AS T E I A S QUE AS M U L H E R E S T E C E M Teia, tela, tecido, texto: eis-nos confrontados com um dos arquétipos mais universais da c o n d i ç ã o humana. A sua proliferação metafórica e a sua irradiação semântica converteram-na num símbolo recorrente da vida dos seres humanos, o que se documenta na sabedoria das nações das mais variadas culturas, se configura em mitologias de todos os horizontes e em literaturas de todas as idades, da mitologia japonesa à mexicana, dos Upanishadas ao folclore escandinavo, de Homero e de Isaías a P. V a i é r y e a Kafka. Imagem primordial, a teia induz primariamente a ideia de m e d i a ç ã o , os laços e os n ó s , a e m e r g ê n c i a de um lugar que é dinamicamente perspectivado como exercício de ligações estabilizadas, de encontros e reencontros que permanecem, de envios e reenvios que se reproduzem, uma ligação que assegura, ao mesmo tempo que segura, numa ambiguidade essencial de acolhimento e domínio; alude, em segundo lugar, a uma continuidade toda feita de descontinuidades, em que qualquer interrupção constitui uma ameaça de desintegração, mas que é simultaneamente garantia de que toda a linha de chegada, tal como é resultado de uma actividade sempre aberta à continuação, assim se oferece como promessa de prolongamento. A obra que temos em apreço, sugestivamente condensada num título que não se poderia querer mais apropriado, As teias que as mulheres tecem, apresenta-se como sustentada pela c o n v i c ç ã o de que a metáfora da rede ou da teia é susceptível de constituir «um modelo possível para compreender a mundividência feminina»; interrogo-me sem nenhuma inocência: modelo de c o m p r e e n s ã o pela ambiguidade p a r a d i g m á t i c a ou pela continuidade fecunda? V a i no sentido da proposta que sustenta o livro o facto d o c u m e n t á v e l em todas as culturas de que no momento de encontrar uma r e p r e s e n t a ç ã o para a função arquetípica do tecer, dos seus instrumentos e das suas o p e r a ç õ e s , é a figura feminina que privilegiadamente se impõe, quer em versão simplesmente humana quer como entidade divina. Mas é outro o desígnio desta obra: ela pretende, nas palavras mesmas da introdução «confrontar uma série de actividades, p r o d u ç õ e s , empreendimentos e comportamentos, nos quais a mulher tem (ou teve) um papel de relevo, todos eles susceptíveis de serem lidos a partir dessa chave». E é admirável como um trabalho que resulta da j u n ç ã o sem ajustamento prévio de contributos tão diversificados pelo ângulo de abordagem, pelos conceitos o p e r a t ó r i o s postos em exercício, pela especialização disciplinar dos intervenientes e pela p r ó p r i a p o s i ç ã o quanto à hipótese regente da investigação, Philosophica, 22, Lisboa, 2003, pp. 187-189 188 Leituras registe uma tão assinalável consistência temática e testemunhe uma como que harmonia pré-estabelecida, c o n v e r g ê n c i a afinal simplesmente fundada no rigor de tratamento, no patente investimento pessoal no desafio, um entusiasmo e uma alegria visíveis em confrontar-se c o m a questão, um "enlear-se" como se esperaria a p r o p ó s i t o do tema. E este, aliás, o operador decisivo da coerência encontrada: A pluralidade dos pontos de vista e dos campos de investigação está em perfeita c o r r e s p o n d ê n c i a com o isomorfismo semântico do s í m b o l o da teia, tela, tecido, texto, e a e x p o s i ç ã o reitera com fidelidade o j o g o das continuidades¬ -descontinuidades que percorre a imagem, convertida em aparelho hermenêutico. O conjunto dos onze textos publicados desenha um roteiro (imagem muito adequada, uma vez que a técnica da tecelagem se assimila a uma viagem de p e r p é t u o s corsi e ricorsi), roteiro menos linear e mais em forma de estrela, cujos raios reformulo livremente: 1) uma incursão na narrativa literária: a teia de P e n é l o p e - a mitologia nórdica - casos de mulheres na Bíblia; 2) um apontar à actualidade: histórias de mulheres - globalização e trabalho feminino; 3) um traçado hermenêutico: as mulheres na transmissão da fé - o estatuto da razão e a q u e s t ã o feminista - Espinosa e os afectos; 4) uma via experiencial: Vieira da Silva e Sophia de M e l l o Breyner em d i á l o g o sobre a teia do mundo - os fios da m e m ó r i a - a teia na primeira pessoa. Importa agora indicar sumariamente os fios da meada, os contributos nucleares de cada ensaio para a economia do conjunto e entrever, de forma expressa ou simplesmente alusiva, como convocam o essencial. 