MULHER
E
EDUCAÇÃO
E
SUA
REPRESENTAÇÃO
NA
OBRA
DE
GRACILIANO RAMOS
Maria Lúcia da Silva Nunes – doutoranda em Educação – UFRN
Maria Arisnete Câmara de Morais – Professora do Centro de Educação/UFRN
Esta pesquisa está vinculada à base de pesquisa “Gênero e Práticas culturais:
abordagens históricas educativas e literárias”, da Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte e ao Projeto integrado: “História dos
impressos e a formação das leitoras” (CNPq).
O objeto de estudo é o papel educacional destinado à mulher, na primeira metade do
século XX, utilizando como fonte imediata os livros de Graciliano Ramos (1892-1953):
Caetés (1933), São Bernardo (1934), Angústia (1936), Vidas secas (1938) e Infância
(1945).
A abordagem utilizada inscreve-se nos fundamentos da História Cultural que
possibilita a ampliação do tipo e do uso de fontes, o surgimento de novas técnicas, novos
temas e novos objetos para se problematizar e investigar o desenvolvimento da história. A
mudança no conceito de fonte histórica possibilita um alargamento no campo de pesquisa
do historiador:
Se antes a documentação era relativa ao evento e seu produtor, o grande
personagem histórico em suas lutas históricas, agora ela é relativa ao
campo econômico-social-mental: ela se torna massiva, serial, revelando o
duradouro, a permanência, as estruturas sociais. Os documentos se
referem à vida cotidiana das massas anônimas, à sua vida produtiva, à
sua vida comercial, ao seu consumo, às suas crenças coletivas, às suas
diversas formas de organização da vida social.[...] Todos os meios são
tentados para se vencer as lacunas e silêncios das fontes, mesmo, e não
sem risco, os considerados antiobjetivos. (Reis, 1994, p.18-9).
Aliando às fontes oficiais outros tipos de fontes como literatura, fotografia,
depoimentos orais, objetos de uso cotidiano entre outros, o trabalho do historiador passa a
ter maior abrangência e significado, uma vez que pode chegar a revelar aspectos de outras
sociedades e de outras épocas, contribuir de forma relevante para desvendar a história, uma
vez que se volta para a vida cotidiana dos agentes sociais, maioria que foi tratada sempre
como minoria por não deter o poder econômico: o trabalhador, o negro, a criança, a mulher.
1
Entende-se que a importância desse trabalho localiza-se numa contribuição à
história da educação brasileira como também à história da educação feminina, campo ainda
recente e com vastas lacunas a serem preenchidas.
A História Cultural possibilita a utilização da literatura como fonte para acrescentar
informações, revelar fatos ainda não ditos, expor o que ainda não foi mostrado ou foi
omitido, intencionalmente ou não, pelas fontes oficiais e tradicionais. Propõe-se neste
trabalho um estudo histórico dos textos literários, por acreditar-se como Bakhtin (1988) que
existe uma zona de contato entre o romance e a vida corrente e a ideologia. Tal qual o
homem e sua realidade, o romance é um gênero inacabado, em construção, com
possibilidade de representá-los, pois na evolução do romance constata-se que as fronteiras
entre o artístico e o extraliterário, entre literatura e não literatura, etc., não são mais
estabelecidas pelos deuses (Id. ibid., p.422).
Porém, há especificidades da história e da literatura: enquanto a primeira preocupase em manter-se fiel à realidade, exigindo para si o caráter de verdade, a segunda trabalha
com a imaginação, a criatividade, a ficção. A realidade, para a literatura, pode ser
simplesmente o ponto de partida na criação artística. Por outro lado, tanto o historiador
quanto o ficcionista, indivíduos situados em um contexto do qual não saem indiferentes,
utilizam alguns procedimentos semelhantes, além de desempenharem a função de narrador,
mesmo que em graus diferentes. Morais (1996, p.15) afirma: Ainda que se considere o
estatuto próprio do texto literário, ele é uma produção social válida porque revela, de uma
outra forma, o que a análise social revela através de outro processo de investigação.
Tratando do modo como historiador e ficcionista trabalham com a realidade,
Miranda (1992, p.145-6) destaca:
A idéia que se tem do real não é a mesma para o historiador e para o
ficcionista ou memorialista, pois enquanto um trabalha para a produção
de um sentido único, em cuja esfera o leitor deverá permanecer, o outro
trabalha baralhando pistas e fazendo de seu texto a base de uma leitura
infinitamente múltipla e multiplicada.
