A LÍRICA DA LEMBRANÇA NOS FRAGMENTOS XVI E XCIV DE SAFO DE LESBOS Odi Alexander Rocha da Silva1 A poesia, de uma maneira geral constituiu a manifestação literária mais primitiva que se conhece e que é comum a basicamente todos os povos. Em verdade, qualquer que seja a diferenciação que façamos hoje de poesia, ela sempre foi um todo organizado feito de palavras “(...) em uma ordem deliberada e dispostas para levar a cabo uma função bastante diferente da que desempenham na fala comum.” (BOWRA, s/d, p. 1) De todo modo, falando em termos gerais, pode-se dizer que a poesia enquanto expressão acontece motivada pela situação social e cultural presente no ambiente em que surge. A poesia lírica que era feita na Grécia antiga consistia em duas práticas literárias bastante específicas, a saber: a lírica coral lírica monódica, da qual faz parte, dentre outros poetas, a escritora Safo de Lesbos. A lírica monódica é definida por Schüler (1985, p. 35) como aquela em que “o poeta exprime seus próprios sentimentos”; paralelamente à lírica monódica, tem-se a lírica coral, na qual “os poemas compostos para um coro vinculam-se ao júbilo dos dias festivos.” (SCHÜLER, 1985, p. 35) Com efeito, os poemas líricos eram feitos para serem lidos para uma plateia. No caso de Safo de Lesbos, este fato aparece confirmado no fragmento2 CLX, quando ela diz “ta/de nu=n e)tai/raij tai=j e)/maij [...] te/rpna [..] ka/lwj a)ei/swEu cantarei agora essas canções em bela maneira para deleitar minhas companheiras) Esta leitura era acompanhada de música, em geral executada em instrumentos de corda (em geral uma lira, daí o nome de lírica, poema declamado ao som de uma lira). Havia, também, por outro lado, toda uma performance por parte do recitador (ACHCAR, 1994, p. 34), a qual ajudava no processo de identificação do ouvinte com o texto lido. A lírica antiga, quando de seu surgimento na Grécia, proporcionou um espírito novo no sentido de que trouxe novas maneiras de se praticar a arte literária; utilizando 1 Atualmente é aluno do curso de Mestrando em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atuou como professor de Língua e Literatura da Grécia Antiga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 2 Os poemas de Safo, assim como grande parte da lírica grega antiga, em geral, chegaram até nós muito lacunas devido ao mau estado dos papiros. Muitos dos poemas têm apenas uma linha. Mesmo os poemas maiores, como os que são analisados neste trabalho, têm uma estrutura de início, meio e fim estabelecida pelos helenistas, já que, não se sabe se teriam continuação.assim sendo, em virtude deste fato, ao longo deste estudos, nos referiremos aos poemas como fragmentos. de expedientes ainda inéditos para a consciência de então, a lírica estabeleceu uma inovação no sentido de estabelecer uma nova perspectiva sobre a expressividade humana, passando a preferir, primordialmente, a exposição da vida interior, abordandoa seja através de opinião sobre um fato ou através do relato da impressão deixada por uma pessoa, evocados no poema sob a forma de uma lembrança. Até o século VI a.C., o pensamento mítico ditava a interpretação do mundo e de seus fenômenos. Conforme este pensamento, toda a explicação a respeito da compreensão do mundo vinha, basicamente, “dos atos dos deuses”, ou seja, das determinações que esses impuseram para serem seguidos pelas pessoas através da religião. No século VI a.C. temos um grande acontecimento: surge a filosofia présocrática basicamente como uma contestação aos mitos homéricos que, então, faziam parte do imenso arcabouço cultural legado por uma tradição que se perdia nos séculos anteriores. “Quando então a filosofia pré-socrática colocava as suas primeiras questões, o mito por si mesmo já não mais satisfazia o homem enquanto explicação para o sentido e a lógica da vida.” (SILVA, 2009, p.51) O surgimento da filosofia pré-socrática (aproximadamente séc. VI a.C.) teve como consequência o declínio do pensamento mítico. Desde então, a explicação do homem, do propósito de sua vida e dos fenômenos