nossa, que observaremos alguns aspectos alegóricos em A Chave do Tamanho.
Nesta obra de Monteiro Lobato, vemos que a alegoria já se mostra pelo título, em que a chave está no tamanho, ou seja, podemos depreender que o poder
estaria nas mãos de um determinado tipo de tamanho, e qual seria esse tamanho? O tamanho das crianças! Emília, com a vida que recebeu, se torna, em
parte, uma criança, e essa criança-boneca é quem propicia o rumo da história,
modificando o mundo e suas ideias de tamanho. A pequenez dos humanos traz
a impressão de que todos agora se encontram no mundo das crianças, de forma
que elas, como conhecedoras dele, passam a ganhar vez e voz nas discussões, em
especial Emília, a protagonista do conflito.
Logo, vemos que a chave, a solução, o poder, se encontram nas mãos dos
que sempre foram pequenos, sendo esta ainda outra possível alegoria, em que os
adultos, por meio do “apequenamento”, passam a ter acesso à visão que as crianças têm do mundo e tornam-se parte dela de forma temerosa, posto que sempre
a deixaram em segundo plano, de forma que a obra vai demonstrar de forma
alegórica essa incapacidade de adequação e seu consequente fracasso guiando a
vida no planeta Terra.
Como podemos ver, o livro como um todo se mostra alegórico e essas alegorias se voltam para a voz da infância da linguagem, em que “A alegoria é um ín3961
Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres
dice da história que poderia ter sido mas não foi. Ela é manifestação e denúncia
implícita do reprimido” (KOTHE, 1986, p. 67), na qual o ser reprimido é a criança, que na obra de Lobato pode ter o seu momento de expressão, modificando o
mundo, entrando em contato, no caso de Emília, até com autoridades, as quais
ficam praticamente sem voz diante de sua presença.
Além da alegoria em geral, presente na própria Emília, que poderia ser tida
como uma concretização da ativa mente infantil, podemos ver várias cenas em
que outras alegorias aparecem, como será demonstrado adiante. Em A Chave do
Tamanho observamos a ideia de que o mundo atual está seguindo por um caminho inadequado e, por isso, devemos encontrar um destino diferente, em que as
crianças e sábios possam ter voz e desenvolvam uma nova sociedade. Essa “tese”
é defendida ao longo da obra e conseguimos ver várias alegorias que aludem a ela.
Por meio desse ideal, crianças e sábios estariam no comando do novo mundo e, portanto, seriam muito mais valorizados. No capítulo IX, A estante dos
remédios, Emília faz uma importante observação ao refletir sobre a agilidade das
aranhas:
– Como estes bichinhos sabem arrumar-se num mundo tão grande! –
murmurou Emília – cada qual descobre um jeito. Por isso tenho tanta fé
na humanidade futura, isto é, de daqui por diante – a humanidade pequenina. Com a nossa inteligência, poderemos operar maravilhas ainda
maiores que a dos insetos. (LOBATO, 1997, p. 32).
A partir desse trecho, é possível observar a alegoria referente ao potencial
das crianças para mudarem o mundo, já que, se os adultos estavam se mostrando
inseguros com o novo tamanho, Emília só poderia estar se referindo às crianças
e aos sábios quando afirma que eles serão capazes de fazer maravilhas. A situação nova em que se encontram pode ser apreendida somente por seres abertos
e dispostos a compreender tão grande reviravolta, de forma que a “humanidade
pequenina” mostra-se como uma alegoria àqueles que eram pequenos antes de
tudo, aos que possuem a “chave”. Dessa forma, vemos claramente a defesa da tese
de que a sociedade só teria chance de sobreviver, de mudar seu jeito errado de
ser, por meio das crianças, e, posteriormente, quando ocorre a visita a Pail City,
dos sábios.