Verifica-se que a obra graciliânica, produzida na primeira metade do século XX,
revela um grande potencial como documento, não apenas por referir-se a uma determinada
época, ou a acontecimentos fundamentais na história brasileira, mas por traçar o retrato de
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uma sociedade representada por homens, mulheres e crianças, brancos e negros, ricos e
pobres, letrados e iletrados.
No prosseguimento desse trabalho, à pesquisa histórica da literatura acrescentar-se-á
um levantamento histórico da bibliografia voltada para a história da educação no Brasil,
recorrendo-se a livros, jornais, revistas, arquivos públicos e particulares, documentos
oficiais como legislação, relatórios, regulamentos e projetos do sistema educacional
brasileiro, para se estabelecer comparações, inter-relações e complementações. A princípio,
as categorias escolhidas para análise são as de gênero, classe e escolaridade, com o intuito
de fazer cruzamento entre elas, verificando como uma interfere e/ou determina a outra, e
vice-versa. Sabe-se que ao longo da pesquisa essas categorias podem ser confirmadas,
alteradas, negadas ou permutadas por outras que aflorem com mais destaque na fonte
escolhida.
Apresentando as fontes: o autor e sua obra
Graciliano Ramos, escritor alagoano nascido em 27 de outubro de 1892 em
Quebrângulo (AL), tornou-se conhecido no meio literário de um modo bem peculiar: ao ser
prefeito de Palmeira dos Índios, cumprindo obrigações normais de prestar contas ao
governador do Estado, escreveu relatórios (1929/1930) dando conhecimento dos trabalhos
realizados com a verba disponível. Numa linguagem clara, concisa e nada oficiosa, os
relatórios mais pareciam crônicas, onde não faltava um toque de humor e ironia. A
publicação em jornais alagoanos e com repercussão em outras partes do país, aguçou a
curiosidade do poeta Augusto Frederico Schmidt, que começou a desconfiar de que aquele
prefeito de uma pacata cidadezinha do interior guardava um romance na gaveta. De fato, há
cinco anos Graciliano vinha escrevendo seu primeiro romance, Caetés. Além de prefeito,
Graciliano Ramos foi presidente da Junta Escolar de Palmeira dos Índios, onde fundou uma
escola, e, diretor da Instrução Pública de Alagoas em Maceió. De sua primeira ida ao Rio
de Janeiro destacam-se algumas passagens por jornais como: A TARDE e CORREIO DA
MANHÃ, onde desenvolvia crônicas que já revelavam uma visão crítica apurada e um bom
nível de informação para um jovem autodidata vindo do interior. Em 1936 foi preso,
acusado, falsamente, de comunista, uma vez que só ingressaria no Partido Comunista do
Brasil em 1945. Depois disso passa a morar no Rio de Janeiro. Decepcionado com sua terra
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natal, nunca mais retorna a mesma, embora em suas conversas com os filhos, deixe claro
que sente saudades de lá.
Com o intuito de analisar o papel educacional da mulher na primeira metade do
século XX, optou-se por livros desse escritor, nos quais parecem estar mais delineados o
papel da mulher na sociedade, bem como os elementos que podem contribuir para a
construção da história da educação brasileira.
Nos romances de Graciliano Ramos escolhidos como fonte primeira desta
pesquisa, pode-se identificar perfis femininos que constituem uma representação das
mulheres de verdade, das primeiras décadas do século XX, como também qual a ótica
masculina sobre essas mulheres, cultas ou analfabetas, casadas ou solteiras, leitoras
competentes ou não.
Nesse momento, pretende-se apresentar como é representada a questão mulher e
educação, mais especificamente como é vista a mulher escolarizada, no livro São Bernardo.
São Bernardo, um dos romances mais enaltecidos pela crítica, foi publicado em
1934. A personagem central é o próprio narrador que conta sua trajetória difícil na
conquista de um espaço na sociedade. Nessa árdua caminhada, Paulo Honório absorve toda
a agressividade inerente ao sistema competitivo capitalista. Sua vida é dirigida pela
necessidade de posse, até encontrar Madalena, professora idealista, que rompe suas noções
de propriedade e provoca reviravoltas nas posições materialistas e violentas do marido. A
superioridade afetiva e intelectual de Madalena não é páreo para o egoísmo, a desconfiança
e a brutalidade de Paulo Honório, e ela termina cometendo o suicídio.
A mulher e a educação no início do século XX
Entre o final do século XIX até a metade do século XX, o Brasil é marcado por um
fluxo intenso de mudanças, alcançando todos os níveis da experiência social. No rol dessas
transformações, destacam-se as ocorridas no comportamento feminino, que vão incomodar,
surpreender os desavisados e provocar debates nas alas mais progressistas da sociedade.