que o cercavam passaria a ser feita mediante uma investigação. As conclusões evidenciadas em tal investigação tornaria favorável a elaboração de uma teoria sobre o mundo e sobre os acontecimentos que nele tinham lugar. Em outras palavras, “o que importa salientar é que se instaura na Grécia um tipo de comportamento humano mais acentuadamente racional.” (BORHEIM, 1999, p. 8) A nova forma de pensar trazida pela filosofia contempla, agora, a physis3, natureza, como um elemento cuja origem e fundamento necessitam ser plausíveis à compreensão humana. Em outras palavras, à filosofia pré-socrática não visava “(...) interpretar Homero, mas debochar de sua autoridade, denunciando o caráter relativo de toda a invenção teológica e desmerecendo seu prestígio como aedo veraz.” (MARSHALL, 2009, p. 19) 3 Physis é uma palavra grega de difícil tradução. Em torno de seu campo semântico, em língua grega, giram uma miríade de questões políticas, sociais e culturais do mundo grego antigo; em virtude deste aspecto, o termo pode assumir as mais variadas traduções. Para os efeitos de nossa abordagem da filosofia pré-socrática, usaremos como sua tradução a palavra natureza alternadamente com physis, vocábulo transliterado do grego. A nova forma de pensar procurou expressar uma opinião diversa sobre como o mundo pode se considerar e pensar a si mesmo enquanto ordem social, diferentemente dos relatos antigos, segundo os quais mundo tentava estabelecer-se tendo os deuses como sustentáculo. Entretanto, a nova forma de pensar, ainda que contemplando temas racionais ligados à pesquisa do mundo de maneira a torná-lo mais inteligível ao homem, utilizou-se por vezes do recurso da poesia para disseminação de suas reflexões. Tem-se evidências de que um determinado número destes pensadores (présocráticos) compilaram suas ideias para um público não-especializado. Xenófanes escreveu poemas elegíacos e hexâmetros e (de acordo com a tradição) “rapsodiou” seus próprios trabalhos; Heráclito construiu aforismos que emulavam o discurso do oráculo délfico e Parmênides rivalizava com Homero e Hesíodo escrevendo poesia em verso hexâmetro. Não estou sugerindo que estes pensadores granjeavam um tipo de popularidade maior que a dos poetas tradicionais. A questão é que eles exploravam formas tradicionais de poesia e um discurso de autoridade em um esforço de atraírem público e ganharem atenção. (NIGHTINGALE, 2007, p. 177) O pensamento filosófico nasce na Jônia, o centro cultural e econômico da Grécia do séc. VII a.C. A poesia lírica nasce nessa mesma região, o que já nos permite conjeturar que o contato da poesia com o pensamento filosófico então emergente tenha sido inevitável. O advento da filosofia pré-socrática tornou possível a prática de uma poética voltada para os recônditos da subjetividade na medida em que uma interação com o pensamento filosófico que então surgia proporcionou um aprofundamento dos temas da poesia, voltando-os para a expressão de opiniões particulares, nas quais o eulírico se marca no texto. O “aparecimento” de um eu-lírico traz à tona um novo conceito ao poema: a subjetividade. Através da subjetividade, o eu-lírico se manifesta transformando em motivo de produção literária a sua vida interior. No século VI a.C. é o primeiro momento em que vemos tal fenômeno utilizado em detrimento do recontar a tradição. Feito este panorama sobre a lírica, contemplando seu histórico e dinâmica literária, torna-se mais facilitado observarmos na prática a expressão do eu-lírico e sua dinâmica de funcionamento. Para demonstrarmos a realização deste processo e o que podemos abstrair de sua significância, foram escolhidos dois poemas de Safo de Lesbos: o fragmento XVI e o fragmento XCIV. O critério de escolha do corpus para nosso estudo contemplou basicamente a ênfase dada, no poema, a questão da lembrança, sobretudo com o uso do verbo grego (mnémai) que expressa essa situação. Deste modo, tendo claramente expressado pelo eu-lírico a questão da lembrança, torna-se mais propício abordá-la enquanto temática e enquanto mecanismo de expressão poética. 