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Bruna Louize Miranda Bezerra Cassiano, Rebecca Cruz Pinheiro
Emília repetiu a ordem de portar no imensíssimo casarão branco que dali
avistavam e Juquinha não queria crer que fosse um simples casa velha de
fazenda. Apesar de transformado no maior gigante do mundo, o Visconde, pela força do hábito, obedecia à Emília do mesmo modo que antigamente. E ela agora se tornara o seu verdadeiro cérebro, a manobradora da
sua vontade. Parecia incrível que aquele piolinho de gente, lá dentro da
cartola, o conduzia para onde queria. (LOBATO, 1997, p. 50)
Outro exemplo dessa alegoria está presente no trecho acima, em que podemos observar como um ser tão pequeno é capaz de mover um gigante, demonstrando mais uma vez a capacidade das crianças de governar o mundo e mudar
as gerações futuras quando sua voz não é abafada pelos desejos dos adultos. A
alegoria do retorno aos primórdios, à infância, é tão forte que o protagonista da
história, em torno da qual tudo gira, é Emília, a boneca que reúne simbolicamente toda a infância, posto que, como já foi citado, é uma criança-brinquedo.
Parece incrível – murmurou ele – que essa grande coisa chamada humanidade dependa desta formiguinha sem sentidos que eu tenho na palma
da mão! Se Emília voltar a si, tudo poderá ser salvo; mas se morrer, é
bem provável que estes insetos descascados também morram todos e só
fiquemos no mundo eu, o Conselheiro e o Quindim – os únicos seres
falantes e escreventes – e que adiantará a “História do Grande Desastre”
que eu possa escrever em minhas memórias? Não existirá ninguém para
lê-la. E o curioso é que o mundo continuará a rodar como se não tivesse
havido nada. (LOBATO, 1997, p. 65).
Outra vez torna-se notável a importância da nova geração para modificar
a situação, posto que Emília, alegoria à criança, é a única capaz de acabar com
os conflitos do planeta, alegoricamente representados pela Segunda Guerra.
O trecho, no entanto, também remete à fragilidade em que se encontra nosso
mundo, o qual pode se despedaçar em apenas um passo. A sociedade se vê em
meio à tamanha desordem, representada pela guerra, que bastaria mais um
erro para que a humanidade chegasse ao fim, de forma que a obra propõe uma
mudança, ao menos uma pausa nessa balbúrdia, colocando os humanos em seu
devido lugar de animais que participam da seleção natural e correm sérios riscos de desaparecerem.
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Além do cercado para os besouros haviam construído um parque de recreio em que gozavam a vida nas horas de temperatura agradável. Emília
encantou-se com o parque de Pail City, um verdadeiro mimo de plantinhas graciosas. Havia vários cogumelos com assentos embaixo, nos quais
as damas de tanga foram sentar-se para emendar e torcer as fibras de
algodão que ela lhes dera. (LOBATO, 1997, p. 78).
Nesse trecho temos o avanço da alegoria, as damas que trabalham com o
algodão nos parecem uma alegoria às índias existentes no território brasileiro
antes da colonização. Com a comunidade formada naquele local, é clara a alusão
à vida “pré-colonial”, visto que os habitantes daquele local se utilizam de toda
sorte de elementos naturais e da produção alimentícia para subsistência.
A narrativa lobatiana como divisora de águas
A linguagem inventiva de Monteiro Lobato promoveu uma verdadeira revolução no cenário da literatura infantil no Brasil. Podemos conceber este autor
como um divisor de águas que, ao propor um novo modelo de produção de textos
literários endereçados ao público infantil, opôs-se ao modelo literário anterior,
de aspecto puramente pedagógico, que não penetrava na alma da criança por
aludir somente a questões superficiais, cotidianas, que, conforme Gouvêa (1999)
pontua, correspondiam a preceitos morais, cívicos e religiosos. Em uma carta
que Lobato escreveu a Godofredo Rangel em 1926, o autor disse: “Ainda acabo
fazendo um livro onde as nossas crianças possam morar.”. Essa assertiva acerca
da criação de um livro onde nele as crianças pudessem morar materializa-se em
suas obras por meio da concepção de um universo que se diverge do mundo realista, um espaço da criança pautado na fantasia.