Com a divulgação dos ideais positivistas no Brasil, a partir das últimas décadas do
século XIX, verifica-se uma preocupação com a educação feminina, uma vez que esta
teoria enfatizava a superioridade moral e afetiva da mulher, como um elemento de poder
regenerador do mundo. Embora o pensamento de Augusto Comte não pretenda alterar a
4
definição dos papéis feminino e masculino, uma vez que, para ele, a mulher não tem
aptidão para o exercício do governo, por seu estado contínuo de infantilidade (Perrot, 1981,
p.178), o que vai abrir um certo espaço para a mulher é a importância que essa teoria atribui
à educação como direito de todos e à racionalidade como fator preponderante para que cada
um desempenhe bem o papel que lhe cabe: o homem, o governo público; a mulher, o
governo privado, sob controle.
Nesse mesmo momento, algumas mudanças vinham se processando no imaginário
da mulher: os papéis a ela atribuídos já não lhe satisfaziam mais, a falta de direitos, a luta
por espaço, a necessidade de ser reconhecida como sujeito da história, a posição de
subalternidade, inclusive na relação marital, e a negação de sua cidadania eram algumas
questões que habitavam a cabeça feminina Desde
o
princípio,
constata-se
que
as
reivindicações femininas passam pelo direito à educação, seja quando luta para ocupar o
espaço social ou político, seja para exercer melhor o papel de mãe ou até em prol do
engrandecimento espiritual.
A luta pelo voto, empunhada pela advogada Bertha Lutz e a professora Leolinda
Daltro, culminando na fundação do Partido Republicano Feminino em 1910, traz em seu
cerne o direito à educação para as mulheres, uma vez que a emancipação feminina só
aconteceria se fossem dadas condições de amadurecimento, de iniciativa, de capacidade
para o trabalho, de desenvolvimento intelectual. Bertha Lutz é figura fundamental nesse
cenário, porque conhecedora dos discursos vigentes sobre as diferenças dos papéis
femininos e masculino,opta por um discurso moderado como tática1, utilizando como
argumento, muitas vezes, elementos do próprio texto oficial, sem , no entanto, deixar de
ressaltar a importância da emancipação da mulher, o exercício do trabalho como elemento
decisivo no seu amadurecimento,destacando a educação como meio de alcançar esse
objetivo.
Nesse momento, a educação de modo geral, era vista como o elemento fundamental
para o progresso humano, em conseqüência disso, saber ler e escrever eram marcas de
instrução e agentes da socialização.
1
No dizer de Certeau (1994, p.104), a tática constitui-se de gestos hábeis do fraco, na ordem estabelecida
pelo forte, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores, mobilidade nas manobras, operações
polimórficas, achados alegres, poéticos e bélicos.
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Nas primeiras décadas do século XX, embora com alterações sutis, a educação
continua sendo oferecida de forma diferente para os dois sexos, não só pela ascendência
que a Igreja Católica, com sua moral rígida, ainda mantinha nessa área, como também pelo
próprio discurso científico que assinalava aptidões diferenciadas a homens e mulheres.
Sendo assim, os homens eram encaminhados ao ensino secundário, que propiciava acesso
aos cursos superiores; as mulheres iam para as escolas normais buscando uma
profissionalização ou se preparando para melhor executar suas tarefas dentro do lar.
Em sua origem a escola normal não estava voltada apenas à profissionalização, pois
para ela se dirigiam tanto as moças que estavam em busca de uma profissão, quanto aquelas
cujo desejo maior era o casamento. Enquanto freqüentada pela classe média, a escola
normal gozou de prestígio considerável. À medida que foi se revelando como uma escola
feminina, propiciando à mulher a oportunidade de ocupar um lugar na sociedade, exercendo
uma profissão, sendo remunerada por isso, ocupando um cargo que antes fora privilégio
masculino, começa a despertar sentimentos nem sempre positivos. A normalista torna-se
objeto de discriminação e preconceito por parte dos homens que não viam com bons olhos
a mulher ocupando um posto no mercado de trabalho, uma vez que isto implicava uma
alteração na hierarquia familiar tradicional, abalando a posição do provedor da família.
No comportamento da época, percebem-se duas posições antagônicas em relação a
essa trajetória da mulher em busca da escolaridade. Uma que via a mulher escolarizada com
respeito e admiração, por finalmente ocupar de forma mais intensa um espaço antes
predominantemente masculino. O fato de saber ler e escrever proporcionava à mulher uma
posição de destaque até entre os homens. A segunda posição considerava a mulher
escolarizada um perigo para a família, para os homens e, conseqüentemente, para a
sociedade. A mulher instruída
representava um agente de alterações no conjunto de
comportamentos definidos como específicos a cada gênero.