1 Dinâmica lírica de lembrança – análise dos fragmentos XVI e XCIV Em cada um dos dois poemas escolhidos para análise, temos uma perspectiva diferente sobre o ato de lembrar. Em analisando essas diferentes perspectivas, torna-se possível tecer considerações sobre o pensar lírico (sáfico) de uma forma geral e, sobretudo, verificar como era tratada a questão da lembrança para os antigos, considerando-se que, ao tempo em que os poemas foram escritos, essa dinâmica de expressão era algo ainda novo na prática poética de maneira geral. O fragmento XVI é talvez um dos poemas mais conhecidos de Safo. Nele, vemos uma consideração da escritora acerca do ato de amar. Para deixar claro seu pensamento, Safo se vale do mito de Helena. Citemos o poema na íntegra. É uma batalhão de infantes – ou de cavaleiros – dizem outros que é uma frota de negras naus a mais linda coisa sobre a terra. – para mim é quem tu amas./ E como é fácil fazer clara essa verdade para o mundo/ pois aquela que triunfou sobre o humano em beleza, helena, seu marido, o mais nobre dos homens/ abandonado, para Tróia navegou. Para a filha, para os pais queridos, nem um só pensamento voltando/. (...) agora esta lembrança de Anactória daqui tão distante/ aquele modo de andar que acorda os desejos/ e cambiantes brilhos, mais eu queria ver, no seu rosto/ que soldados com panóplias e carros lídios4 (FONTES, 2003, p. 385) Há uma expressão grega muito usada quando se deseja fazer uma comparação: essa expressão é me\n... de\, que significa “enquanto que...” ou “de um lado... de outro...”. É com essa expressão que Safo abre o poema, tecendo uma comparação sobre o que existe de mais belo. Nesta comparação, a escritora visivelmente tece sua opinião sobre o que considera de mais belo. Deixa claro, logo ao início que seu conceito de beleza nada tem a ver com os conceitos de outras pessoas, visto que cita há outras pessoas que consideram demonstrações de força militar – em suas mais variadas formas e acepções – que há de mais belo sobre a terra. Entretanto, para Safo, o que há de mais belo é o indivíduo a quem se ama. 4 No original: “Oi( me\n i(pph/wn stro/ton oi( de\ pe/sdwn /oi( de\ na/wn fai=j e)pi\ ga=n me/lainan / e)/mmenai ka/lliston, e)gw\ de\ kh=n o(/ttw tij e)/ratai/ pa/gxu d )eu)/marej su/neton poh/sai/ pa/nti tou=t ), a) ga\r po/lu perske/qoisa /ka/lloj a)nqrw/pwn )Ele/na to\n a)/ndra to\n pana/riston. /Kallipois )e)/ba )j Troi/an ple/oisa /kwu)de\ pai=doj ou)de\ fi/lwn tokh/wn/ pa/mpan e)mna/sqh, a)lla\ para/gag )au)tan [...] /a)mpro\n ga\r [...] / me nu=n )Anaktori/aj o)nemnais ) ou) pareoi/saj: / ta=j ke bolloi/man e)/raton te ba=ma /ka)maruxma la/mpron i)/dhn prosw/pw /h)\ ta\ Lu/dwn a)/rmata ka)n o)//ploisi pesdoma/xentaj”. O texto grego aqui utilizado é o estabelecido por David Campbell. As traduções aqui utilizada como referência é a de Brasil Fontes. Para maiores detalhes, vide referências. Os colchetes na citação representam lacunas no texto devido ao estado precário do papiro que chegou a nós. Em busca da maior proximidade com o original, o tradutor da edição portuguesa aqui utilizada respeitou as lacunas do texto, também revelando-as na tradução. Para justificar a importância de uma lembrança a ser invocada, nada melhor do que compará-la com o que de mais grandioso existe, de acordo com a concepção tradicional de então: a cavalaria lídia. Era bastante usual à época de Safo, mormente em Lesbos, invocar e louvar a Lídia, até pela sua proximidade geográfica. O poderio e as e as riquezas deste país o tornaram bastante saliente na memória da antiguidade, pois era de lá que chegavam as mais belas histórias de heroísmo e bravura, pois o espírito da guerra, o gênio criativo, a capacidade industrial e a aptidão para o comércio eram uma característica marcante deste povo. Todavia, há outros exemplos de heroísmo, que a escritora tem como muito mais consideráveis. É justamente por isso que cita o exemplo de Helena, que abandonou marido e filha para seguir o homem que amava. De que vale contemplar uma