RESENHA Fisolofia, ciências e transgenia Maurício de Carvalho Ramos Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. E-mail: [email protected]. Palavras-chave: Trângenico, valores e autonomia científica RAMOS, Maurício de Carvalho LACEY, Hugh. A controvérsia sobre os transgênicos: questões éticas e científicas. Tradução de Pablo Mariconda. Aparecida(SP): Idéias e Letras, 2006, p. 239. Em A controvérsia sobre os transgênicos: questões éticas e científicas, Hugh Lacey oferece uma profunda e detalhada análise de uma polêmica que percorre o mundo e torna-se cada vez mais importante no Brasil: o desenvolvimento crescente de plantações transgênicas. O tema é abordado de modo consistente com uma idéia central da filosofia da ciência, de Lacey, a saber, que o entendimento científico adequado depende da elaboração de um conhecimento completo (que não deve ser confundido com conhecimento absoluto) do objeto. Isso significa que para conhecer apropriadamente o que é uma semente transgênica não basta reduzi-la às suas propriedades genéticas e econômicas, mas deve-se recorrer a uma pluralidade de estratégias e de teorias que cubra a prodigiosa diversidade de interesses científicos e culturais que a agricultura representa. Assim, mais do que um estudo de caso, Lacey oferecenos a solução (ou um razoável avanço em sua direção) de uma controvérsia ético-científica por meio de uma argumentação que articula aspectos atuais da filosofia da ciência, da ética, da política, da economia e da sociologia. Mas se elogiar a diversidade costuma cair bem, é comum recusá-la quando se apresenta a possibilidade de perdas em importantes conquistas cognitivas da ciência. Nada disso acontece na perspectiva de Lacey: sua defesa da pesquisa conduzida sob um pluralismo de estratégias – no caso em questão, das estratégias materialista e ecológica – não conduz a um relativismo fácil nem é feita graças a um tratamento superficial dos vários domínios implicados. Trata-se da construção de um modelo que interpreta os impactos de grande alcance da biotecnologia agrícola sobre certos elementos críticos do núcleo neoliberal e tecnocientífico que moldam a cultura contemporânea. Um estudo sobre as relações entre ética e ciência aplicável a 512 Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.16, jul./dez., 2006, p. 511-517. Fisolofia, ciências e transgenia problemas sociais concretos pode começar por uma reflexão simples e direta: ‘A ciência parece ser uma coisa boa, mas boa para quem?’; pensando na mesma direção, agora sobre os transgênicos, podemos indagar: ‘eles também parecem ser coisas boas, pois exibem com eficiência propriedades biotecnológicas utilíssimas. Mas tais propriedades são boas e úteis para quem?’. A mera formulação desses pensamentos já seria considerada como um inquestionável desvio do caminho cientificamente válido, eticamente correto e economicamente responsável. Mas a notória falta de consenso em torRESENHA no dos transgênicos revela que as posições consideradas como as melhores – todas alinhadas com o lado favorável – ainda precisam de muitos esclarecimentos. Lacey mostra-nos que um exame racional e imparcial da questão revela o quanto temos a apreender sobre como conduzir, se for o caso, a pesquisa e a implementação intensiva de plantas transgênicas. Nesse sentido, as pessoas capazes de promover transformações profundas em todos os níveis dos organismos vivos devem refletir sobre a adequação dos valores que informam suas práticas. Em A controvérsia sobre os transgênicos, encontramos, a meu ver, um ponto de partida consistente e correto para tal reflexão. A controvérsia sobre os transgênicos pode ser resumida como o enfrentamento entre a “posição-P”, isto é, as plantas transgênicas devem ser desenvolvidas e utilizadas intensiva e rapidamente na agricultura, e a “posição-C”, para a qual deve-se realizar mais pesquisa para manter o desenvolvimento com tais características e promover o rápido desenvolvimento de agriculturas alternativas como a agroecologia. Lacey identifica quatro pares principais de oposição no interior da controvérsia, P1/C1 – P4/C4, e organiza o livro em torno de cada um desses pares. P1/C1 revela a tensão relativa à cientificidade (ou não) da estratégia materialista quando aplicada à ciência da agronomia; em P2/C2 confrontam-se interpretações opostas sobre os benefícios do uso de transgênicos; P3/C3 analisa os riscos do cultivo e do uso das plantas transgênicas e P4/C4 Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.16, jul./dez., 2006, p. 511-517. 