A literatura da época reflete essas duas situações. Graciliano Ramos, cidadão de seu
tempo, consciente dos valores que circulavam no período, retrata muito bem o contexto e
coloca na boca de suas personagens os pensamentos e as falas das pessoas de carne e osso.
Pois conforme o escritor gostava de afirmar: É preciso ser coerente com o meio em que se
vive. (Ramos, 1984, p. 77 e 213).
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A mulher e a educação no romance São Bernardo de Graciliano Ramos
Paulo Honório, protagonista de São Bernardo, capitalista ferrenho que procura obter
vantagem em tudo, tem opiniões contraditórias a respeito da escolarização da mulher. Há
momentos em que enaltece as qualidades de Madalena por ser uma mulher instruída, vinda
da escola normal, diferente das mulheres sem instrução com as quais estava acostumado a
lidar, sem nenhum cuidado.
E embuchei, afobado. Até então os meus sentimentos tinham sido simples,
rudimentares, não havia razão para ocultá-los a criaturas como a
Germana e a Rosa. A essas azunia-se a cantada sem rodeios, e elas não se
admiravam, mas uma senhora que vem da escola normal é diferente.
(Ramos, 1992, p.81).
Em outro momento, a validade dos conhecimentos de Madalena, adquiridos na
escola, são questionados, por não tratarem de coisas simples e práticas;
- [...] Já viu os marrecos de Pequim, d. Madalena?
- Ainda não.
- Está aí! Resmunguei. Estudam a vida inteira nem sei para quê. (Id., ibid.,
p. 82).
As qualidades intelectuais de Madalena são vistas pelo pretendente como um
perigo, exemplo disso é quando fica sabendo que a mesma escreve artigos para um jornal:
- Ah! Faz artigos!
- Sim, muito instruída. Que negócio tem o senhor com ela?
- Eu sei lá! Tinha um projeto, mas a colaboração no Cruzeiro me esfriou.
Julguei que fosse uma criatura sensata. (Id., ibid., p. 85).
Paulo Honório acredita que o casamento fará com que Madalena esqueça as idéias
de estudo, esqueça sua profissão. Ao perceber que isto não acontece, fica desnorteado e os
problemas começam a aparecer. No início ele acha até interessante a preocupação da
esposa pelas coisas do sítio, contanto que não se envolvesse muito.
Imaginei-a uma boneca de escola normal. Engano.
[...] meteu-se no escritório, folheou os livros, examinou documentos, [...]
largou-se para o campo [...].
- Ora muito bem. Isto é mulher.( Id., ibid., 96).
O entusiasmo inicial pelo interesse de Madalena por seus negócios, começa a esfriar
quando percebe que ela tinha idéias socialistas e podia atrapalhar os seus projetos
capitalistas.
Mas aconselhei-a a não expor-se:
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_ Esses caboclos são uns brutos. Quer trabalhar? Combino. Trabalhe
com Maria das Dores. A gente da lavoura só comigo.
_ A ocupação de Maria das Dores não me agrada. E eu não vim aqui para
dormir.
_ São entusiasmos do princípio. (Id., ibid., 95-6).
Na continuação dessa conversa, Madalena fala das necessidades dos empregados, e
consegue do marido algum benefício para um dos trabalhadores que estava passando
necessidade, não sem que ele diga que é dinheiro perdido.
Pela vontade de Paulo Honório, Madalena iria cuidar da casa. Ao não aceitar o
conselho do marido, por não ter afinidades com os trabalhos domésticos e preferir andar
pela fazenda, conversando com as pessoas, identificando os problemas, Madalena rompe
com os padrões da época que aconselhavam a mulher a não se expor. Pinheiro (1997),
constata essa quebra no modelo de comportamento determinado para a mulher, ao analisar
o comportamento de Maria Carolina Wanderley Caldas, conhecida por Dona Sinhazinha,
da cidade de Assu –RN (1876-1954):
A cultura do tempo de D. Sinhazinha valorizava a mulher casada, voltada
para as atividades do lar, com atitude e comportamentos discretos e que
usasse as palavras de forma reservada, apenas falando o suficiente para
comunicar-se. D. Sinhazinha era celibatária, falava e escrevia bastante,
tinha seus escritos publicados nos jornais e revistas e circulava entre os
intelectuais. (p. 31).
Solteiras ou casadas, fictícias ou reais, são exemplos de mulheres rompendo com os
papéis determinados para elas, no começo do século XX.
Madalena não tem o perfil da dona de casa, que satisfazia os padrões daquela época.