ostentação de riquezas, luxo e poderio militar se o ser amado não está perto? Com efeito, neste poema, Helena é retratada como “aquela que aos mortais ultrapassava”, aquela que serve de exemplo para esclarecer o que é o amor verdadeiro, aquilo que de mais belo há sobre a terra negra, pois (...) a história de Helena não é (...) uma advertência, mas um exemplo, literalmente entendido, do poder do amor para quebrar as ligações familiares e para forçar suas vítimas a arriscar tudo em favor dele. (Bowra, 1961, p. 112 ) Assim, colocando uma moça (Anactória) acima, em importância, daquilo que a tradição concebe como “a coisa mais bela na terra negra”, Safo esboça uma concepção de vida gerada, a partir da “(...), angústia que representa a falta de Anactória, a necessidade urgente da sua presença física, o desejo de rever seus gestos, seu andar, seu rosto.” (Starzynski,1968, p. 81) A saudade da moça distante, aqui, funciona como mote para entender os valores de Safo, os seus critérios para definir o afeto em relação a alguém; o exemplo de Helena é ilustrativo na medida em que atesta a plausibilidade e legitimidade de se deixar levar por uma tal torrente afetiva. Neste sentido, fica claro que a referência a Helena é um argumento estratégico na medida em que o amor de Helena é visto como belo, pois tal amor, na visão de Safo, proporciona o melhor sentimento que alguém pode vivenciar, pelo simples fato de que o que de mais belo “existe na terra sombria” é aquele a quem se ama. Nestas circunstâncias, em nada surpreende que a história de Helena seja vista por Safo com acatamento e aprovação. Ainda que Helena possa, para alguns, ser Helena possa ser vista como uma proscrita, cujo sentimento botou a perder tantas vidas, para Safo, a mulher tida como a mais bela do mundo grego é um exemplo a ser seguido, alguém que não desanimou na busca pela realização do ideal de procurar o ser bemamado e cingir o espírito com as graças do seu amor, envidando toda a coragem e esforços necessários para consegui-lo. Safo, aqui, se utiliza do mito homérico, colocando sobre ele perspectivas diferentes. O fato (fuga de Helena) funciona, no contexto do poema, como um materialespécie, sendo utilizado como o “repertório poético” que fornece insumos para que cada autor jogue nele a sua visão. O que se pode concluir desta prática é que: Na lírica predominam os tópoi e na épica as fórmulas e se trata de materiais diferentes. Estas são sintagmas, unidades frasais que se repetem, aqueles são unidades semânticas para as quais cada poeta constrói a seu modo a forma da expressão. Mas, ainda que reflitam, em sua diversidade, modos e talvez momentos diferentes de existência da poesia, esses processos de composição conheciam um mesmo princípio: o recurso sistemático a formas de expressão ou de conteúdo estocadas pela tradição oral. Na poesia do mundo da escrita, apesar das enormes transformações ocorridas na produção e no consumo poético, esses processos tiveram continuidade. (ACHCAR, 1994, p. 54, grifo do autor) A escolha de trabalhar sobre bases já estabelecidas tais como os mitos homéricos é sintomática no sentido de que atesta a relevância de Homero na cultura de Lesbos. Por mais escrita e menos oral que a poesia possa ter se tornado após Homero, os elementos homéricos, no entanto, conforme pudemos examinar, continuam a ser utilizados. A retomada de mitos homéricos na prática poética de Safo de Lesbos se justifica pelo objetivo de mencionar um exemplo de conduta justa (a coragem de Helena em abandonar família e riqueza para ir em busca do seu amor). Como se vê, é o mesmo material homérico (fuga de Helena) que é colocado sob diferentes focos e é ressimbolizado em diferentes nuanças. Assim, colocando uma moça (Anactória) acima, em importância, daquilo que a tradição concebe como “a coisa mais bela na terra sombria”, Safo esboça uma concepção de vida gerada, a partir da “(...), angústia que representa a falta de Anactória, a necessidade urgente da sua presença física, o desejo de rever seus gestos, seu andar, seu rosto.” (STARZYNSKI ,1968, p. 81) A presença do ente lembrado em meio em meio ao universo da lembrança constitui a situação propícia para a construção do universo do indivíduo. Este universo no poema em questão se revela através da angústia pela ausência de Anactória, o que propicia a evocação do ente querido de uma forma tão intensa que o fato literário, isto é, o poema acaba em seu contexto, como que “trazendo” Anactória de volta ao ambiente de Safo. Através da evocação, esta presença torna-se semelhante à que se teria se a moça de fato estivesse na companhia do eu-lírico que ora se expressa. Por outro lado, cumpre salientar que Mesmo que o ser amado não esteja presente, a sua imagem e a visualização minuciosa dos detalhes que a ela se relacionam (andar arrebatador, o cintilar dos olhos) é uma prova mais do que contundente da força desta presença na vida de quem a constrói no pensamento e, principalmente, é uma prova de que o ser humano já está consciente de que é capaz de refletir sobre a influência de pessoas e coisas em sua vida. Até porque A lembrança é um laço espiritual que une os homens(...). (...) as pessoas que se amam encontram-se no sentimento da lembrança(...) que cria um acordo entre duas almas. Através da nostalgia, o espírito se desloca no tempo e no espaço, criando uma comunhão com aquele que por ele é lembrado. (SNELL, 2001. p.77) A prática da poesia lírica proporcionou um maior respaldo para o universo do pensamento, representando, assim, a descoberta que o indivíduo faz de si mesmo, enquanto ser humano com um universo interior complexo cujos sentimentos são, agora, passíveis de representação na arte, mais especificamente na arte literária. Através da noção da lembrança, no fragmento 16, ocorre uma espécie de “fator de aproximação” à pessoa lembrada; aquele que lembra descobre que a necessidade de estar em comunhão com alguém tem de ser satisfeita de qualquer forma possível, ainda que esta forma seja abstrata, o que faz concluir que a necessidade de proximidade é algo deveras imperioso e que precisa ser satisfeita não importando quais os recursos a serem utilizados para tal. Uma reflexão sobre a necessidade da comunhão com aquele a quem se ama leva à descoberta da vida interior, pois “no sentimento individual dos líricos, descobrem-se o dissídio da alma e o sentido da comunhão espiritual.” (SNELL, 2007, p. 79) No fragmento XCIV temos, outra abordagem de lembrança. Consiste, em efeito, na lembrança evocada para recordar os momentos belos e amenizar a tristeza. De fato no referido fragmento temos a abordagem de uma circunstância de despedida. Safo descreve o momento em que uma aluna sua está deixando o seu círculo educativo 5. O 5 O círculo educativo em questão é chamado de tiaso, uma espécie de escola para mulheres que havia em Lesbos. A educação da mulher era uma realidade na Lesbos do século VI a.C. Isso entretanto a desvincula da Grécia, que não se preocupava com a educação da mulher. Fala-se de que havia vários tiasos em eu-lírico, então solicita a que sejam recordados todos os momentos belos dantes vividos, pois serão estes momentos a estratégia para suavizar a tristeza da despedida. Que morta, sim eu estivesse: ela me deixava entre lágrimas./ [...] e lágrimas dizendo: ah, o nosso amargo destino, minha Psapha, eu me vou conta a vontade. [...] esta resposta lhe dei: “Adeus, alegra-te! De mim, guarda a lembrança. Sabes o que nos prendia a ti. [...] se não, quero trazer-te de novo à tua memória [...] as lindas horas em que vivemos [...] de violetas [...] de rosa e aça(flor) [...] nós duas, lado a lado [...] tecendo grinaldas [teu delicioso colo [...] flores [...] e perfumes feitos para rainhas ungias com óleo (...). (FONTES, 2003, p. 393)6 Os versos em questão permitem constatar a dimensão que, na poesia, representou a descoberta do indivíduo. Com efeito, Safo, através de expedientes retóricos como a solicitação à lembrança, coloca argumentos que visam à suavização da tristeza. Tal, no entanto, só é possível na medida em que, na poesia lírica de então, já se aceita a