513 RAMOS, Maurício de Carvalho são posições opostas quanto à existência de agriculturas alternativas à transgênica. Lacey discute minuciosamente o que está por trás de cada uma dessas oposições, considerando as tensões envolvidas na adoção de tipos opostos de agricultura, de estratégia de pesquisa científica e de perspectivas de valores. Com isso, produz-se um argumento complexo que necessita de um estudo atento para ser compreendido, sobretudo por remeter repetidamente o leitor a pontos já desenvolvidos ou que serão mais à frente tratados no texto. O argumento de Lacey é constituído primeiramente pela defesa da racionalidade e da legitimidade da condução da pesquisa científica por meio de uma pluralidade de estratégias. Tais estratégias são definidas no interior de um modelo que descreve a atividade científica em três momentos: a adoção de uma estratégia, a aceitação de teorias e a aplicação tecnológica do conhecimento científico. No primeiro momento, a estratégia restringe os tipos de teorias relevantes e seleciona os dados empíricos com os quais tais teorias irão operar. Nesse momento são definidas as possibilidades que a investigação explorará, quais serão as questões e as explicações relevantes, quais são os fenômenos que devemos observar, medir e experimentar ou quais são os procedimentos a empregar. É, portanto, a estratégia que define os contornos e as metas das pesquisas que serão empreendidas, o que é feito pela aplicação de valores não-cognitivos – aqueles pertencentes aos domínios ético, social, econômico, político, entre outros. O segundo momento, o da aceitação de teorias, pode ser feito unicamente com base em “dados empíricos e em critérios cognitivos apropriados – de modo que os valores e os interesses políticos, morais e sociais (que são distintos dos cognitivos), bem como o caráter e o valor de suas aplicações, não desempenhem nenhum papel apropriado na avaliação”. Se for assim conduzida, a atividade científica pode manifestar o valor da imparcialidade. Aqui também pode ser garantido o valor da autonomia, representado pela capacidade das instituições científicas legítimas escolher os métodos e as técnicas adequados para a realiza- 514 Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.16, jul./dez., 2006, p. 511-517. Fisolofia, ciências e transgenia ção de suas escolhas teóricas. No terceiro momento, são desenvolvidos, com base nas teorias imparcialmente aceitas, técnicas e procedimentos tecnológicos que aplicam o conhecimento obtido segundo a estratégia adotada. Neste momento é que a ciência pode manifestar o valor da neutralidade, caso seus produtos tecnológicos tornem-se benefícios reais para quaisquer perspectivas de valor político, econômico ou social. Assim, “a imparcialidade, a autonomia e a neutralidade são valores constitutivos das práticas em instituições científicas”, valoresRESENHA que são amplamente compartilhados. A partir desse modelo, Lacey defende a pluralidade de estratégias na pesquisa científica (tanto nas ciências naturais como nas humanas) mostrando que é somente em seu interior que os três valores acima identificados podem ser mantidos ou crescentemente manifestados pela ciência. Este ponto é fundamental para a solução da controvérsia sobre os transgênicos, pois o autor mostra que a adoção exclusiva da estratégia materialista – a que é regulada hegemonicamente pelo valor de controle do objeto natural e que informa a produção dos transgênicos – rompe com os valores da atividade científica que podem ser compartilhados para além das diferenças internas em cada um dos momentos da pesquisa. Com isso, Lacey pode, então, reivindicar com sólidos fundamentos um maior desenvolvimento de pesquisas e de