Ela quer mais do que administrar uma casa; quer expor-se, ser útil publicamente, utilizar
seus conhecimentos em benefício das pessoas. Toma parte nas conversas entre homens,
porque é capaz de falar em pé de igualdade ou de superioridade. Preocupa-se com a
escola que existe na fazenda; critica a metodologia utilizada pelo professor, sugere a
aquisição de material didático.
A visão que os dois personagens têm da escola não combina: enquanto Madalena
pensava na escola como um lugar de aprendizagem, Paulo Honório calculava que
vantagens poderia tirar com a reforma da escola, diante do governador.
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A inteligência de Madalena, se por um lado desperta admiração das pessoas de fora,
por outro causa desconfiança no marido. As recordações da mulher do tempo em que
freqüentara a escola normal despertavam-lhe ciúmes. Além disso, havia os comentários
maliciosos sobre o comportamento das normalistas, comportamentos nem sempre
aprovados.
Madalena comentava fatos da escola normal. [...] A escola normal!. Na
opinião de Silveira, as normalistas pintam o bode, e o Silveira conhece
instrução pública nas pontas dos dedos, até compõe regulamentos. As
moças aprendem muito na escola normal.
Não gosto de mulheres sabidas.Chamam-se intelectuais e são horríveis.
Tenho visto algumas que recitam versos no teatro, fazem conferências e
conduzem o marido ou coisa que o valha. Falam bonito no palco, mas
intimamente, com as cortinas cerradas, dizem:
_ Me auxilia meu bem. (Id., ibid., p. 133-4).
Mulher de escola normal! O Silveira me tinha prevenido,
indiretamente.Agora era agüentar as conseqüências da topada, para não
ser besta. (Id., ibid., p. 137).
O perfil intelectual de Madalena: ler, inclusive em outras línguas, escrever para
jornais, participar das conversas sobre política, ter idéias socialistas, não demonstrar
interesse por religião nem pelas atividades domésticas, causavam em Paulo Honório
desconfiança e complexo de inferioridade. As diferenças intelectuais cavavam um abismo
infinito entre eles e o casamento ficava impossível. Madalena não suporta as acusações do
marido e suicida-se, não sem antes escrever uma carta de despedida, que ele, por não
compreender o conteúdo da mesma, pensa que era para um amante. Esse foi o motivo da
maior e última briga que eles tiveram, acompanhado de um dos momentos mais pungentes
do romance, onde conversam com uma intimidade nunca havida antes. E, mesmo Madalena
fazendo recomendações, dando conselhos, sugerindo mais humanidade dele no tratamento
com as pessoas, Paulo Honório não conseguiu perceber que era uma despedida.
Paulo Honório teme pela sua própria honra, diante do comportamento da Madalena,
considerado impróprio para uma mulher daquela época, casada. Madalena rompe com o
modelo de mulher ideal. O grau de escolarização diferente dos dois impossibilita a
comunicação.
No presente trabalho privilegia-se a figura de uma mulher, protagonista de um
romance graciliânico, que mais se aproxima das mulheres de verdade que constituíam,
junto com homens e crianças, a sociedade brasileira da primeira metade do século XX.
9
Ressalta-se, todavia, que, ao lado desta, existem outras figurantes no romance, retrato de
figurantes da vida real: velhas, solteironas, prostitutas, benzedeiras, lavadeiras, parteiras,
entre tantas colocadas à margem da sociedade,
Como esta pesquisa está apenas iniciando, as conclusões ainda são escassas: as
perguntas é que são muitas. E, para respondê-las é que se pretende dar continuidade ao
trabalho, levantando hipóteses, testando-as, confirmando-as ou não.
Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética – a teoria do romance. Trad.
Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: UNESP, HUCITEC, 1988.
MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992.
MORAIS, Maria Arisnete Câmara. Leituras femininas no século XIX (1850-1900).
Campinas: Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Tese
(Doutorado em Educação), 1996.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Trad.
Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
PINHEIRO, Rosanália de Sá Leitão. Sinhazinha Wanderley: o cotidiano de Assu em
prosa e verso (1876-1954). Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tese
(Doutorado em Educação), 1997.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 58 ed. Rio de janeiro: Record, 1992.
________. Cartas. Rio de Janeiro: Record, 1984.
REIS, José Carlos. Os Annales: a renovação teórico-metodológica e “utópica” da história
pela reconstrução do tempo histórico. In: SAVIANI, Dermeval et al. História e história da
educação. 2 ed. Campinas, SP: Autores Associados HISTEDBR, 2000.
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Mulher e educação e sua representação na obra de Graciliano