vida interior como busca de elementos para a compreensão da vida externa. É, com efeito, um “mergulho” que o indivíduo faz em si mesmo e, deste processo, busca construir uma compreensão de questões da vida com as quais é difícil de lidar tal como uma despedida. É aqui que se faz sentir forte a questão da subjetividade, então algo relativamente novo no contexto de uma cultura, que desde tempos imemoriais dedicouse ao recontar da tradição. O apelo à subjetividade vem a partir da frase me/mnais ), oi)=sqa ga\r w)/j se pedh/pomen (“guarda a lembrança. Sabes o que nos prendia a ti”)7. Na tradução, o tradutor modificou o texto, transformando o imperativo verbal “lembra-te” (me/mnais ))) para “lembrança”. Entretanto, não foge muito do contexto ao expressar o fato de que a lembrança é necessária a fim de que seja reafirmada a afetividade que o eu-lírico deseja encetar. Lesbos, todos eles desempenhando, no dizer de Werner Jaeger (1995, p. 169) um meio intermédio entre a infância e o matrimônio, onde está pressuposta a função educativa da poesia. 6 Teqna/khn d )a)do/lwj qe/lw: /a)/ me yisdome/na kateli/mpanen. /Po/lla kai\ to/d )e)/eipe[moi] / “w)/im )w)j dei=na pep[o/nq]amen, Ya/pf ), h)= ma/n s )a)e/kois )a)pulimpa/nw.” /Ta\n d )e)gw\ ta\d )a)meibo/man: / xai/rois )e)/rxeo ka)/meqen / me/mnais ), oi)=sqa ga\r w)/j se pedh/pomen: / ai) de\ mh/, a)lla\ s )e)/gw qe/lw / o)/mnaisai [...]. [...] ai( /[....] kai\ ka/l )e)pa/sxomen. /Po/lloij ga\r stefa/noij i)/wn / kai\ bro/dwn kroki/wn t )u)/moi /ka [...] pa\r e)moi pereqh/kao, /kai\ po/llaij u)paqu/midaj / ple/ktaij a)mf )a)pa/lai de/rai/ a)nqe/wn e)/balej pepohme/naij, /kai\ pollwi [...] mu/rwi / brenqei/mi [...] / e)calei/yao kai\ basilhi/wi, / kai\ strw/mnan e)pi\ molqa/kan / a)pa/lan pa [...] ...wn/ e)cihj po/qon [...] ni/dwn. O nome Safo é aportuguesado, já que o nome da escritora em grego é Psapfo. 7 No trabalho da tradução poética, o tradutor quebrou em duas a frase que, no original é uma só. Em uma tradução mais literal, temos: “Lembra-te, e então, ficas sabendo o quanto nos ligamos”. A solicitação à lembrança aprofunda a subjetividade do texto lírico no qual a vo que fala, mergulha em si mesma. O espírito desce em si mesmo, desde a objetividade do objeto, olha para a própria consciência e fornece satisfação à necessidade, em vez de tornar passível de exposição para a realidade da coisa a presença e efetividade da mesma e, com isso, o conteúdo e a atividade da vida interior mesma no âmbito subjetivo na experiência do coração e a reflexão da representação. (HEGEL, 2004, p. 156) A visão de Hegel entremostra, pois, o caráter social da lírica. Em suas considerações, o filósofo entende o eu-lírico como um agente que estabelece no poema a construção de uma nova nuança para a perspectiva de vida, contemplando os momentos passados como referência amainar as adversidades do presente; esta visão, expressada mediante uma voz que apela ao sentimento do leitor, produz um “(...) espaço íntimo de comunicação que (...) produz no receptor a impressão de um contato reservado com o poeta.” (ACHCAR, 1994, p. 47) O “efeito íntimo” proporcionado pelo eu-lírico no processo de comunicação poética é uma característica determinante para Käte Hamburger atribuir a ele um foro de realidade, ainda que não leve em consideração que o que ele expressa possa ter um caráter fictício. Em verdade, a questão primordial é que não importa se a experiência relatada seja fictícia. O que importa, realmente é que o eu-lírico nada tem de ficcional. (...) quando o sujeito vivencial que se manifesta no enunciado da comunicação, i.e. a própria vivência (...), é dirigido intencionalmente sobre um objeto, o sujeito vivencial que se manifesta na enunciação lírica; o eulírico substitui, então, por assim dizer, a intencionalidade pela inclusão do objeto em si, em qualquer intensidade que seja. (...) E já está claro a esta altura que não importa o gênero da “vivência”. (...) A vivência pode ser fictícia no sentido de invencionada, mas o sujeito vivencial e com ele o sujeito de