1) A narrativa: J o s é Pedro Serra, num texto autenticamente primordial (termo cuja etimologia pertence às artes da tecelagem) em que analisa o episódio da Odisseia em torno do véu de P e n é l o p e , reconstituindo o horizonte dos possíveis semânticos da figura da teia, do seu carácter de ambiguidade e de fusão de opostos, para concluir que «duplas e insondáveis, de diferentes malhas são, pois, as teias femininas» (p. 25); Carlos J o ã o Correia restitui-nos "pacientemente" a genealogia mítica que nos permita compreender melhor n ã o só o filme de W i n Wenders "O C é u sobre B e r l i m ", mas sobretudo que é da contextura do tempo e do destino que o mito nos fala; Lúcia Lepecki, com um cuidado filológico extremo, aborda "Amores, p a i x õ e s e enredos" envolvendo figuras femininas da Bíblia, procurando surpreender, e deixando-se surpreender, nos múltiplos sedimentos da narrativa bíblica, o j o g o especular da c o n d i ç ã o humana. 2) A actualidade: Maria do Loreto Paiva Couceiro atende aos processos de autoformação das mulheres, da perspectiva das C i ê n c i a s da E d u c a ç ã o que é a sua, autoformação que é história assumida de si, teia de vida entretecida na interfeminidade; Manuela Silva analisa crítica e prospectivamente a presença da mulher no processo de globalização em curso, insistindo na teia de uma solidariedade eticamente sustentada. 3) As hermenêuticas: Teresa Martinho Toldy procura caracterizar a nossa linguagem acerca de Deus quando se toma em c o n s i d e r a ç ã o a m e d i a ç ã o feminina e suas i m p l i c a ç õ e s t e o l ó g i c a s ; Fernanda Henriques, reclamando-se combativamente de feminista, procede a uma reflexão em torno do exercício da racionalidade, capaz de integrar o potencial significativo da metáfora; Maria Luísa Ribeiro Ferreira, na sua reconhecida p a i x ã o por Espinosa, procura, através da teia como modelo de inquirição e de e x p o s i ç ã o filosóficas, bem como da r e c o n c i l i a ç ã o entre a 189 Leituras racionalidade e a afectividade, aproximar o autor da Ética de uma reflexão que privilegia o cuidar como relação ética por excelência. 4) As experiências: o diálogo entre Vieira da Silva e Sophia, transcrito em registo de uma profunda consonância como «um olhar que se converte em palavra, um gesto que se faz texto» (p. 66), da responsabilidade de Isabel Matos Dias e de Inês Barahona, que exprimem, no rigor do dar a ver em excelentes reproduções e do dizer «a viagem, a longa acumulação, a m e m ó r i a acumulada» (p. 68) das artistas, os elementos mais essenciais de uma vivência estética do mundo; Maria Luísa Beltrão convida-nos a entrar na esfera do privado de uma vida de família narrada ao fio de sete gerações e em torno das suas figuras femininas, de forma a destacar a interacção integrativa dos tempos e dos modos masculino e feminino; Isabel Marnoto remata esta constelação irradiante de estudos na mais funda coerência com o programa desenrolado; tendo¬ -se este iniciado com o regresso de Ulisses a Itaca, conclui-se com o convite que j á fora a injunção maior do primeiro romantismo alemão: "volver a casa" e, na intimidade de uma presença inconsútil, reaprender os caminhos do mundo. Assim se cumpre em livro a circularidade estruturante do símbolo da teia, mas, conotando o feminino, esta circularidade não pode deixar de ser, em manifesta contradição, uma circularidade aberta. Reencontradas a ambiguidade e a descontinuidade contínua intrínsecas ao s í m b o l o da teia e à sua exploração nesta obra, atendidos os itinerários nesta propostos, apercebemo-nos de que aquilo que nela sempre esteve em causa, de forma explicitada ou tão-só pressentida, foi a questão derradeira da identidade pessoal, como processo, como história, na simbólica universal do devir como teia, uma q u e s t ã o de vida e de morte. A q u i , a identidade, ao ser conjugada no feminino, atesta-se como só sendo concebível e realizável enquanto identificação de uma identidade e de uma diferença. Ponto final. Manuel J. do Carmo Ferreira