A respeito da ruptura de Monteiro Lobato com cânones da produção literária de caráter realista, Gouvêa afirma que “o texto deveria não auxiliar a criança
a inserção na realidade adulta, transmitindo-lhe preceitos morais, mas permitir
que ela se evadisse da vida cotidiana, transportando-a para um universo interno
ao texto.” (1999, p. 17).
Diante disto, é possível perceber que a escrita inovadora de Lobato faz
um convite à criança para que ela adentre no universo próprio do texto, imerso
na fantasia, que ultrapassa a realidade. Entretanto, esta construção fantástica
proposta pelo autor, apesar de manter uma lógica ficcional interna, consegue
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Bruna Louize Miranda Bezerra Cassiano, Rebecca Cruz Pinheiro
manter um diálogo com a realidade. Isto é observável em muitas de suas obras,
sendo A Chave do Tamanho uma delas.
Monteiro Lobato em A Chave do Tamanho tece uma narrativa rica em elementos que vão além do real, mas que se aproximam do leitor infantil. O contexto histórico desta obra, que se trata da Segunda Guerra Mundial, permeia toda a
narrativa, uma vez que Emília, a fim de acabar com a guerra, decide visitar a Casa
das Chaves. Neste lugar, a boneca modifica a posição da chave da guerra para pôr
um fim no atual conflito que assolava toda a humanidade. A fim de significar
este propósito da boneca, Lobato apresenta uma narrativa rica em recursos alegóricos, que expressam de maneira concreta um significado abstrato ao abordar
a temática do Tamanho nas civilizações e as consequências do “apequenamento”.
A própria redução do tamanho irá propor um olhar alegórico sobre a criança e o
mundo de possibilidades que brota da força da imaginação.
O ser infante, não só neste livro, mas em tantas outras obras de Monteiro
Lobato, é dotado de um espírito questionador e de uma inteligência que, ao contrário da inteligência adulta, fundamenta-se na imaginação, a começar pelo recurso do pó de pirlimpimpim que, segundo Gouvêa (1999), corresponderá ao elo
entre o real e a fantasia. É perceptível a intensidade do teor imaginativo presente
nesta obra. Emília questiona a realidade que a cerca, o contexto catastrófico em
que se insere a guerra e, ao decidir acabar com esta intempérie, utiliza o “super
-pó” que a faz ultrapassar as barreiras do real, indo parar na Casa das Chaves,
uma espécie de universo paralelo.
Esta inteligência que tem como fundamento a imaginação pode ser por vezes observada nas soluções encontradas pela boneca para adaptar-se ao novo
mundo. Disfarçar-se de chumaço de algodão a fim de fugir de predadores maiores, “pegar carona” em insetos, voar em besouros, e até mesmo criar um sítio
na cartola do Visconde são algumas das estratégias de Emília para conseguir
sobreviver ao “apequenamento”. A fala da boneca ao dizer “Chorar não adianta,
Dona Nonoca. O que temos de fazer é nos adaptar.” (LOBATO, 1997, p. 34) remonta à inserção da voz dos “menores” em A Chave do Tamanho, que se veem
consolando os “maiores” mediante as consequências do “fim do tamanho” e das
concepções “tamanhudas” da humanidade. Desta vez, os adultos aderem à lógica
da imaginação infantil, pois só assim conseguirão sobreviver às circunstâncias
da redução do tamanho.
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Outra marca de ruptura com os cânones da produção literária infantil brasileira que pode ser observada na escrita de Monteiro Lobato corresponde à inventividade linguística de que o autor dispõe ao tecer a narrativa de A Chave do
Tamanho. A linguagem coloquial que, conforme Lajolo (2008) pontua, soa como
espontânea e natural, inaugura um novo marco na literatura infantil do Brasil,
mostrando-se como um instrumento artístico utilizado por Lobato para alcançar o mundo infante, no qual o aspecto que impera é a fantasia.