enunciação, o eu-lírico, pode existir somente como um real e nunca fictício. (HAMBURGER, 1975, p. 199) O sujeito existe e é ele que fala do sentimento de estar lado a lado com o ente querido, é ele que fala do proveito que foi a dedicação de tecer grinaldas de flores para colocar no pescoço do ser amado. De fato, a manifestação do sujeito vivencial estabelece a dinâmica de expressão da lírica. Quando se fala da beleza de um poema, geralmente se pensa “na sensação, palavras e versos. Ninguém pensa, entretanto, que a verdadeira força e valor de uma poesia está na situação e em seus motivos.” (STAIGER, 1975, p. 25) Na lírica, o poeta “como que se imobiliza sobre uma ideia, uma emoção, uma sensação, etc., não se preocupando com o encadeamento causal ou cronológico desses estados de alma”. (AGUIAR e SILVA, 1976, p. 232) Com efeito, a lírica é notadamente marcada pelo que Staiger (1975, p. 45) chama de “saltos da imaginação”. O mergulho no passado, tal como ocorre no fragmento XCIV representa justamente esse salto da imaginação que vai procurar justificativas, explicações para as vicissitudes da existência em um contexto além do tempo presente. A perspectiva de futuro é angustiosa, pois não se sabe o que o tempo trará. Sobra, então o passado com os belos momentos, o sorriso do ente amado, sua vez, seu rosto, e então, tem-se a vitamina para o coração enfrentar o presente e, a partir dele, construir o futuro. A lembrança evocada, pois, por si só, já é a vitamina, o alimento do coração, que, com entrar em contato com ela, se conforma com o caráter abstrato da lembrança porque, com efeito, já nos encontramos em um contexto em que a poesia conta com a predisposição para a resignação de apenas contemplar a visão bela dos momentos do passado, pois ela se apresenta como o motor de todo um conjunto de sensações a serem exploradas literariamente e ocasionará o consolo e a reafirmação da beleza de existir e amar. Considerações finais A poesia sáfica aqui analisada, através de seu apelo à lembrança, estabelece um novo parâmetro para a prática poética. A subjetividade, a partir daqui toma um rumo significativo no sentido de que passa a explorar as sensações do indivíduo ocasionadas pela lembrança de pessoas queridas e de momentos bons. O apelo à lembrança representa a tentativa de construir através da vida interior uma nova perspectiva para a vida, procurando descobrir nela o encanto que por vezes parece esconder nas vicissitudes, nas adversidades e na tristeza. Para enfrentar momentos ruins como despedidas ou saudades, o remédio é a lembrança já que é ela quem ajudará a suavizar a tristeza e viver a adversidade na esperança de dias melhores. Os poemas analisados permitem demonstrar que a poesia sáfica permite entrever a noção da experiência de lembrar como uma reafirmação do valor da vida. Com efeito, a significância da vida passa por recordar com amor as experiências passadas e, com elas, refletir sobre a possibilidade de novas e agradáveis experiências vindouras. Mais do que um recurso para consolo, a poesia sáfica, nos fragmentos aqui analisados, representa também uma forma de viver a vida acreditando em tudo de bom que ela pode oferecer. Referências ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar-Comum: Alguns Temas de Horácio e sua Presença em Português. São Paulo: Edusp, 1994. (Ensaios de Cultura; vol. 4). ADRADOS, Francisco Rodríguez. Sociedad, Amor y Poesia en la Grecia Antigua. Madrid: Alianza, 1995. AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1976. BONNARD, André. História da Civilização Grega (Da Ilíada ao Partenon). Tradução de José Saramago. Lisboa: Estúdios Cor, 1966. BORHEIM, Gerd. Os Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Cultrix, 1999. BOWRA, Cecil. Greek Lyric Poetry (From Alcman to Simonides). Oxford. University Press. 1961. ____. Poesía y Canto Primitivo. Traducción de Carlos Agustin. Barcelona: Bosch, s/d. CAMPBELL, David. Geek Lyric. London: Loeb Classical Library, 1990. FONTES, Joaquim Brasil. 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