políticas agrícolas baseadas em estratégias agroecológicas (opostas à estratégia materialista), mesmo que isso implique redução dos recursos financeiros, técnicos, institucionais e intelectuais aplicados na pesquisa com os transgênicos. Além do argumento anterior, fundamentado principalmente na filosofia da ciência, Lacey também desenvolve “uma análise da natureza dos valores e dos juízos de valor, que enfatiza que a adesão a valores tem pressupostos factuais que freqüentemente estão sujeitas à investigação científica”. Em linhas gerais, tal análise investiga a distância maior ou menor que pode existir entre a adoção discursiva de valores e sua incorporação em vidas concretas, cons- Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.16, jul./dez., 2006, p. 511-517. 515 RAMOS, Maurício de Carvalho tituídas por interações amplas entre os humanos e dos humanos com outros seres, naturais ou culturais. Tal análise articula-se ao problema dos transgênicos tomando-o como uma típica situação na qual se pode reduzir a distância entre os valores adotados e os valores manifestos através da crítica de visões morais hegemônicas que inibem qualquer aspiração de transformação social. É uma inibição dessa natureza, aliada a uma falsa idéia da relação entre a ciência e os valores, que tem mantido o lado pró-transgênicos mais vigorosamente aceito e valorizado. Vejamos um rápido exemplo mais concreto, presente no texto, do que foi até aqui exposto. A legitimidade do desenvolvimento da estratégia de pesquisa que sustenta o incremento dos transgênicos é medida em função da capacidade que a estratégia materialista possui de promover um dos três valores da ciência amplamente compartilhados, a saber, a neutralidade. Uma das formulações que tal valor pode receber é a seguinte: “quanto às aplicações na tecnologia e em projetos práticos, os resultados científicos podem ser usados para servir interesses conectados a alguns (ou muitos) pontos de vista políticos”. Contudo, o conhecimento da biotecnologia transgênica não possui “qualquer papel nos projetos das várias formas alternativas de agricultura, como, por exemplo, a agroecologia”. A diversidade de maneiras pelas quais as aplicações tecnológicas atendem perspectivas de valores (sociais, não-cognitivos) deve ser conhecida por meio de investigação científica apropriada capaz de revelar factualmente em que medida uma estratégia fomenta a neutralidade. Tal pesquisa poderia mostrar que “o corpo atualmente existente de resultados científicos serve especialmente bem para um tipo de projeto político a expensas de seus competidores” ou seja, os programas políticos ligados aos interesses do capital e do mercado que são satisfeitos com o desenvolvimento da tecnociência. Se este for esse o caso, “parecerá estranho falar hoje em ciência como, de fato, ‘neutra’”. Podemos ver que, com tal diagnóstico, Lacey pode obter a adesão dos pesquisadores interessados em defender os va- 516 Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.16, jul./dez., 2006, p. 511-517. Fisolofia, ciências e transgenia lores da ciência ao apresentar outras estruturas éticas institucionalizadas nas quais a pesquisa poderia ser feita de modo a aproximar os valores que discursivamente afirmamos daqueles que concretamente praticamos. Em suma, o esclarecimento ético e epistemológico que encontramos em A controvérsia sobre os transgênicos mostra que conduzir a ciência por estratégias alternativas à materialista não é um sonho nostálgico de uma vida irremediavelmente perdida, mas uma possibilidade obscurecida por RESENHA interesses bastante restritos de certas organizações políticas e sociais historicamente contingentes. Mais do que isso, penso que tal modelo poderá ser utilizado no encaminhamento de soluções racionais para questões análogas à dos transgênicos, a saber, aquelas que se opõem à alegada racionalidade da associação mercado-tecnociência, mas que preservam o valor das conquistas teóricas e práticas da ciência. Recebido em: maio de 2006 Aprovado em: julho de 2006 Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.16, jul./dez., 2006, p. 511-517. 517