Conclusão
A alegoria ao poder da criança em A Chave do Tamanho suscita a reflexão
de que o ser infante é dotado de grande potencial para modificar a sociedade por
completo. Vemos a voz sendo dada à criança, a qual se mostra capaz de tomar
decisões sábias e adaptar-se à “nova ordem”, que era extremamente confusa para
os adultos, indivíduos incapazes de apreender as novas ideias. A alegoria simbolizará, então, esse direito à voz que é dado ao reprimido e “materializado” nas
ações das personagens infantis, como, por exemplo, Emília. Para tanto, Monteiro
Lobato irá fundamentar-se intensamente no irreal, tecendo, assim, uma narrativa rica em recursos fantásticos.
O advento da imaginação nesta obra corporificar-se em uma narrativa permeada pela criatividade, sobretudo no campo lexical, com a criação de neologismos. Para tanto, Emília pode ser considerada como símbolo de inventividade:
a boneca cria palavras a todo o momento a fim de caracterizar a nova fase pela
qual o mundo está passando desde o “apequenamento” (p. 21), ou seja, desde a
redução da humanidade. As ideias “tamanhudas” (p. 37) remetem às concepções
da antiga humanidade; “Papolândia” (p. 40) diz respeito à barriga do gato Manchinha, lugar onde a família de Juquinha e Candoca se encontrava após ter sido
devorada pelo animal.
Como se vê, a inventividade inerente à narrativa lobatiana finda por fazer um convite às crianças para que elas queiram morar nos livros, ser parte
deles. Lobato cria um mundo fantástico, cujo alicerce é a imaginação, e neste
mundo a lógica da criança é um elemento de tamanha importância. A Chave
do Tamanho dialoga com o público infantil por dar prioridade à criança, aos
seres menores, que se mostram críticos e pensantes. A criança nesta obra de
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Lobato isenta-se do estigma do domínio imaginário empobrecedor, do aspecto
inocente, negando, desta maneira, o que a produção literária brasileira anterior
às obras lobatianas propunha.
Por fim, partindo da premissa de que A Chave do Tamanho busca atingir
de maneira peculiar o público infanto-juvenil, é imprescindível a inserção desta
obra no âmbito escolar como proposta de desconstrução de valores da sociedade,
levando-os a refletir sore o fundamento dessas visões e sobre a importância de si
mesmos neste mundo, tendo em vista que, na obra, eles são protagonistas e não
meros coadjuvantes.
Referências
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 9. ed. São Paulo: Ática, 2006.
GOUVÊA, Maria Cristina Soares. A literatura infantil e o pó de pirlimpimpim. In: GOUVÊA,
Maria Cristina Soares; LOPES, Eliane Marta (Orgs.). Lendo e escrevendo Lobato. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999. p. 13-30.
KOTHE, Flávio R. A Alegoria. São Paulo: Ática, 1986.
LAJOLO, Marisa (Org.). Linguagens na e da literatura infantil de Monteiro Lobato. In:
LAJOLO, Marisa; CECCANTINI, João Luis (Orgs.). Monteiro Lobato: Livro a Livro: Obra
Infantil. São Paulo: Editora Unesp, 2008. p. 15-29.
LOBATO, Monteiro. A chave do tamanho. 42. ed. São Paulo: Brasiliense, 1997.
VALENTE, Tiago Alves. Uma chave para A Chave do Tamanho, de Monteiro
Lobato. 2004. 247 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras, Faculdade de Ciências
e Letras de Assis, Assis, 2004. Disponível em: <http://base.repositorio.unesp.br/
bitstream/handle/11449/94105/valente_ta_me_assis.pdf?sequence=1> Acesso: 20
de abr. de 2015.
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